Olhares Interseccionais

Devemos homenagear o racismo? Subsídios jurídicos para a retirada do nome de pessoas com ideais racistas de locais públicos

A retirada de homenagens a escravocratas reflete a justiça de transição, promovendo memória, reparação e combate ao racismo estrutural no Brasil.

17/2/2025

O ano de 2025 iniciou com uma notícia que surpreendeu os movimentos sociais engajados no combate ao racismo. No dia 2 de janeiro, o prefeito do Rio de Janeiro sancionou a lei 8.780/25. O ato de Eduardo Paes revogou a lei 8.2025/23, que proibia a instalação e a manutenção de monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens com menção positiva a escravocratas e eugenistas.

A revogação da lei em questão mostra o quanto ainda estamos distantes de medidas concretas que debelem o racismo e que promovam a devida reparação história a negros e negras no Brasil. Por isso mesmo, é preciso avançar nesse debate com argumentos sólidos, demonstrando que o fim das homenagens ao racismo é algo não apenas possível e necessário, mas urgente.

Este artigo tem como objetivo analisar a viabilidade e pertinência jurídica da retirada do nome de pessoas associadas ao escravismo, ao racismo e à eugenia de locais públicos como medida de justiça à população negra no Brasil.

A análise do tema leva em consideração políticas de reparação histórica voltadas a grupos herdeiros da escravização de pessoas africanas e de seus descendentes. Lembremos que o Brasil não foi apenas um país com escravizados, mas um país escravista. Aqui a mão de obra escravizada se constituiu como regra, como espinha dorsal que moldou a base de nossas relações de trabalho e da sociabilidade. Não por outra razão, a América Portuguesa e o Brasil imperial receberam milhões de africanos escravizados, constituindo-se, com larga vantagem, no principal destino dessas pessoas em todo o mundo.

Por ouro lado, a escravização de pessoas negras no Brasil não decorreu apenas da vontade dos senhores e senhoras de “escravos”. Não se sustentou somente na imposição de interesses particulares sobre a ordem pública. A escravização no Brasil foi uma política de Estado, algo similar ao que hoje denominamos de política pública, sendo estruturalmente legitimada, normalizada e incentivada por diferentes dimensões dos poderes públicos daquele contexto.

Ocorre que, infelizmente, não se construiu no Brasil um consenso em torno de ter a escravidão se caracterizado como ação do Estado. Isso decorre do fato de ainda não termos desvelado de forma consistente esse passado. Nesse sentido, é preciso revelar a verdade sobre o que foi a escravidão no Brasil, quais seus responsáveis e principais beneficiários, assim como quais suas reais consequências para a população negra. De fato, necessitamos de uma justiça de transição referente à escravização de negros e negras no Brasil.

A justiça de transição consiste na tentativa de traduzir os esforços empreendidos em diferentes campos, não apenas no jurídico, a fim de lidar com o fim de um período traumático e a inauguração de um novo momento, de forma a garantir a não repetição do passado e a consolidação de um presente mais estável.

Ela é uma dimensão imprescindível ao desenvolvimento de uma democracia. Por isso está pautada no exercício de superação do passado através de seu enfrentamento, e  não do esquecimento. Funda-se no princípio do não retrocesso. Além disso, a justiça de transição possui forte viés institucional, já que se volta à reordenação do Estado, levando-o, por meio de seus representantes, a refletir e se reorientar, para que não aceite mais a fragilização de garantias jurídicas e a perseguição a grupos vulnerabilizados.

Sem sombra de dúvidas, a justiça de transição é aplicável ao período da escravização no Brasil e a suas projeções na atualidade, sobretudo ao combate ao racismo. Em linhas gerais, justificam essa afirmação a violação aos direitos humanos pela escravidão, ter ela se constituído como regime de exceção que negou direitos aos escravizados e traduzir o combate ao racismo um compromisso com o não retrocesso.

Levando em consideração seus elementos substanciais, a justiça de transição pode ser tratada a partir do direito à verdade, à memória, à justiça e à reparação. O direito à verdade diz respeito essencialmente ao acesso pela sociedade às informações referentes aos períodos de exceção por ela vivenciados. O direito à memória está intrinsecamente ligado à possibilidade de que os opositores do regime de exceção tenham espaço para expor a sua versão sobre o período. O direito à justiça consiste, basicamente, na   investigação, julgamento e punição daqueles que, em nome do Estado, praticaram crimes contra a população civil. Já o direito à reparação significa o dever de fazer cessar o ato ilícito causador da violação ao ordenamento jurídico ou de seus efeitos.

O debate atual sobre as heranças de nosso passado escravocrata, da forma omissa como nosso Estado tratou a desagregação do cativeiro, do racismo que estrutura as relações sociais no Brasil e da defesa de direitos da população negra passa, indiscutivelmente, por essas diferentes dimensões da justiça de transição.

Nesse contexto, a supressão de homenagens atualmente prestadas pelo Estado brasileiro a pessoas associadas ao escravismo, ao racismo e a eugenia se configura como medida adequada, razoável, atual e justa para a implementação de uma justiça de transição aplicada às questões étnico-raciais.

Tal demanda decorre do legítimo acúmulo de consciência e do amadurecimento de estratégias de resistência à perpetuação do racismo que estrutura nossa sociedade. Mais do que isso, é expressão do senso de oportunidade jurídica produzido a partir da compreensão de que nosso atual Sistema de Justiça é capaz de receber e de dar o devido tratamento a tema tão sensível e caro à sociedade brasileira.

Como medida efetiva e pautada numa justiça de transição, a retirada das homenagens aqui referida é medida legal, razoável, atual e legitima de concretização do direito à memória, à verdade e à reparação há muito ansiados pela população negra, herdeira direta do escravismo e que até hoje, em todas as dimensões sociais, econômicas e simbólicas, carrega as marcas do sistema de cativeiro e da forma omissa com que o Estado brasileiro encarou o abolicionismo.

A discussão aqui tratada toca diretamente na responsabilidade do Estado brasileiro quanto ao incentivo, legitimação, patrocínio e propagação das ideias defendidas pela pessoa que dá nome ao espaço público, assim como, por evidente, a responsabilidade estatal de lhe ter prestado homenagem nomeando locais públicos e de manter atualmente tal deferência. Isso porque o escravismo, o racismo e a eugenia que se pretende combater não são somente aqueles propagados individualmente, mas sim os elevados ao plano do Estado.

Cabe ao Estado brasileiro atual, em suas distintas expressões, ou seja, ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário Federal, estadual, municipal e distrital, implementar uma justiça de transição exatamente porque esse mesmo Estado outrora permitiu, justificou e mesmo incentivou o escravismo, o racismo e eugenia, bem como as mazelas dele decorrentes.

A retirada de homenagens a escravocratas, racistas e eugenistas da toponímia é uma demanda reparatória com forte eficácia. Ela significa que o Estado brasileiro, em sua atual configuração democrática, não compactua com a manutenção de deferências carregadas de violência contra grupos vulnerabilizados, no caso, contra a população negra brasileira.

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Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.