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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Direito ao sossego e falta de educação

Meu amigo Outrem Ego contou-me, há muito tempo, o seguinte caso (é da época em que ainda existiam locadoras): ele encomendara um filme em DVD para locação pelo telefone. Quanto chegou à locadora, junto com ele entrou um homem e na frente dele perguntou sobre o mesmo filme. A atendente disse que não havia nenhum, mas o homem viu a fita sob o balcão e apontou. Ela disse que estava reservado exatamente para outra pessoa e mostrou meu amigo. O homem ficou irritado e Outrem Ego vendo a cena, disse: "Pode entregar para ele, eu alugo outra hora". O homem então pegou o filme, se virou e foi embora sem agradecer e, aliás, sem nem olhar para a cara de meu amigo. Como diria meu amigo, "É mole?" De fato, a falta de educação é uma característica marcante de nossa sociedade. Não é incomum, infelizmente, que uma pessoa entre no elevador de um prédio, encontre o vizinho, o cumprimente e fique no vazio, aguardando uma resposta. Retorno, pois, ao assunto da má educação especificamente no que envolve o direito ao sossego. A falta de educação, de cortesia, e de respeito ao direito alheio no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais abertamente violado. A questão é tão absurda que há catalogados vários casos de violência e morte por causa da transgressão a esse sagrado direito, como tive oportunidade de aqui mesmo mostrar. Lembro que o direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito, que envolve uma série de transtornos que já foram avaliados e julgados pelo Poder Judiciário, que, por exemplo, considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente etc. Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente. Num caso em que se considerou excessivo o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação da planta pela Prefeitura e seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou que a quadra de esportes produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha aprovado sua construção. Aliás, lembro que os shows produzidos em estádios de futebol e que violam às escâncaras o direito ao sossego dos vizinhos são, como regra, autorizados pela Prefeitura local. Alguns shows, inclusive, varam a noite e a madrugada, numa incrível violação a céu aberto. Realço que, nesses casos, a própria Prefeitura é responsável pelos danos causados às pessoas. Disse acima que a legislação pátria é rica no tema. Muito bem. A Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo decreto-lei 24.645/1934 que dispõe que "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (lei 9.605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". Essa mesma lei ambiental pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". E o Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 2003, garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Consigno que, para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras. A questão, portanto, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais. É isso! E durma-se com um barulho desses!
Começo contando uma piada: dois irmãos, um menino com 8 anos de idade e uma menina com 10, conversavam. O menino pergunta para a menina: - O que você vai pedir de presente no Dia das Crianças? - Eu vou pedir uma boneca Barbie, e você? - Eu vou pedir um O.B.!, responde o menino - O.B.?! O que é isso ? - Eu não sei. Mas, olha mana, na televisão dizem que com O.B. a gente pode ir à praia todos os dias, dá pra andar de bicicleta ou andar a cavalo, dançar, ir ao clube, correr. Dá pra fazer um montão de coisas legais. E sabe o que é o melhor? Sem que ninguém perceba! *** De fato, o poder da publicidade é incrível! Meu amigo Outrem Ego disse: "Eu sou um admirador da publicidade. Adoro as criativas, as que me divertem ou que me emocionam e ainda por cima conseguem mostrar o produto, o serviço e/ou a marca. Não gosto das machistas, das preconceituosas nem das mentirosas. E sempre espero que as pessoas pensem como eu percebendo a diferença entre elas". Depois de falar desse modo, me presenteou com uma revista, publicada pela Folha de São Paulo, a Top of Mind 2015, na qual são apresentadas as marcas mais lembradas pelos consumidores, por causa das campanhas milionárias feitas por agências nacionais e multinacionais. Ele disse: "Veja a página 65". Eu fui ver. Nela aparece o plano de saúde mais lembrado do Brasil. Você leitor, sabe qual é? Unimed! A Unimed do Brasil, que como consta das informações oferecidas na página 78 da revista, gerencia a marca Unimed junto a 351 cooperativas médicas. O nome Unimed soa bem aos ouvidos? Na página citada tem um slogan: "Cuidado é o que nos une. A lembrança é o que nos fortalece". Só esqueceram de contar para os 744 mil clientes da Unimed Paulistana que, recentemente, ficaram ao Deus-dará depois que a Agência Nacional de Saúde determinou que a operadora abandonasse sua carteira. Eu continuo com muita dificuldade de entender porque as empresas investem milhões em publicidade para atrair o consumidor para seus produtos e serviços e economizam na outra ponta, quando, inclusive já estão com o consumidor conquistado. O setor de atendimento - tirando exceções - continua muito ruim no país. Há toda uma preocupação com a ponta da oferta mas, em muitos casos, a ponta do atendimento é desprezada. O problema é generalizado e aparece em todos os setores da economia. É a falta de respostas para os problemas enfrentados pelo consumidores com os produtos adquiridos, é o atendimento descortês e ineficiente em setores de telefonia, tevê a cabo, fornecedores de energia e água, é o desprezo pela reclamação feita via telefone, com o consumidor perdendo muito tempo na espera, enfim, não há investimento nem a preocupação no cuidado e atenção para com o consumidor depois que ele foi conquistado. E se o consumidor por algum motivo (muitos bastante justos) fica inadimplente, em alguns casos ele se torna persona non grata. Está mais que na hora das empresas preocuparem-se com a manutenção de sua clientela. E mais: lembro que um consumidor inadimplente é ainda um consumidor em potencial. Basta que ele seja compreendido em seus problemas e, muitas vezes, ajudado para que consiga resolver a pendência e voltar a consumir. É muito bacana aparecer na mídia que mostra o sucesso da publicidade massiva e caríssima oferecida ao mercado. Parece mesmo interessante "ser lembrado" por causa dela. Mas, seria muito mais interessante, eficiente e barato, se a lembrança do consumidor viesse por causa da qualidade dos produtos e serviços adquiridos por ele e pela excelência do atendimento que ele recebeu antes e depois de adquiri-los.
Vem aí mais um dia das bruxas, que se tornou parte do calendário comercial e eu retorno ao tema. É lugar comum perguntar: o que é bom para os norte-americanos é bom para o resto do mundo? É bom para os brasileiros? Todos sabem que os gringos adoram impor seus produtos e serviços para os consumidores dos demais países e fazem isso muito bem, utilizando-se de várias técnicas, dentre as quais a da apresentação e entrega de seus projetos e modelos culturais, seus filmes, suas músicas, seus enlatados de tevê, sua língua.... Ok! (Ops...). Mas, no caso do Halloween, sou obrigado a reconhecer que eles não têm responsabilidade (ao menos diretamente). Fomos nós, brasileiros, que, de livre e espontânea vontade, importamos a "festividade macabra". Como já lembrei aqui neste espaço, no meu tempo de criança ou adolescente (há mais de quarenta anos) seria impensável um dia das bruxas no Brasil. Não sei quando começou. Mas, possivelmente há cerca de dez ou quinze anos, alguma escola de inglês deve ter feito a programação para seguir o ritual norte-americano. Depois, no ano seguinte mais um escola e mais outra etc.. Com a importação via tevê a cabo e também tevê aberta de, cada vez mais , filmes e mesmo programas jornalísticos que reproduzem a festa, aos poucos, os brasileiros foram se acostumando, como se ela também fizesse parte de nossa realidade. Daí, o "dia das bruxas" chegou às escolas de ensino fundamental; depois em baladas de adultos e, enfim, na atualidade, parece que ela tem a ver conosco. Atualmente, nas tevês a cabo, nos canais de programas infantis, são apresentados programas específicos somente sobre a festa. Evidentemente, o mercado, sempre de olho nas oportunidades, deu sua contribuição e eis que temos entre nós crescendo vigorosamente uma festa importada, sem qualquer fundamento cultural e mesmo sem sentido ritualístico. E as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma boa receita, vendem bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. Essa forma de domínio capitalista, no final do século XX e início do XXI, passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração, no que, claro, contam com a ativa participação dos consumidores. É verdade que algumas escolas, não conseguindo fugir do evento, estão começando a fazer atividades didáticas e lúdicas, sem o emporcalhamento de doces e guloseimas oferecidos em grandes quantidades e sem nenhuma função de educação ou saúde. Mas, é pouco, pois, infelizmente, tudo indica que o tal dia das bruxas, famoso nos EUA, instalou-se entre nós, de forma alegremente macabra (...). Meu amigo Outrem Ego enviou-me um texto que recebeu nos últimos dias da administração do condomínio onde ele tem uma casa de campo. É um convite para as crianças darem um passeio na "Trilha do Horror com o Expresso Zumbi" e com paradas nas casas dos condôminos para pedir doces. No final, aparece no texto escrito que o passeio será "mega divertido e assustador". Eu, mais uma vez, insisti com ele que nossas comemorações de Páscoa e Natal, por exemplo, também são importadas. Ele concordou, mas esperava que nos dias atuais fosse mais difícil que se implantasse entre nós algo sem ligação cultural ou base social apenas e tão somente visando às vendas de produtos. "No caso, venda de doces e porcarias". Bem, no caso das comidas, até o Natal mereceu uma adaptação. Por muitos anos - e ainda até hoje - nas comemorações natalícias, em pleno verão tropical e escaldante, são ingeridas comidas gordurosas, doces, frutos secos, nozes etc., alimentos típicos de lugares frios, de onde a festa foi importada. E o coitado do papai Noel é obrigado a trajar aquela roupa quente no calor de mais de 30 graus. O consolo é que, pelo menos, o Natal traz algum alento, especialmente para os que se lembram que nesta data é celebrado o nascimento de Jesus Cristo. Realmente, a conscientização a respeito do controle exercido pelo mercado ainda é pequena. O consumidor, considerado como tal, aos poucos, passou a reclamar e reivindicar direitos. Mas, ainda não consegue compreender exatamente porque participa de certos eventos ou gasta seu dinheiro adquirindo certos produtos e serviços. Essa questão do Halloween no Brasil oferece uma boa oportunidade para o exame de como as coisas são feitas, pois ainda estamos no seu nascedouro. Se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas, nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e para a obesidade infantil.
Meu amigo Outrem Ego conta que, certa vez, quando seu filho Waltinho tinha apenas 10 ou 11 anos de idade, pediu para que ele comprasse alguma coisa da qual ele (Waltinho) não precisava. Meu amigo respondeu: "Não dá. Eu não tenho dinheiro". O filho, então, disse: "Ah! Pai, usa o cartão"! Em nossa sociedade, vai-se comemorando o Dia das Crianças dando a elas produtos. Certamente, neste ano não será muito diferente com vendas de muita bugiganga, apesar da crise. Espero que coisas úteis também venham a ser oferecidas, mas não pretendo explorar esse ponto dos produtos e das vendas como manda o calendário. Quero aproveitar a data para, mais uma vez, propor uma reflexão sobre o tema do Dia das Crianças. Dessa vez, quero lembrar, desde logo, que criança é aquela que tem até apenas 11 anos de idade. De acordo com nosso sistema legal (ECA - lei 8.069/90, art. 2º "caput") a partir dos 12 anos a pessoa é já adolescente. Basta, pois, explicar ao jovem que não é o dia dele ou dela para não ter que presentar1. Sei que a questão das compras de produtos e serviços desnecessários ou supérfluos envolve muito mais os adultos que os menores (basta ver o problema do superendividamento das pessoas que não se controlam nas compras). Todavia, em datas comemorativas como esta, a posição dos maiores se agrava, pois eles têm muita dificuldade em dizer não. Os pais (e também os avós e demais parentes) poderiam - ou, melhor, deveriam - aproveitar essas ocasiões para refletirem sobre como querem que essas crianças não só recebam esses presentes quanto, também, que valor devam dar a eles. Claro que uma vez que se está decidido a dar o presente, o primeiro caminho é descobrir o que dar. Tem-se, portanto, que refletir sobre a qualidade do presente. Haverá coisas úteis e porcarias. Coisas indispensáveis e outras desnecessárias. O mercado, como sempre digo, saberá oferecer de tudo. Como já afirmei antes, cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Há ainda outro ponto importante: é preciso apresentar o custo das coisas. O preço de cada produto e a capacidade financeira que os pais têm para adquiri-los. É bastante salutar que os filhos saibam o peso que uma compra pode ter no orçamento doméstico. Caso contrário, a criança (e também o adolescente) poderá acreditar que na falta de dinheiro, basta usar o cartão de crédito... Bem, isso em relação à qualidade dos presentes. Agora, lembro da quantidade. Quantos presentes uma criança deve ganhar de uma só vez? Como se trata de uma data específica para a criança e essa às vezes tem muitas pessoas à volta para presenteá-la, é comum que ela acabe ganhando muitas coisas. Acontece que, é também comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem pela maior parte deles. A criança que ganha muita coisa numa só ocasião tende a desvalorizar tudo ou escolhe um e abandona o restante. A data é boa para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. A criança precisa aprender a valorizar o que ganha (Como o adulto aprende às duras penas. Sei que alguns nunca aprendem...). Isso, da quantidade excessiva, repete-se no Natal e é mais comum ainda na data do aniversário. Quando há festa de aniversário com muitos amiguinhos convidados, não é incomum que a criança aniversariante ganha 20 ou 30 presentes (literalmente). Faz algum sentido? Veja isso, meu caro leitor: um estudo recente realizado pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) com mães das 27 capitais brasileiras, que possuem filhos com idade entre 2 e 18 anos, revelou que 64,4% das entrevistadas não resistem aos apelos dos filhos quando eles pedem algum produto considerado desnecessário, como brinquedos, roupas e doces. O percentual é mais expressivo entre as mães das meninas (68,9%)2. O levantamento mostra ainda, que muitas vezes, nem é preciso que os filhos manifestem o desejo de ganhar um presente para recebê-lo: 59,6% das mães compram produtos não necessários para os filhos sem que eles peçam, apenas pelo prazer de vê-los usarem coisas que gostam. Infelizmente, é cada dia mais comum verificar que boa parte do endividamento das famílias está relacionada a compra de itens desnecessários para os pequenos. Há não só falta de critério como que uma espécie de questão emocional mal resolvida e capaz de influenciar fortemente o hábito inadequado de consumo. A pesquisa mostra, inclusive algumas distorções que demandam reflexão: 58,5% das mães afirmaram que costumam comprar roupas e calçados melhores para os seus filhos do que para si mesmas e 21,9% delas admitiu que os filhos têm um padrão de vida superior ao dos demais integrantes da família. E, enquanto somente 15,6% das mães disseram dar presentes apenas nas datas especiais, como aniversário, Dia das Crianças e Natal, 46,4% confessaram não adotar regras para presentear seus filhos. Para concluir, cito um último dado que comprova aquilo que muitos estudiosos têm referido em relação aos presentes dados aos menores: o estudo revela que 29,7% das mães consultadas disseram que, mesmo comprando a maioria dos produtos que os filhos pedem, eles nunca se dão por satisfeitos e sempre pedem mais. __________ 1 Eu estava quase afirmando que não existe Dia do Adolescente, mas meu amigo Google disse que há sim e que ele é comemorado no dia 21 de setembro. Porém, como não é famoso, deixo consignado aqui em nota de rodapé esperando que ninguém descubra...   2 Colhi em 4-10-15 neste endereço:  O estudo foi publicado em 24/9/2015.
Recentemente, proferi uma palestra num Congresso aqui em São Paulo. Foi-me pedido que eu discorresse sobre o tema da segurança jurídica, algo tão extenso quanto o próprio sistema jurídico existente e todas as suas formas de interpretação e aplicação e que, no Brasil, envolve também aspectos políticos, institucionais e culturais. Nós ainda dizemos que há leis que pegam e leis que não pegam. Pior: pensando sobre o assunto, verifico que o buraco (da insegurança jurídica) é muito fundo. Isso envolve, naturalmente, os direitos em geral e também os dos consumidores. Aliás, como ultimamente tenho tratado muito das questões que envolvem os entes públicos, quero deixar consignado que na sociedade capitalista em que vivemos consumidor e cidadão se confundem: a maior parte dos benefícios sociais que envolvem produtos e serviços são típicos de consumo, o que inclui segurança pública, transportes, saúde, meio ambiente, etc.. Começo, então, concedendo a palavra a meu amigo Outrem Ego. Ele conta um episódio dos anos noventa do século passado, que envolveu sua mulher e o tio dela, um juiz do Tribunal Austríaco, morador da cidade de Innsbruck, na região do Tirol na Áustria. Ele conta o seguinte: "Estávamos minha mulher, o tio dela e eu andando pelas ruas da charmosa cidade de Innsbruck. Era janeiro, inverno e havia nevado muito. Enquanto caminhávamos pela calçada, um pedaço de gelo caiu de cima de um prédio quase me atingindo na cabeça. Imediatamente, pedi a minha mulher, que fala alemão, que perguntasse ao tio dela de quem era a responsabilidade pelos danos acaso houvesse um acidente e eu me ferisse. Ele respondeu que a responsabilidade era do dono do imóvel e também da prefeitura municipal, que tem o dever de fiscalizar para que esse tipo de acidente não aconteça." "Em função da resposta, resolvi perguntar quanto tempo demoraria uma ação judicial contra a prefeitura de Innsbruck para que a pessoa pudesse ser indenizada. (quero dizer minha mulher falou com ele em alemão). Ele não entendeu a pergunta. Minha mulher reformulou e fez o questionamento novamente e, daí, ele disse que não havia necessidade de propositura de ação judicial. Bastava um pedido administrativo junto à prefeitura. Perguntamos, então, quanto tempo demorava para que a pessoa recebesse o reembolso dos valores dispendidos. Ele disse, um pouco constrangido: 'Infelizmente, nos dias atuais o serviço não anda muito bom. Eles demoram três ou quatro dias para pagar'". Toda vez que penso em precatórios, lembro-me dessa história contada por meu amigo há muitos anos. Por nossas terrinhas, não só a administração pública não cumpre suas obrigações pagando suas dívidas, como luta incessantemente na Justiça para não fazê-lo. E quando condenada, com trânsito em julgado, o credor é obrigado a ficar na fila dos precatórios na expectativa de receber aquilo a que tem direito de longa data. Lamentavelmente, mesmo com a edição de nossa democrática Constituição Federal (CF) de 1988, essa questão não foi bem cuidada. Veja-se que o artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) diz que "Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até 180 dias da promulgação da Constituição" (grifei). E, pior ainda: por intermédio da Emenda Constitucional 30 de 2000, foi acrescentado o art. 78 ao ADCT que dispõe: "Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos" (grifei). Isso tudo, sem falar no imbróglio da correção monetária e dos índices aplicáveis envolvidos numa discussão judicial sem fim, como bem mostrou este poderoso rotativo Migalhas em matéria publicada em 27/2/15 intitulada "Precatórios Federais: um calote judicial"1. Bem, não preciso mais prosseguir neste assunto. Falar em segurança jurídica diante de um quadro desses é muito difícil mesmo. A questão da segurança tem relação com a confiança, que as pessoas podem ou devem ter nas instituições, nas leis, nas demais pessoas, etc., e até em si mesmas. Confiança é, pois, um substantivo que funciona como um sentimento que gera segurança. Essa segurança, por sua vez se estabelece como uma base de convicção que alguém pode ter em relação à atitude de outrem (os cônjuges e namorados reciprocamente, os amigos entre si, pais e filhos, etc..) e em relação às leis e instituições (leis devem ser cumpridas; a Justiça deve ser feita, a democracia é o regime da participação popular, etc..). O inverso é verdadeiro: a falta de confiança gera insegurança e enfraquece as convicções que as pessoas possam ter: "Ele ou ela traiu minha confiança"; "Como confiar na lei que nunca é cumprida"? Um aspecto importante em relação à confiança é que ela se projeta para o futuro: a pessoa acredita que o outro em que ela confia se comportará de certo modo previsível em alto grau: "Tenho certeza que terei o apoio de meu pai"; "Certamente meu marido endossará minha decisão"; "Estou convicto que ele fará o que combinamos". Confiança e previsibilidade andam juntas, portanto. O problema é que essa segurança se estabelece pelas relações que advêm do passado: alguém só confia em alguém ou em alguma instituição se a experiência pregressa mostra que é possível confiar (e que vale a pena confiar). Este é, pois, o nosso drama, meu caro leitor: como será possível estabelecer segurança jurídica na sociedade, se nosso passado não é lá dos mais confiáveis? Pois, como dizia o impagável Nelson Rodrigues, "no Brasil, até o passado é imprevisível". *** Ainda voltarei a este assunto. __________ 1 Precatórios federais: um calote judicial.
Não sei se ao sair publicado este artigo a greve dos funcionários dos Correios ainda continua, mas, ainda que tenha acabado, penso valer a pena tratar do assunto, pois sempre demora algum tempo para o serviço retornar ao normal e até lá vários danos já terão sido causados. E, claro, não é a primeira vez que trato do tema nesta coluna, porém, como os fatos se repetem, me vejo obrigado a voltar a cuidar dos direitos dos consumidores e dos fornecedores nesse período de greve. Evidentemente, todo dano causado aos usuários é de responsabilidade primeira da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor: ela responde pelos vícios ou defeitos de seus serviços, o que inclui, naturalmente, a ausência destes. E não há necessidade de que seja apurada sua culpa, eis que a sua responsabilidade é objetiva e decorre da exploração da atividade empresarial desenvolvida e seu risco. O empreendedor público, privado ou de atividade privatizada explora o mercado de consumo e a própria exploração da atividade gera risco social, independentemente de sua vontade. É lógico que, por exemplo, quando uma correspondência entregue pelo consumidor aos serviços do correio não chega a seu destino no prazo ou simplesmente se extravia, essa falha não se dá por interesse da empresa. Ela não decorre da vontade dos administradores da ECT, mas da atividade em si, eis que falhas sempre existirão no sistema de leitura ótica, na incorreta observação do pessoal que faz seleção dos envelopes e pacotes, no transporte, etc. Portanto, o dano existirá, apesar da vontade em sentido contrário dos administradores e funcionários. A lei sabe disso. Ela sabe que, apesar do esforço do prestador do serviço, em algum momento, por evento imprevisto, o serviço falhará, causando danos ao consumidor. Naturalmente, a responsabilidade é a mesma na sua ausência, como a que ocorre no período de greve e que persistirá mesmo após seu fim por mais algum tempo até que o serviço se normalize. Por isso tudo, a lei estabeleceu a responsabilidade objetiva. Basta a constatação do serviço contratado e seu defeito para que possa ser pedida indenização. De fato, a ausência de um serviço como o dos Correios sempre gera danos em larga escala, atingindo fornecedores e consumidores. Para o funcionamento dos serviços massificados, como os de telefonia, tevês a cabo, cartões de crédito, empréstimos bancários etc. é fundamental o serviço dos Correios. Isto porque, é através dele que a maior parte dos milhões de faturas é entregue mensalmente para pagamento embora, atualmente, milhões de faturas e boletos estejam sendo entregues via web/internet. Entretanto, o não recebimento de uma fatura não retira a responsabilidade do consumidor em pagá-la no prazo se o credor manda as faturas pelo correio mas, simultaneamente, coloca à disposição do consumidor outro modo de quitar o débito. Cabe ao fornecedor entregar as faturas antes da data do vencimento. Todavia, com a paralisação dos serviços do correio, a entrega fica prejudicada. O fornecedor, então, tem que oferecer uma alternativa de pagamento ao consumidor. As segundas vias devem ser oferecidas via fax, e-mail, acesso ao site, por ligação telefônica etc. Se essas segundas opções são oferecidas, cabe ao consumidor utilizá-las para o pagamento da dívida. Aliás, é bom também lembrar que, mesmo quando os serviços dos correios não estão paralisados, isso não impede que alguma correspondência não seja entregue. Logo, até fora desse período crítico, pode acontecer de o consumidor não receber fatura para pagamento dentro do prazo ou simplesmente não recebê-la. Mas, de outro lado, se o consumidor não recebe a fatura para pagamento nem tem a sua disposição outro meio para fazê-lo, não se pode imputar a ele a responsabilidade pela quitação da dívida no prazo. Não tem sentido culpá-lo pelo que ele não fez. É risco do fornecedor entregar a fatura com tempo suficiente para pagamento, risco esse que não pode ser repassado ao consumidor. Todavia, como sempre digo, não é fácil para o consumidor, nessa questão, se proteger. Para eventualmente tentar não ser responsabilizado, o consumidor tem que provar que não recebeu a fatura, o que é muito difícil de fazer quando ela não é entregue. Dá para fazer a prova, por exemplo, se o consumidor avisou por escrito seu novo endereço para recebimento da fatura e ela foi enviada ao antigo ou quando o próprio correio coloca carimbo de entrega atrasada (Nesse caso, é a ECT quem deve ser responsabilizada pelo atraso). No entanto, afora esses tipos de exceções, o consumidor acaba sendo responsabilizado pelo atraso. Por isso é que se aconselha que o consumidor mantenha uma agenda com datas dos vencimentos de suas faturas regulares. Se, até a véspera do vencimento, ainda não recebeu alguma, então, ele pode e deve entrar em contato com o credor, solicitando segunda via. Essa é uma regra geral para o dia-a-dia de todos os consumidores que, evidentemente, nesse período de greve, deve ser imediatamente seguida. (Anoto que, para aquele que não faz esse tipo de controle, a saída é pegar as contas do mês anterior, ver as datas dos vencimentos e checar o prazo que existe para pagá-las). Atualmente, todos os grandes fornecedores mantêm Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) e/ou sites, nos quais é possível obter uma segunda via da fatura. Se o credor não tiver esse tipo de serviço, como já disse acima, ele é obrigado a dar outra alternativa para pagamento, como, por exemplo, envio do boleto via fax ou apresentação de dados bancários para depósito em conta (nº de conta corrente, banco e agência, número do CNPJ - se for pessoa jurídica - ou CPF - se for pessoa física). Repito: se o credor não der alternativa, o consumidor não pode ser responsabilizado pelo atraso. Uma boa atitude dos fornecedores - e é o que se espera - é a de não cobrar multas daqueles que, eventualmente, pagarem suas faturas fora do vencimento no período de greve, pois não se pode responsabilizar o consumidor que pretende pagar suas dívidas se ele não tem dificuldade em fazê-lo.
