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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
A simples existência da pena de morte em alguns países (inclusive do primeiro mundo, como nos Estados Unidos da América) é a prova de que falta muito para a humanidade se tornar efetivamente civilizada. Em pleno século XXI, a mera discussão a respeito da imposição da pena de morte, pelo menos nos países do ocidente, deveria soar ultrapassada e antiquada. A pena capital de há muito se mostrou incompatível com a dignidade atingida pela razão ético-jurídica universal. Vejo-me obrigado a abordar esse assunto em função da execução do brasileiro Marco Archer Cardoso Moreira, de 53 anos, morto por um pelotão de fuzilamento na Indonésia neste último sábado, dia 17 e dos comentários de muitas pessoas, que se manifestaram via redes sociais ou por inserções nos rodapés dos artigos publicados, defendendo a pena capital. São, certamente, pessoas desprovidas das necessárias informações básicas a respeito do tema. Anoto, em primeiro lugar, que qualquer tentativa de implantação da pena de morte onde ela foi abolida não passaria de simples exploração demagógica e política e também fruto de incompreensão do significado de Estado de Direito Democrático. Abordo, assim, na sequência, alguns elementos que envolvem o assunto e que já publiquei há muito tempo em uma obrai. 1. Direito e (pena de) morte Digo desde o início: o Direito é incompatível com a morte, ou precisamente com a pena de morte. O Direito postula pela vida, luta pela sua manutenção e dignidade. Onde não há vida não há Direito. Foram séculos de evolução - a bem da verdade, aos trancos e solavancos - para que o Direito se fosse depurando de mazelas que não lhe poderiam ser inerentes. O Direito extirpou os castigos físicos, a escravidão, a tortura, o racismo, dentre outras iniquidades (ainda que, de fato, tudo isso exista). Logo, estudar Direito é, desde logo, a priori conhecer certos princípios, e dentre estes está o da necessária garantia da vida humana, como condição básica da própria existência social. O Direito atual em sua melhor vertente, a mais humanitária, é fruto de uma razão que se foi educando e tomando consciência dos necessários pressupostos éticos que deveriam fundá-la. Essa racionalidade é o grande trunfo da Ciência do Direito, a grata contribuição que o pensamento jurídico nos trouxe. E a estatura da humanidade se mede pelo implemento dessa racionalidade, cada vez mais humanizada. Daí que o Estado, formado e edulcorado pelo Direito, há de ser escravo dessa mesma racionalidade, e, em sendo seu guardião, deve preservá-la como o prêmio conferido pela história. Matar alguém é ato bárbaro, ignóbil, mordaz. De per si viola a base da humanidade, já que a ninguém é dado tirar a vida de outrem. Então, por consequência, o Estado, legítimo representante da segurança das pessoas, não pode - por maior força de razão - ele mesmo praticar o ato ignóbil: não pode tirar a vida de alguém. 2. Pena de morte e sanção Não vou aqui abordar completamente o conceito de sanção, como elemento da norma capaz de auxiliar ou possibilitar o cumprimento da determinação normativa. Interessa-me apenas o fato de que a sanção é entendida como componente próprio da norma jurídica, e que no campo do direito penal está ligada à constatação do fato praticado, que se enquadra no tipo delituoso. Isto é, a sanção, para o interesse deste artigo, é entendida como a imputação de uma pena a alguém que cometeu um delito criminal, tipificado no Sistema Jurídico. Acompanhando o professor Miguel Reale, temos de dizer que, em "última análise, na e pela pena de morte, a pessoa é negada como tal, é convertida em coisa"ii. Na realidade quem "cumpre" a pena é o Estado. Evidencia-se, pois, nesse aspecto a contradição da função do Estado ao aplicar a pena de morte. Na sua execução, o Estado faz com o condenado o que (na maioria dos casos de condenação) ele fez com a vítima. Estado e condenado tornam-se iguais. Penso, em suma, que, analisada à luz de seus valores semânticos, o conceito de pena e o conceito de morte são entre si lógica e ontologicamente irreconciliáveis e que, assim sendo, 'pena de morte' é uma contradictio in terminis". 3. A motivação Vai-se dizer que o Estado tem um "bom" motivo para matar, enquanto um assassino não. Isto é, a morte decretada pelo Estado seria justa; a decretada pelo homicida não. Esse sofisma é bastante corrente, mas não resiste a uma avaliação crítica. Se se fosse buscar "motivos" para tirar a vida de alguém, por certo o Estado seria o que tem menos razões para fazê-lo. Nem vamos tratar do aspecto da justiça da decisão, porque é evidente que não se pode falar em tirar a vida de outrem de forma justa: é contradição própria. O Estado diante do assassino é aquele que tem o dever de conhecer - processual e materialmente - os fatos relativos ao crime. Depois de avaliá-lo, consistentemente deve proferir uma decisão racional. E a morte do criminoso é tudo, menos decisão racional. A pena de morte é a instituição da vingança pública, é pura irracionalidade. Sabe-se muito bem que o Direito se firmou contra a vingança, vingança privada que foi banida. E o foi porque sua irracionalidade evidente - apesar da legitimidade - punha em risco a própria organização social. Ora, não foi para transformar a vingança privada em pública que se a proibiu. O Direito é o império da razão. Fora dessa esfera é a barbárie. 4. O rebaixamento do Direito Quando o Estado aplica a pena de morte faz exatamente o mesmo que o assassino: simplesmente tira a vida de alguém. E os motivos não importam mais. São irrelevantes. Estado e homicida passam a se equivaler. O Direito fica rebaixado ao nível do infrator, assassino. Ambos passam a ter, como ponto comum, o desprezo pela vida humana. E o Direito e o Estado, que deviam ser exemplo de conduta para pessoas, passam a incentivar a raiva, a cólera, a torcida por vingança. É o estímulo à irracionalidade, que o Direito abandonou. O assassino é alguém que precisa ser retirado do meio social e punido. Mas como é que se poderia admitir que o Estado fizesse o mesmo que ele? É a pura selvageria, a volta a tempos imemoriais que o Direito deixou para trás por ter evoluído.Em se tratando de outros delitos que não o homicídio - como é o caso do brasileiro fuzilado, condenado por tráfico de drogas - o mergulho no obscurantismo é maior ainda. Sei que o medo diante do crime, muitas vezes, leva as pessoas a apoiarem penas severas e excessivas como a de morte, pois vivem a ilusão de que isso seria uma solução. No caso do tráfico de drogas, fica cada vez mais claro que as políticas de repressão simplesmente não dão certo e que a questão é antes de saúde pública que de criminalidade. Naturalmente, o tráfico pode ser reprimido, mas sem que o Estado, a sociedade e o Direito vivam no estágio atrasado da violação da dignidade humana. 5. A ilusão do plebiscito e da participação da população Outro argumento falacioso é aquele que diz que se deve deixar o povo decidir a respeito da pena de morte. Far-se-ia um plebiscito para ouvir a voz do povo. É importante colocar com todas as letras que há questões que não podem passar por plebiscito, o que não implica, de forma alguma, um ataque à democracia. Aliás, nem sequer um arranhão a atinge com o que diremos. Antes, o contrário, evitar a demagogia que se faz de vez em quando em torno do plebiscito é plenamente favorável ao desenvolvimento democrático. Com efeito, nas questões que envolvem a Ciência e os mais elevados valores éticos conquistados pela humanidade impõe-se, em vez de consulta, educar a população para mostrar o caminho correto. O público, usualmente vítima de manipulação de toda espécie, julga de maneira irracional, levado pelo sabor das emoções, e, claro, é impulsionado pela violenta realidade. Não pode ele, público, construir um critério racional para decidir adequadamente em questões como a pena de morte. O senso comum não é apto para pensar técnica, ética e racionalmente essa questão. É a Escola de Direito, o pensamento jurídico, que, extraindo da experiência histórica um rastro evolutivo, vai decidir sobre o tema. E isso já foi feito: "não" à pena de morte. De qualquer maneira, para elucidar de vez os meandros da falácia do plebiscito, vale a pena lembrar certos fatos e argumentos. Há questões que não podem ser submetidas a consulta popular. Cito o exemplo dado por Evandro Lins e Silva: "Ninguém indagará se o povo quer ou não quer determinado tipo de vacina, cuja aplicação a ciência demonstrou ser a maneira de prevenir doenças e epidemias"iii. Aliás, ao que parece não passa na cabeça de ninguém - político ou não - submeter a plebiscito a supressão de outras garantias conquistadas pelo Direito. Por exemplo, o direito à propriedade. Seria válido perguntar à população se ela quer extinguir o direito de propriedade imóvel, repartindo os atuais bens entre todos? Ou, então, a supressão de certos direitos humanitários e/ou religiosos conquistados por minorias? Seria válido? Claro que não. Como também não o é para a pena de morte. 