Olhares Interseccionais

A entrada é pela porta da frente

A coluna aborda o percurso do CNJ rumo à equidade racial no Judiciário, destacando ações afirmativas, pactos institucionais e o impacto da Carta de Brasília.

7/7/2025

Na última década, o CNJ intensificou ações destinadas à construção de um programa nacional de equidade racial, com o objetivo de reduzir a disparidade entre o perfil da população brasileira e o perfil da magistratura.

Como órgão responsável pela governança do Poder Judiciário, o CNJ recebeu um importante alerta sobre a composição racial da magistratura brasileira em 2013. Dados obtidos a partir do 1º Censo do Poder Judiciário revelaram que 84,2% dos juízes se autodeclararam brancos, enquanto apenas 1,4% se identificaram como pretos e 14,2% como pardos. Era o retrato de uma magistratura com perfil racial desconectado da realidade demográfica do país.

A partir desse diagnóstico, o CNJ começou a desenhar uma resposta estruturada para o problema da sub-representatividade de pessoas negras no Judiciário. Em 2015, veio o primeiro marco concreto: a Resolução 203, que determinou a reserva de 20% das vagas em concursos públicos do Judiciário para pessoas negras, uma ação afirmativa que traduziu o reconhecimento de que a ideia de "meritocracia pura", longe de promover igualdade, perpetua e legitima desigualdades históricas enraizadas em um passado escravocrata.

Merece destaque a atuação estratégica e empiricamente embasada do CNJ, que não se contentou com o estabelecimento de cotas raciais como única alternativa para viabilizar a presença de mais pessoas negras no Judiciário, indo além na estruturação de um projeto nacional de equidade racial.

Nesse trajeto, uma importante atuação da sociedade civil foi o catalisador da engenharia das políticas de equidade racial do CNJ, a partir de 2018. Trata-se da Carta de Brasília, documento produzido no II ENAJUN - Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros, que foi entregue ao então presidente do CNJ e, com base em números e estatísticas, apresentava proposições para solucionar a constatada ausência de diversidade racial nos espaços decisórios. Inegavelmente, a Carta de Brasília representou um ponto de inflexão no tratamento dado à equidade racial no Judiciário, na medida em que, pela primeira vez, o CNJ recebeu propostas construídas a partir da perspectiva de magistradas e magistrados negros, pessoas que vivenciaram - e vivenciam - a experiência do racismo e da sub-representação em espaços de poder.

A partir da Carta de Brasília, a questão racial no Judiciário deixou de ser tratada como uma pauta marginal para se tornar uma agenda institucional prioritária. O documento provocou debates e reflexões importantes, estabelecendo as bases conceituais e práticas para as iniciativas subsequentes direcionadas à equidade racial no Judiciário, traçando um percurso estratégico marcado pela sofisticação sistêmica.

Nessa linha de acontecimentos pós-Carta de Brasília, em 2020, um Grupo de Trabalho especializado em Igualdade Racial mapeou como o racismo institucional influencia a composição e o funcionamento do Judiciário, propondo, ao final, ações específicas baseadas em evidências empíricas - não em boas intenções. O grande salto qualitativo veio em 2022, com o lançamento do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, assinado por 100% dos tribunais brasileiros, um feito que demonstra como a questão racial passou a ocupar o centro da agenda institucional.

O Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial não é uma mera carta de intenções. Trata-se de um documento que estrutura a luta antirracista e a busca pela equidade racial em quatro eixos estratégicos bem definidos: promoção efetiva da equidade, desarticulação sistemática do racismo institucional, coleta e sistematização rigorosa de dados raciais e articulação permanente entre instituições.

Outro fruto da Carta de Brasília foi a criação do FONAER - Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial, instalado oficialmente em 2023, que representa algo inédito na história institucional brasileira: um espaço permanente e nacional onde a magistratura, o Ministério Público, Defensorias Públicas e organizações da sociedade civil se reúnem para debater e propor soluções para as desigualdades raciais no sistema de justiça. É, sem dúvida, a institucionalização de um diálogo necessário que já ocorria informalmente entre pessoas que atuam no sistema de justiça e veem a equidade racial como uma política de Estado.