Em matéria de capitalismo, fala-se muito da iniciativa privada e, muitas vezes, esquece-se que os serviços públicos são também típicos de consumo (ainda que, doutrinariamente, possa haver divergências, tema que aqui não interessa). Infelizmente, os nossos são de qualidade e eficiência muito duvidosa. Hoje, retorno a eles, envolvendo-os em sua natureza político-democrática. *** Vivemos tempos bicudos no Brasil e no mundo. Está bastante difícil ler, ouvir e ver notícias. Eu não sou pessimista e ainda consigo enxergar os atos de bondade humana e de solidariedade, consigo ver o brilhantismo dos gênios e das invenções. Mas o mal pulula incrivelmente em todos os cantos do planeta. Sou daqueles que sempre acreditou que a liberdade gera responsabilidade e, se a consciência livre está baseada em valores morais relevantes - como os valores cristãos, por exemplo - então, talvez se possa salvar a humanidade. E, claro, um dos grandes problemas de administração humana sempre foi o dos regimes políticos. A democracia, ah!, essa é a única saída. Como diria Winston Churchill: "A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram imaginadas". Mas, para que uma democracia realmente funcione, para que seja legítima, há alguns requisitos. Cito um deles, o de que ninguém pode ser importunado pelo simples fato de estar caminhando por alguma rua a não ser que esteja cometendo alguma desordem, algum ato ilícito ou, quando muito, esteja em atitude suspeita (embora de semântica muito ampla e sujeita a todo tipo de interpretação subjetiva, a atitude suspeita é o máximo de permissão para uma intervenção do agente estatal). Vou, então, deixar para a reflexão dos leitores uma história narrada por meu amigo Outrem Ego há muito tempo (cerca de cinco anos, num domingo, dia das mães). São mais elementos para que nós possamos pensar nos serviços públicos que temos e na democracia que queremos. Eis a história que ele contou: "Os irmãos João e Maria viviam com sua mãe e estavam desempregados, com dificuldade de pagar o aluguel da casa em que moravam. Mas, de repente tudo mudou. Ele, professor de educação física, conseguiu emprego numa academia como personal trainer e ela numa loja. Foi bem no mês anterior ao dia das mães. Agradecendo aos céus, compraram um bonito presente para ela e naquele domingo comemorativo levaram-na para almoçar fora, o que não conseguiam fazer há alguns anos. Comeram num bom restaurante italiano. O prato foi talharini ao pesto, e como bebidas, água e suco. Quando voltavam para casa foram parados numa blitz policial, como se bandidos fossem. João, que dirigia o veículo, foi retirado do carro e seguiu-se o seguinte diálogo entre ele e o policial que o abordou. - O senhor tem que fazer o teste do bafômetro. - Por quê? -- perguntou ele, surpreso. - Porque sim. - Mas eu estava almoçando com minha mãe. Está vendo ali. Aquela é minha mãe... - Venha, o senhor tem que fazer o teste. - Acho que o senhor não está entendendo. Eu não bebi nada. Só suco de laranja. Aliás, eu não tomo bebida alcoólica. Sou professor de educação física e atleta. Eu não bebo. - Isso não interessa. - Como não interessa? Olhe para mim. Parece que bebi? Vai. Veja. Aposto que o senhor não consegue ficar tanto tempo em pé numa perna só como eu. Quer apostar? - Pare. O senhor está desacatando autoridade. - Como? Que absurdo. É o senhor que quer que eu assopre esse negócio, mas eu nem bebi. - Se o senhor não fizer o teste vai ser preso! - Preso? Preso por quê? Qual crime eu estou cometendo? (...) Muito bem. Como João era um homem de princípios, não cedeu e acabou preso. Vendo a prisão do filho, sua mãe desmaiou e teve de ser levada às pressas para o hospital. Maria colocou a mãe no banco de trás. Ela balbuciava alguma coisa. Maria dirigiu às pressas para um Pronto Socorro. Quando parou numa esquina, mais ou menos três quarteirões à frente da batida policial, dois jovens se aproximaram apontando uma arma e exigindo que ela entregasse a bolsa e a chave do carro. Ela, então, em prantos mostrou a mãe passando mal no banco de trás. Os bandidos viram a cena e resolveram levar apenas o dinheiro que Maria portava. E onde estava a polícia nessa hora? Parando cidadãos de bem que, depois de uma semana de trabalho para pagar impostos, saíram para almoçar com suas mães e talvez tenham bebido uma cervejinha ou não. (...) A mãe acabou sendo medicada e, após pagar fiança, o irmão foi solto. Na semana seguinte, o prédio em que viviam foi invadido por dez homens bem armados que fizeram um "arrastão" e lá ficaram por duas horas roubando tudo dos apartamentos. E onde estavam os policiais? (...) Não sei. Mas, eu os vi, alguns dias depois obrigando um idoso com cerca de setenta anos a colocar sua boca num aparelho medidor. Idoso, que depois de cumprir suas obrigações como pessoa de bem anos a fio neste país, que atravessou uma terrível ditadura e que finalmente havia chegado à democracia, após ter saído para jantar com amigos como sempre fizera por muitos anos sem causar nenhum dano a quem quer que seja, era abordado sem qualquer suspeita ou dado objetivo, como se bandido fosse." Meu amigo complementou: "Tudo isso seria irônico se não fosse trágico e real. Deixo a ironia para os bandidos que, no dia das mães, ficaram com dó daquela mãe doente no banco de trás do carro. É sempre bom lembrar que até bandido tem mãe. Mas, o respeito a elas não é oferecido por todos (...) Infelizmente, o Estado não está cumprindo sua função de oferecer segurança pública à população. Os assaltos à mão armada praticados contra motoristas nas esquinas, os sequestros e os sequestros-relâmpagos, os roubos de residências e o incrível número de assaltos feitos por bandos em prédios residenciais já se tornaram rotina. Em plena e suposta democracia, é triste ver a população brasileira sofrer, de uma lado, pelo medo e pela violência dos bandidos e, de outro, pelos abusos praticados pelos agentes do Estado." *** É isso, caro leitor, apenas mais um pedaço de lenha nesse imenso fogaréu chamado "democracia que temos" e 'serviços públicos que gostaríamos de ter'.
Hoje, 11 de setembro de 2015, a lei 8.078/90, isto é, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), completa 25 anos de existência. Como sempre tenho dito, a boa notícia é que o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, sempre lembrada tanto em setembro como em março (mês em que entrou em vigor; mês em que também se comemora o Dia Mundial dos Direitos dos Consumidores). Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. E, claro, com 25 anos de idade seria de se esperar que a lei fosse cumprida por todos o tempo todo. Não é bem assim, mas neste aniversário quero mostrar o lado bom. Com um início de vigência que, lembro-me bem, assustou empresários em geral, muitos publicitários e os grandes conglomerados em especial, aos poucos o CDC foi se firmando e deixando de ser o bicho-papão de que o acusavam injustamente. Ao que me consta, ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como, também, da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento melhor qualificado, enfim, a norma ajudou o mercado a amadurecer. Para ficarmos apenas com um exemplo: antes do CDC, a maior parte dos produtos não trazia estampada nas embalagens seu prazo de validade. Lembro-me bem que eu fiquei espantado com o curto prazo de validade de alguns produtos. Até água em garrafa ou em copo plástico tem curto prazo de vida sadia! Antes da lei 8.078/90, nós consumidores, muito provavelmente, tenhamos ingerido toneladas de produtos vencidos e sorvemos milhares de litros de bebidas ultrapassadas. (Ocorre-me um fato tão terrível quanto peculiar: sou da época dos refrigerantes em garrafa, e me vem à memória quantas vezes, quando garoto, retirei a tampinha e com a mão limpei as marcas de ferrugem que estavam na boca da garrafa, antes de beber o refrigerante... Das vezes que adoeci, sabe-se lá quantas não estavam relacionadas com produtos e bebidas deteriorados...) Pois bem, o susto dos empresários passou. A lei teve, como tem, muito boa eficácia - ou, como se costuma dizer no Brasil, é "uma lei que pegou". Não resta dúvida que as pessoas passaram a descobrir que tinham muitos direitos garantidos pelo CDC e resolveram exigi-los, não só por intermédio de ações judiciais quando foi preciso, mas também no dia a dia das compras fazendo exigências e reclamando. Essa consciência que o consumidor adquiriu fortaleceu o mercado. Ao mesmo tempo em que os consumidores passaram a ficar mais escolados em matéria de consumo, os empresários também. Muitos destes passaram a adotar a lei como elemento de marketing para atrair seus clientes, o que foi bem-vindo e, de fato, dá resultados. Essa é mais uma virtude da lei consumerista: deixou realçado que o bom fornecedor é aquele que desenvolve seu projeto de negócio, claro, visando o lucro, mas respeitando seus clientes. Como disse meu amigo Outrem Ego: "É quase tão simples como vender amendoim nas areias perto do mar". Ele explica: "Na praia, o vendedor de amendoins passa gritando e dando uma amostra de seu produto para os banhistas; caminha alguns metros repetindo esse gesto para depois voltar. Enquanto ele vai, os veranistas comem o amendoim recebido - e de graça! - e quando ele volta, quem gostou tem a oportunidade de comprar um pacotinho, momento em que o negócio é concretizado". "Desse simples modo de oferecer e vender o amendoim, pode-se extrair um dos melhores exemplos de como o empresário deve tratar o consumidor: em primeiro lugar o vendedor faz uma propaganda honesta, oferecendo de graça seu produto para que o consumidor experimente; depois ele somente vende para o consumidor que, de fato, quer comprar, uma vez que o produto foi previamente examinado, testado e aprovado". "Quanto ao consumidor que experimentou mas não comprou, ainda assim o negócio foi bem feito. O custo do amendoim oferecido gratuitamente faz parte do custo total do negócio, porém funciona sempre como investimento, pois, até para aquele que não comprou fica a lembrança da boa imagem que o vendedor construiu, respeitando inclusive seu desinteresse em adquirir o produto. Por conta disso, esse consumidor torna-se um cliente em potencial, podendo tornar-se um comprador em outra oportunidade". É verdade que não são todos os fornecedores que pautam sua conduta com base na lei nem no modelo do vendedor de amendoins citado por meu amigo. Sim, mas realço que na medida em que o tempo passa, os consumidores vão, de um jeito ou de outro, obrigando a uma mudança do padrão da produção, distribuição e oferta de produtos e serviços a favor da qualidade, do respeito e - por que não? - até de um preço menor em muitos casos. Ainda há muito a ser feito, inclusive, uma reforma com ampliação das regras existentes, como já aqui defendi, mas é importante lembrar que a lei 8.078/90, em 25 anos, trouxe, não só esperança de que possamos ter um mercado de consumo mais sadio e equilibrado como, realmente, alcançou muitas das metas sonhadas por seus autores.
Continuo hoje o artigo da semana passada, no qual comecei a mostrar aspectos da penalização de motoristas por conta de regras do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) que são eivadas de inconstitucionalidades. Lembro: os pontos para as infrações são colocados numa vala comum, independentemente de seu grau. Uma coisa é o motorista trafegar de forma perigosa, com o veículo sem condições de dirigibilidade, fazendo conversões proibidas, movimentando-se em velocidade excessiva, fazendo ultrapassagens perigosas, dirigindo embriagado, etc., outra, muito diferente, é ser pego trafegando no horário proibido pelo rodízio ou não ter colocado o cartão da zona azul ou, ainda, estacionar o veículo em local proibido. Vejamos outros fundamentos constitucionais que são violados. Como é sabido, o princípio da isonomia, assegurado na Constituição Federal (art. 5º, "caput" e inciso I) implica que, concretamente, ninguém possa ser tratado com desigualdade pela lei ou por seu agente aplicador. Não pode a lei, portanto, punir mais quem faz menos, sob pena de violar esse princípio constitucional. O mínimo que se pode esperar da norma nesse sentido é que, se ela pretende que se punam os infratores, que aquele que cometer o delito mais perigoso seja punido com mais rigor do que aquele que cometer o de menor gravidade. Acontece que, como vimos acima, o CTB colocou num mesmo patamar infratores perigosos e infratores sem nenhuma periculosidade. Isso foi feito pelo equivocado sistema de pontuação, que pretende punir o infrator que atinge uma escala de números (mais de 20 pontos), independentemente da qualidade das infrações. E esse aspecto viola princípio da igualdade. É inadmissível a lei dar a mesma pena a pessoas que cometem infrações tão diversas como as descritas acima. Aliás, é possível até que um infrator sem nenhuma periculosidade seja punido e o perigoso não seja, como mostrei. Antes de prosseguir, anoto que o fato de a infração relativa à zona azul ter pontuação 4 e a do excesso de velocidade ter 7 (ou seja, há mais pontos negativos para uma do que para outra) não modifica em nada o argumento. Isso porque não existe qualquer conexão lógica entre essas infrações. A natureza de cada infração é tão diferente que impede a comparação. Logo, não há relação entre o ponto negativo 4 de uma e o ponto negativo 7 de outra. Assim, não sendo - como não é - possível fazer analogia entre infrações tão diversas, elas não podem ser comparadas. A questão das punições do CTB é penal. Para o legislador penal ordinário existe um comando constitucional a ser observado na fixação da pena. É o chamado princípio da proporcionalidade. Ele funciona como parâmetro obrigatório para o legislador e apresenta três facetas: a) a pena deve ser graduada de acordo com a relevância do bem jurídico a ser tutelado; b) deve ser levada em conta a pessoa do infrator; c) deve ser considerado o caráter retributivo, isto é, a pena deve ter a mesma pujança da conduta violadora; deve ser fixada levando em conta esse paralelo: a relação existente entre a infração delituosa e a pena. O art. 5º, XLVI, da Carta Magna dispõe que: "a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos". Ora, conforme já expus, o CTB, ao fixar a pena de suspensão do direito de dirigir para os casos de infração de natureza meramente administrativa, está em total dissonância com o texto constitucional. E pior: não está de acordo com nenhum dos critérios caracterizadores do princípio constitucional da proporcionalidade. Vejamos os detalhes. Não resta dúvida de que se trata de pena administrativa de suspensão de direitos (suspensão do direito de dirigir), podendo ir até seu perdimento (perda da CNH). E essa pena: a) primeiramente, não tem graduação na relação com o bem jurídico tutelado. Com efeito, estacionar em local proibido, não colocar o talão da zona azul ou trafegar no horário proibido pelo rodízio não tem relevância jurídica suficiente que possa conduzir à suspensão ou perda do direito de dirigir; b) em segundo lugar, como a fixação é objetiva e abstrata, aplicada indistintamente a todo e qualquer motorista, não leva em consideração a pessoa do infrator. É bem possível (aliás, deve estar acontecendo e muito) que um cidadão que jamais tenha dirigido um veículo em excesso de velocidade, e que dirija há muitos e muitos anos sem nunca ter causado nenhum acidente, possa estar perdendo sua habilitação apenas e tão-somente porque teve de trafegar no horário proibido pelo rodízio ou porque se viu obrigado a estacionar em local proibido, ou, ainda, porque não tinha talão da zona azul ou simplesmente esqueceu-se de colocá-lo; c) em terceiro lugar, a suspensão do direito de dirigir ou o perdimento desse direito, nos casos que estou apontando, não seguem o critério da retribuição. É absolutamente desmedido suspender o direito de dirigir de quem não colocou no carro o talão da zona azul, ou estacionou em local proibido ou, ainda, trafegou no horário proibido pelo rodízio. A única retribuição jurídico-constitucional adequada nesses casos é a fixação de multa. Nada mais. Finalizo, portanto, deixando consignada minha posição em prol de tantos quantos já se sentiram injustiçados por terem o direito legítimo de dirigir seus veículos cassado por infrações meramente administrativas. Se quisermos realmente construir uma nação democrática precisamos ir a cada dia amoldando nosso sistema legal aos princípios e regras constitucionais de modo a evitar desigualdades e injustiças.
Meu amigo Outrem Ego inspirou-me a escrever este artigo. Disse-me ele: "Sou motorista habilitado há mais quarenta anos. Nunca sofri ou causei nenhum acidente - graças a Deus! - e nesses anos todos recebi algumas multas, todas por estacionamento proibido ou por ter furado o rodízio (foram duas vezes em que simplesmente me esqueci)". E continuou: "Sinto-me acuado. Acabei de receber duas notificações de multas por excesso de velocidade. Sabe de quanto? Uma, porque eu estava a 57 Km por hora numa via em que a velocidade máxima permitida era de 50 - e à noite sem ninguém por perto. Outra por trafegar a 48 Km por hora, quando o máximo permitido era apenas 40. Não consigo mais dirigir com tranquilidade pelas ruas de São Paulo, pois está muito difícil saber qual é a velocidade permitida, e em quais vias. Como tenho medo de perder minha carteira, tenho andado a 40 km por hora em quase todos os lugares e vou sempre preocupado...". Depois, arrematou: "Bem, quero dizer que ganhei mais uma preocupação, pois há os bandidos que assaltam os motoristas, os buracos das ruas que estragam nossos veículos, o trânsito infernal, os pedestres que literalmente pulam à frente fora da faixa, os motoqueiros que passam como bólidos entre os veículos num espaço minúsculo (será que eles não são multados?), enfim, mais um problema junto de uma série de outros. É assim mesmo que se constrói uma sociedade?". Como um dos assuntos do momento é criticar motoristas, inspirado por meu amigo, resolvi falar sobre mobilidade urbana, mas com um foco diferente. Ficarei, digamos assim, na contramão de direção: mostrarei algumas das violações praticadas contra os motoristas. Antes de mais nada, e para evitar confusão, coloco o óbvio: qualquer pessoa é a favor da punição a motoristas infratores, especialmente aqueles que colocam em risco a segurança e a vida dos demais (e de si mesmos). Por isso, é fundamental existirem leis que determinem o controle do trânsito, que fixem punições e estipulem critérios de aferição das infrações. No entanto, existem várias infrações ligadas ao uso de veículos que não acarretam nenhum tipo de perigo ou risco à comunidade ou às demais pessoas. Está entre essas infrações, por exemplo, estacionar em local proibido, estacionar nas chamadas "zonas azuis" sem a colocação do cartão, trafegar com o veículo no horário proibido nas cidades com sistema de rodízio, como a capital de São Paulo, etc. (É verdade que se pode objetar que o estacionamento em alguns locais pode gerar transtorno no trânsito, como, por exemplo, na av. Paulista. Nesse caso a infração seria mais grave que estacionar em outro local proibido de menos movimento. No entanto, nem assim se justificaria, como veremos, a aplicação da pena de suspensão ou perda do direito de dirigir. Bastaria guinchar o veículo e, na hipótese, aplicar uma multa maior que as demais. Isso sim seria adequado: multas diferentes para estacionamento em local proibido em ruas diferenciadas). Ora, ainda que se admita que infrações desse tipo possam gerar a imposição de uma multa pecuniária, nada justifica que se imponha a perda ou a suspensão do direito de o motorista continuar dirigindo por infrações dessa ordem. Aliás, ao contrário, como mostrarei, o Sistema Constitucional Brasileiro proíbe que uma lei possa impor penalidade desse tipo. Uma coisa é o motorista trafegar de forma perigosa, com o veículo sem condições de dirigibilidade, fazendo conversões proibidas, movimentando-se em velocidade excessiva, fazendo ultrapassagens perigosas, dirigindo embriagado etc., outra, muito diferente, é ser pego trafegando no horário proibido pelo rodízio ou não ter colocado o cartão da zona azul ou, ainda, estacionar o veículo em local proibido. É bem fácil perceber que no primeiro caso o motorista representa um perigo à incolumidade física das demais pessoas, podendo no segundo, quando muito, gerar transtornos de ordem administrativa ou queda na arrecadação da verba prevista para o estacionamento nas vias públicas. A punição em cada hipótese deve ser - só pode ser - muito diferente. O problema está em que o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estabeleceu uma confusão entre as duas formas de ação dos motoristas. Ao criar um sistema de pontuação, no qual são somados, na mesma vala comum, os dois tipos de infrações acabou gerando, concretamente, uma violação ao direito dos motoristas. Suponha-mos que alguém que sempre dirija de forma adequada e preventiva, nunca excedendo a velocidade, não fazendo ultrapassagens proibidas etc., mas que tenha que usar o automóvel para trabalhar, seja apanhado dirigindo, no período de um ano, por seis vezes, no horário proibido pelo rodízio. Ele somará 24 pontos (4 pontos de cada vez) e ficará sem a Carteira Nacional de Habilitação - CNH. No entanto, se, no mesmo período, outro motorista for multado por excesso de velocidade por duas vezes não sofrerá a mesma pena, pois terá somado apenas 14 pontos (7 de cada vez). O motorista perderá a habilitação se tiver, também, tantas autuações de zona azul e por estacionamento proibido quantas forem necessárias para atingir mais de 20 pontos. Os exemplos, claro, se multiplicam na exata medida das combinações de infrações e pontuações. O grave nisso tudo não é só a evidente injustiça concreta da situação em que se acabam colocando os cidadãos, mas também a distorção que o sistema gera, uma vez que acaba punindo o melhor motorista em detrimento do pior. Por isso, penso, este ponto da lei é inconstitucional. *** Há mais, mas temos de ir devagar. Continuarei na próxima semana.
quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Por uma advocacia preventiva