6. Aspectos constitucionais A partir da Proclamação da República, nós, brasileiros, não temos nenhuma "tradição" constitucional na questão da pena de morte. Tirando dois episódios rápidos e que são exceção jamais utilizada, nossas Constituições Federais sempre a proibiram. O primeiro deles veio com a Carta Constitucional de 1937, que permitia a aplicação da pena de morte, possibilidade abolida com a Constituição democrática de 1946. De notar desde já que é no regime autoritário do Estado Novo de Getúlio Vargas que surge a pena de morte, e, com sua deposição e a consequente "reconstitucionalização do País" (conforme se intitulou o processo), a pena de morte novamente desapareceu. Aliás, lembre-se, então, de que a Constituição de 1946 (como a de 1988) nasceu de uma Assembleia Nacional Constituinte democraticamente eleita. Com o golpe militar de 1964 veio a Carta Constitucional imposta de 1967. Todavia, nesse primeiro momento do regime, foi mantida a tradição republicana de proibição da pena de morte. Contudo, o Ato Institucional n. 14, de 5 de setembro de 1969, alterou o § 11 do art. 150 da Carta de 1967 para admitir a pena de morte. E essa modificação acabou sendo acolhida pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, preservada que foi no § 11 do art. 153. E como consequência a chamada Lei de Segurança Nacional foi alterada para prever a pena de morte (Decreto-Lei n. 898, de 29-9-1969). Com a volta da democracia e eleição da nova Assembleia Constituinte, a Constituição democrática de 5 de outubro de 1988 aboliu definitivamente a pena de morte, tornando a regra absoluta, uma vez que constituída em cláusula pétrea (letra a do inciso XLVII do art. 5º c.c. o inciso IV do § 4º do art. 60 da Constituição Federal). Assim, ao menos no plano constitucional, o Brasil é daqueles que se realizou na correta direção da humanização de seu sistema legal. Esse é um dos mínimos estágios que todas as nações do planeta hão de atingir até, algum dia, chegarem à uma verdadeira civilização. ______________ i Em meu Manual de Filosofia do Direito (1ª edição de 2004). São Paulo: Saraiva, 6ª. Edição, 2015., Cap. VII, págs. 345 e segs. ii O Direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1992. Ensaio XII: "Pena de morte e mistério", pág. 284. iii Pena de morte. In Revista Forense, vol. 314, p. 220.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Um conto de Natal

Nesta época do ano, eu adoro rever filmes que festejam o Natal e seus milagres. Tenho alguns preferidos como, por exemplo, "O Milagre da Rua 34" (em qualquer versão) e "A felicidade não se compra" (de Frank Capra). Gosto também dos diversos contos de Natal, que, como esses filmes, fazem bem à mente e ao coração. No ano passado, meu amigo Outrem Ego, repassou um conto sobre o milagre, que eu resolvi modificar para criar um conto de Natal para dar de presente. E é esse o tema de minha última coluna do ano. Um conto de Natal para celebrar o milagre. Espero que o leitor goste. Desejo Feliz Natal a todos! *** E um milagre, quanto custa? Lucas era um menino muito atento e curioso e um dos melhores alunos de sua sala do 2º ano do ensino fundamental de uma excelente escola pública numa cidade do interior paulista. Ele estava muito animado com o fim das aulas que se anunciava para os próximos dias, pois teria mais tempo para brincar com seu irmão menor de apenas três anos de idade, Pedro. Sempre que havia chance, eles iam jogar futebol na quadra que existia no prédio onde moravam. Seu pai trabalhava como vendedor numa concessionária de veículos e sua mãe voltara a trabalhar como costureira. Sua avó materna ajudava a cuidar da casa e a tomar conta dos dois. Mas, naquele mês de dezembro, Lucas percebeu uma movimentação estranha e diferente em casa. Ao que lhe pareceu, seu pai havia perdido o emprego e estava nervoso atrás de outro. A mãe mostrava-se muito preocupada com o pagamento do aluguel do apartamento onde moravam. Para piorar o clima reinante, Pedrinho adoecera. Não podia mais jogar bola nem brincar mesmo dentro de casa. Sua avó vivia assustada para cá e para lá com seu irmãozinho. Os dois dormiam no mesmo quarto, mas na última semana, a cama dele fora colocada no quarto dos pais; ficou um pouco apertado, mas sua mãe havia dito que era importante por causa da doença. Numa noite, Lucas estava deitado e ouviu uma conversa na sala. Seus pais e sua avó conversavam e pareciam muito apreensivos. Ele, então resolveu sair na ponta dos pés para escutar a conversa no canto da parede do corredor. Os três estavam muito preocupados. A voz de sua mãe denunciava uma enorme aflição. Ele não compreendeu muito bem as expressões que ouvia nem os sentimentos manifestados, mas viu que se tratava de algum problema muito grave. Esticou a cabeça e espiou: quando viu que seu pai enxugava lágrimas nos olhos, voltou para seu quarto e chorou no travesseiro. No dia seguinte, à noite, Lucas parou atrás da porta do quarto dos pais para ouvir a conversa dos dois. Ouviu sua mãe chorando, sendo acudida pelo pai. Entre soluços, ela disse: _ Querido, você sabe, somente uma cirurgia pode salvar a vida do Pedrinho e nós não temos dinheiro para pagá-la. _ É... Desesperador... _ Numa época em que se pode comprar de tudo, em que se desperdiça tanto, nós não podemos pagar pela saúde de nosso filho. Pela vida de nosso filho! Somente um milagre pode salvá-lo! Lucas também ficou muito triste. Voltou para seu quarto e teve dificuldade para dormir. No dia seguinte, um domingo pela manhã, enquanto assistia tevê, viu um anúncio que dizia: "produto milagroso. Não é remédio. É produto natural que opera milagres. Emagreça sem aborrecimento". Lucas, sentiu algo que nunca havia sentido; nós diríamos que se tratava de um misto de ansiedade com esperança; e um ideia brotou em sua cabeça: "vou comprar um milagre para salvar meu irmãozinho". Foi até seu quarto, esvaziou seu porquinho-cofre e contou as moedas. Tinha vinte e dois reais. Colocou tudo numa pequena bolsa e começou a planejar o que fazer. Na segunda-feira, no intervalo de aulas, ele pegou a bolsinha com as moedas e foi até a enfermaria. Lá chegando, viu que a enfermeira abraçava fortemente um homem. Lucas parou na porta e esperou. Ouviu o homem e a enfermeira conversarem animadamente. Percebeu que eles eram irmãos. De repente, ela notou a presença dele e disse: _ Olá. Tudo bem? Você precisa de alguma coisa? _ Sim... Quer dizer, meu irmão precisa... O Pedrinho está muito doente. _ Ele estuda aqui na escola? _ Não. Ele ainda não vai para a escola. Só tem três anos. _ Então, acho que não posso fazer nada. Desculpe. _ Mas, a senhora sempre ajuda as crianças... E meu irmão precisa de um remédio que tem aqui... Uma vez, eu fiquei com febre e... Eu lembro, a senhora me deu umas gotas e disse: "pode tomar. É amargo, mas faz milagres. Você logo ficará bom". Fez-se um silêncio e se alguém olhasse o rosto da enfermeira, poderia claramente identificar o ponto de interrogação que ali pairava. O homem, então, interveio: _ Diga uma coisa. O que o seu irmão tem? _ Não sei direito... Mas, ouvi minha mãe dizer pro meu pai que ele tem um caroço crescendo dentro da cabeça. Meu pai falou que não tem dinheiro para pagar a operação. Ela falou que só um milagre