Olhares Interseccionais

De que abolição estamos falando?

Que liberdade é essa que nunca chegou? Juliana Gois discute criticamente a abolição da escravidão no Brasil e expõe correntes invisíveis da escravidão moderna e o racismo estrutural.

12/5/2025

O dia 13 de maio é oficialmente lembrado como a data da abolição da escravidão no Brasil. No entanto, é preciso questionar: que abolição foi essa?

Em uma cena marcante da teledramaturgia brasileira, na novela Sinhá Moça (1986), é possível assistir à chegada dos imigrantes italianos, momento que a personagem Sinhá Moça faz a entrega dos contratos de trabalho formais, dizendo: “diga a eles que são bem-vindos, eles ficarão muito bem instalados, mas logo será cedida terra para que todos possam construir suas casas, diga a eles que são livres para andar pela fazenda e as crianças para brincar, quanto ao trabalho existirão certas regras que deverão ser seguidas por todos, eles serão pagos pelo que produzirem”. Na sequência a cena segue para os ex-escravizados, indo embora da fazenda, descalços, sem mala, sem ferramentas, sem terra, sem nada, com o texto da lei Áurea passando pela tela:

Art. 1º É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil. 

Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário. 

E finaliza com a seguinte frase: “… E de tudo o que plantaram, nada lhes restou… nem da terra, nem dos frutos. Apenas a Liberdade” (Benedito Ruy Barbosa, 1986).

É evidente a desigualdade no tratamento dispensado aos imigrantes recém-chegados em comparação às pessoas negras submetidas à escravidão, disparidade cujas consequências negativas ainda reverberam em nossa sociedade. Embora o Brasil tenha abolido formalmente a escravidão em 1888, jamais rompeu, de fato, as correntes que continuam a manter corpos negros à margem da dignidade. Hoje, essas correntes assumem novas formas, como o trabalho forçado, as condições degradantes, a servidão por dívida e as jornadas exaustivas, práticas tipificadas como crime de redução a condição análoga à de escravo, no art. 149 do CP.

Conforme dados do RadarSIT - Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil em 2024, foram resgatados 2.004 trabalhadores e trabalhadoras em condições análogas à escravidão. Dentre eles, 78% eram homens, dos quais 82% se autodeclararam pretos ou pardos. No que se refere ao trabalho doméstico, 19 pessoas foram resgatadas; os dados indicam que, nesse tipo de resgate, a maioria das vítimas, cerca de 80%, são mulheres negras. Em 2025, o Brasil completa 30 anos do reconhecimento oficial pelo Estado, da existência de formas contemporâneas de escravidão, ocorrido em 1995. Desde então, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel já resgatou 65.598 trabalhadores e trabalhadoras dessas condições.

Os dados do Ministério do Trabalho revelam uma realidade alarmante: a maioria dos trabalhadores resgatados da escravidão contemporânea é composta por homens negros, com baixa escolaridade, oriundos de regiões marcadas por baixos índices de desenvolvimento econômico e inseridos em contextos de acentuada vulnerabilidade social. Tal cenário não é fruto do acaso e sim reflexo do racismo estrutural e, sobretudo, de um projeto histórico de exclusão da população negra.

Após a abolição, diversas legislações foram instituídas visando criminalizar a população negra e sua cultura. O CP de 1890, por exemplo, tipificava como crimes a vadiagem (art. 399), a capoeira (art. 402) e a mendicância (art. 399). A lei de terras (1850) impediu que ex-escravizados tivessem acesso à propriedade fundiária. Houve, ainda, repressão ao samba, às religiões de matriz africana e a sistemática negação de direitos civis e trabalhistas. Nesse contexto, o acesso da população negra ao mundo do trabalho formal foi dificultado por políticas e práticas que priorizavam o embranquecimento. Até tempos recentes, não era incomum encontrar anúncios de emprego com a exigência velada de 'boa aparência', um eufemismo socialmente aceito para a preferência por pessoas brancas.

A abolição no Brasil, além de tardia, ocorreu sem o respaldo de leis ou políticas públicas que promovessem a inclusão da população negra no mercado de trabalho formal. Ao contrário, o que se observou foi um processo deliberado de marginalização ainda mais profunda desse grupo social.

Em decisão recente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro por omissão em um caso de racismo, Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes vs. Brasil. A Corte atribuiu responsabilidade ao Estado brasileiro pelas falhas na condução da investigação de um caso de discriminação racial e de gênero ocorrido em 1998. Segundo o entendimento da Corte, houve configuração de racismo institucional, diante da ausência de investigação adequada e da falta de sanção aos responsáveis.

A decisão da Corte Interamericana obriga o Estado brasileiro a, mais uma vez, reconhecer a persistência do racismo estrutural e institucional. Tal determinação nos impele a refletir criticamente sobre o sistema de Justiça, questionando: onde está a representatividade da maioria da população, composta por pessoas pretas e pardas? Quem tem ocupado os espaços de poder e tomado decisões que, muitas vezes, negam a própria existência do racismo? Diante desse cenário, evidencia-se a urgência de uma maior pluralidade no sistema de Justiça, condição fundamental para assegurar a legitimidade de suas decisões. Entre as medidas impostas pela Corte, destaca-se a obrigatoriedade da inclusão, nos currículos de formação de membros do Judiciário e do Ministério Público, de conteúdos voltados à temática da discriminação racial.

Nesse sentido, Adilson Moreira ressalta a importância de adotar uma hermenêutica jurídica, isto é, uma perspectiva jurídica comprometida com a experiência e a vivência de um jurista negro: “Juristas que pensam como um negro não precisam ter acesso à experiência subjetiva do sofrimento gerado pela discriminação, mas sim ter conhecimento da operação dos vários processos de subordinação que membros desse grupo enfrentam” (Moreira, 2020, p. 29).

A recente condenação imposta pela Corte Interamericana de Direitos Humanos abre espaço para uma discussão urgente: a necessidade de reparação. Reconhecer a existência do racismo estrutural não é suficiente; é imprescindível que o Estado adote políticas concretas de enfrentamento, pautadas na redistribuição de renda, no acesso ao trabalho digno, à educação, à moradia e à Justiça. 

Como aponta Caio Prado Júnior (2011), a escravidão constitui a marca fundante da sociedade brasileira, moldando profundamente suas relações sociais. Romper com a perpetuação de seus efeitos exige um compromisso sério e efetivo do Estado com a garantia de condições essenciais para a população negra poder viver com dignidade, livre da opressão, da violência, da exclusão e da exploração.

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1 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (Corte IDH), Caso Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes vs. Brasil, sentença de 7 de outubro de 2024. Disponível aqui. Acesso em: 7 de maio, 2025.

2 JUNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. Companhia das Letras, 2011.

3 MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contra Corrente, 2020.

4 RADARSIT. Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 7 de maio, 2025.

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