Em meus anos de professor da graduação, costumava contar para meus alunos a seguinte história: rolava uma festa; um médico e um advogado conhecidos conversavam animadamente. De repente, surge um outro convidado e se dirige ao médico: - Ah, doutor, que bom encontra-lo aqui. Como vai? - Bem, e você? Em resposta à pergunta do médico, o terceiro que chegara começa a falar de uma série de sintomas, colocando a mão no peito, no pescoço, na cabeça, etc. e, ao final da narrativa, pergunta: - O que eu faço, doutor? - Isso não é nada. Espere que eu te dou uma receita. Daí, o médico saca do bolso um talonário, prescreve um medicamento, assina e dá ao conhecido. Este agradece e se retira. Depois, o médico vira-se para o advogado e desabafa: - É sempre assim! Basta algum conhecido me encontrar numa festa que já fila uma consulta. O que você faz quando te consultam fora do escritório? - Ah, eu não me aborreço - diz sorridente. Dou a resposta e, no dia seguinte, mando uma fatura para a casa do consulente, cobrando meus honorários. - Boa! É isso que eu farei. Amanhã inicio minhas cobranças desse tipo de consulta. Mandarei uma nota para esse fulano. No dia seguinte, o médico recebe na sua casa uma fatura do advogado cobrando pela consulta que lhe fizera na véspera na festa... *** Sempre gostei dessa história, pois ela valoriza algo que nem sempre é valorizado pelas pessoas em geral e, às vezes, até pelos próprios consultores jurídicos: a opinião profissional. E a analogia com o médico e a medicina permite que pensemos uma das questões mais importantes para o exercício da advocacia: o papel da prevenção. Nos dias que correm, é, mais ou menos, lugar comum a ideia de que as pessoas (especialmente a partir de uma certa idade) devem consultar um médico regularmente. Mesmo como rotina, como se diz, essas consultas podem evitar danos maiores, podem detectar doenças e até em casos graves como o câncer, uma vez este descoberto no início, muitas vezes há boas chances de cura. E ainda que esse controle preventivo não seja feito por todos, atualmente, são milhares que o fazem. Com a advocacia, haveria de se dar o mesmo. É verdade que as pessoas jurídicas se utilizam, regularmente, de forma preventiva, dos serviços jurídicos, mas o mesmo não se dá de forma generalizada com as pessoas físicas. Estas buscam esses serviços mais como "pronto-socorro ou internação de urgência", depois que o problema surge. Seria muito bom que essa cultura fosse modificada, pois o trabalho do advogado é fundamental sempre; e se fosse buscado de forma preventiva, certamente muitos problemas seriam evitados. Fazer economia evitando conversar com um advogado não é uma boa estratégia. Fica, pois, aqui minha homenagem ao Dia do Advogado, que ocorreu nesta semana, na esperança de que, cada vez mais, as pessoas valorizem a consulta jurídica.
quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Como perder o cliente em algumas lições

O título completo do presente artigo deve ser "Como perder um cliente em algumas lições e ainda correr o risco de ser processado por ele". É disso que eu tratarei na sequência. Antes de iniciar, deixo consignado que, claro, há muito mais exemplos de como perder clientes do que apenas esses. Estou fazendo aqui uma escolha arbitrária, mas que, penso, seja o suficiente para apontar ações e comportamentos equivocados do atendimento ao cliente. Este artigo tem por base minhas reflexões, que não são recentes, a respeito das relações de consumo que, no passado, foram muito harmônicas (até início dos anos 60 do século XX), passaram por forte crise a partir do cálculo financista que tomou conta das relações (e que ainda tem muita importância e, em alguns setores, preponderância), mas que, aos poucos, vão sendo retomadas, especialmente com a tomada de consciência de que é preciso mudar os padrões de consumo. Consegue-se observar aqui e ali alterações no rumo do consumo consciente e sustentável e que envolve, de um lado, empresas que respeitam o consumidor e, de outro, consumidores mais conscientes de sua importância no mercado de consumo. Ou, em outras palavras, as relações harmônicas de consumo são o que há de mais moderno em termos de capitalismo. Meu foco: respeitar e ouvir o consumidor é não só inteligente e legal (no duplo sentido) como gera lucros ao garantir a manutenção dos clientes já conquistados e amplia a base existente. O inverso é também verdadeiro: o empresário (e também o profissional liberal) que não souber disso e não pautar suas ações nesse modelo só tem a perder: é atrasado, tacanha, sua imagem irá perdendo valor, sua base de clientela não crescerá, em muitos casos diminuirá, perderá receita e muitos quebrarão. Há vários caminhos para cuidar da questão do atendimento. Um deles é o de tratar o consumidor como um número e/ou como se todos os consumidores fossem iguais, tivessem os mesmos sentimentos e desejos, se reagissem da mesma forma em todas as circunstâncias. Mas não irei por aqui. Quero cuidar exatamente das hipóteses nas quais é possível trabalhar com standarts pré-concebidos, mas isso deve ser muito bem estudado e melhor ainda executado. Algumas medidas simples podem ajudar. Vou referir uma que é frequentemente esquecida pelos administradores: a da simpatia (ou se sua contra partida, a antipatia). A simpatia é um sentimento que gera uma identificação ou mesmo uma atração de uma pessoa à outra. Por intermédio dela, o indivíduo estabelece uma harmonia com o outro e, a partir disso, pode criar laços firmes e duradouros. Por isso, são sinônimos de simpatia a afeição e a afinidade. Ela gera uma espécie de atração para algo ou para alguém; ela desperta o interesse no outro ou no que ele (o outro) faz. Com a antipatia se dá o inverso: ela é um sentimento de repugnância e repulsa diante de alguém ou de alguma coisa. E, claro, gera desarmonia, discordância. Literalmente, antipatia é "contra-afeição". Tem origem no termo grego antipathéia?: anti (contra) e pathéia (afeição). A antipatia opera em vários níveis, desde uma sensação de mero desconforto até a total repulsa. E se a experiência com relações simpáticas deixam o sujeito mais à vontade para as novas relações simpáticas, as antipáticas anteriores funcionam para aumentar a rejeição das atuais. Chega uma hora em que a pessoa simplesmente cansa de aguentar os gestos antipáticos. Por falta de conhecimento, a simpatia nem sempre é considerada; e é algo modesto, fácil e inteligente de executar. O oposto também se dá: a antipatia aparece em várias resoluções e atos. A primeira conquista o consumidor, a outra pode alijá-lo da relação. Vejamos alguns exemplos de ações antipáticas. Começo relatando um caso envolvendo meu amigo Outrem Ego. Eis o que ele me contou. "Sou cliente de um canal de tevê a cabo há mais de dez anos. Sempre paguei a fatura religiosamente em dia, nesses dez longos anos. Nunca atrasei um dia sequer. Mas, olha o que aconteceu. No mês de janeiro deste ano, sai de férias com minha família. Não sei explicar o que houve, pois nunca vi a fatura daquele mês e simplesmente esqueci de pagar. Voltamos num fim de semana. A tevê à cabo não funcionava. Depois de algumas tentativas, liguei para eles e descobri que haviam cortado o sinal por causa do não pagamento daquela fatura". Depois de engolir a seco, ele concluiu: "Fiquei revoltado. Passei doze anos pagando a conta em dia. Cento e quarenta e quatro meses de pagamentos mensais corretamente. E olha que muitas vezes minha família e eu nem ligamos a tevê. Cento e quarenta e quatro meses em dia e nunca ligaram para dizer obrigado. Mas, bastou atrasar uma única fatura e eles cortaram o sinal. Malditos!" Caro leitor, meu amigo tem toda razão de ficar bravo. O que aconteceu com ele é o que eu chamo de antipatia e burrice ou, em termos mais jurídicos, incompetência na administração do negócio da prestação de serviço de longo prazo. Ora, em relações continuadas, especialmente naquelas em que o cliente paga mensalmente, o histórico do relacionamento é fundamental. Não tem sentido que a empresa não leve em consideração esse aspecto de fundamental importância existente entre ela e seus clientes. Num caso como o de Outrem Ego, antes de tomar a decisão de cortar o serviço é preciso saber se o cliente é fiel, se ele paga as contas em dia, há quanto tempo ele paga etc.. Sei que o sistema é de massa e automatizado, mas isso não impede que o computador seja preparado para medir a pontualidade e fidelidade de cada um dos clientes. Não há qualquer desculpa para a ação da empresa. Num caso como o de meu amigo, o sistema deveria, ao invés de determinar o corte do serviço, enviar uma segunda via ao cliente perguntando se ele havia esquecido de pagar ou, então, mandar um torpedo ou, ainda, ligar para ele. Somente depois de mais de uma tentativa é que deveriam decidir sobre o corte e ainda assim dando um aviso prévio claro. Esse exemplo é daqueles que permitem que eu mostre que o problema da relação de consumo não é sempre da aplicação da lei. No caso, a lei pode até estar do lado da empresa de tevê a cabo, mas a ação dela é tão lamentável e equivocada, que só faz mal. E faz mal, mesmo que o serviço seja restabelecido rapidamente. São empresas que erram primeiro para consertar depois. Erram conscientemente (ou por má administração, o que dá no mesmo). Pior: sem nenhum benefício financeiro, pois se o serviço fosse cortado apenas um mês depois ela não teria nenhum prejuízo. Incompetência pura e simples. Um outro exemplo muito conhecido é o das empresas e profissionais liberais que se esquecem que, do outro lado da linha telefônica ou do endereço de e-mail, pode se encontrar alguém muito interessado em (ou desesperado para) falar algo importante. Isso é particularmente grave quando essa pessoa que chama (ou grita, muitas vezes) usa expressões como "urgente", "muito urgente", "urgentíssimo", "grave", "gravíssimo", etc. E muitas vezes, o pedinte (ou reclamante) não usa essas expressões porque está com pressa e esquece. O fato é que, em todos os casos o retorno é que é importante. Um retorno rápido. Há casos até de amizades perdidas por falta de retorno. Imaginem-se as perdas quando se trata de um consumidor que necessita de algo urgente. Esse alerta vale tanto para grandes corporações que detêm muitos clientes como para pequenos escritórios de advocacia ou consultórios médicos. Não importa o tamanho: se grande, a estrutura deve poder dar conta dos retornos, se pequeno idem. Pode ser um consumidor que quer saber como resolver um problema com sua tevê a cabo ou um cliente (antigo ou novo) que recebeu uma intimação judicial ou, ainda, um paciente que precisa de um atendimento médico imediato. Veja, caro leitor, que eu não estou exagerando. Trata-se de um simples cuidado: o retorno de uma ligação ou de um e-mail para que o cliente existente ou em potencial fique satisfeito. O inverso é verdadeiro: ele se sentirá abandonado e irá procurar outro lugar para resolver seu problema. E para terminar, conto mais um, bastante singelo: o dos boletos relativos às relações constantes e duradouras, mas que contêm ameaças sem sentido. Mais uma vez, quem me contou foi meu amigo Outrem Ego. Ele me disse: "Veja que treco mais antipático esse do contador da minha mulher. Você sabe que ela tem uma microempresa e o contador dela é o mesmo desde o início dos negócios há quase dez anos. Todo mês, ele manda o boleto para ela pagar a prestação do serviço mensal. Já houve vezes em que ela esqueceu de pagar. Daí, ela liga lá e eles mandam novo boleto com novo prazo, sem qualquer dificuldade. Mas, veja só. Nos boletos consta: 'Após o vencimento vence juros de x% mais multa de 2%. Protestar no 10º dia de atraso'. Não é uma bobeira? Aposto que o contador jamais protestou um cliente sequer". De fato, nessas relações continuadas, nas quais predomina a confiança mútua, é muito antipático dizer que, se o cliente não pagar, será protestado. E, como disse meu amigo, não só é antipático como contraproducente. Protestar um cliente que paga mensalmente pelos serviços não parece boa estratégia de manutenção do negócio (Nota: os boletos podem ser emitidos sem esse tipo de alerta).
quinta-feira, 16 de julho de 2015

Como proteger a criança-consumidora?