pode salvar o Pedrinho. Eu quero comprar o milagre. Olha... Eu tenho dinheiro - e mostrou as moedas - E, um milagre, quanto custa? O homem deu um sorriso. Colocou Lucas numa cadeira, agachando-se para ficar na altura dos olhos dele e perguntou: _ Quanto dinheiro você tem? _ Vinte e dois reais. _ Nossa! Que coincidência! Vinte e dois reais é exatamente o preço de um milagre. Quem é que vem te buscar na escola? _ Hoje é minha mãe. _ Eu vou ficar aqui conversando com minha irmã, que eu não vejo faz tempo. Levantou-se e abraçou novamente a enfermeira. Depois voltou-se para Lucas e perguntou _ Você ainda tem aula hoje? _ Tenho. _ Então, vá estudar. Quando acabar a aula, você volta aqui. Nós dois iremos juntos até a saída encontrar sua mãe. Aquele homem era um neurocirurgião que morava na capital e trabalhava num dos maiores hospitais da cidade. Muito atarefado, fazia anos que devia uma visita à irmã. Naquela manhã, ele havia acabado de fazer uma surpresa para ela, chegando de repente, e dizendo que iria passar três ou quatro dias por lá. Após a aula, Lucas foi encontrá-lo. O médico foi, então, com ele e sua mãe para casa, onde a avó tomava conta de Pedrinho. Examinou-o e também aos exames. Depois, pediu licença para poder falar a sós com Lucas e foi com ele até o quarto. _ Temos um segredo - falou em voz baixa. _ Sim, sim - disse, animado, Lucas. _ Dê-me as moedas. Você acaba de comprar um milagre! Lucas as entregou ao médico. Este as colocou no bolso e disse: _ Este é nosso segredo. Não conte para ninguém, viu! Vem cá, me dá um abraço! E recebeu um abraço tão gostoso, que seus olhos científicos de cirurgião encheram-se de lágrimas. Na véspera do Natal, Pedrinho foi levado para a capital pelos pais e operado num centro cirúrgico especializado, no qual o médico trabalhava. Foi salvo! E tudo de graça! No dia de Natal, Lucas e sua avó receberam a notícia de que a operação fora um sucesso. Foi o melhor presente de Natal que eles poderiam ganhar. A avó proclamou: _ Um milagre o salvou... Isso não tem preço! Lucas olhou para a avó e deu um sorriso gostoso e bem aberto, sentindo uma enorme alegria com seu segredo bem guardado.
Qual pai ou mãe imaginaria que quando sua jovem filha ingressasse num curso tão procurado e prestigiado como o de Medicina da USP, ela estaria correndo risco de ser estuprada? No que diz respeito à Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), trata-se de mais uma crônica de uma tragédia anunciada, conforme relato abaixo na questão dos trotes violentos. Infelizmente, a descoberta de que alunas da FMUSP foram estupradas ou sofreram outros tipos de violência sexual é apenas a continuação de um panorama assustador de como as coisas acontecem nos campi. A constatação de que o machismo e a violência sexual que o acompanha é praticada por alguns, mas contam com a conivência de muitos outros, que não fazem a denúncia dos abusos, é estarrecedora. Além disso, a violência conta com a complacência dos responsáveis pela administração dos espaços universitários. Como é que poderemos ter profissionais de saúde dessa estirpe atendendo a população feminina ou masculina? Lembre-se que estudantes falam abertamente a favor de atitudes sexistas e violentas contra as mulheres, conforme têm mostrado as reportagens. Do ponto de vista legal e também ético, anoto que os administradores das universidades são responsáveis pela manutenção da ordem jurídica e moral nos locais de estudo e passou muito da hora de se tomar providências adequadas para evitar a violência, identificar os culpados e puni-los. Pelo que li do noticiário, percebi que os responsáveis titubeiam e muito na atitude a tomar. Na FMUSP, por exemplo, tiveram uma enorme dificuldade para aprovar uma medida óbvia: a da proibição de festas regadas a bebidas alcoólicas no campus! Já escrevi aqui nesta coluna, mais de uma vez, a respeito das agressões nas universidades. Agora, pelo que estamos vendo, parece-me que ela começa nos trotes violentos e prossegue com outros tipos de violência, como esse dos abusos sexuais e estupros. A humilhação causada aos novatos continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Lamentavelmente, no início do próximo ano letivo, assistiremos às mesmas cenas: crimes praticados a céu aberto sem que se tome alguma providência, tal como ocorre como as chuvas e seus alagamentos (embora, reconheça, que em alguns lugares, atualmente, as chuvas são altamente desejadas), os deslizamentos e as mortes consequentes, etc. Voltemos a FMUSP dos estupros para tratar de trotes: no dia 22 de fevereiro de 1999 Edison Tsung Chi Hsueh, calouro do curso de Medicina, de apenas 22 anos, foi encontrado morto, assassinado covardemente num ritual de trote sádico e violento. Mesmo após ter dito que não sabia nadar, ele foi atirado dentro de uma piscina e lá deixado para morrer afogado! Ninguém foi punido. O processo judicial foi arquivado por falta de provas contra os acusados1, e os causadores do crime, que não se conhece, graduaram-se e tornaram-se médicos! Um dos problemas nos trotes está em que, na maior parte dos casos, os próprios calouros não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. É mais um motivo para que os responsáveis pelos campi ajam abertamente a favor dos calouros e contra os selvagens veteranos. O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressavam nas faculdades. Mostra também uma contradição: os jovens ingressam na faculdade - um restrito setor da elite brasileira - e se mostram muito mal educados. Ao invés de agradecerem ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agem como bárbaros, arrogantes e sádicos. E pior: o mercado de consumo vem ano após ano reforçando a figura do calouro ultrajado como algo aceitável. O modelo é, infelizmente, realçado no imaginário do estudante pré-universitário pela publicidade de cursinhos e faculdades, que sempre mostram calouros felizes e violados (no mais das vezes com os cabelos raspados e pintados). Assim, o sistema capitalista vai colaborando para a manutenção das violações. Nunca é demais lembrar que aquilo que é repetido nos meios de comunicação como uma normalidade e que depois é confirmado pelos fatos públicos com naturalidade, acaba aparecendo como um comportamento correto e dentro da legalidade. Vê-se, pois, que no caso dos trotes ilegais, há uma junção de violência física, psicológica e também simbólica. Tudo muito lamentável. Por fim, já que fui obrigado a voltar ao tema, apresento na sequência alguns dos delitos praticados nos trotes e também mostro a responsabilidade das escolas, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que efetivamente restaram investigados nem às recentes denúncias de estupros e outros tipos de violência que estão sendo investigados. Lembrarei os demais casos que também são tipificados como crimes. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro. Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo, fazê-lo engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (artigo 140 do CP). Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP). Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente. Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão ou fingem que cuidam ou, então, dizem que não é problema delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim. Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizá-la, mas não se deve esquecer que, provavelmente os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros. O CDC garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a instituição de ensino pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC. Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e, nos primeiros dias de aula, distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro. Apesar de tudo, é preciso lembrar que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. Por isso, é preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas. Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de Direito, Medicina, Sociologia, Engenharia, etc. possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, mas que precisa ser combatida. _________ 1Ver matéria jornalística sobre o assunto.
