Reforma do Código Civil

O Direito dos Contratos no Projeto de Reforma do Código Civil e o mito da “consumerização”

A coluna aborda como o rótulo de consumerização deturpa o debate e ignora que a reforma do CC busca corrigir inconsistências internas com base técnica e discussão séria.

9/12/2025

1. Sobre o apelo fácil dos rótulos, e sua inadequação à honestidade do debate público

Na superficialidade da civilização do espetáculo, os rótulos e clichés, como instrumentos de falsa redução de complexidade, valem mais do que a verdade.

Isso não deveria ocorrer em meios intelectuais, nos quais se pressupõem conhecimento, estudo, seriedade nas análises.

Infelizmente, porém, o Zeitgeist, por vezes, contamina até mesmo esses ambientes, inclusive no meio jurídico. 

Exemplo disso é o rótulo que, frequentemente, e de modo equivocado,  tem-se tentado adesivar ao projeto de reforma do CC, especialmente em matéria contratual: "consumerização".

Se é certo que as críticas ao Projeto são essenciais ao seu debate democrático, desde aquelas de caráter construtivo até aquelas francamente mais acerbas, não menos certo é que a exigência elementar é que tais críticas se baseiem nos pressupostos da seriedade e da boa-fé, inerentes à razão comunicativa na ágora pública.

Por isso, surpreende tanto o vazio rótulo de “consumerização” repetido por alguns.

O rótulo tem emergido sob três contextos diferentes. O primeiro vem do desconhecimento sobre o conteúdo do PL 4/25, sendo repetido o rótulo sem que se tenha estudado verdadeiramente o texto da proposta legislativa. O segundo parece ser fruto de compreensão francamente equivocada a respeito dos próprios institutos constantes do PL, a partir da suposição de que, por estarem presentes (parte deles) também nas relações de consumo, seriam alheios às obrigações civis e empresariais. O terceiro, a seu turno, é aquele que emerge dos que conhecem as regras propostas no PL, os institutos e figuras jurídicas ali empregados, sua origem e aplicabilidade, mas, mesmo assim, fazem do discurso raso ferramenta de embate.

Não há, sob qualquer viés, seriedade na acusação de “consumerização” que vem sendo realizada.

Quanto ao primeiro contexto citado, o estudo honesto e cuidadoso do PL, em sua inteireza, é o antídoto. No que diz respeito ao terceiro contexto, em que a honestidade do debate é substituída pelo argumento contraditório não apenas frente ao que o interlocutor sabe, mas, até mesmo, ao que já sustentou academicamente, antídoto não há, e, portanto, pouco resta para dizer.

O objetivo deste texto, portanto, é desmistificar alguns dos argumentos empregados, no segundo contexto acima descrito, desvelando o verdadeiro caráter das alterações propostas pelo projeto de reforma do CC.

2. Contratos de adesão

Uma crítica que tem sido formulada sob o falso rótulo da “consumerização” diz respeito ao art. 423 do CC. Na sua redação atual, o comando legal dispõe que “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”. 

O PL 4/25, por sua vez, propõe a seguinte redação, no parágrafo segundo do art. 423: “Os contratos de adesão serão interpretados de maneira mais favorável ao aderente”.

Argumenta-se que, no art. 47 CDC, as cláusulas contratuais são interpretadas de modo mais favorável ao consumidor, o que, sob o olhar do falso rótulo objeto deste texto, seria prova de “consumerização”.

Seria despiciendo aprofundar a constatação de que a regra do CDC se aplica a todos os contratos de consumo, sejam eles celebrados ou não pela técnica de adesão, pelo que não é a técnica de adesão o móvel da norma, mas a condição de consumidor, em si mesma.

Talvez o caminho mais óbvio para demonstrar que a alteração proposta ao art. 423 nada tem de consumerização é a singela leitura do CC, tal como hoje vigente, em seu art. 113, par. 1º, inciso IV, em redação dada pela lei da liberdade econômica: “§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (...)IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável”.

Goste-se ou não da escolha do legislador de 2019 - e o autor deste texto não está entre os entusiastas da norma vigente -, o fato é que há, objetivamente, uma contradição performativa no CC. Em contratos paritários, sem a adoção da técnica de adesão, se um dos contratantes redigiu dada cláusula, a ela será dada a interpretação contra proferentem, mais benéfica a quem não redigiu o dispositivo, seja ele ambíguo ou não; em contratos não paritários (ou seja, de adesão), a interpretação mais favorável a quem aderiu ao contrato totalmente redigido pelo outro contratante somente teria vez em caso de ambiguidades.

Ou seja: a posição do contratante que adere ao todo, sem possibilidade de negociação, é, na redação atual do CC, menos favorável do que aquela do contratante que pôde negociar, mas não redigiu dada cláusula.

A reforma não poderia se furtar a eliminar essa contradição. A opção, independentemente da posição pessoal de cada membro da Comissão de Juristas, foi pela adequação conforme a lei da liberdade econômica, prestigiando a opção legislativa mais recente adotada pelo Congresso Nacional.

A escolha, pois, foi técnica e sistemática, não tendo como móvel a previsão constante do CDC.

Leia a coluna íntegra.

Colunistas

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Relator-Geral da proposta da reforma do Código Civil.

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Corregedor Nacional de Justiça. Membro da Corte Especial do STJ. Presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Marco Aurélio Bellizze é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Membro da 3ª Turma. Membro da 2ª Seção. Membro da Comissão de Jurisprudência. Professor da Fundação Getúlio Vargas desde 2021. Coordenador Acadêmico da FGV/Exame de Ordem. Vice-presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Rosa Maria de Andrade Nery é professora associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP. Livre-Docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Árbitra em diversas câmaras de arbitragem do Brasil. Foi Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por 20 anos e desembargadora do Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo por 15 anos. Titular da cadeira de número 60 da Academia Paulista de Direito. Professora do curso de graduação e de pós-graduação em Direito da PUC/SP e professora colaboradora do Centro Universitário Ítalo-Brasileiro. Relatora da proposta da reforma do Código Civil.

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