Nesta semana em que se comemoram os 25 anos da edição do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, este poderoso rotativo Migalhas publicou matérias que envolvem o Estatuto, e dentre elas, um apanhado das várias opiniões que envolvem a questão da publicidade voltada às crianças. É desse tema que trato mais uma vez. Os adultos, em matéria de consumo, estão praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de controle. Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo que o faz consumir, consumir e consumir seria o da tomada de consciência de que existem outros caminhos para viver a vida, buscar a paz e ser feliz. Ele poderia - e pode - procurar um outro tipo de consumo, mais sustentável e racional. Mas, os adultos, ao que tudo indica, ainda ficarão muito tempo no modelo atual de consumo. Mas, claro, o adulto já foi criança. E uma das discussões mais aguerridas em matéria de oferta de produtos e serviços é a que envolve o público consumidor jovem. Parece não haver nenhuma chance de acordo (consenso jamais...) em torno da ideia da proteção dos menores na relação com o mercado. Como, de fato, os pequenos são hipervulneráveis, exigindo maior proteção legal que os adultos, ficou assente entre os consumeristas que existe latentemente uma espécie de ofensa para quase tudo aquilo que o marketing apresenta a esse específico público. Esse é um dos temas que sempre me preocupou; já escrevi bastante sobre ele e confesso: não consegui ainda formar uma opinião definitiva. Sou obrigado a dizer que se, de um lado, é evidente que os pequenos devem receber maior proteção legal (algo com o que todos concordam: aqui há consenso!), de outro, percebo que grande parte do problema não está nos fornecedores-anunciantes, mas nos pais e responsáveis pelos pequenos consumidores. Por exemplo, muito se fala que a publicidade influencia o desejo e interesse das crianças que, desprotegidas, passam a querer coisas que não precisariam possuir ou, então, a consumir alimentos que não são nutritivos, etc., o que de fato ocorre. Mas, pergunto: não se dá exatamente o mesmo com os adultos? Estes não compram produtos e mais produtos dos quais não precisam? Muitos deles, homens e mulheres, não são colecionadores de sapatos, canetas, gravatas, bolsas, camisas, ternos, etc.? Muitos não se endividam para adquirir produtos supérfluos? Uma enormidade de consumidores adultos não se empanturra de porcarias, doces, frituras, guloseimas de todo tipo? Muitos não se embebedam a torto e a direito? O drama, pois, é enorme. E a solução? Parece que ninguém diria que a solução é a proibição de fazer a oferta dos produtos e dos serviços. Uma saída parcial tem sido limitar a publicidade. Por exemplo, de cigarros e derivados e de bebidas com alto teor alcóolico. Mas não é que os adultos continuam fumando e bebendo muito... Não há, ao que parece, uma solução fácil e eu, particularmente, penso que, talvez, se deva mudar o foco. O fornecedor-anunciante, na medida em que fabrica produtos e presta serviços que estão dentro da lei, tem o direito de oferecê-los à venda visando cobrir seus custos (pagando os empregados, as taxas e impostos, os demais fornecedores da cadeia produtiva, etc.) e auferindo lucros. Para tanto, o sistema permite que ele faça publicidade. E, na medida em que esta, está de acordo com os requisitos legais e não ultrapasse os limites legalmente impostos (no Código de Defesa do Consumidor, por exemplo), não vejo como se possa impugná-la. Depois de muito refletir, de estudar uma série de campanhas publicitárias, de examinar a relação entres centenas de ofertas e os respectivos produtos e serviços e depois de, também, examinar detidamente o comportamento de centenas de consumidores (adultos) em relação a essas ofertas e ao direito que eles (consumidores) têm de comprar os produtos e serviços ou rejeitá-los, vejo que a responsabilidade é mesmo do consumidor adulto. Tirando os casos de compras compulsórias tais como de medicamentos, de aquisição de serviços obrigatórios como de médicos, hospitais e tudo o que é ligado à aquisição obrigatória, nos demais que envolvem o campo da liberdade sou obrigado a afirmar que o consumidor maior de idade compra porque quer. É possível objetar-se que há consumidores "alienados" que não sabem por que compram. Pode ser, mas daí o buraco é mais embaixo. Envolve educação e esclarecimento e uma avaliação psicológica e antropológica profunda da população em seus vários extratos sociais. O fato é este então: é o adulto que decide comprar para si e para seus filhos (ou para as crianças que estão sob sua responsabilidade momentânea: netos, sobrinhos, filhos de amigos, de vizinhos, etc.). Ora, grande parte dos adultos está inserida nesse processo coletivo de consumo independentemente de ter sido uma criança consumista. Já escrevi aqui mesmo nesta coluna que alguns pais procuram propiciar aos filhos o que nunca tiveram - o que não é raro, porque a maior parte dos produtos e serviços existentes atualmente não existiam na infância dos pais e com a produção em massa muitos deles tornaram-se acessíveis e não eram outrora. São adultos que, apesar de não terem tido uma infância de alto consumo, agora não só estão inseridos no sistema consumista como inserem os próprios filhos. Aliás, isso talvez até se justifique, pois alguns passaram necessidade e vontade na infância e agora querem compensar. (É de notar que muitos produtos tornaram-se mais acessíveis). E há pais que se endividam para comprar produtos para os filhos, muitos deles desnecessários. Esse é, então, o ponto: qual a culpa do fornecedor em relação à atitude dos adultos em relação ao seu próprio consumo e ao dos pequenos? Penso que devemos ter muita calma na resposta. No Brasil, fruto de uma mentalidade autoritária (antiga e enraizada) vivemos num largo horizonte de protecionismos vários. No que respeita ao consumidor - que é o que interessa aqui - eu também já tive oportunidade de demonstrar que nem sempre ele deseja a proteção. E digo mais: o consumidor adulto toma decisões a compra produtos e serviços sabendo muito bem o que faz ou simplesmente exercendo seu direito ao desejo. Se ele quer se endividar para fazer uma viagem à Europa, como impedir? Se ele gasta tudo o que tem para ir a estádios de futebol, depois de adquirir ingressos e camisetas caras, o que se pode fazer? Como culpar o banco por cobrar altas taxas de juros (como de fato são) se elas estão claramente estampadas nos contratos e o consumidor as conhece antecipadamente, mas mesmo assim efetua o negócio apenas e tão somente para trocar um automóvel seminovo e em bom funcionamento por um zero quilometro apenas por uma questão de status? Não se pode culpar o mercado por tudo. É incumbência do adulto conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para descobrir o que realmente ele precisa e pode adquirir. E quanto às crianças? Penso que cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade de vários produtos. Evidentemente, cabe aos pais dizer não. A criança pode até se frustrar, mas será por algo válido, uma boa experiência que ela levará consigo, pois na vida adulta ela perceberá que a frustração é um elemento comum no jogo social. Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e serviços. Qual deve ser a função do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve comprá-los sem exagero; que devemos entrar numa nova era, a do consumo sustentável, consciente. As crianças, se pudessem, agradeceriam as lições.
Escrevo este texto que envolve a sociedade de consumo no viés da atuação política dos consumidores-cidadãos e seus representantes eleitos. Como se sabe, o Congresso Nacional está às voltas com uma reforma política, cujos resultados não são lá muito animadores. Por exemplo, a tentativa de se adotar o voto facultativo foi derrotada.Também como se sabe, recentemente uma comitiva de Senadores brasileiros foi à Venezuela com o intuito de fazer uma visita aos prisioneiros políticos encarcerados pelo regime local. Não tecerei comentários a respeito desse tema que, aliás, foi bastante tratado e esclarecido pela imprensa nacional.Eu quero apenas aproveitar o episódio para apresentar uma reivindicação aos políticos brasileiros. Se, de fato, há uma preocupação com a democracia venezuelana (ou com a falta dela), o que, penso, é uma preocupação legítima até porque o país vizinho faz parte do Mercosul, então podemos aproveitar a oportunidade para melhorar a nossa própria democracia. Usando o exemplo que citei acima: por que não utilizarmos essa consciência para acabar com o voto obrigatório?Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos apenas um dos aspectos de nossa democracia, esse do fato do voto ser obrigatório entre nós.De todos os países do mundo, apenas 28 ainda adotam esse modelo, sendo 12 na América Latina e 7 na América do Sul1. E dentre os 15 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever2.Uma curiosidade: na Venezuela, o voto obrigatório foi abolido em 1993!Que tal, então, aproveitarmos essa energia e reformar nosso sistema eleitoral para melhor, implantando o voto facultativo? Eu já tratei antes deste assunto. Penso que, ao contrário do que dizem, o voto obrigatório é contrário à natural liberdade que se espera numa democracia e transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão.A obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. O sistema serve apenas para legitimar uma estrutura de poder antiga e que agora está em cheque no Brasil. Para se ter uma ideia, uma pesquisa do Instituto Datafolha realizada após as eleições de 2010 mostraram que, 20 dias após as eleições, 30% dos eleitores já não se lembravam em quem haviam votado3.Esses dados comprovam que milhões de brasileiros vão às urnas para se livrarem da obrigação de votar e para não perderem vários direitos retirados de quem não vota, como tirar passaporte, por exemplo.Por isso, sou daqueles que acreditam que o voto facultativo tem tudo de positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que, de fato, possa representar seus pensamentos, seus desejos, assim como do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso (sem partido) etc. Mas, o fim do voto obrigatório parece-me um bom começo.Agora um outro aspecto: como também já tive oportunidade de tratar, as democracias contemporâneas são formadas por cidadãos-consumidores. Isto é, uma característica marcante das sociedades capitalistas é que elas são formadas basicamente por consumidores. Os direitos dos cidadãos são exercidos em larga medida pela atuação enquanto consumidores, pois no cotidiano as ações são "vividas" pelo e para o consumo. Ademais, em relação ao Estado, está claro que ele é um agente prestador de serviços (além de produtor) e se comunica com os cidadãos do mesmo modo que as empresas privadas com seus clientes. Nesse sentido, é que se diz que o eleitor é um cliente do Estado. Como o regime é democrático e as autoridades são guindadas a seus cargos pelos votos dos eleitores, estes esperam, legitimamente, que as ações e tomadas de decisões daqueles de algum modo, então, estejam em consonância com suas necessidades, interesses e direitos. Os cidadãos-consumidores têm que se comunicar livremente com seus representantes. Se olharmos para uma série de reinvindicações feitas nos últimos meses, veremos que boa parte delas envolve direitos típicos dos consumidores, tais como transportes decentes, melhor atendimento médico e hospitalar, educação de boa qualidade e segurança pública. As manifestações apontam para algo muito bom: a tomada de consciência de que, na sociedade capitalista contemporânea, os cidadãos têm o direito de se manifestar livremente e podem exigir que se lhes entreguem produtos e serviços decentes a preços módicos e que a política seja executada de forma honesta e transparente. Por isso tudo, penso que a liberdade para o voto é um objetivo a ser alcançado.____________________1 Fonte: https://miltonribeiro.sul21.com.br/2014/08/05/o-voto-obrigatorio-no-mundo/2 Fonte: https://direito.folha.uol.com.br/blog/voto-obrigatrio-no-mundo3 Mesma Fonte anterior.
Parece fácil, mas não é. Muito se fala em qualidade no atendimento ao consumidor. Gastam-se milhões em pesquisas, mas ainda assim os órgãos de defesa do consumidor estão repletos de reclamações exatamente por causa do mau atendimento.De fato, um dos problemas de grandes empresas, que administram enorme parcela de clientes, é a qualidade do atendimento. Os financistas e outros administradores dos setores de atendimento têm muito a aprender e em alguns casos cometem erros incríveis, alguns com consequências sérias para a relação (a perda do cliente é uma delas, por exemplo), outros são apenas cômicos.Um dos focos de problemas é o da automatização do relacionamento, que é, muitas vezes, mal planejada e mal executada; as gafes cometidas são dos mais diversos tipos e, em muitos casos, geram prejuízos financeiros à empresa e/ou causam danos à sua imagem. Alguns são graves e acabam gerando reclamações e demandas judiciais e outros são apenas risíveis. Vamos a um exemplo do setor de comédias.Meu amigo Outrem Ego contou o seguinte: "N'outro dia, recebi uma correspondência de um banco que havia sido vendido e no qual tenho uma conta antiga. Na frente do envelope estava escrito: 'Comunicado importante'. Pensei: 'Nossa! Que agilidade! Já estão avisando os correntistas da venda do banco'. Mas, que nada. Abri e vi que se tratava de um outro assunto sem urgência e incrivelmente mal administrado. Li e dei uma bela risada, pois parecia pegadinha do programa do Gugu!"A correspondência trazia o seguinte:Primeiro parágrafo: "Prezado (a)... Por meio desta, informamos o estorno do valor de R$3,61 cobrado a título de Comissão de Manutenção de Limite de Crédito - CMLC, acrescido da atualização pela Selic desde a data de realização da cobrança."Sem problemas até aí. Mas, eis a surpresa do segundo parágrafo: "Para o recebimento dos valores acima especificados, solicitamos que compareça a qualquer agência do banco... portando este comunicado e um documento com foto." (grifado no original).R$3,61? Isso mesmo caro leitor! R$3,61 ou menos de 1 euro e pouco mais de 1 dólar. Olhando o envelope vê-se que ele foi postado em outro Estado da Federação. Só de uso do computador, gasto com energia, papel, tramite do documento, despesa com correio, trabalho dos funcionários etc., o gasto deve ter sido de mais de R$3,61. E, para receber a polpuda importância, meu amigo teria de se deslocar até uma agência bancária: se fosse de ônibus gastaria R$7,00 (ida e volta), de táxi, pior ainda e, de carro, com estacionamento também não daria.Pergunto: é falha de algum funcionário do banco ou a culpa é do computador?Mais uma pergunta: por que, simplesmente, não depositaram o valor na conta corrente de meu amigo?E não acabou. Terceiro parágrafo: "Colocamo-nos à disposição, por meio de nossos canais de atendimento, para esclarecer quaisquer dúvidas." (e seguem os números) Mais perda de tempo! E, abaixo, está escrito:"Para preenchimento da agência (em negrito no original) Eu__________________________, declaro ter recebido no dia ____________o valor acima informado, relativo ao estorno de Comissão de Manutenção de Limite de Crédito (CMLC), e dou a mais ampla, geral, irrevogável quitação da importância ora recebida, na forma do disposto no artigo 32º, caput e parágrafo único, do Código Civil, para nada mais cobrar ou reclamar, em Juízo ou fora dele, seja a que título for, com fundamento no pagamento ora efetuado pelo banco..., ficando consignado que a presente quitação abrange o principal e todos os acréscimos e/ou acessórios.____________________, ____/____/_________________________ Assinatura do cliente_____________________Funcionário do banco" (SIC!)"Só faltou pedirem para reconhecer firma! O irônico (e tragicômico) é que, como disse meu amigo, se ele fosse à agência receber o valor, depositaria no mesmo momento na sua conta corrente...Mas, disse-me que não iria receber, pois o custo é maior que o benefício. Ficamos pensando em como é que uma falha dessas pode acontecer e ele, sempre muito desconfiado, construiu outra teoria além dessa da constatação da incompetência explícita. Disse: "Veja bem, meu caro amigo.Se o banco tiver que devolver pequenas importâncias para muitos clientes e adotar esse método o que acontecerá é que a maior parte não irá buscar o dinheiro, assim como eu. Daí, eles faturam uma boa grana".Pode ser. Neste mundo em que vivemos, é possível pensar nisso. Mas, prefiro apostar na ineficiência do setor de atendimento, que costuma pecar pela qualidade quando envolve um grande contingente de clientes. Uma das grandes falhas desse setor é tratar o cliente como um ente abstrato, um número, esquecendo-se que ele existe realmente, que ele pensa, que ele tem direitos e interesses, que ele reage indo para o concorrente, etc.
Repito hoje uma história que já contei, propondo uma reflexão ainda sobre o tema da proteção legal. Começo perguntando se o consumidor quer mesmo ser protegido. Veja, caro leitor, o que aconteceu com meu amigo Outrem Ego há algum tempo. Ele morava num condomínio de casas numa cidade próxima da capital de São Paulo. Certo dia, viu numa revista um anúncio de uma liquidação que estava sendo feita por uma loja da qual ele era cliente há muitos anos. Era um estabelecimento no bairro de Moema, que vendia sapatos, bolsas, cintos etc.O. Ego falou com a esposa e, num sábado, dirigiram-se a São Paulo para fazer compras, indo diretamente àquela loja. Foram ele, a esposa e, também, a sogra e a cunhada, que por acaso faziam-lhes uma visita e, ainda, sua filha à época de colo, com pouco mais de um ano. "Quatro mulheres e eu", disse ele. Na viagem, eles gastaram quase duas horas. Lá chegando, ele, com a filha no colo, dirigiu-se ao andar superior, onde se encontravam os produtos masculinos e as demais mulheres ficaram na andar térreo examinando as ofertas de produtos femininos. Ele demorou a encontrar sapatos que servissem e, quando desceu, viu que a esposa e as demais já aguardavam do lado de fora à porta - a loja estava cheia demais e elas haviam resolvido ir a outro lugar; só esperavam por ele.Muito bem. Ele foi para a fila à frente dos caixas: era uma fila única em ziguezague. Na entrada da fila, havia um rapaz que fazia a triagem das compras. Meu amigo entregou sua sacola com um par de sapatos e um cinto. O funcionário passou sobre a etiqueta um leitor ótico e perguntou: "O senhor vai pagar com cheque ou cartão maestro?". Meu amigo respondeu: "Nenhum dos dois. Pagarei com meu cartão Mastercard". O rapaz, então, disse "Bom, o senhor não pode comprar porque só aceitamos cartão maestro ou cheque após consulta".Outrem Ego gosta de dizer: "Para exercer direitos é sempre muito importante não ficar nervoso, não levantar a voz, manter a calma... Não é bom gritar, pois fica parecendo que a gente não tem razão". Assim, depois da negativa do funcionário da loja, ele calmamente disse: "Olha, eu demorei duas horas para chegar aqui e, saiba você, que eu levarei este sapato e este cinto. Por favor, chame o gerente". O rapaz quis resistir e dizer não, mas a voz de meu amigo era tão calma e seu olhar tão penetrante que ele sequer ousou. Passados três ou quatro minutos, chegou uma senhora, se apresentando como gerente, bradando algo em tom de pouca amizade. Ele se apresentou e disse: "Minha senhora, recebi em minha casa, no interior, uma propaganda deste estabelecimento anunciando a liquidação. Decidi, então, vir até aqui com minha família para fazer compras. Esta aqui é minha filha!". A mulher, por enquanto, apenas olhava e ouvia. Ele continuou: "Olha, não havia no anúncio qualquer referência a que as compras somente poderiam ser pagas com cartão maestro ou cheque. Aliás, nem aqui na loja vejo isso anunciado. Mas, eu irei levar estas compras..."Foi bruscamente interrompido pela gerente: "Olha aqui, não quero saber de seus problemas. Aqui só recebemos cartão maestro ou cheque. Também posso aceitar dinheiro. Se o senhor tem um deles tudo bem, senão pode ir embora!".A mulher já havia perdido as estribeiras, mas O. Ego não se abalou. Com uma fala mansa, simplesmente disse: "Minha senhora, esta loja está violando o Código de Defesa do Consumidor por falta de informação, mas eu tenho a solução. Basta a senhora anotar meus dados, emitir uma duplicata em meu nome com vencimento à vista ou para segunda-feira, emitir um boleto ou me passar os dados da conta corrente da empresa para eu fazer a transferência via internet".A mulher ouviu e em seguida deu uma gargalhada histérica e falou: "De jeito nenhum. Pode ir andando...". Meu amigo, inabalável, disse: "Olha, o caso é de crime tipificado no artigo 66 da lei 8.078/90. Eu chamarei e a polícia e a senhora irá presa em flagrante..." e pegou o celular.Caro leitor, sabe o que aconteceu naquele exato momento? Com a discussão, Outrem Ego bloqueara a entrada dos caixas. Atrás dele formara-se uma extensa fila e as pessoas que estavam lá esperando começaram a protestar. Mas, adivinhem: começaram a protestar contra ele! Começaram a reclamar e alguns até o xingaram. Ele ainda tentou retrucar dizendo, agora já abalado, "eu estou lutando pelo direito de vocês!", mas não adiantou. Estava todo mundo contra ele, que desanimado jogou a toalha. A essa altura, sua esposa já havia entrado na loja e entregou para ele dinheiro suficiente para pagar as compras. Ele, bastante contrariado, pagou em dinheiro e foi embora.Não é incrível? Foram os próprios consumidores que impediram que o consumidor Outrem Ego exercesse seus direitos. E, claro, ele não só tinha razão como estava mesmo defendendo o direito de todos os consumidores, porque o abuso da loja, evidentemente, não era contra meu amigo, mas contra todos! (Não só abuso, como também má administração do negócio).Esse fenômeno, no Brasil, infelizmente, não é novo; é muito enraizado num individualismo que desconsidera o outro - um igual em direitos -, que é desprezado, com base no slogan "não é comigo". Um erro, naturalmente, mas bem profundo. Esse tipo de atitude é parente da má educação em geral, do descumprimento aberto das normas mais básicas de civilidade, que vai desde o não dar "bom dia" ou "até logo" dentro do elevador às pessoas que moram no mesmo prédio até o desrespeito abertamente praticado às faixas de pedestres por parte dos motoristas e também a travessia fora da faixa em qualquer lugar e a qualquer momento por parte dos pedestres, ou o excesso de ruído com músicas tocadas em alto volume e até altas horas incomodando os vizinhos sem nenhuma preocupação etc.Aliás, essa falta de civilidade, solidariedade e respeito ao próximo por parte de muitas pessoas, impede que a sociedade se organize na defesa de prerrogativas e garantias na luta por seus direitos. Na doutrina consumerista muito se discutiu sobre a proteção que a lei dá ao consumidor; se seria ou não excessiva. Eu sou daqueles que acreditam que a lei 8.078/90 buscou, com a proteção efetuada, reequilibrar as forças desiguais do mercado de consumo, mas admito, por exemplo, que pequenos fornecedores também precisariam de alguma proteção e muito esclarecimento (critica que faço à responsabilidade objetiva estabelecida de forma ampla e indiscriminadamente para as grandes corporações e ao mesmo tempo para os micro empresários). Admito também que pode sim o consumidor lesar o fornecedor, não só em atitudes francamente fraudulentas, como violando o princípio da boa fé objetiva estabelecido no sistema legal.E, acima disso, penso que uma proteção exacerbada não só não resolve como impede o amadurecimento e a autonomia. (Em matéria de educação infantil, por exemplo, isso é fundamental. Não basta proteger, é preciso dar autonomia para as decisões; é necessário que, aos poucos, a criança aprenda a resolver alguns dos problemas que aparecem, para que, quando adulto, saiba fazer o mesmo). Por isso, é que se compreende que em cada estabelecimento - também como manda a lei - haja um exemplar do CDC: algo irônico, porque certamente a maior parte dos consumidores e dos lojistas terá dificuldade de encontrar na lei qual a norma incidente numa eventual discussão, uma vez que o texto, apesar de claro, cuida de princípios, tem vários termos técnicos, é especifico para poucas situações concretas etc.
Como estudante de Direito, vivi muito tempo a ilusão de que o Estado pudesse, de fato, intervindo na sociedade, criar bem-estar social. Um Estado democrático, naturalmente, e no qual os agentes públicos representassem os interesses dos governados e também o que existisse do melhor no pensamento jurídico garantidor da dignidade da pessoa humana. Haveria de se implantar políticas e regras que beneficiassem a todos.Infelizmente, com o passar do tempo, minha ilusão foi se esvaindo. Estou cada vez mais convencido de que, muitas vezes, é o Estado (ainda que democrático) que se torna um entrave ao desenvolvimento das pessoas e da sociedade. A liberdade, por exemplo, esse direito natural e civil, que toda pessoa deveria poder gozar, tem sido limitada, violada, vilipendiada; o Estado democrático tornou-se centralizador, onipotente, opressor; ao invés de garantir a liberdade individual, ampliando e garantindo espaços para seu exercício ele, ao contrário, passou a estabelecer obstáculos, muitos deles ilegítimos quando não ilegais (ou inconstitucionais).Em vários fóruns e textos tem-se discutido esse papel que o Estado contemporâneo assumiu e esse exagero precisaria ser limitado. No mundo todo, os Estados têm agentes que causam danos à população, de maneira mais ou menos evidente. As diversas polícias, em muitos lugares, são uma catástrofe de ineficiência e abusos, o que se observa até em países do primeiro mundo como nos Estados Unidos de América, por exemplo. Esse braço repressor, muitas vezes mal dirigido e mal treinado, que se faz mostrar em fotos e vídeos, está também em vários outros setores da administração pública, de forma mais oculta dentro das mentes de seus agentes.A liberdade individual tem sido uma vítima constante dessa mentalidade centralizadora e das ações que a ela correspondem. Para nossa reflexão, apresentarei duas hipóteses: uma, digamos assim, no plano micro e outra no plano macro.Faço referência a uma citação de meu amigo Outrem Ego que já aqui indiquei: "Uma das claras diferenças entre uma democracia e uma ditadura é a de que nesta toda pessoa da sociedade civil é suspeita (de algo...); naquela, todo cidadão é inocente até prova (contundente) em contrário. Numa democracia, ninguém é suspeito até agir como tal".N'outro dia, ouvi o jornalista Ricardo Boechat contar que uma vez ele estava preso num congestionamento enorme e viu muitos motoristas serem assaltados exatamente porque estavam parados sem nada poderem fazer. Mais à frente, descobriu que o congestionamento era causado por uma blitz policial que fazia investigação da lei seca ou algo semelhante. Ele disse que não aguentou e foi falar para os policiais que por causa deles as pessoas estavam sendo assaltadas e acabou sendo admoestado por eles. Ou seja, a polícia que deveria dar segurança à população estava não só não exercendo sua função, como facilitando a vida dos meliantes. Aliás, como já perguntei aqui nesta coluna: se uma pessoa anda pela rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente e não está cometendo nenhum delito e nem apresenta uma atitude suspeita, qual o fundamento para ela ser abordada por um policial? De onde ele extrai esse direito?Não parece que as coisas estão fora do lugar? Pessoas de bem sendo abordadas a torto e a direito e, ao mesmo tempo, a violência e a insegurança correndo solta. E em todos os cantos do país.Agora, proponho que pensemos uma questão mais macro. O da implementação, no Brasil dos últimos anos, de uma política econômica que se supunha de inclusão social das populações mais carentes. Lembro o pensamento da filósofa (ou cientista política, como ela preferia) Hannah Arendt a respeito da aquisição de direitos nas sociedades democráticas, capitalistas e de massa. Ela dizia que o primeiro direito a ser instituído é o "direito a ter direitos". Ela via que em muitas sociedades, milhares de pessoas não tinham um mínimo de direitos garantidos.Pergunto: quais seriam esses direitos básicos a serem garantidos?Como é muito grande o poder simbólico e real das sociedades de consumo atuais, houve uma espécie de sedução para o consumo: a política implementada permitiu que as pessoas que não tinham direitos básicos passassem a ser consumidoras. O Estado, ao invés de oferecer e garantir direitos sociais fundamentais tais como educação, moradia, saneamento básico, atendimento hospitalar etc., ampliou o acesso a bens de consumo. Muitas pessoas que não têm onde morar ou habitam favelas e cortiços e/ou não têm empregos regulares, possuem televisores de 40 polegadas, aparelhos celulares e iphones, micro-ondas ou geladeiras modernas, computadores e até automóveis adquiridos com financiamentos de muitos anos. Se Hannah Arendt fosse viva talvez constatasse que, nesses casos, deu-se um salto: às pessoas que não tinham direitos, ofereceram-se produtos de consumo. Elas continuam sem as garantias básicas, mas podem assistir à novela das oito numa tevê de plasma.Pergunto novamente: não parece a você leitor que algo está fora de lugar?Claro que, quando se fala em liberdade, há que haver uma garantia mínima para seu exercício. E daí, a presença do Estado é fundamental. De nada adianta "ser livre para dormir debaixo da ponte", como se diz. O exercício de liberdade começa na garantia mínima do direito a ter direitos. É preciso que sejam oferecidas condições para que todas as pessoas possam usufruir dos benefícios sociais e também se realizar como indivíduos, fazendo escolhas dentro de um quadro regular.Não parece fácil e não é. Mas, pelo que se vê, nos tempos atuais, há um distanciamento muito grande entre Estado e sociedade; entre direitos estabelecidos constitucionalmente e a implementação de políticas que permitam sua eficácia. Não basta haver produção e consumo. É preciso também respeito aos direitos democraticamente estabelecidos e a criação de um espaço para que as pessoas, após beneficiarem-se de direitos sociais mínimos, decidam como e quando desejam ser consumidores.
Volto ao tema da obesidade, esta que é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o acúmulo excessivo de gordura no corpo que pode acarretar problemas graves de saúde como doenças cardiovasculares, hipertensão e diabetes. Segundo a OMS, a obesidade é considerada a mais importante desordem nutricional e é uma epidemia mundial. A incidência da doença é alta, tanto em países desenvolvidos, quanto nos emergentes e subdesenvolvidos. Nenhuma faixa etária está livre do problema. E, pior, nos últimos anos tem aumentando a incidência da doença nas primeiras faixas etárias, em crianças e adolescentes.Conforme explica a médica nutróloga Jussara Fialho Ferreira1, há alguns anos se dizia que a obesidade decorria da gula, da falta de força de vontade, de uma fraqueza de caráter ou, ainda, de algum distúrbio psicológico. Atualmente, a ciência reconhece que a obesidade tem múltiplas causas fisiológicas e psicológicas.Diz ela: "Sabe-se que existem pessoas que possuem genes predispostos ou não a prática de esportes ou que têm predisposição para comer muitos doces, por exemplo. Mas não é só isso que determina se uma pessoa será ou não obesa. Outro agravante é a hereditariedade. Se um dos pais for obeso, a chance de desenvolver o distúrbio é de 50%. Agora se ambos forem obesos a chance é de 80%"2.Além desses fatores genéticos, existe o fator ambiental. Este é caracterizado pelo desequilíbrio entre a ingestão de alimentos com alta densidade calórica e a queima insuficiente destas calorias. A psicóloga Angela Tamashiro diz que "as pessoas não são obesas porque querem ou desejam. Várias são as causas que geram a obesidade. Em 90% dos casos, a causa da obesidade está na utilização descontrolada da gordura..."3 Deixando de lado a questão da genética, vê-se que um ponto relevante para o exame desse problema é o da questão ambiental: obesidade causada pela ingestão imoderada de produtos calóricos, repletos de açucares e conservantes e outros ingredientes que fazem mal à saúde. Eu já tratei desse assunto antes, com ênfase na informação e na publicidade. Como elemento para nossa reflexão, proponho uma análise do tema sob outro prisma, que tem chamado cada vez mais a atenção: será que, com a quantidade de informações disponíveis (não só propriamente nas embalagens dos produtos, mas também nas matérias veiculadas pelas tevês, sites, blogs etc.), os consumidores ainda não sabem que gorduras, açucares, conservantes etc. consumidos em doses exageradas engordam e podem fazer mal à saúde?Muito se fala em ausência de informação ou má informação a respeito dos produtos ditos alimentícios que são fabricados e vendidos em todos os cantos do mundo, mas o que fazer se as informações são fornecidas de acordo com as regras vigentes e ainda assim o consumidor continua a ingerir os mesmos produtos? Não é caso de simples exercício de um direito subjetivo?Se o consumidor vai a uma festa na qual estão sendo servidos pastéis, coxinhas, empadinhas, camarões empanados etc. e resolve se empanturrar, a culpa é de quem?Não há dúvida de que a lei pode determinar que as informações nutricionais e que digam respeito à saúde do consumidor devam estar estampadas em embalagens, cartazes e na publicidade. Mas, na medida em que elas sejam fornecidas de acordo com o modelo legal, daí para frente a responsabilidade é de quem adquire e consome o produto. Naturalmente, quando a informação envolve crianças, o quadro é mais delicado, mas, neste caso, cabe aos pais a decisão sobre o que comprar e o que consumir. Algumas indústrias são acusadas de imporem seus produtos calóricos por intermédio de publicidade massiva e constante. Mas, veja-se o paradoxo: no setor massificado de planos de saúde, muitas empresas oferecem descontos nas mensalidades e até prêmios para os usuários que perderem peso e adotarem hábitos saudáveis de vida4. Isso comprova que é o próprio consumidor que escolhe seu modo de vida e seus hábitos alimentares, ainda que estes possam fazer mal à sua saúde. Nos dias que correm, há informação de sobra a respeito do problema e a ciência (com apoio ou não do mercado de consumo) tem colaborado fortemente para que, cada vez mais, as pessoas possam se cuidar. Vejamos o exemplo do cigarro: em grande parte do século XX, fumar era sinal de bom gosto e distinção. Nos filmes de Hollywood dos anos 40, 50, 60 e até 70, os personagens quase sempre estavam portando um cigarro, especialmente em situações sociais. Cigarro e glamour andavam juntos. E, não só em Hollywood, mas também no cinema europeu etc. Fumar era algo natural de se fazer.Muito bem. Na medida em que a ciência avançou, foi-se descobrindo os malefícios do tabaco e começou-se a catalogar as diversas doenças causadas por seu consumo, assim como um número enorme de mortes. O Estado, por sua vez, passou a fazer a contabilidade dos prejuízos ocasionados com as doenças e as mortes. Conclusão: muitos países passaram a proibir a publicidade de produtos fumígenos, os impostos sobre esses produtos foram aumentados, passou-se a proibir seu uso em locais fechados e públicos etc., tudo visando fazer cair seu consumo. Porém, com toda a informação disponível e mesmo com a intervenção do Estado mediante leis de controle, ainda assim não milhões as pessoas que fumam. E na mesma linha que as operadoras de planos de saúde tentam obter que seus usuários tenham hábitos alimentares saudáveis, nos Estados Unidos de América, há planos de saúde que utilizam incentivos financeiros para que seus clientes deixem de fumar5. Há, ao que parece, um grave problema de conscientização no polo de consumo. Cabe ao consumidor, caso queira, mudar seus hábitos alimentares e de qualidade de vida (praticando esportes, deixando de fumar etc.).____________________1 Apud Elisa Cortes, "Obesidade: nova epidemia mundial" in www.curiofisica.com.br, 29-9-2009. 2 Idem.3 Apud mesmo artigo.4 Ver matéria a respeito aqui. 5 Ver matéria a respeito aqui.
quinta-feira, 7 de maio de 2015