Eu já tratei da oneomania, a doença das compras compulsivas, aqui nesta coluna. O foco foram os adultos, vítimas desse verdadeiro vício. Hoje resolvi voltar ao assunto, preocupado com esse tipo de comportamento ou algo parecido verificado nas crianças e adolescentes. Ninguém parece estar livre desse "vírus" típico da sociedade capitalista contemporânea. E, pior: um adolescente que não consegue controlar o impulso de comprar pode se tornar um adulto viciado. Essa é uma doença que se prolonga no tempo e, às vezes, é silenciosa: ela se instala, mas a própria pessoa ou as que estão a seu redor não conseguem perceber. Oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e também é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles. O comprador compulsivo é aquele que se satisfaz não com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ele pode literalmente adquirir qualquer coisa que lhe surja na frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra o satisfará. O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, esse tipo de comprador é um consumidor típico e, portanto, frequenta os mesmos lugares que os demais. Daí, ele acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ele mesmo quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, cds, etc. e, com isso, não é raro que nem ele nem os que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ele é exagerado ou uma espécie de colecionador. No comportamento de crianças e adolescentes, já é possível identificar o mesmo padrão ou similar. Há meninas que possuem muitas bonecas, sapatos, tênis, roupas, acessórios e demais badulaques. O mesmo se dá com meninos com suas roupas, tênis, games, acessórios, etc. Claro que há de ser feita uma evidente objeção: as aquisições não são feitas com recursos dos jovens. São seus pais e responsáveis que autorizam ou aquiescem aos pleitos. Mas, esse acúmulo de produtos pode significar um sintoma de que a doença se instalou ou está em vias de. É mais uma preocupação que os adultos, responsáveis pelos menores, devem ter. (Infelizmente, se os adultos já foram infectados, a identificação pode se perder.). Essa espécie de "vírus" não surgiu do nada, nem de repente. Ele foi sendo incrementando paulatinamente com o crescimento do mercado capitalista de massa e seus instrumentos de expansão dos negócios. O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo. Como eu costumo dizer, parafraseando Descartes: "Consumo, logo existo". Somos uma sociedade de consumidores, na qual as pessoas são vistas, avaliadas, medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem adquirir. No século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois, se assim não fosse, seria impossível vender o que se fabrica. E, na atualidade, com o espetacular incremento da web/internet, não só as compras tornam-se instantâneas e feitas de dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias on-line (docs e teds), os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê a cabo, compras parceladas, etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele. Quanto aos menores, milhões deles são portadores de iphones, smartphones, laptops, etc., que facilitam a ida às compras virtuais; além disso, eles são levados a jogos e sistemas que se apresentam como gratuitos, mas que acabam oferecendo e vendendo alguma coisa. Tudo isso vai alienando o consumidor (jovem ou adulto) do que realmente ocorre e do que tem valor substancial. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um mais ou menos avisado, eis que as armadilhas estão muito bem engendradas. Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento dos demais, para tentar detectar a doença. Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas de que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta. Há pais que se endividam para comprar bugigangas para os filhos. É claro que, se o comprador com oneomania for uma pessoa de posses e puder gastar muito dinheiro, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize. Assim, um outro modo de identificação da doença está em verificar o excesso da compra de produtos, que jamais são usados. Por fim, anoto que, reconhecida a doença, uma terapia pode ajudar a resolver o problema. E, lembro que, além da psicoterapia, é bom saber que existem em várias cidades brasileiras grupos de autoajuda intitulado "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", e que acolhem e aconselham os doentes visando tratamento. Basta uma consulta à web/internet para ter acesso a essas instituições.
quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O corpo humano como produto de consumo

Meu amigo Outrem Ego, que às vezes não parece, mas é muito bem humorado, contou-me o seguinte: dia desses, foi convidado para um jantar. Ao chegar na casa de seu colega de trabalho, viu, sentadas, num grande sofá de couro, quatro mulheres muito parecidas. "Elas tinham a mesma cara. Quero dizer, os rostos eram idênticos: bocas a narizes iguais, testas esticadas, sem rugas, apesar da idade (por volta dos cinquenta anos). Todas pálidas. Perguntei ao anfitrião: 'são irmãs?'. 'Não!', respondeu ele, 'Elas têm o mesmo cirurgião plástico...'". No ano de 2013, pela primeira vez, o Brasil superou os Estados Unidos e se tornou líder mundial na realização de procedimentos cirúrgicos estéticos, de acordo com relatório divulgado pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps)1. Foram 1,49 milhão de cirurgias ou 12,9% do total mundial, que foi de 11,5 milhões. Isso não é pouca coisa, especialmente se considerarmos que a população norte americana é quase 60% maior que a brasileira2 e com uma renda per capita muito superior. Na categoria de procedimentos estéticos não-cirúrgicos, como a aplicação de toxina botulínica - mais conhecida pela marca Botox -, um composto aplicado para ajudar a suavizar marcas e linhas de expressão no rosto, os Estados Unidos lideravam o ranking com 21,4% dos 11.874.937 casos de 2013. O Brasil ficou em segundo lugar, com 5,5% do total. E, segundo o documento, as mulheres foram as que mais procuraram os médicos especialistas e passaram por algum processo estético (87,2%). Por esses dados, é possível ver o tamanho do mercado e a quantidade de dinheiro envolvido. O ramo da medicina estética foi um dos que mais cresceu e, certamente, teve um desenvolvimento técnico e científico extraordinário. Verdade que, muitas das cirurgias são necessárias e têm feito muito bem às pessoas. Mas, como sempre tem acontecido neste nosso "planeta do consumo", o mercado acabou, de