A iniciativa mais recente do CNJ - e, para algumas pessoas, ousada - é também a que melhor exemplifica a evolução desse trajeto em direção à equidade racial, ultrapassando a ideia de exclusividade da política de cotas para solucionar o problema da desigualdade racial no Judiciário. O Programa CNJ de Ação Afirmativa para Ingresso de Pessoas Negras e Indígenas na Magistratura, lançado em 2024, oferece bolsas integrais de estudo em cursos preparatórios especializados, além de auxílio mensal de R$ 3 mil por até dois anos. Essa abordagem é revolucionária porque reconhece uma realidade cruel que as políticas de cotas tradicionais ignoram: não adianta reservar vagas se as pessoas negras que se candidatam não têm condições socioeconômicas para se preparar adequadamente para concursos extremamente competitivos.

Insistir na política de cotas raciais, pura e simplesmente, é como organizar uma corrida e dizer que todas as pessoas têm chances iguais, mas deixar algumas começarem quilômetros atrás da linha de largada com uma parte delas carregando bolas de ferro presas aos pés. Se nessa competição for considerada - como deve ser - a interseccionalidade entre gênero e raça, o desafio da equidade racial se revela ainda mais complexo e urgente. Mulheres negras, que representam cerca de 28% da população brasileira, enfrentam uma dupla barreira de exclusão: primeiro como mulheres em um ambiente tradicionalmente masculino, depois como negras em um espaço historicamente branco. Sua quase total ausência nos tribunais superiores não é coincidência estatística; é o resultado acumulado de décadas de barreiras estruturais que se sobrepõem e se reforçam, mutuamente.

O Programa CNJ de Ação Afirmativa para Ingresso de Pessoas Negras e Indígenas na Magistratura veio como um esforço para nivelar o campo de jogo antes mesmo que a competição comece. Os resultados iniciais são animadores: até julho de 2024, já foram captados R$ 5 milhões por meio de parcerias estratégicas com a iniciativa privada, viabilizando 700 bolsas de estudo.

É certo que, com apenas 13,6% de juízas e juízes negros em um país que é 56% negro, a meta da equidade racial ainda permanece um horizonte distante e o atraso é significativo. Porém, como afirmou o Presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, "apesar do atraso histórico do Brasil nesse quesito, avançamos muito em um curto espaço de tempo nos últimos anos", tendo havido um salto qualitativo e quantitativo nesse avanço a partir da Carta de Brasília.

Que NÓS sigamos avançando em direção a um Judiciário onde a equidade racial se apresente como fator essencial para a legitimidade democrática desse poder. Afinal, como disse a juíza federal Adriana Cruz: "A vida é uma festa para a qual todos nós fomos convidados com direito a entrar pela porta da frente”.

Este texto é uma homenagem ao amigo e juiz de Direito Edinaldo César Júnior, um dos fundadores do ENAJUN e colaborador na elaboração da Carta de Brasília. Edinaldo nos deixou, precocemente, mas segue presente em cada ação desencadeada a favor da equidade racial no Judiciário.

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Referências

AMB. Associação dos Magistrados do Brasil. Carta de Brasília - documento apresentado ao CNJ, como resultado do II Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros - ENAJUN. Brasília: 2018 Disponível aqui.

CNJ. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Censo do Poder Judiciário: VIDE: Vetores iniciais e dados estatísticos. Brasília/DF, 2014. Disponível aqui.

CNJ. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução 203, de 23 de junho de 2015. Dispõe sobre a reserva aos negros, no âmbito do Poder Judiciário, de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura. Brasília/DF, 2015. Disponível aqui.

CNJ. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Portaria n. 108, de 08 de julho de 2020. Institui Grupo de Trabalho destinado à elaboração de estudos e indicação de soluções com vistas à formulação de políticas judiciárias sobre a igualdade racial no âmbito do Poder Judiciário. Brasília/DF, 2020a. Disponível aqui.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2022: pela primeira vez, desde 1991, a maior parte da população do Brasil se declara parda. 22/12/2023. Disponível aqui.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

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Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.