Uma reflexão sobre excesso de proteção

A respeito da superproteção na educação das crianças, conta-se a seguinte piada: uma família muito rica costumava se reunir para lautos jantares. Sempre se sentavam à mesa o avô, patriarca da família e a avó, a matriarca, seus dois filhos com as respectivas esposas e, numa mesa ao lado, os netos, todos muito mimados e excessivamente protegidos. Um desses netos era mudo. Certo dia, o avô comprou uma grande mesa retangular, ao redor da qual caberia toda a família, incluindo as crianças. Marcado o jantar, todos se acomodaram. De repente, o menino mudo levantou a mão e disse: "Pai, passa o pão." Silêncio e espanto geral! O pai exclamou: "Filho! Você fala!" "Sim", respondeu o menino com simplicidade. "E por que até hoje você nunca falou?" "Porque eu nunca precisei." Esse é o tema para nossa reflexão: excesso de proteção faz mal? Na educação infantil, parece haver consenso que sim. E em relação aos cidadãos, é bom o excesso de proteção? Ninguém duvida de que a proteção é salutar. A lei deve mesmo proteger os consumidores hipossuficientes, os menores de idade, as pessoas portadoras de deficiências, os idosos, as gestantes etc. Mas, até que ponto deve ir essa proteção?Veja, caro leitor, essa história narrada por meu amigo Outrem Ego: "Meu irmão, como você sabe, é juiz de Direito e professor universitário. Ele é doutor em Direito há muitos anos. Ele é juiz na capital e dava aulas numa faculdade de Direito na grande SP. Há dois anos, a escola, para reduzir custos, apresentou projeto para quem quisesse ser mandado embora. Como ele estava cansado das viagens, aceitou o pacote e saiu com alguns colegas.A escola fez os depósitos dos valores devidos em sua conta corrente e, marcada a homologação, ele deu uma pausa nos seus afazeres para comparecer ao Sindicato respectivo para assinatura do termo.Lá chegando, o funcionário do Sindicato encontrou uma pequena diferença de valor a favor de meu irmão e disse que, por isso, a homologação não poderia ser feita.Meu irmão disse que não se importava e que estava satisfeito com os valores recebidos. Mas, o funcionário foi irredutível: a homologação não seria feita.Meu irmão argumentou que sabia o que estava fazendo, afinal ele era doutor em Direito, professor de Direito, juiz de Direito!"É direito meu, minha prerrogativa e da qual eu abro mão!", bradou ele, mas não adiantou.Ele insistiu: disse que não poderia voltar n'outro dia, pois tinha mais o que fazer, o que no caso era julgar processos...Não deu certo. Depois de mais discussões, ele acabou concordando em escrever à mão no verso do termo uma ressalva confirmando que sabia que estava recebendo menos e que iria 'cobrar seus direitos'. Claro que ele nada fez, pois era prerrogativa da qual ele queria abrir mão!" Lendo essa história contada por meu amigo, pergunto: é isso, então? O Estado e/ou seus delegados e representantes e até os órgãos de classe e os sindicatos das diversas categorias sabem mais a respeito dos direitos instituídos que as próprias pessoas a quem supostamente pretendem proteger?Outrem Ego, depois de muito refletir ponderou algo nesses termos: "Em matéria de direito patrimonial, o montante a receber não pertence ao titular? Se sim, por que é que ele não poderia abrir mão? Se ele pode sacar o dinheiro a que tem direito na boca do caixa de um banco e, em seguida, entregá-lo para o primeiro que encontrar pelo caminho, por que não pode simplesmente dizer que não quer recebê-lo isentando o devedor do pagamento? Aliás, ele poderia sacar o dinheiro e, ato contínuo, depositar de volta na conta da empresa pagadora. Não se trata de uma proteção exagerada?" Sou obrigado a concordar com meu amigo. Proteção demais não parece fazer bem mesmo. Mas, quero, querido leitor, deixar algo claro para evitar confusão: não estou dizendo que não deva haver proteção. O problema está no excesso. Será que, do mesmo modo que as crianças superprotegidas têm dificuldade para amadurecer, não se está fazendo o mesmo com as pessoas em geral? Será que, com esse excesso de proteção, o cidadão, digamos assim, emudece? (para ficar com o exemplo da piada). Será que ele deixa de reivindicar, por ficar esperando que o defendam? Ou, pior, será que assim "protegido", ele nunca perceberá que poderia exercer seus direitos de outro modo?Deixo, pois, essas indagações para nossa reflexão.
Erupções vulcânicas como essa dos últimos dias do vulcão Calbuco no Chile não são comuns nem previsíveis. Muitas delas causam estragos no ambiente local, ao redor e a fumaça com cinzas que se expandem pelo ar acaba gerando problemas para o tráfego aéreo, impedindo viagens, fechando aeroportos, impedindo que as pessoas saiam a passeio e a negócios ou retornam para suas bases.Volto, então, ao tema da responsabilidade civil dos transportadores que não puderam prestar os serviços contratados em função desse problema ambiental. Faço, a seguir, minhas considerações. Para entendermos como a questão está colocada na legislação (no CDC e no CC) começo cuidando da questão do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão.Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no CDC foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo e nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração (não abordarei os casos de monopólio e até oligopólios, nos quais o risco de perda são muito pequenos, o que, claro, não elimina a responsabilidade de mesma base legal).O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz porque quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar, algo, aliás, inevitável, pois é impossível oferecer produtos e serviços em larga escala sem que algum problema surja.Decorre disso que, quem se estabelece deve, de antemão, bem calcular os potenciais danos que irá causar não só para buscar evitá-los, mas também para calcular suas perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão.O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral, a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II). Vê-se, portanto, que a lei consumerista não coloca como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa). Acontece que o CC/02 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte: "Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade." Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o CC fala em força maior, está referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o CDC afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o CDC quanto o CC mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador, nem por ele evitado. Todavia, não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar. O risco da atividade implica a obrigação imposta ao empresário para que ele faça um cálculo, da melhor forma possível, das várias possibilidades de ocorrências que possam afetar seu negócio. Certos fatos, necessariamente implicam agravamento do risco em função de sua latente possibilidade de ocorrência e, por isso, uma vez ocorrendo, não excluem o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o das tempestades e nevoeiros. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno - que, aliás, ocorre constantemente - é integrante típico do risco daquele negócio.Quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento, caso fortuito ou força maior, que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. E, é aqui que eu coloco o caso do vulcão. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser prevista. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto. Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas geradas pelas cinzas do vulcão e que impedem a navegação. Resguardados, claro, os direitos dos passageiros de remarcação de passagens sem a cobrança de multas ou o cancelamento da reserva com recebimento dos valores pagos. E, para terminar, tenho de falar dos passageiros que foram obrigados a mudar seus planos de viagens por causa do vulcão. Os cancelamentos envolveram e envolvem as estadias nos hotéis, flats, pousadas e demais ofertas de hospedagem, o transporte aéreo, e também o terrestre e marítimo a eles ligados, os traslados terrestres, os passeios previamente contratados etc. O evento fortuito externo atinge tanto os consumidores como os fornecedores. Se, de um lado, estes não podem ser responsabilizados, de outro, os consumidores também não podem ser prejudicados.Quando o empresário do setor hoteleiro se estabelece e passa a oferecer seus produtos, naturalmente, assume o risco de sofrer certas perdas advindas de cancelamentos legítimos e também de não efetuar vendas. Esse risco é inerente à própria atividade e deve fazer parte, como mostrei, do cálculo do risco/custo/benefício efetuado. Um evento como a erupção de um vulcão, repito, atinge indiscriminadamente a todos, não importa em que lado da relação de consumo a pessoa esteja.
Volto ao tema da obesidade infantil.Dados recentemente publicados mostram que existem no mundo mais de 42 milhões de crianças com excesso de peso e com menos de cinco anos de idade1. Realmente, o problema é grave e, como existem campanhas para que se implante a educação alimentar nas escolas o que, penso, é bem-vindo, indico ao final o endereço para a assinatura em um abaixo-assinado específico sobre o tema.Mas, gostaria de trazer um ponto para reflexão. O do papel dos pais.A Organização Panamericana de Saúde da Organização Mundial da Saúde (OPS/OMS) fez um chamado à indústria alimentícia para reduzir o sal em seus produtos, especialmente naqueles voltados para o público infantil2, o que é muito bom.Para se ter uma ideia desse problema, veja-se que a OMS recomenda a ingestão de, no máximo, dois gramas de sódio por dia, o que equivale a cinco gramas de sal. Para as crianças, esse valor deve ser ajustado para baixo, uma vez que, em geral, elas consomem menos calorias diárias que os adultos. Segundo a agência, nas Américas esse valor é superior aos cinco gramas: a taxa de consumo no Canadá, Chile e Estados Unidos é de oito, cinco e nove, respectivamente. E no Brasil são quase doze gramas de sal ingeridos por dia.Para tentar diminuir o consumo diário, o Ministério da Saúde firmou uma parceria com a Associação Brasileira das Indústrias Alimentares (ABIA) para reduzir o sódio em alimentos processados. A expectativa é retirar até 2020, mais de 28 mil toneladas de sódio do mercado brasileiro3.Muito bem. O slogan das campanhas é "Garantir hábitos alimentares na infância é importante para o desenvolvimento de adultos saudáveis, os pais devem privilegiar as refeições com alimentos frescos e evitar comidas industrializadas".Não resta dúvida que a boa a alimentação e a boa saúde na infância geram melhor qualidade do corpo adulto. O problema é o que fazer com os hábitos alimentares errados e viciados dos que são adultos e, especialmente, dos pais. Já tive oportunidade de dizer neste espaço que fico espantado com o desconhecimento de muitos consumidores sobre as propriedades e funções dos produtos alimentícios, a despeito de todas as informações que são lançadas via imprensa escrita, falada, nos portais da web etc.. Muitas pessoas continuam engordando mal (não há qualquer problema em estar acima do peso esperado para a idade, estatura, gênero, desde que se tenha saúde) com sérios problemas para sua qualidade de vida. E, por outro lado, é também sabido que é possível alimentar-se bem e com prazer sem qualquer prejuízo à saúde. Peguemos o exemplo dos alimentos de baixo teor nutritivo e repleto de ingredientes que fazem mal ao organismo como sódio, açúcares, gorduras, conservantes etc.. Parece existir informação suficiente sobre seus malefícios. É algo que deveria ser tranquilamente conhecido de todos os consumidores. Seu consumo excessivo deveria ser, realmente, evitado como algo óbvio. Não resta dúvida que a legislação pode fazer muito em benefício da saúde dos consumidores e, em especial, das crianças, restringindo, por exemplo, a venda de porcarias nas cantinas escolares, como aqui também já defendi. Mas, evidentemente, cabe aos adultos pais adotarem hábitos alimentares mais saudáveis para si e para seus filhos. E para saber o que são bons hábitos alimentares basta um click na web.Anoto que não há problema algum em comer um hambúrguer ou um belo churrasco ou, ainda coxinhas e pastéis, desde que não seja diariamente e que a alimentação do dia-a-dia seja balanceada, nutritiva e, claro, saudável. A ida a uma lanchonete para comer um cheeseburguer com batatas fritas pode ser um divertido momento de lazer sem causar danos à saúde, mas se for exatamente isso: um momento de lazer e não uma rotina calórica constante. E, para terminar, repito: nessa questão dos alimentos, os adultos também precisam ser (re) educados.____________________Para quem quiser assinar o abaixo-assinado que referi no início, segue o link:https://www.change.org/p/jamie-oliver-precisa-da-sua-ajuda-para-lutar-pela-educa%C3%A7%C3%A3o-alimentar-nas-escolas-foodrevolutionday?utm_source=action_alert&utm_medium=email&utm_campaign=281601&alert_id=HTTjaGSZSy_3gH0ejQOaUJk8FRDZDH9gD%2B8REwnvK%2F3%2F8lzxjyvhgM%3D____________________1 in https://criancaeconsumo.org.br/noticias/70-milhoes-de-criancas-devem-estar-acima-do-peso-em-2025-alerta-organizacao/. Os números são do ano de 2013.2 In https://criancaeconsumo.org.br/noticias/opsoms-exige-reducao-do-sal-e-o-fim-da-publicidade-de-alimentos-para-criancas/ 3 Idem anterior.
quinta-feira, 9 de abril de 2015