um modo ou de outro, "impondo" metas e modelos para o corpo humano. Com efeito, o mercado conhece os desejos e os interesses dos consumidores e também sabe muito bem como criar "necessidades". Nesse tema do "modelo ideal" de um corpo humano feminino ou masculino, existe uma verdadeira enxurrada de informações chegando aos consumidores por todos os lados: via tevê com seus apresentadores e também pelos personagens de novelas, por intermédio do cinema, pelas passarelas de moda e anúncios publicitários, pelas revistas de moda, de futilidades, de fofocas e até de notícias - repletas de anúncios publicitários com corpos-modelo, etc., além de indicações de como o corpo humano há de ser. Como diz meu amigo: "Não é a realidade! Andando pelas ruas, passeando em shopping-centers ou em parques, enfim visitando o mundo concreto só muito raramente esses corpos desenhados, projetados e amoldados aparecem". Ele tem razão, inclusive porque a utilização cada vez mais dos sistemas de modelagem tipo photoshop proporcionam imagens desde logo diferentes do real. Ou, como ele contou: "Tenho um amiga que posou para uma revista. Quando saíram as fotos, ela exclamou: 'Nossa! não sabia que eu era tão bonita!'". Tudo isso poderia passar despercebido não fosse o efeito que causa na psiquê de muitas pessoas. Algumas que não se aceitam como são, outras que querem ficar parecidas com seus ídolos, aquelas que não aceitam envelhecer e até as que querem ficar parecidas com objetos de ficção! E, há também, como observou meu amigo no jantar a que compareceu, uma verdadeira "massificação" da estética facial com suas bocas, lábios, narizes, testas, etc. Recentemente, a Victoria's Secret (VS) colocou no mercado norte americano um anúncio publicitário que deu o que falar: numa foto com várias jovens mulheres trajando apenas calcinha e soutien da marca, havia escrito na frente: "The Perfect 'body'". Lançado o anúncio, logo depois, foi feita uma petição on line para que a marca pedisse desculpas por estar celebrando a ideia de um "corpo perfeito" mostrando apenas modelos muito magras, e que conseguiu milhares de assinaturas. Aproveitando o embalo, uma concorrente, a Dear Kate, fez um anúncio idêntico mostrando mulheres com seus corpos naturais muito diferentes das "angels" (como são conhecias as modelos da VS)3. Analisando-se o anúncio, pode-se até objetar que a marca não quisesse dizer que aquelas modelos tinham um corpo perfeito, pois a palavra "body" está entre aspas e poderia, então, estar fazendo referência à lingerie e não ao corpo. Pode ser. Mas, o caso serve para ilustrar toda a imposição de modelos de corpos femininos (e também masculinos) que declarando ou não, insinuam que aquilo sim é o corpo humano "adequado", "correto", "bonito", "perfeito". Como se existisse mesmo um corpo humano perfeito! O mau nisso tudo está em que, cada vez mais, fruto dessa avalanche de imagens produzidas por corpos desenhados, projetados e massificados num certo padrão, o corpo vai tomando o lugar da pessoa. O perigo é o de que se acabe dando mais importância ao corpo humano que a pessoa humana, algo que, em parte, já acontece. Eu, particularmente, não faço qualquer consideração de valor a respeito das pessoas que querem modificar sua aparência. Sendo maiores de idade, querendo fazer e podendo pagar o preço, trata-se de decisão de foro íntimo, mero exercício de direito subjetivo e privado de cada um. Não penso o mesmo em relação a certas posturas do mercado e também em relação aos "exageros" que, tudo indica, escondem problemas de ordem psíquica, que reclamariam um outro tipo de tratamento. Examinemos, pois, o incrível caso das pessoas que alteram seus corpos para ficarem parecidas com objetos de ficção. Citarei os mais famosos casos: os das mulheres que querem ficar parecidas (ou "iguais") com a boneca Barbie e os dos homens que querem ficar parecidos (ou "iguais") com o boneco Ken (o namorado da Barbie)4. Foi o desenvolvimento das técnicas de cirurgia plástica que permitiu que essas pessoas pudessem "sonhar" em se tornarem uma "coisa". Mas, pergunto: será que tudo o que pode, deve? Já tive oportunidade de comentar o problema das mulheres implantaram seios de silicone de mais de cinco litros em cada um5. Pode, porque é possível, mas não há fundamento ético capaz de basear operações desse tipo. A construção dessa imagem corporal artificial vinda de fora, como um projeto de design criado pelo mercado, não à toa tem gerado doenças relativas à alimentação. A magreza em excesso gerada pela bulimia e pela anorexia6 são eventos bem conhecidos neste particular. Pergunto, então: por que esses distúrbios alimentares são considerados doenças e cirurgias estéticas em excesso ou para fins estranhos não? O que se diz é que falta embasamento ético na atividade profissional de alguns cirurgiões plásticos. Do mesmo modo que eles deveriam se negar a efetuar operações de implantes de seios exageradamente volumosos, deveriam se negar também a tentar transformar seres humanos em bonecos! Sei que o dinheiro fala mais alto, mas é importante que nós saibamos que nem tudo é uma questão de preço e sim de valor. Ou como diria o Barão de Itararé: "A pessoa que se vende sempre recebe mais do que vale"7. Termino com as palavras de meu amigo: "Seria muito bom se algum dia, quando um cirurgião plástico fosse procurado por uma pretendente a Barbie ou um aspirante a Ken, que ele não só se negasse a fazê-lo como, desde logo, indicasse um psiquiatra ao candidato". __________ 1Brasil ultrapassa os EUA e se torna líder de cirurgias plásticas. 2Aproximadamente 321 milhões para 202 milhões. 3A matéria está neste endereço, onde, inclusive, podem ser vistas as fotos. 4Para quem quiser ver essas pessoas. 5O corpo humano, o mercado de consumo e a ética. 6Bulimia nervosa é um transtorno alimentar caracterizado por períodos de compulsão alimentar seguidos por comportamentos não saudáveis para perda de peso rápido como induzir vômito (90% dos casos), uso de laxantes, abuso de cafeína, uso de cocaína e/ou dietas inadequadas. A anorexia ou anorexia nervosa é uma disfunção alimentar, caracterizada por uma rígida e insuficiente dieta alimentar resultando em baixo peso corporal e estresse físico. A anorexia nervosa é uma doença complexa, envolvendo componentes psicológicos, fisiológicos e sociais. Uma pessoa com anorexia nervosa é chamada de anoréxica. 7Como se sabe, Barão de Itararé é o pseudônimo pelo qual se apresentava o jornalista e escritor Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, também conhecido por Apporelly.
