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Atravessando a linha das boas intenções: O enunciado 10 da I Jornada da Justiça Federal pela Equidade Racial

O enunciado 10 da I Jornada pela Equidade Racial marca a virada das boas intenções em ação: prevê recursos para formar e letrar o Judiciário no combate efetivo ao racismo institucional.

21/10/2025

Na linha da mudança institucional capitaneada pelo CNJ, no que se refere a ações destinadas à promoção da equidade racial no Poder Judiciário, o CEJ - Centro de Estudos Judiciários e o STJ realizaram, em 2024, a I Jornada da Justiça Federal pela Equidade Racial que, de modo histórico, resultou na aprovação de 49 enunciados que estabelecem diretrizes para incorporar a perspectiva racial à atuação jurisdicional e administrativa dos tribunais. 

A concretização do Caderno de Enunciados pela Equidade Racial foi fruto de intensos debates que se estenderam por meses até a realização da própria Jornada, onde foram votados os textos produzidos por um grupo plural, composto por membros do TSE e do STJ, das magistraturas federal, estadual e trabalhista, bem como respectivos servidores e servidoras, além de integrantes da OAB - Ordem dos Advogados do Brasil, da academia e da sociedade civil. 

Os enunciados aprovados foram organizados em 7 eixos temáticos: políticas judiciárias, liberdade de pensamento, de consciência e de crença, proteção dos direitos das comunidades quilombolas, relações de trabalho, responsabilidade civil e penal, racismo algorítmico e a IA, concursos públicos e ações afirmativas. 

Como bússola desse conjunto de orientações com verdadeiro caráter principiológico, surgiu o enunciado 1, que apresenta uma síntese categórica da igualdade substancial: equidade racial em tudo, paridade de gênero sempre. Apesar de sua evidente autoridade, ancorada na Constituição e em normas convencionais sobre direitos humanos, o enunciado 1 - assim como os demais 48 – somente será implementado quando as políticas de enfrentamento ao racismo e de promoção da equidade racial no Judiciário integrarem o programa de governança dos tribunais. 

Atentando-se para esse cenário, o grupo de trabalho aprovou o enunciado 10, que traz o seguinte conteúdo: "Os tribunais devem incluir, na programação orçamentária anual, destinação de recursos para a realização de ações pertinentes à formação continuada de magistrados(as), servidores(as) e empregados(as) terceirizados(as) em questões étnico-raciais. Isso inclui cursos, seminários, eventos culturais, rodas de conversa, entre outros; além da aquisição de material bibliográfico academicamente referenciado para compor as suas respectivas bibliotecas." 

Trata-se de uma formulação que vai além de costumeiras declarações de boas intenções no combate ao racismo, consolidando a transição da fase de sensibilização para a efetiva institucionalização de políticas antirracistas, que devem ser incluídas no planejamento de gestão formulado pela administração dos tribunais, a fim de garantir recursos financeiros destacados para a formação de pessoas em questões étnico-raciais; a agenda racial sai, portanto, do campo das intenções e entra no terreno de mecanismos concretos voltados ao cumprimento do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial (2022). 

Inegavelmente, a exigência de previsão orçamentária específica - abrangendo cursos, seminários, eventos e aquisição de material bibliográfico - viabiliza o que é fundamental para a efetivação de um programa de equidade racial: a capacitação da magistratura e de todo corpo funcional dos tribunais. Sem um letramento racial qualificado e continuado, qualquer política antirracista corre o risco de desaguar em meras campanhas de sensibilização para questões raciais - embora se trate de tema central nas relações sociais há mais de três séculos. 

É importante frisar que, assim como ocorre em relação às cotas raciais, a capacitação ou letramento racial é ferramenta essencial, mas, por si só, é insuficiente para que se alcance um estado de equidade racial no Judiciário, sendo necessárias uma política permanente de ações contra o racismo e a verificação dos respectivos resultados, a fim de viabilizar o seu constante aprimoramento.

De qualquer modo, o destaque da verba necessária para a formação inicial e continuada em questões raciais, como proposto pelo enunciado 10, constitui um marco histórico por cruzar a linha entre a boa intenção e a efetiva prática antirracista pelos tribunais. 

Sem a devida compreensão sobre o racismo e seus impactos na sociedade, a magistratura e todo corpo funcional dos tribunais, em sentido amplo, tendem a fazer leituras rasas e equivocadas do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial e da resolução 598/24 do CNJ - protocolo de julgamento com perspectiva racial, reduzindo o alcance das diretrizes fixadas para o reconhecimento de práticas racistas que, muitas vezes, passam despercebidas nas rotinas judiciais. 

Ao garantir o financiamento para a capacitação em questões raciais, incluindo a aquisição ou ampliação do acervo bibliográfico sobre o tema, o enunciado 10 cumpre um papel estratégico: cria as condições materiais e pedagógicas para que os tribunais ultrapassem a linha entre o tempo da sensibilização sobre o racismo e o tempo da ação destinada ao letramento racial que proporcione a formação técnica qualificada. 

A integração desse letramento racial ao planejamento orçamentário e à cultura institucional do Judiciário é indispensável para garantir a sustentabilidade do programa de políticas pela equidade racial. Com isso, evita-se que as ações antirracistas e a qualificação para o cumprimento da resolução 598/24 dependam do voluntarismo individual ou fiquem restritas a iniciativas esporádicas e datas comemorativas - como o julho das pretas e o mês da consciência negra. 

Inegavelmente, o combate ao racismo deve se converter em uma diretriz de governança e um compromisso institucional do Poder Judiciário, afinal, como bem fundamentado na justificativa do enunciado 1, "a busca pela equidade racial no Brasil transcende a mera igualdade formal, exigindo o reconhecimento das profundas cicatrizes deixadas pela exclusão e marginalização da população negra ao longo do tempo". 

Assim, passados séculos desde o início da escravização de pessoas negras no Brasil, já houve sensibilização suficiente acerca do racismo e seus males. Agora, é hora de agir e isso demanda investimento financeiro. 

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CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL; SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Enunciados da I Jornada pela Equidade Racial. Brasília: CJF/STJ, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 20/10/25. 

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Brasília: CNJ, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 20/10/25. 

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução 598, de 26/6/24. Estabelece o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial no âmbito do Poder Judiciário. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 1 jul. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 20/10/25.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

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