Da vida líquida para a vida gasosa

Meu amigo Outrem Ego viu que eu citei o sociólogo polonês Zygmunt Bauman na coluna da semana passada e, como conhece o trabalho por ele publicado, disse-me que andava com saudade das coisas sólidas de antigamente, que, aliás, não são tão antigas assim.No final do ano passado ele já reclamara do fechamento das locadoras de vídeos, que praticamente não mais existem: "Um dos passeios mais gostosos de fazer era ir sozinho ou com um amigo, o namorado, a namorada, o marido a esposa, os filhos ou até mesmo toda a família a uma locadora de vídeos para escolher um filme ou mais, para depois assistir em casa. Era agradável, lúdico, instrutivo. E interativo. Encontrávamos outras pessoas, trocávamos experiências e opiniões sobre os filmes já vistos, dávamos dicas e, diante de uma enorme quantidade de opções, escolhíamos com carinho e sem pressa"."Pressa", disse eu na oportunidade, "Essa pressa que, de tão rápida, tão fugaz, nos consome sem que percebamos..." Voltando ao sociólogo, meu amigo lembrou da questão da calma, do tempo de curtir a vida de maneira mais lenta: "Bateu uma nostalgia", disse e depois contou o seguinte:"Sabem, tornamo-nos uma sociedade de fotógrafos. Todo mundo tira foto o tempo todo de tudo, sem parar e, rapidamente... Sou de um tempo em que isso era muito diferente, gostoso, interessante e sólido - para usar a teoria do sociólogo. E, olha, amigo, esse tempo não vai muito longe. É de apenas mais ou menos uns trinta anos...".Ele fechou os olhos, como que retornando no tempo, e depois prosseguiu:"Lembro muito bem da primeira vez que minha mulher e eu fomos à Europa. Foi na década de oitenta. Um dos apetrechos mais importantes para levarmos na mala (de mão) era uma máquina fotográfica. E, naturalmente, junto dela alguns rolinhos de filmes contendo doze, vinte e quatro ou trinta e seis poses. Naquela viagem levamos dois rolos de cada. (Aliás, não era barato). Então, fazendo as contas, poderíamos tirar... Cento e quarenta e quatro fotos. Veja bem, viajamos quase trinta dias e podíamos tirar apenas um pouco mais de cem fotos, cerca de quatro ou cinco fotos por dia""Isso gerava uma responsabilidade: nós tínhamos que escolher o lugar para bater, deveríamos saber se valia a pena tirar naquele momento do dia ou da noite (com flash que se acoplava na máquina); teríamos que decidir se tirávamos de uma igreja ou de um museu etc. E não só: precisávamos caprichar para não cortar parte da paisagem e quando pedíamos para alguém tirar nossa foto juntos, torcíamos para que ele não cortasse nossas cabeças""A viagem enriquecia-se com as próprias fotos que exigia nossa concentração e gerava desde logo uma emoção. E quando voltávamos, então?""Lembro bem dessa primeira viagem e também de outras posteriores da mesma época. Levei os rolos à loja para fazer a revelação, que demorava alguns dias. Ficávamos na expectativa: será que saíram todas? Algumas ficaram escuras, opacas, tremidas? Será que queimaram? Afinal, cortaram ou não nossas cabeças?""Era algo que nos deixava um pouco tensos é verdade, mas não era desagradável, especialmente porque na maior parte das vezes as fotos saiam bem""E, claro, como iríamos aguardar algum tempo para ver as fotos e elas eram tão importantes, pois refletiam a viagem, os lugares conhecidos, as experiência vividas, nós convidávamos parentes e amigos para irem em casa ver. Depois, colocávamos tudo num álbum que, de vez em quando, folheávamos""Mas, hoje, os jovens nem sabem o que é isso. E a experiência da foto é efêmera e momentânea. Numa viagem de uma semana, a pessoa tira quinhentas fotos ou mais. Bate várias do mesmo lugar e da mesma pose. Tira, olha uma vez e nunca mais vê. Numa simples festa de aniversário em casa, as pessoas tiram centenas de fotos, muitas idênticas e cometem o mesmo pecado: olham uma vez, exatamente logo após tirar. Depois, esquecem. Sei que há pessoas que guardam algumas, mas é muito pouco em termos de experiência""Ah, sei, esqueci das redes sociais... Tira-se a foto, posta-se na rede e ela vai ser vista... Muitas de si mesmo! As redes estão repletas de fotos sem história, apenas do imediato... A solidez se foi meu caro amigo!"Tive que concordar com ele, eu que tenho a mesma experiência de fotos de uma época que se foi. E vejo-me obrigado a retornar a Zygmunt Bauman, que se tornou famoso em grande medida por apresentar ao público o seu conceito de "estado líquido" da sociedade contemporânea. Em obras como Modernidade Líquida (2000), Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos (2003) Vida líquida (2005), Medo líquido(2006) e Tempos líquidos: viver na idade da incerteza (2007), ele mostra a vida num tempo de incertezas, isto é, tempos de estados líquidos em oposição à solidez representada pelos estados de certeza, algo do passado. O autor mostra que nesta nossa sociedade moderna, isto é, líquida, as condições de atuação das pessoas - leia-se: de consumidores - mudam antes que suas formas se consolidem. Nada é feito para durar. Vingou uma espécie de vida temporária, vivida em condições de incerteza constante. De fato, na vida cotidiana percebe-se uma espécie de ânsia por devorar, suprimir, trocar, extinguir, modificar incessantemente. Tudo se fragmenta e se altera. Aquele friozinho na barriga para saber se uma foto tirada com tanto carinho saiu ou não, foi substituída por uma ansiedade que torna tudo imediato, que devora nossa paciência, nossa capacidade de espera.Meu amigo lembrou do micro-ondas: "É prático e quase todo mundo conhece, sabe usar e usa de fato. Pergunto: você já se pegou ansioso aguardando que passasse os dois minutos programados para aquecer alguma coisa? Não é incomum que nós marquemos um minuto e desliguemos alguns segundos antes. Será que nós perdemos a capacidade de esperar um minuto que seja?"Tive de concordar mais uma vez. Caro leitor, tentando ir além do que disse o pensador polonês, arrisco dizer que a sociedade capitalista chegou a, digamos, um estágio gasoso. Nem mais líquida é. A liquidez apesar de fluída, ainda é palpável. E o líquido de algum modo se amolda, como faz o rio que abraça suas margens, que toma a forma do objeto em que está, ainda que possa ser derramado e escorrer. A água se nos escapa por dentre os dedos, mas ainda podemos retê-la na pia, na banheira, no copo. Esse nosso estado atual parece gasoso, parece evaporar e desaparecer no ar atmosférico que com ele se confunde. Talvez forme imagens no céu, como nuvens que desenham animais ou plantas. Mas, essas imagens estão distante, são fugidias e logo desaparecem.É isso?Então, pergunto: por que há de ser tudo imediato, virtual e on line? Porque é que estamos correndo tanto? Tudo que temos é ilusório, passageiro?Talvez precisemos parar para pensar num novo modelo de curtir a vida. Num novo modo de sermos felizes. Num passo mais lento, com mais calma e mais concretamente.
quinta-feira, 2 de abril de 2015

A (in)segurança do consumidor no dia-a-dia

Certa feita, estávamos um amigo, grande jurista, e eu, aguardando num aeroporto para embarque em direção a um Congresso. Eu reclamava da má formação oferecida pelas escolas de Direito, das falhas dos concursos públicos para as várias carreiras jurídicas e de como, apesar da aparente dificuldade que eles oferecem, muitos dos aprovados não são capazes de bem interpretar o sistema legal, de compreender o fenômeno social e jurídico em sua complexidade e, enfim, de exercer o mister que lhe foram confiados com as habilidade exigidas para a profissão. Muitos dos concurseiros, estudiosos diuturnos das questões usualmente utilizadas, mostram-se capazes de ultrapassar o concurso público assumindo a carreira escolhida (ou na qual haviam conseguido entrar, pois tentam muitas em diferentes setores). Ele concordava comigo e citava vários exemplos terríveis de estudantes que ingressaram em carreiras públicas sem jamais terem trabalhado um único dia na vida. Saíam dos bancos escolares apenas como estudantes, iam para os cursinhos e ficavam por lá alguns anos. Daí, passavam no concurso e em breve estavam acusando, julgando etc. Mas, sem experiência alguma.De repente, ele me diz: "Sabe, estamos aqui falando da área jurídica por que a conhecemos mais ou menos bem, desde a faculdade de Direito até a vivência nas carreiras. Mas, algo me ocorreu... Pergunto a você: nós vamos embarcar daqui a pouco num avião. Será que a pessoa que faz a manutenção da aeronave foi boa estudante? Será que tem experiência? Será que entende bem do riscado? Ou, melhor, será que o engenheiro responsável entende mesmo do negócio? Quando alguém contrata um advogado, certamente, espera que o profissional saiba como agir. E se está aguardando um julgamento, acredita que o juiz saiba decidir e assim por diante. E, nós, pobres usuários das companhias aéreas? Com certeza esperamos que o avião esteja em perfeitas condições de voo, que o piloto e o copiloto estejam preparados para assumir o comando da aeronave, que estejam em boas condições de saúde etc." "Sim", respondi. "Isso vale para qualquer profissão. Se vamos ao dentista, aguardamos que entenda o que nossa boca mostra. E, no hospital, que o médico nos avalie corretamente"."Estamos seguros de que nosso avião alçará voo, viajara e descerá em condições adequadas?" - ele perguntou."Acho que nem pensamos nisso", conclui. Esse é o ponto da reflexão para hoje: quando embarcamos num avião, não pensamos em problemas (nem devemos pensar para não passarmos nervoso...). É pressuposto que tudo funcione bem. Inconscientemente, aceitamos que não só todos os envolvidos na atividade sejam profissionais gabaritados como estejam no gozo pleno de suas faculdades mentais e em perfeito estado de saúde, bem alimentados, com o sono em dia etc.O sociólogo polonês Zygmunt Bauman diz que vivemos tempos "líquidos": estamos na idade da incerteza, isto é, tempos de estados líquidos em oposição à solidez representada pelos estados de certeza. Como obter algum tipo de tranquilidade em qualquer setor? Em termos de segurança nos aeroportos, os fatos nos dizem que, ao que parece, alguém está cuidando do assunto. Em alguns lugares mais do que em outros, mas a verdade é que após o 11 de setembro, com o ataque às torres gêmeas de Nova York, em todo o mundo passou-se a cumprir rigorosos regimes de revistas de passageiros e controle dos transportes de bens. Será que os agentes de segurança entendem do assunto?Ironicamente, a queda do Airbus A320 da Germanwings no sul da França, no dia 24 de março, mostrou que foi uma das regras de segurança implantadas que permitiu a ação suicida e criminosa do copiloto (naturalmente, estou supondo para esta análise que, de fato, foi o copiloto alemão que deliberadamente derrubou a aeronave). Com a finalidade de impedir que terroristas invadam as cabines de pilotagem, foi determinada a colocação de portas blindadas para proteger a entrada e que ficasse assegurado que a porta somente pudesse ser aberta pelo lado de dentro (o comando de abertura fica na cabine).Vi que, rapidamente, muitas companhias aéreas já determinaram que ninguém fique sozinho na cabine. Haverá sempre dois. Se o piloto sai para ir ao banheiro, entra uma aeromoça ou um comissário de bordo. Pergunto: será que adianta? Se o copiloto estiver determinado a derrubar o avião e matar 150 pessoas, será que ele irá poupar o comissário?Muitas das regras de segurança não resistem a um plano elaborado por um simples terrorista iniciante. E ficam na aparência, tentando transmitir alguma tranquilidade aos usuários. Há muita discussão e insatisfação nesse tema. A questão dos líquidos, por exemplo. Muitos consumidores reclamam que não podem entrar no espaço interno de embarque carregando suas garrafas plásticas com água. Mas, lá dentro, podem comprá-las. E também não podem levar frasco contendo mais de 100 ml. Porém, podem portar mais de um. E, juntando algumas pessoas com alguns frascos abaixo de 100 ml é possível obter alguns litros etc. E será que é difícil que alguma pessoa má intencionada se infiltre entre os fornecedores de comida e bebidas dentro do local de embarque e entregue ao passageiro uma garrafa com líquido perigoso? Outra reclamação: não podem levar produtos pontiagudos, como uma tesourinha de cortar unhas, mas no jantar da área executiva são entregues garfos e facas. Há algum controle, mas a verdade é que até um inocente skate pode virar uma arma ou, então, um mais inocente ainda cinto de segurar as calças pode ser usado de forma fatal para a vida de alguém...Não vou referir aspectos explícitos de insegurança pública, especialmente porque no Brasil é simplesmente impossível andar nas ruas com tranquilidade. Fico apenas nesse da iniciativa privada, que envolve também muitos setores e que varia de país para país. Há perigos na guarda de bens nos hotéis, nos museus, nos restaurantes (evidente por aqui, onde, por exemplo, em restaurantes do tipo self-service, as pessoas são obrigadas a colocar comida no prato carregando a bolsa no ombro para evitar de serem furtadas!), nos transportes urbanos em geral, enfim, uma idade de incertezas e intranquilidade. E, infelizmente, do ponto de vista da segurança dos produtos e serviços (e também da qualidade e da eficiência) é impossível que qualquer empresa ou órgão público consiga atingir o topo da certeza da inevitabilidade do dano decorrente de algum vício ou defeito. Por mais que se esforcem, por mais que desenvolvam controles de qualidade e segurança, alguma coisa sempre escapa por ser da própria natureza do produto ou serviço (uma falha mecânica, um desgaste inesperado etc.) ou por envolver a natureza humana (pessoas que cometem seus erros ou suas loucuras...). Não há, pois, produto ou serviço sem vício ou defeito! Ou, como diz meu amigo Outrem Ego: "Até foguete da Nasa apresenta falhas... Para azar dos astronautas". Então, para concluir, percebe-se que, nesta nossa era da incerteza, oferecer segurança real para o consumidor é muito difícil. Esse é um dos desafios dos tempos atuais.
quinta-feira, 26 de março de 2015

Nem sempre o futuro é imprevisível e incerto

O herói grego é trágico porque pretende lutar contra as forças do destino e como, por mais que faça, não consegue vencê-lo, ao final dá-se a tragédia...Será possível vencer o destino? Nós costumamos descrever e aceitar certos acontecimentos como uma fatalidade, como algo inevitável, que havia mesmo de ocorrer, fizesse o que se fizesse. Não se faz greve ou passeatas contra as tempestades e catástrofes climáticas (embora se façam danças para que chova...). Não há movimentos sindicais contra tufões, furacões ou erupções vulcânicas. A natureza simplesmente se impõe. E o ser humano se protege como pode. Já contei aqui. Gabriel Garcia Marques, com a maestria de sempre, escreveu "Crônica de uma morte anunciada" mostrando essa faceta da inevitabilidade. O assassinato de Santiago Nasar pelos irmãos Vicario - para vingar a honra da irmã Angela - é conhecido de antemão pelos habitantes do local, mas ninguém faz nada para evitá-lo. O crime ocorre como uma fatalidade, mas das coisas humanas.Em relação à fatalidade dos eventos naturais, nós, aqui por nossas terras tupiniquins, o que fazemos? Será que todas as tragédias que advém das condições climáticas são inevitáveis? Vou melhorar as perguntas: o que fazem as autoridades constituídas em relação ao conhecido problema? Elas exercem seu mister a partir de decisões que envolvam prioridades? Escolhem as obras que devem fazer nas cidades pensando na proteção da população e de seus bens? Antes de prosseguir, devo lembrar que não estou me referindo a erupções vulcânicas imprevisíveis nem terremotos que só podem ser detectados minutos antes; estou falando de chuvas facilmente aguardadas no ciclo anual e de inundações recorrentes que poderiam ser evitadas se as obras públicas fossem efetuadas a contento. Apenas isso. Obras públicas e, claro, prioridades. Quem assistiu aos noticiários dos últimos dias ou leu as matérias publicadas sobre a cidade de São Paulo, viu e leu relatos de moradores dizendo que tudo se repete, ano após ano; solução existe, tanto que as promessas de obras são feitas, mas nunca executadas; até as instalações do São Paulo Futebol Clube no Morumbi sofrem todos os anos, sem que as promessas apresentadas sejam cumpridas etc. etc. (até o etc. se repete...).Como diz meu amigo Outrem Ego: "Assistindo aos estragos causados pelas chuvas dos últimos dias, com inundações, quedas de árvores, paredes, casas, perdas de bens e de vidas, fica claro que a prioridade não é a segurança das pessoas". Realmente. Há uma enorme diferença entre discurso e realidade, entre preferências e prioridades; não dá mais para ficar culpando São Pedro pelos estragos. Sabe, caro leitor, se eu quisesse, poderia deixar pronto um artigo escrito para usar todo início de ano cuidando das enchentes, dos desmoronamentos, dos mortos e feridos e do abandono anterior e posterior das ruas, cidades e pessoas, enfim do descaso das autoridades para com a população. Repetir sempre a mesma ladainha é - com o perdão da expressão - chover no molhado. Mas, que alternativa tenho eu? Isto é, que alternativa temos todos nós que, de alguma maneira, nos preocupamos com o direito das pessoas? Sou obrigado a vir nesta coluna mais uma vez falar dessa tragédia anunciada que, infelizmente, não apresenta nenhuma perspectiva de deixar de acontecer novamente nos próximos anos.Um outro dado bastante assustador, chama a atenção: aos poucos e até bem rapidamente, as desgraças desse tipo deixam o noticiário. O tempo melhora e as pessoas prejudicadas são esquecidas (voltarão, claro, no próximo ano...). As mortes desaparecem e quando muito ganham uma notinha de rodapé aqui e acolá. Às vítimas e seus parentes vai sobrando um certo abandono jornalístico, largados à sua própria condição solitária de dor; posteriormente, talvez recebam uma nota ou outra sobre o resultado de investigações e a respeito do andamento das ações judiciais de indenização. É que a vida continua, como dizem. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um apanhado dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado. Segue, assim, abaixo, um resumo dos direitos envolvidos, que já publiquei nesta coluna mais de uma vez.A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes, desmoronamentos, quedas de árvores etc. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização. Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir como, por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e também pela vítima. Pensão e outros danos materiais As vítimas sobreviventes podem pleitear pensão pelo período em que, convalescentes, tenham ficado impossibilitadas de trabalhar. Do mesmo modo, os familiares que sejam, eventualmente, dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida. Além da pensão, no cômputo dos danos materiais, inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como medicamentos, honorários médicos, serviços de transporte etc. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estada e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc. Danos morais Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que, no caso, dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo.De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às vítimas e seus familiares, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo. Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao "status quo" anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto.Já a "indenização" por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido ou o causado pelos danos físicos e psicológicos nas vítimas sobreviventes. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator. Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé ou com grave culpa, com intenção de causar o dano ou quando regularmente repete os mesmos erros etc. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o "quantum" indenitário em menor valor.
quinta-feira, 19 de março de 2015

Alvíssaras! Ou nem tanto?