É moda. Há médicos que se tornam famosos, passando a frequentar a mídia televisada e escrita, montam consultórios caríssimos bem decorados, em prédios e casas luxuosas, situadas em bairros nobres da cidade. Cobram muito caro por suas consultas. Era de se esperar que o atendimento fosse à altura de toda essa parafernália de apresentação. Afinal, com uma imagem dessas e cobrando preços altíssimos, o atendimento deveria ser cortês, respeitador, com, quem sabe, o oferecimento de cafés, chás, biscoitos e, por que não, chocolatinhos, porque nenhum consumidor é de ferro. Todavia, a experiência mostra que basta entrar em alguns desses consultórios para o serviço mostrar sua verdadeira face: "não vale quanto pesa". Cito um exemplo acontecido com meu amigo Outrem Ego. Ele resolveu marcar uma consulta com uma famosa dermatologista. Marcou com um mês de antecedência. Um mês! Poderia ter ido a outros médicos, mas como podia aguardar, agiu como um bom consumidor crente de que receberia o atendimento médico à altura da oferta e do preço. Ficou esperando pacientemente o dia chegar. Uma nota de ironia: na véspera do dia marcado, a secretaria da médica ligou para confirmar a consulta. Para não perder a hora, Outrem Ego chegou 30 minutos antes e ficou acomodado na lotada sala de espera da linda casa, ricamente decorada. Nota: havia manobristas à porta, mas nada de chocolatinhos, cafezinhos, bolachas, etc. Apenas e tão somente as surradas revistas de moda e fofocas que, não se sabe bem por que, os consultórios mantêm. (Meu amigo chamou a atenção para esse fato também: será que os médicos querem dizer alguma coisa aos clientes, colocando revistas tão ruins na sala de espera?). Muito bem. Meu amigo estava mais preparado: levara um livro para ler, acaso atrasasse "um pouco" (Como bom consumidor, ela estava dando um, digamos, crédito de tempo no atraso do atendimento para a "celebridade" médica). Sua consulta estava marcada para às 16h. Deu 16h e nada; meia hora depois nada ainda. Com quarenta e cinco minutos de atraso, Outrem Ego perdeu a concentração e não conseguia mais acompanhar a história do livro que lia. Às 17h, viu ser chamada uma mulher que estava já lá esperando quando ele chegou às 15h30. Resolveu, então, perguntar para a secretaria qual era o horário de consulta daquela mulher e ficou sabendo que era a das 14h. Ele ficou tonto, sentou-se um pouco, tentou organizar seu pensamento. Depois, levantou-se e foi embora. Muito bravo, ele me contou a história e eu disse que ele tinha sido violado em seus direitos. Mas, ele ainda usou comigo de uma retórica muito comum em consumidores-vítimas que procuram eliminar uma espécie de sentimento de culpa por terem sido maltratados. Disse: "É verdade, que pode alguém objetar que, se eu esperasse, seria atendido. Talvez. Quem sabe, após mais duas horas, ela me atenderia, mas desrespeito tem limites e, assim, fui-me. Indignado" (Esse argumento de vítima condescendente é comum. É uma espécie de síndrome de Estocolomo dos consumidores violados). E antes que surjam mais defensores do mau atendimento, apenas e tão somente porque é de médicos que estamos falando, não se está apontando situações de emergência ou de algum caso excepcional que exigiu a presença do médico que, por isso, não pode atender aos demais. A referência diz respeito ao modo de atendimento básico em consultórios regulares com consulta previamente marcada, sem qualquer embaraço justificável. Há, naturalmente, bons prestadores de serviços no setor, tanto médicos como hospitais e clínicas, mas o problema no atendimento aparece em todos os lados, não só nos consultórios particulares, como também nos hospitais privados e nos conhecidos "hospitais-butiques". Nem preciso referir o serviço público, que, tirando exceções, peca muito pelo mau atendimento. Para deixar, então, consignados certos aspectos básicos da relação cliente-médico e cliente-hospital/clínica, listo a seguir algumas regras e direitos vigentes. Obrigações do médico Tanto no consultório como no hospital, o médico tem obrigação de prestar um atendimento adequado e dentro dos parâmetros legais. O médico é um prestador de serviço e como tal deve fazê-lo de forma técnica compatível com sua especialidade, sem ações precipitadas ou omissões injustificadas. Receitas em letras legíveis É direito do consumidor receber receitas escritas de forma legível. Nada de "caligrafia de médico é assim mesmo". Não é nem um pouco engraçado ficar decifrando junto ao farmacêutico os "quase-hieróglifos" do médico para descobrir qual medicamento comprar e como tomá-lo ou, então, qual é o exame que foi prescrito. Além de sem graça, é ilegal, posto que é uma falha na informação. Esta deve ser clara, precisa, detalhada. Ademais, é evidente que a compra do remédio errado, bem como sua equivocada utilização, pode causar sérios danos ao consumidor. No consultório - Horário marcado No consultório, a hora marcada deve ser respeitada, a não ser que exista alguma justificativa de última hora (Por exemplo, o médico foi obrigado a ir fazer um atendimento de emergência). O atraso no atendimento, de maneira injustificada, viola o direito do consumidor, que, se tiver algum prejuízo por conta disso, pode pleitear indenização. Confidencialidade A consulta é confidencial e, resguardados os casos de doenças de notificação compulsória (epidemias, por exemplo) ou risco real para terceiros, o médico deve proteger as informações que recebe de seus clientes. Na violação desse sigilo, o consumidor pode pleitear indenização do médico e/ou hospital. Educação e respeito O médico e os demais profissionais devem tratar o consumidor com educação e respeito à sua dignidade como ser humano, jamais podendo usar expressões preconceituosas, nem referir-se ao paciente pelo nome de sua doença. Esse direito se estende ao acompanhante, aos familiares e, caso ocorra, ao falecido. No hospital Nos hospitais, os profissionais devem se apresentar devidamente identificados com crachá, no qual conste nome completo, profissão e cargo (médico, anestesista, enfermeiro etc.). O prontuário médico É direito do consumidor receber uma cópia do prontuário no consultório, no hospital ou na clínica. Quando não estiver consciente, a cópia do prontuário tem que ser entregue a seu responsável legal (geralmente um familiar próximo: cônjuge, filhos, pais etc.). O diagnóstico É direito do consumidor receber por escrito do médico (de forma legível, de preferência datilografado ou impresso via microcomputador) o relato do diagnóstico feito, bem como quais serão as condutas médicas a serem adotadas, com a descrição das etapas da doença pelas quais o paciente irá passar, os tratamentos que serão empreendidos, os riscos envolvidos etc., pois o paciente pode recusar os diagnósticos e tratamentos. Seu consentimento deve vir depois de ter recebido claras e totais informações sobre o caso em linguagem simples. O paciente pode dar o consentimento e depois, se quiser, pode revogá-lo. Doença grave Quando se trata de doença grave e/ou desconhecida, é direito do paciente saber da expectativa que se tem sobre o resultado do tratamento, além de ser esclarecido a respeito do diagnóstico e do tratamento, quando se tratar de pesquisa ou procedimento experimental, assim como, também, ser esclarecido dos riscos na relação com os benefícios. Testes obrigatórios É obrigação do médico/hospital/clínica fazer testes antialérgicos para uso de medicamentos que apresentem riscos quando ministrados (por exemplo, penicilina), bem como teste para verificação de diabetes, quando o procedimento ou o uso do medicamento trouxer riscos em função dessa doença. O material a ser utilizado É obrigação do médico/hospital/clínica utilizar-se de material esterilizado ou descartável, tudo dentro das mais estritas regras de segurança e higiene. Se for necessária a utilização de sangue, o paciente tem direito de conhecer sua procedência. O acompanhante Nas consultas e intervenções, o paciente pode ter presente um acompanhante e isso é válido para o parto; o pai, querendo, pode assistir. Orçamento prévio O paciente tem direito a receber um orçamento prévio do serviço que será prestado e dele devem constar: o valor dos honorários; o preço dos materiais a serem empregados; as condições de pagamento (ou seja: se é à vista, parcelado, com ou sem entrada etc.); as datas de início e término do serviço ou a previsão da necessidade de sua continuidade; e o prazo de validade do orçamento. Se o orçamento não falar do prazo de validade, ele valerá por dez dias. Após a sua aprovação, não pode ser alterado. Recibo dos pagamentos Todo pagamento deve ser feito contra a entrega de recibo. Este tem que ser discriminado, apresentando separadamente honorários médicos, honorários de outros profissionais, despesas de estada, uso de equipamentos, gastos com medicamentos etc. Direitos de todos: consumidor e seus familiares Todos os direitos do consumidor aqui narrados são extensivos aos familiares do paciente.