Caro leitor, nesta coluna escrevo sobre capitalismo e consumo. Mas hoje não posso deixar de fazer um comentário sobre o assunto mais importante dos últimos dias: democracia, liberdade de expressão e política, que, de todo modo, estão ligadas ao nosso regime capitalista. Conforme já escrevi por aqui, nos dias que envolveram os movimentos populares de junho de 2013, em meio às manifestações de rua que reivindicavam um país melhor, a palavra "alvissareiro" podia ser vista pipocando aqui e ali. O termo "alvissareiro" tem origem na junção da palavra "alvíssara" com o sufixo '-eiro". Como adjetivo, refere-se à qualidade ou condição do que é promissor, do que promete ou dá esperanças, boas notícias, etc. Enfim, é algo que promete um futuro melhor. Enche-nos de esperança. Bem. No último fim de semana, a palavra me surgiu à mente de novo, por motivos óbvios. Com o tamanho das manifestações por todo o país, parece ser impossível ignorar o "grito das ruas". Alvíssaras! Meu amigo Outrem Ego, sempre otimista, mas, como ele diz, também realista, disse-me que não gostaria de ser estraga prazeres, mas que havia lembrado de nosso querido e famoso jurista Ruy Barbosa. Mais precisamente, do discurso por ele proferido no Senado Federal em 1914. Localizemos um pouco: naquele ano, realizou-se uma eleição presidencial direta. Votavam os homens com mais de 21 anos de idade e desde que não fossem analfabetos, religiosos ou militares. Estávamos, então, em plena República Velha, que durou de 1889 até 1930 e vivia-se a política do café com leite. Esta, que era imposta pelas oligarquias paulista e mineira, e que conseguiu eleger presidentes civis influenciados pelo setor agrário dos Estados de São Paulo, com sua grande produção de café e Minas Gerais, grande produtor de leite. Tornavam-se predominantes no poder representantes do Partido Republicano Paulista (PRP), e do Partido Republicano Mineiro (PRM), que controlavam as eleições e gozavam do apoio da elite agrária de outros Estados do Brasil. Eles articularam alianças para fazer prevalecer seus interesses e se revezarem na presidência da República. Para a eleição presidencial de 1914, todos os maiores partidos do país (PRP, PRM, PRR - Partido Republicano Rio-Grandense e PRF - Partido Republicano Fluminense) apoiaram um único candidato, o da chapa Venceslau Brás-Urbano Santos. Ruy, que lançara sua candidatura pelo Partido Republicano Liberal (PRL) na chapa junto de Alfredo Ellis, não a registrou oficialmente e, vendo que não teria chance, renunciou à candidatura em dezembro de 1913, quando fez o chamado "Manifesto à Nação" (Mesmo assim, sem estar registrado, obteve 47.782 votos - 8,22% dos votos). Isso tudo parece muito antigo e ligado a um panorama ultrapassado, afinal remonta ao início do século XX. Mas, deixemos que o Senador Ruy Barbosa diga o que pensava, no pronunciamento que fez no Senado Federal em 19141: "A falta de Justiça, srs. senadores, é o grande mal da nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre nação". "A injustiça, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas"."De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto". * * * Uma vez lembrei aqui nesta coluna que dizem que o Brasil é o país do futuro. Os pessimistas analisam a frase dizendo que acreditar nela é manter o país estagnado, pois como o futuro não existe, fica-se apenas esperando ele chegar sem nada fazer. Os otimistas, de outro lado, dizem que ela impulsiona a imaginação, ajudando o país a ir para a frente em busca de algo melhor. Os sinais apontam às vezes numa direção, às vezes n'outra. Neste momento, vivemos tempos alvissareiros (ou não?). O futuro dirá! __________ 1Colhido de "Discursos Parlamentares - Obras Completas - Vol. XLI - 1914 - TOMO III".
quinta-feira, 12 de março de 2015

O impeachment como produto de consumo

Como disse mais de uma vez nesta coluna, o capitalismo é uma ideologia "neutra" no sentido de que não se incomoda com nenhum modo de pensamento, desde que sua instrumentalização e/ou utilização possa gerar lucro. Os modelos de produção e oferta capitalistas estão nas igrejas, nas escolas, nos esportes "amadores", etc. Na política, faz tempo que aportou. Os candidatos foram transformados em produtos muito bem desenhados por seus marqueteiros; eles são apresentados numa embalagem vendável e que o cidadão-consumidor pode comprar pagando com seu voto nas urnas; a publicidade nas campanhas muitas vezes é enganosa (e até abusiva), embora não se possa enquadrá-la nas regras do Código de Defesa do Consumidor; as campanhas geram produtos massificados de todos os tipos: camisetas, chaveiros, santinhos, brindes, comícios, etc. E agora, o modelo capitalista chegou às manifestações de rua e aos pedidos de impeachment. Não sei se é uma boa notícia ou não, mas o fato é que chegou. Na época em que as manifestações de rua pediram a saída do presidente Collor (1992), a produção capitalista em relação ao tema, apesar de existente, não estava exatamente no mercado. Os produtos e movimentos foram bancados por entidades tradicionais como a OAB, a CUT, a UNE, etc. Eram elas que encomendavam camisetas, faixas, etc. O mesmo se deu num movimento similar do "Fora FHC" (de 1998). (Por falar em FHC, veja-se o poder do mercado e das redes sociais típicas: há alguns dias o ex-presidente Fernando Henrique brincou nas redes com um meme de si mesmo, na qual aparecia sorrindo, segurando uma nota de R$2,00 e um cartaz escrito "Foi FHC"1). Como eu disse, o impeachment virou produto de consumo. Em lojas virtuais e físicas é possível comprar uma série de produtos de linha intitulada "anti-Dilma" ou "Anti-PT". A loja virtual "Prol Art"2, por exemplo, oferece camisetas, bonés, chapéus, moletons e canecas. E deixa claro que os produtos são de qualidade para resistir, digamos, aos esforços de usá-los numa passeata: "Camisetas 100% algodão evita o mau cheiro causado pelo suor devido a composição em outros tipos de tecidos, nossa malha é penteada e o fio de sua trama é o 30.1 é o melhor tipo de tecido existente hoje no ramo têxtil no Brasil"3. Uma camiseta custa R$50,00 e é oferecida em várias cores e tamanhos. Mas, há produtos mais sofisticados. A grife Sergio K., com lojas em shoppings da capital de São Paulo e também em Campinas, Brasília e Belo Horizonte vende uma camiseta com a frase "Eu não tenho culpa. Votei no Aécio", que custa R$100,004. Alguém poderia perguntar: é isso mesmo? O capitalismo está dando sua força? Mas, teríamos de reperguntar: força para quem? Na realidade, penso que, o modelo capitalista está colocado à disposição de qualquer pessoa que dele queira se utilizar. Tanto faz o que a pessoa pense ou qual sua posição ideológica, nem se é a favor ou contra o governo de plantão ou passado. O que importa é produzir, oferecer, vender e faturar. Se os políticos caem, sobem, mudam, renunciam, etc. não é relevante, desde que, claro, o regime econômico (capitalista) permaneça. Meu caro, leitor, a realidade anda bastante confusa, com tudo o que está acontecendo no Brasil, com as denúncias de corrupção, a crise política, a estagnação da economia, a violência urbana endêmica, etc. e, ao que parece, a população encontra-se aturdida. Alguns pedem a volta da ditadura. Ainda não vi escrito em camisetas. Será que há no mercado? Para responder a pergunta, fiz uma busca na internet e o mais próximo que encontrei, foram camisetas do pessoal da "direita", como se intitulam5. E que, apesar de dizerem que não conhecem a ditadura militar brasileira, vendem camisetas com a seguinte estampa: "Vivemos uma ditadura de esquerda". Os proprietários dizem que não sabem nada da ditadura brasileira: "Não tenho muito conhecimento, na verdade, de ditadura militar. Talvez tenha que perguntar para alguém que estudou história"6. Mas, confessam que o que importa mesmo é faturar: "Antes de tudo, a gente quer é vender. Vai ter racista usando a nossa camiseta, homofóbicos e defensores da ditadura militar. Não quer dizer que acreditamos nisso. A palavra que nos norteia é a liberdade. Mas não podemos controlar quem compra os nossos produtos"7. Mas, então, com as manifestações pelas redes sociais, muita coisa vira moda. Será que pedir a ditadura é uma nova moda? Por que algumas pessoas pedem a volta da ditadura? Meu amigo Outrem Ego arriscou uma resposta, que eu gostaria de partilhar: "Alguns brasileiros pedem a ditadura", disse ele, "por que não sabem bem o que fazer. Estão desacorçoados com tanta corrupção e bandalheira, com tanta miséria, a violência, os problemas urbanos, a falta de saúde, etc. Ora, quanto não se poderia fazer de bom, se não houvesse desvios dos recursos públicos. Não sabemos como agir. Nem temos tradição em nos organizar. Resta-nos as eleições, mas nesta dá tudo no mesmo: a democracia brasileira está engessada; as eleições são obrigatórias; os candidatos são definidos pelos partidos que, por sua vez, são financiados pelos caixas dois, etc., num círculo vicioso sem fim. Daí, sem esperança, alguns pedem ditadura e outros suplicam para que surja um salvador da pátria que faça por eles o que eles não sabem fazer". Bem. Depois de ouvi-lo e, claro, rechaçar a ideia de ditadura, fui obrigado a lembra-lo que nosso último salvador da pátria foi retirado do poder num processo de impeachment em 1992! __________ 1Ver, por exemplo.   2Prolart.   3Idem anterior.   4Dados colhidos no jornal Estadão. 5Ver Carta Capital. 6Idem anterior. 7Idem.
Começo com um caso narrado, recentemente, por meu amigo Outrem Ego, que envolve relações de consumo de forma indireta (na questão da administração da segurança pública). Ele contou o seguinte: "Estava eu dirigindo meu automóvel ao lado de uma pista exclusiva e vermelha para bicicletas. Na rua pela qual eu seguia, mais à frente, a pista vermelha dava uma volta numa praça e somente ia encontrar novamente a rua onde eu estava, uns 200 metros adiante. Eu trafegava devagar junto dos demais e a meu lado ia um ciclista na pista. Quando chegamos à praça, ao invés dele seguir por sua pista exclusiva, ele simplesmente seguiu em frente pela avenida atrapalhando o trânsito e colocando em risco sua própria travessia. Eu não aguentei, abri a janela e disse: 'Ei, sua pista é lá' e apontei para a pista exclusiva. Mas ele, de forma muito cínica, olhou para mim, me mandou um beijinho com a mão, e disse: 'Quem é você?'. Nem preciso dizer que fiquei muito bravo". Eu já contei aqui, nesta coluna, que esse mesmo amigo meu, certa vez interrompeu uma fila para reclamar da atitude de funcionários de uma loja que lhe impediam de pagar suas compras. E que, com a discussão, ele bloqueara a entrada dos caixas. Atrás dele formara-se uma extensa fila e as pessoas que estavam lá esperando começaram a protestar. Lembram? Os demais começaram a protestar contra ele! Começaram a reclamar e alguns até o xingaram. Outrem Ego ainda tentou retrucar dizendo, um pouco abalado: "Eu estou lutando pelo direito de vocês!". Mas não adiantou. Estava todo mundo contra ele, que, desanimado, jogou a toalha. A essa altura, sua esposa havia entrado na loja e entregou para ele dinheiro suficiente para pagar as compras. Ele, bastante contrariado, pagou e foi embora. Agora, caro leitor, quero lembrar outro caso envolvendo ruas e trânsito que, aliás, nem preciso ilustrar com algum fato específico, pois todo mundo conhece: as faixas de trânsito. O desrespeito para elas está dos dois lados: automóveis que não param para pedestres e pedestres que insistem em atravessar fora da faixa (ainda que ela esteja próxima). E, para terminar os exemplos, lembro que, nos últimos dias, surgiu uma polêmica a respeito do direito da companhia que distribui água no Estado de São Paulo poder ou não impor multa àqueles consumidores que tivessem aumentado seu consumo no período de fevereiro de 2013 a janeiro de 2014, por causa da crise de falta d'água. Bem, independentemente do aspecto formal e legal da aplicação da multa, e também de quem seria a culpa pela escassez da água, o que chamava a atenção era o fato de que, num momento desses, ainda existem pessoas que, ao invés de pouparem, haviam aumentado o consumo, algumas delas esbanjando o produto essencial para lavar calçadas! (Não estou, obviamente, me referindo àquelas pessoas que tiveram aumento de consumo justificáveis nem àquelas que tiveram registrado aumento de consumo por passagem de ar pelos canos e pelo hidrômetro ao invés de água. Reconheço, também, que nesse caso da água, muitas pessoas têm feito uma economia elogiável). Pergunto: como explicar esses comportamentos? Há, naturalmente, vários caminhos. Podemos, por exemplo, abordar um aspecto estritamente jurídico: parece que algumas pessoas esquecem ou não sabem que nesta nossa era dos direitos existem, ao menos, duas mãos de direção: uma da garantia dos direitos e outra da correspondente obrigação. Especifico melhor para não parecer que estou me referindo apenas à estrutura que leva em conta o sujeito ativo e o sujeito passivo de um direito subjetivo: refiro-me ao fato de que o estabelecimento de uma prerrogativa composta num direito subjetivo, numa dada sociedade, impõe, muitas vezes, ao titular, certas obrigações simultâneas ou determinações específicas para seu legítimo exercício. Isso explicaria porque o ciclista, os pedestres e os motoristas estariam abusando de seu direito não seguindo a regra, mas não seria suficiente para explicar o comportamento das pessoas nos outros dois casos. Poderíamos dizer, claro, que cada um deles sugere uma explicação por um modo diferente. Concordo. Poderíamos. Pensemos, pois, em mais um: seria possível explicar o comportamento pela via da consciência, ou melhor, da falta de consciência do indivíduo em relação a seu papel na sociedade. Esse caminho nos leva a outro, que gostaria de lançar como hipótese para nossa reflexão: a de que esses comportamentos, e tantos outros, têm como base um problema de educação. Quero dizer, de falta de educação em geral e de falta de educação para o exercício da cidadania em particular. E, dentro do quadro daquilo que podemos apontar ser característica de uma pessoa educada, quero focar um aspecto: o da solidariedade, esse sentimento que nos leva a tomar consciência de nossa condição social; de que não somos uma ilha; de que pertencemos a uma sociedade de seres humanos iguais e diferentes ao mesmo tempo e que se relacionam sem cessar. A pessoa educada sabe que tem direitos, mas também sabe que seu direito termina onde começa o do outro. Sabe que não pode apenas exigir, sem contribuir em troca, como se tudo pertencesse apenas a ela mesma (e a seu grupo mais próximo de familiares e amigos). Ela, por ser educada, conhece exatamente o limite de seus direitos individuais e tem ciência da responsabilidade social que o exercício desses direitos acarreta. Na verdade, esse sentimento de solidariedade é o oposto de um outro, o do egoísmo. Sei que alguns classificam o egoísmo como algo instintivo, pertencente à natureza humana. Sem querer entrar nesse detalhe específico, que aqui não interessa, reconheço que na luta pela sobrevivência é mesmo possível identificar esse elemento do egoísmo como inerente ao ser humano em seu desenvolvimento pessoal e histórico. Mas, é exatamente aí que entra a educação. Por intermédio dela, a pessoa humana pode ir incorporando os valores mais elevados, dentre os quais o da solidariedade e, aos poucos, ir deixando de ser egoísta. (Anoto que estou tratando a educação em seu sentido lato; logo, refiro-me a todos os aspectos que podem ser chamados de educação formal ou não: vindos do grupo familiar, dos amigos, da religião, da escola, etc.). Nesta nossa sociedade na qual assistimos diuturnamente a demonstrações de selvageria e abusos de todo tipo, talvez esteja na hora de cultivarmos melhor nossa humanidade; é preciso, cada vez mais, que todos nós tomemos consciência de que nossa atitude no dia a dia, por mais individual que pareça, sempre afeta de um modo ou de outro toda a sociedade: diretamente aos que estão ao redor e indiretamente os que serão atingidos mais cedo ou mais tarde pela ação. E, para terminar, caro leitor, como estou me referindo à solidariedade, indico este vídeo, produzido por uma seguradora tailandesa. Vale a pena assistir até o fim. Tem apenas três minutos.
O século XXI exige uma mudança de paradigma das relações sociais em geral, na direção da solidariedade, da busca da igualdade, da concretização da Justiça etc. E, no que respeita às relações jurídicas de consumo, um dos lemas da atualidade é o da harmonização, esta que foi expressamente prevista no Código de Defesa do Consumidor como princípio (conf. caput e inciso III do art. 4º). A ideia de harmonização envolve alguns parâmetros (aos quais retornarei nesta coluna). Por ora, trato de um deles, o da boa-fé objetiva, que em outra oportunidade já abordei. O comportamento humano previsto na norma A hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação; os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do "status quo"; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas fórmulas gerais que sempre se repetem como "topói", isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto1. Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário. O modelo da boa-fé objetiva Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional. Mas, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver o problema estudado, ele lança mão de fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução da questão. Dentre as várias alternativas, chamo atenção para certos "standarts", tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "homem comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "Justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom senso", "senso comum", etc. É importante notar que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma inconsciente - intuitiva - um foro de legitimidade, eis que produzidos na realidade como um fato inexorável. E a boa-fé objetiva é um "topos" fundamental que, como disse, no Brasil, acabou por ser erigida a princípio no Código de Defesa do Consumidor. Anoto que, quando se fala em boa-fé objetiva tem-se que afastar o conteúdo da conhecida boa-fé subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Lembro os exemplos encontrados no direito civil pátrio, tais como o do art. 1.561, que cuida dos efeitos do casamento putativo, dos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, do art. 879, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido, etc. Sendo assim, a boa-fé subjetiva admite sua oposta: a má-fé subjetiva. Vale dizer, é possível verificar-se determinadas situações em que a pessoa age de modo subjetivamente mal intencionada, exatamente visando iludir a outra parte que, com ela, se relaciona. Fala-se, assim, em má-fé no sentido subjetivo ou o dolo de violar o direito da outra pessoa envolvida. Mas com a boa-fé objetiva é diferente: ela independe de constatação ou apuração do aspecto subjetivo (ignorância ou intenção), vez que erigida à verdadeira fórmula de conduta é capaz de, por si só, apontar o caminho para solução da pendência. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva dos contratantes. Em decorrência disso, pode-se, grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes envolvidas a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado na transação, realizando o interesse das partes. Em matéria de relações de consumo, o CDC estabeleceu expressamente a harmonia como um princípio (no caput do art. 4º e no seu inciso III). A pretendida harmonia das relações de consumo nasce dos princípios constitucionais da isonomia, da solidariedade e dos princípios gerais da atividade econômica e no contexto do CDC ela é amparada pelos princípios da boa-fé e equilíbrio (mesmo inciso III do art. 4º)2. Então, a lei pretende que haja entre fornecedor e consumidor um tipo de relação que seja justa na contrapartida existente entre ambos. Lembro que, a boa-fé objetiva é parâmetro também para o comportamento do consumidor, que deve agir sob a égide do mesmo modelo. E, tenho de admitir que, neste século XXI, muitas empresas têm se esforçado para manter o equilíbrio, buscando a harmonização, respeitando seus clientes e agindo na direção da boa-fé. Naturalmente, essa mudança de postura reflete a maior consciência do consumidor a respeito de seus direitos e também a ampliação do leque de oportunidades para reclamações que surgiram pelas redes sociais e sites de internet, além da força da concorrência (quando ela existe). Isso é verdade. Mas, há mais: aos poucos, começa a surgir uma consciência empresarial que percebe que vale a pena respeitar a lei; que isso é a favor, não contra. E que buscar a harmonização é fundamental para os negócios. A boa-fé objetiva é, pois, um paradigma de conduta fundamental para o atingimento da harmonização das relações de consumo. Por isso, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o Magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso (por qualquer das partes), deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado como adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standard, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas. __________ 1Ver a respeito da Tópica, Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, Brasília, UNB, 1980, "passim".   2E o Código Civil incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta aos contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 422 [ii] e no art. 113, que cuida da interpretação dos negócios jurídicos [ii]. Além disso, é importante apontar que a boa-fé objetiva é também fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e deve ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. Este equilíbrio - tipicamente caracterizado com um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto -, é verdade, não se apresenta como uma espécie de tipo ideal ou posição abstrata, mas, ao contrário, deve ser concretamente verificável em cada relação jurídica.
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O Estado brasileiro capitalista, mas até certo ponto