Em função das eleições realizadas recentemente e tendo em vista sua importância para o fortalecimento da democracia e, por que não dizer, para o desenvolvimento social e econômico do Brasil, trato mais uma vez de alguns pontos. Vivemos numa sociedade democrática, na qual o poder há de ser exercido pelo e para o povo mediante representantes eleitos diretamente. O que se espera, claro, é que esses representantes, de fato, como o próprio nome diz, "representem" os interesses, ideias e desejos de seus eleitores. Mas, como garantir que os representantes, realmente, trabalhem em projetos que atendam aos anseios populares? Tomemos, inicialmente, um dos aspectos de nossa democracia, a do fato do voto ser obrigatório entre nós. De todos os países do mundo, apenas 24 ainda adotam esse modelo, sendo 13 na América Latina. E dentre os 15 que detêm as maiores economias, somente o Brasil ainda contempla o voto como dever. Os que são contra o voto obrigatório argumentam que ele transforma o direito da cidadania num dever que aprisiona. Numa legítima democracia, o voto há de ser um direito sagrado exercido de forma livre pelo cidadão. Isso porque, como dizem, a obrigatoriedade transforma o voto num cabresto, permitindo as compras, as trocas e todas as demais artimanhas para a aquisição do voto. Adicionalmente, esse sistema enfraquece a democracia porque o eleitor, sem alternativa, é obrigado a escolher alguém nas listas apresentadas pelos partidos, que detêm o monopólio das indicações dos candidatos. Milhões de eleitores, então, votam sem grande ou nenhum interesse. Para ser ter uma ideia, uma pesquisa do Instituto Datafolha realizada após as eleições de 2010 mostrou que, 20 dias após as eleições, 30% dos eleitores já nem se lembravam em quem haviam votado. Esses dados comprovam que milhões de brasileiros vão às urnas para se livrar da obrigação de votar e para não perder vários direitos retirados de quem não vota e, também, porque é mais fácil e prático votar do que justificar a ausência. Esse argumento, de outro lado, apresenta o voto facultativo como algo positivo relacionado à democracia e a participação popular na política, pois, com ele, o eleitor vota se quiser e se encontrar algum candidato que de fato possa representar seus pensamentos, suas opiniões, assim como do grupo social a que pertença. Além disso, essa liberdade de escolha permite e incentiva a participação das pessoas nas atividades políticas dos partidos, visando à nomeação de candidatos verdadeiramente representativos de seus interesses. (Há, é verdade, outros aspectos, tais como o da introdução ou não do voto distrital, a do candidato avulso - sem partido - etc. Mas, o fim do voto obrigatório, como dizem os que o defendem, seria um bom começo). Pensemos, também, num outro ponto do sistema eleitoral: como garantir que o candidato que receba nosso voto seja o eleito? No modelo vigente, sabe-se que a soma dos votos do partido é que define o número de candidatos eleitos, sendo que o eleitor, especialmente nas eleições para o legislativo municipal, estadual e Federal (deputados e senadores) vota mais no candidato que no partido. O cidadão vota num candidato que recebe muitos votos individualmente, mas como seu partido não consegue índice, ele fica de fora. E num outro partido onde há puxadores de votos, são eleitos candidatos desconhecidos e com votações medíocres. Desse modo, como se diz, a representação fica furada, pois os que receberam votos diretamente do eleitor acabam não sendo considerados. Afora o fato de que nosso regime democrático conta, atualmente, com 32 partidos políticos, um exagero que confunde. Agora, um outro aspecto: como já tive oportunidade de tratar, as democracias contemporâneas são formadas por cidadãos-consumidores. Isto é, uma característica marcante das sociedades capitalistas é que elas são formadas basicamente por consumidores. Os direitos dos cidadãos são exercidos em larga medida pela atuação enquanto consumidores, pois, no cotidiano, as ações são "vividas" pelo e para o consumo. Ademais, em relação ao Estado, está claro que ele é um agente prestador de serviços (além de produtor) e se comunica com os cidadãos do mesmo modo que as empresas privadas com seus clientes. Os candidatos, por exemplo, são apresentados como produtos muito bem projetados pelos marqueteiros. Nesse sentido, é que se diz que o eleitor é um cliente do Estado. Como o regime é democrático e as autoridades são guindadas a seus cargos pelos votos dos eleitores, estes esperam, legitimamente, que as ações e tomadas de decisões daqueles de algum modo, então, estejam em consonância com suas necessidades, interesses e direitos. Porém, a sociedade capitalista é formada por empresas que exploram, segundo as regras instituídas, o mercado existente. Esse mercado de consumo não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que a exploração é permitida. Como decorrência disso, o empresário tem responsabilidades a saldar para com a sociedade. Acontece que a empresa não tem relação com a democracia. Ainda que, em algumas delas, sejam apresentados ares de participação dos empregados, a verdade é que a estrutura organizacional da empresa é naturalmente autoritária. ("Manda quem pode. Obedece quem tem juízo"). As decisões são tomadas por um ou por poucos e não levam em consideração desejos ou interesses dos subalternos, a não ser na medida dos direitos instituídos e que aparecem como obstáculos - muitos deles a serem removidos pelas próprias decisões internas. A extinção de empregos, por exemplo, pode ser uma meta a ser buscada, não importando as consequências sociais que daí advirão. No capitalismo contemporâneo de "última geração", a eliminação de postos de trabalho tem sido uma característica marcante das fusões, incorporações, aquisições, etc. E, como também já frisei anteriormente, esse modelo autoritário expande-se para fora na direção dos consumidores. Estes não só não participam das decisões das empresas, como são solenemente por elas desprezados: na maioria dos casos, os consumidores são levados em consideração apenas e tão somente na possibilidade e capacidade que têm de comprar os produtos e serviços oferecidos gerando, assim, receitas e lucros. E, como se sabe, também fruto do capitalismo atual, o Estado, por sua vez, aos poucos foi abrindo mão do direito de explorar parte do mercado e pelo sistema das privatizações entregou para a iniciativa privada o direito de prestar uma série de serviços e também de entregar produtos, guardando para si o direito e o dever de continuar oferecendo serviços e produtos essenciais, tais como o de saúde e segurança pública e de controlar outros como o de transportes e de comunicações, assim como a educação, que pode ser explorada pela iniciativa privada e oferecida pelo Estado, etc. Esse quadro mostra, então, de um lado, como a sociedade capitalista contemporânea é autoritária, pois as pessoas vivem como consumidores e a estes não é dada liberdade de escolha na maior parte de suas compras, necessárias ou essenciais. Aliás, essa é uma marcante característica dos consumidores: a falta de liberdade. E, de outro lado, a dificuldade que os cidadãos-consumidores têm de se comunicar livremente com seus representantes. As manifestações de rua do ano de 2013 demonstram que o canal democrático de eleição de representantes, que possam atuar em nome dos cidadãos não tem funcionado adequadamente. E, chamo atenção para o fato de que boa parte das reivindicações das pessoas nas ruas brasileiras envolvia direitos típicos dos consumidores, tais como transportes decentes, melhor atendimento médico e hospitalar, educação de boa qualidade e segurança pública. De todo modo, enquanto o sistema eleitoral não muda, na direção de maior legitimidade e melhor forma de representação, o que se pode verificar é que estabeleceu-se a consciência de que, na sociedade capitalista contemporânea, os cidadãos têm o direito de se manifestar livremente e podem exigir que se lhes entreguem produtos e serviços decentes a preços módicos e que a política seja executada de forma honesta a transparente. E, com a penetração e eficácia das comunicações via web/internet e redes sociais, foram abertas vias para que as insatisfações dos cidadãos-consumidores possam ser ouvidas. As empresas privadas já estão, por exemplo, há certo tempo monitorando os sites de reclamações. Eles têm funcionado muitas vezes com ótima eficácia na resolução de problemas que os consumidores enfrentam sem ter que necessariamente recorrer aos canais oficiais, como os Procons e o Judiciário. Parece certo que, de um modo ou de outro, é preciso mesmo aprimorar o sistema político, que está inserido numa sociedade capitalista que o tempo todo busca a modernização, especialmente para que a representação seja efetiva.