Retorno ao tema do modelo de administração do Estado, apenas para levantar alguns pontos que envolvem a prestação de serviços públicos nesta nossa sociedade dominada pelos modernos modelos de intervenção capitalista e buscar uma reflexão sobre os resultados obtidos. Como eu já disse uma vez, eu sou de um tempo em que a tecnologia ainda engatinhava e lembro muito bem que, quando assistia na tevê ao filme Jornada nas Estrelas ficava vidrado no aparelho tipo celular que os personagens da nave espacial U.S.S. Enterprise utilizavam para se comunicar. Era mesmo a antecipação pela ficção daquilo que se tornaria realidade. Star Trek, o nome original, é da década de 60 (estreou em 1966 nos EUA e em meados de setenta no Brasil). Quando a Motorola lançou, em 1996, um aparelho celular que se abria tal como o do Capitão Kirk, batizou-o com o nome de Star Tac (Eu tive um e milhões de outros consumidores também, em todo o mundo). A tecnologia avançou e em alguns casos até superou a ficção. Ainda não é possível fazer o teletransporte de pessoas (e, penso, nunca será), mas o mercado de consumo atual coloca à mão do consumidor muita coisa que ele sequer sonhava na segunda metade do século XX. É de conhecimento geral que o modelo de produção capitalista do século passado, com ênfase no pós-segunda guerra mundial, engendrou o maior desenvolvimento tecnológico de todos os tempos. Na segunda metade do século XX, pudemos assistir ao incrível incremento da tecnologia de ponta, do avanço das telecomunicações, da microinformática, do surgimento dos telefones celulares, da internet, enfim, a sociedade capitalista começava a alcançar a ficção científica. Aliás, prometia um conforto jamais imaginado (pena que ele não chegará para a maior parte da população mundial). Esse modo de exploração do mercado (leia-se da sociedade e do planeta) foi aos poucos tomando conta de todos os setores existentes. E, com sua grande mão invisível e também visível, absorveu praticamente todo o corpo social, acabando por imiscuir-se em setores antes imunes. Nada escapou. Lembro, a título de exemplo, o caso dos esportes ditos amadores: a Olimpíada é, atualmente, um enorme negócio. E, naturalmente, do futebol nem preciso referir, porque faz muito tempo que a organização, local ou internacional, tem como meta o faturamento. Aliás, a FIFA hoje funciona como uma grande empresa franqueadora e licenciadora de produtos e serviços. As próprias igrejas adotaram o modelo: hoje recebem dízimos mediante cheques pré-datados, cartões de crédito ou débito, têm programas de tevê, fazem marketing, vendem produtos pela internet, etc. O Estado contemporâneo, de sua parte, não poderia ficar imune ao modelo implementado. Ele também passou a ser um agente de produção capitalista - direta e indiretamente - e acabou por adotar os modos de exploração e controle existentes no mercado. Isso, evidentemente, no mundo inteiro. No Brasil, o fenômeno está presente em todas as esferas da Administração Pública, municipal, estadual, Federal, no âmbito das autarquias e empresas públicas, etc. Até aí, tudo bem. Não haveria, a princípio, nenhum problema em que a Administração Pública acompanhasse o desenvolvimento do mercado, melhorando sua prestação de serviços. O problema é que se constata que o Estado brasileiro, em todas as esferas, modernizou-se apenas em parte: na do marketing e na da cobrança. E, com muita eficiência. Aponto um exemplo: um cidadão dirige seu veículo pelas ruas da capital de São Paulo. É um dia útil e passa das 17 horas. Numa esquina, ele é flagrado por um radar, pois seu final de placas não pode trafegar naquele dia e horário por causa do rodízio. Algum tempo depois, ele recebe pelo correio em casa a multa e a foto de seu veículo com o número da placa. No mês seguinte, ele ingressa via internet na sua conta bancária. Acessa "pagamentos" e "licenciamento de veículos". Cadastra o seu colocando o número do Renavan. Clica, aparece o valor do IPVA, da multa em relação ao rodízio, do seguro obrigatório e de taxa do serviço de correio, pois ele receberá o documento do licenciamento em casa. Paga e tudo se resolve quase que num piscar de olhos, rapidamente, com o que há de mais eficiente e prático em matéria de serviços e sem sair de sua casa. Não é incrível? Não é muito eficiente? Realmente, funciona muito bem, sem qualquer entrave ou burocracia. E para quem faz declaração do imposto de renda? Os programas fornecidos pela Receita Federal são maravilhosos. É só baixar, ir preenchendo, que ele vai indicando todos os caminhos que devem ser seguidos. É possível fazer rascunho, corrigir, reformar dados, projetar valores de devoluções e impostos a serem pagos, adotar o modelo simplificado ou o completo num único clique. Feita a declaração e entregue via web, o recibo de entrega é emitido na hora, em segundos e se há imposto a recolher, o Darf pode ser impresso na hora e quitado em seguida, via bankline. E, se existir dívida anterior pendente, o contribuinte é informado no ato, podendo, também, emitir o Darf correspondente e pagar na hora. Enfim, tudo muito bem desenvolvido, com o que há de melhor em tecnologia e eficiência. E há mais, muito mais. Essa modernidade tecnológica interligada "on-line" permite que o cidadão pague uma conta de serviços, peça uma nota fiscal eletrônica e consiga um crédito para abater parte do valor de seu IPTU ou que peça a nota fiscal paulista e além de receber créditos participa de sorteios mensais de prêmios em dinheiro. São adoções pela administração pública dos típicos casos de ofertas feitas pela iniciativa privada, visando obter comportamentos do consumidor e vendas de seus produtos e serviços em troca de bônus, descontos e outros benefícios diretos e indiretos, participação em concursos, etc. Aliás, não é de agora que a Administração Pública se utiliza das técnicas de "marketing" com publicidade massiva para anunciar suas obras (inclusive com publicidade enganosa). Portanto, nem se discute que o Estado moderno copiou e adotou o modelo capitalista de atuação e funcionamento. Como diria George Orwell, esse Estado tipo "grande irmão" é muito bom para vigiar, controlar e cobrar. Em contrapartida, pergunto: onde está a eficiência do modelo capitalista quando se trata de dar à população o que ela precisa? Onde está a tecnologia quando de trata de proteger as pessoas e seu patrimônio? E para prestar serviços públicos de saúde, transporte adequado, segurança, etc.? Parênteses para anotar uma curiosidade e uma coincidência: enquanto pensava neste artigo, ouvi, no dia 9 de fevereiro, numa estação de rádio, após a leitura de um boletim informando vários problemas no tráfego paulistano, a reclamação de um jornalista contra a CET. Ele disse que acabara de entrar no twitter daquela Companhia de Trânsito e vira que a última informação havia sido lá postada três horas antes e era a seguinte: "Pedestre, atravesse na faixa". O jornalista ficou muito bravo com a ineficiência do serviço, que, aliás, funciona muito bem quando se trata de multar. Bem. Se o modelo é capitalista, nós podemos fazer uma ilação relacionada ao Direito do Consumidor no que respeita aos serviços e produtos oferecidos pelo Estado (Minha abordagem é, digamos assim, mais filosófica que jurídica. Não levo em consideração o fato de que alguns serviços e produtos oferecidos pelo Estado diretamente ou por intermédio de concessão ou autorização, pagos mediante taxas e preços, são típicos de consumo e regulados pelo Código de Defesa do Consumidor, enquanto outros, custeados via impostos, não são). Pensemos. O consumidor tem o dever de pagar o preço para adquirir um produto ou receber um serviço. Para a relação tornar-se válida, o produto deve atingir ao fim ao qual se destina funcionando adequadamente e o serviço idem, com eficiência e qualidade. Se o produto não funciona ou o serviço não é adequado, pode o consumidor reaver o preço pago. É esse o ponto. Se o Estado não presta o serviço adequadamente nem entrega um produto que funcione, pode o cidadão requerer o que pagou de volta? Sabe-se que no setor privado, a pressão do consumidor por qualidade e eficiência, fez as empresas melhorarem seus produtos e serviços. Mas, como fazer isso no setor público? E pior: na esfera privada a competição favorece o consumidor. Como resolver a equação, quando se trata de monopólio? A relação entre cidadãos e Estado nesses aspectos é, pois, muito injusta. De um lado, eficiência e modernidade para cobrar e, de outro, ineficiência e falta de qualidade na entrega dos produtos e dos serviços. Um caminho para que essa relação melhorasse, talvez fosse a tomada de consciência em relação a esse imbróglio, visando escapar do assédio do marketing estatal (marketing que na iniciativa privada também é muito eficaz). Às vezes, o problema está na nossa cara e nós não vemos. Infelizmente, a experiência mostra que as pessoas acabam se acostumando até com as coisas ruins. Meu amigo Outrem Ego contou que um dia, há muito tempo, quando sua filha era pequena, brincando com ela um jogo de adivinhação, sorteou uma carta e a pergunta era: "Aponte um lugar grande e repleto de buracos". Ele escreveu na sua ficha: "A lua". A filha escreveu no dela: " cidade de São Paulo".
Eu costumava dizer para meus alunos de graduação na faculdade que eles eram consumidores estranhos. Se o professor faltava, eles comemoravam ao invés de reclamarem. Eles pagavam por um serviço que não estavam recebendo e ainda assim não se incomodavam. Pensando nisso, resolvi escrever um artigo sobre esses vícios não muito aparentes nem tão ocultos que existem na prestação do serviço escolar. Focarei meu artigo no ensino básico (infantil, fundamental e médio). Como se sabe, o ensino escolar é típico produto de consumo, isto é, trata-se de prestação de serviços regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Levanto, pois, algumas questões para nossa reflexão, ligadas às escolas particulares e a respeito dos eventuais vícios ou defeitos existentes, mas nem sempre percebidos. Muito bem. Se perguntarmos para os pais por que eles colocam seus filhos em escolas particulares (a maior parte delas bastante caras) a resposta natural estará ligada à qualidade do ensino. "A escola pública não é boa", dirão. Muitos pais, inclusive, sacrificam-se para conseguir pagar as mensalidades. Na verdade, com o incremento cada vez maior do capitalismo de produtos e serviços essenciais que foram saindo das mãos do Estado e passando para a iniciativa privada, e com a queda da qualidade de ensino nas escolas públicas (agora refiro especialmente o Brasil, embora o mesmo fenômeno possa ser verificado em outros lugares), ao que assistimos nos últimos trinta, quarenta anos foi a transferência de vagas da escola pública para a privada e o incremento das escolas privadas, muitas delas, atualmente, empresas enormes e altamente lucrativas. Muitas delas adotaram o regime integral, oferecendo refeições e vários cursos extras como atividades para preencherem o espaço de tempo dos alunos, o que se coaduna com a falta de tempo dos pais, que trabalham o dia inteiro, de modo que se acabou fazendo um encaixe de interesses: os pais trabalham enquanto os filhos estudam, fazem esportes ou atividades artísticas, lúdicas etc., liberando os pais dessas preocupações. Coloco, então, uma questão básica em relação à lei: o que a escola particular oferece? Qual é sua oferta? Não responderei pensando na questão do marketing (muito bem desenhado por muitas delas). Respondo com o aspecto lógico: a escola presta serviços essenciais de educação. Os pais, quando colocam seu filho na escola particular, esperam que seu filho aprenda. Não é isso? Espera-se que sim. É obrigação da escola fazer com que o estudante aprenda. É para isso que ela existe e, como recebem boas remunerações para tanto, essa é sua contraprestação jurídica principal. Mais eis que, com o passar do tempo, algumas situações esquisitas em termos de cumprimento da oferta têm ocorrido. Por exemplo, em muitas escolas quando o aluno é matriculado ou no início do ano letivo, a secretaria fornece o nome e telefone de professores que dão aulas particulares. Isso! A escola, desde logo, está dizendo: "Eu ensino, mas não tanto assim. Por isso, segue uma relação para que seu filho receba um reforço no aprendizado". Rosely Sayão conta que existem professores particulares 24 horas!: "A qualquer hora e a qualquer dia, há pais que levam seus filhos para ter aulas. Os filhos chegam devidamente munidos com material escolar e ainda levam de brinde a cara feia e a briga com os pais, que ficam dentro do carro. Nem o domingo é respeitado"1. Na realidade, o mercado de aulas particulares cresceu tanto nos últimos anos que, atualmente, há dezenas de professores que vivem exclusivamente dessa atividade e, muitas vezes, os pais têm dificuldade de encontrar horários para encaixar seus filhos. Caro leitor, quer mais? São várias as franquias para aulas particulares, eufemisticamente intituladas de "aulas de reforço". Em 2013, uma rede de reforço escolar foi a vencedora na categoria microfranquias, do prêmio "As melhores franquias do Brasil", organizado pela Revista "Pequenas Empresas e Grandes Negócios", da Editora Globo. A rede utiliza atendimento personalizado para ajudar alunos com dificuldade de aprendizagem e já somava, naquele ano, em todo país, 70 unidades em operação e mais 20 em processo de implantação"2. Os pais pagam, então, uma mensalidade escolar caríssima e outra (às vezes, do mesmo valor) para que seu filho tenha de estudar em casa ou na sede de franquias com professores particulares. Pergunto para nossa reflexão: não deveria bastar estar na escola? Esta cobra tão caro para o quê mesmo? Não é caso de vício do serviço? Ou até defeito, tendo em vista a extensão dos danos? Vejamos, agora, outro aspecto: o da lição de casa. Nas escolas que oferecem serviços de ensino de tempo integral, se o aluno permanece nas instalações da escola o dia inteiro, tem sentido que ele chegue em casa e ainda tenha que fazer lição de casa? (Que o professor Gabriel Perissé chama de lixão de casa3) Ou passe os feriados e fins de semana fazendo lição? Será que a infância e adolescência não tem mais espaço para a convivência com os pais, amigos e demais familiares? Em atividades de lazer e mesmo culturais, mas fora do âmbito do conteúdo das disciplinas escolares? Essa convivência tão importante na formação dos jovens foi abandonada? Então, para que serve passar o dia na escola? Para que as mensalidades sejam mais caras, certamente. Seria mais um caso de vício na prestação do serviço? Façamos um resumo da prestação dos serviços. O fornecedor, uma escola, ou seja, uma empresa, oferece ensino para... ensinar aos alunos certos conteúdos ditados pelos órgãos governamentais e/ou decididos por ela e com métodos também criados e decididos por ela (escola). Para tanto, ela cobra certo valor mensal (a maioria das mensalidades tem preços bastante elevados). Estabelecida a relação jurídica de consumo, pelo contrato escolar, cabe aos pais pagar as mensalidades e ao prestador do serviço cumprir sua parte: ensinar os filhos matriculados! Pausa: antes que alguém, apressadamente, use um sofisma contra o que eu estou trazendo para reflexão, quero consignar que, evidentemente, não estou me referindo a alunos que tenham algum tipo de dificuldade própria de aprendizado. Faço uma abordagem relativamente ao número enorme dos alunos que não apresentam nenhum tipo de problema para estudar e incorporar conhecimento. Algumas vezes, a situação beira ao absurdo quando, por exemplo, grande parte dos alunos de uma determinada sala não consegue aprender. Para mim, como professor, quando numa sala 50% ou mais dos estudantes fica de recuperação, a falha é claramente do professor e da escola e não dos alunos! É esse o ponto: a escola não cumprir com a oferta; com seu dever de ensinar. Há muito mais problemas, é verdade, e que os pais devem conhecer. Há as vendas casadas de material escolar, livros, uniformes; as caras "viagens de estudos" a que os pais veem-se obrigados a aderir; o problema da alimentação nem sempre bem feita e as porcarias vendidas nas cantinas etc.. (Voltarei ao assunto). Hoje, como disse, trago elementos para nossa reflexão nos pontos abordados. Assim, para terminar, narro um caso ocorrido com meu amigo Outrem Ego e seu filho. Ele contou-me que, no ano passado, teve uma rusga com um professor da escola onde seu filho estuda. Trata-se de um colégio particular cuja mensalidade beira os R$3.000,00 mensais. O menino estava, à altura, no 6º ano (ensino fundamental) e até aquele momento nunca havia recebido nenhuma nota abaixo de 7. Aliás, preciso fazer parênteses aqui para dizer que meu amigo acompanha muito de perto os estudos de seus dois filhos. Muito bem. Recebido o boletim, apareceu uma nota 5 de geografia. Mas, O. Ego lembrou que o filho havia ido bem nas provas e, na principal, havia tirado 8. Estranhou, pois, a nota 5 e, na reunião trimestral feita com os pais, aguardou pacientemente na fila que se formara após o término do encontro, para conversar com dito cujo professor. Chegando sua vez disse: "Sou pai deste aluno e vim tentar descobrir por que ele ficou com a nota 5". O professor, então, abriu sua pasta, na qual apareciam as quatro salas dos 6ºs anos com o nome dos alunos. Ficou muito claro que o professor não fazia ideia de quem era o filho de meu amigo. Afinal, eram cerca de 120 alunos no total. O que o professor tinha para conversar com meu amigo, eram anotações a lápis feitas na frente do nome dos alunos de cada sala. Vou especificar: não eram anotações, eram apenas as letras S e N. O professor, então, encontrou o nome do menino, passou o dedo em horizontal sobre os esses e enes e disse: "Ele não entregou dois trabalhos de casa". "O quê?", disse meu amigo, levantando a voz, "Isso não é verdade! Acompanho todas as lições de casa de meu filho e posso lhe assegurar que ele nunca, jamais deixou de fazer alguma lição, de sua disciplina ou de outras matérias!". O professor, de forma bastante desinteressada, apenas disse: "Mas, é o que consta aqui". Outrem Ego, não se conteve e perguntou: "O senhor não conhece meu filho, não é? Nem sabe de quem se trata. Está apenas lendo seu nome nessa folha e verificando anotações muito pobres". "Eu conheço todos", disse, se defendendo o professor. "Ah! Conhece? Qual é a cor dos olhos de meu filho? Não sabe, não é? Nem a cor de seus cabelos? Nem se ele é alto, baixo, gordo ou magro. É muita gente para o senhor poder se lembrar...". O professor nada disse, porque certamente, não poderia saber quem era o filho dele, naquele universo de cento e vinte alunos. E olha que é um menino muito alto, cabelos negros longos sobre as orelhas, fácil de reconhecer e destacar. Será que os pais tem tido tempo de investigar se seus filhos estão recebendo por aquilo que eles estão pagando? O filho de meu amigo, quando este o levava para a escola, apontou para algumas nuvens no céu da manhã e disse: "Olha lá! São cumulonimbus". O. Ego viu as nuvens e ficou com os olhos vagando por elas. Daí, pensou: "Para que serve a uma criança de onze anos saber o nome das nuvens? Se, um dia, ele for ser meteorologista, aprenderá isso em cinco minutos". E torceu para que as nuvens fossem de chuva! __________ 1Folha de S. Paulo.   2Rede de reforço escolar ganha prêmio de microfranquia.   3Gabriel Perissé.