Volto a tratar de um tema importante que possibilita o acesso à Justiça, o da assistência judiciária gratuita. Cuidarei especificamente dos consumidores, mas, naturalmente, a questão diz respeito a toda e qualquer pessoa que, sem condições financeiras, pretenda ir a juízo ou é ré em alguma ação judicial. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) garante como direito básico do consumidor o de acesso aos órgãos judiciários e administrativos (inciso VII do art. 6º) e um dos mais efetivos modos de assegurar esse direito é o da concessão da assistência judiciária gratuita, garantia pela lei 1060, importante diploma de 1950. Muitas decisões judiciais têm negado a chamada Justiça gratuita, sob o argumento de que cabe ao requerente provar insuficiência de recursos para poder obtê-la. Trata-se, segundo penso, de equívoco porque a lei de assistência judiciária (LAJ) como é conhecida a lei 1060/50, não faz essa exigência e o texto constitucional que cuida da questão não regula assistência judiciária gratuita, mas sim assistência jurídica integral, que é algo bem diverso. Assim, no presente artigo, pretendo solver a confusão que tem sido feita nos meios forenses relativamente a esses dois institutos fundamentais de exercício da cidadania e de salvaguarda do acesso à Justiça, a saber: o direito de assistência judiciária gratuita assegurado na LAJ e o direito de assistência jurídica integral e gratuita assegurado na Carta Magna (art. 5º, LXXIV). Vejamos. 1. A assistência judiciária Um dos grandes entraves para o exercício da cidadania é - sempre foi - o de ordem financeira, capaz de, por si só, impedir a pessoa de bater às portas do Judiciário para apresentar seu pleito. No Brasil, fruto de uma sustentação democrática bastante ampla, já nos idos de l950 foi editada a lei 1060 visando acabar com essa ordem de impedimento. Inicialmente, realço o seguinte: um dos pontos fortes dessa lei está exatamente na garantia do direito de isenção que pode a parte requerer, consistente em não arcar com as taxas, custas e despesas processuais, vale dizer, a lei cuida de isentar do pagamento do custo do processo a pessoa que necessite. E o que ela exige para o exercício dessa prerrogativa? Apenas e tão somente a simples afirmação em juízo de que a parte não tem condições de arcar com esse custo sem prejuízo de seu próprio sustento e/ou de sua família. Nada mais. O artigo 4º da LAJ é expresso nesse sentido, ao dispor que: "A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família". Veja-se que o legislador fez exigência bastante singela: basta a mera afirmação na própria peça processual. É verdade que a norma fala em petição inicial, mas a interpretação extensiva consensual e pacífica oferecida pela doutrina e pela jurisprudência deixa patente que o pleito pode ser feito na contestação, nos embargos etc. ou mesmo no curso do processo. A questão é induvidosa, inclusive no E. STJ: "Processual civil. Recurso especial. Assistência judiciária gratuita. Estado de pobreza. Prova. Desnecessidade. - A concessão dos benefícios da assistência judiciária gratuita não se condiciona à prova do estado de pobreza do requerente, mas tão-somente à mera afirmação desse estado, sendo irrelevante o fato de o pedido haver sido formulado na petição inicial ou no curso do processo" (STJ, REsp. 469.594/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.05.2003, DJ 30/6/2003, p. 243). "Para o benefício de assistência judiciária basta requerimento em que a parte afirme a sua pobreza, somente sendo afastada por prova inequívoca em contrário a cargo do impugnante" (AG 509.905, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 11.12.2006). "Assim sendo, esta Corte já firmou entendimento no sentido de que tem presunção legal de veracidade a declaração firmada pela parte, sob as penalidades da lei, de que o pagamento das custas e despesas processuais ensejará prejuízo do sustento próprio ou da família (...). 7- Recurso provido para, reformando o v. acórdão recorrido, conceder ao recorrente os benefícios da assistência judiciária gratuita" (REsp. 682.152/GO, 4ª Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 22/3/05, v.u., DJ 11/4/2005, p. 327). No mesmo sentido: REsp. 653.887/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 2ª Turma, DJ 6/3/2007. Lembro que, a garantia que está em jogo é a do acesso à Justiça e não a do direito do Estado arrecadar taxas. Ademais, para evitar que a pessoa que vai ao Judiciário sem pagar taxas acabe por lesar o erário público, o §1º do referido art. 4º fixa uma punição: "§ 1º . Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais" 2. A questão da prova da insuficiência de recursos Agora, pergunta-se: a parte não tem que provar a insuficiência de recursos? Esse é um dos temas que ainda gera decisões díspares. Isso porque é difícil ao magistrado admitir que alguma afirmação possa ser feita em Juízo sem a devida apresentação de prova correspondente. Acontece que, na hipótese, o legislador presume a prova da afirmação. Não significa dizer que a parte não tem que provar, mas que existe uma presunção legal de que ela está falando a verdade. Essa presunção é "juris tantum", podendo a parte contrária impugnar a concessão para desmontá-la, conforme estabelecido no "caput" do art. 7º da lei: "Art. 7º. A parte contrária poderá, em qualquer fase da lide, requerer a revogação dos benefícios de assistência, desde que prove a inexistência ou o desaparecimento dos requisitos essenciais à sua concessão" Portanto, não se trata de afirmação sem prova, mas de simples inversão do ônus da prova para a parte contrária, em função da presunção legal existente. De fato, não poderia ser de outro modo, pois caso assim não fosse, muitas demandas se perderiam, na medida em que antes de decidir o tema posto, o juiz teria que avaliar se a parte tinha ou não condições de arcar com as despesas. (Não se deve esquecer que a parte que mentir nesse ponto será condenada ao pagamento do décuplo das custas, conforme previsto no § 1º do art. 4º). De todo modo, apesar da permissão ampla a favor do requerente, o caput do art. 5º da lei permite que o juiz avalie o pleito até para indeferi-lo desde que haja elementos para tanto nos autos. Leia-se, verbis: "Art. 5º. O juiz, se não tiver fundadas razões para indeferir o pedido, deverá julgá-lo de plano, motivando ou não o deferimento dentro do prazo de setenta e duas horas" Isto é, se o magistrado, examinando as provas existentes nos autos, encontra elementos capazes de permitir a formação de um juízo a respeito da capacidade financeira da parte, pode, então, fundamentadamente, indeferir o pedido. Todavia, anoto: trata-se de incapacidade financeira e não econômica, como às vezes se verifica servir de equivocado argumento para a negativa da concessão. A parte pode muito bem ter patrimônio e, logo, capacidade econômica, mas estar impossibilitada de pagar um mínimo de taxas. A existência de patrimônio não é impedimento para a concessão do benefício. O que importa é a incapacidade financeira corrente de arcar com as despesas e custas processuais em prejuízo do próprio sustento e da família. A propósito e em complemento, anoto que também não é impedimento para a concessão do benefício, o fato da parte ter advogado próprio constituído nos autos, pois isso nada prova de sua capacidade financeira, na medida em que seu patrono pode fixar contrato de honorários para receber ao final do feito ou vinculado ao sucesso da demanda ou, ainda, tratar-se de advocacia pro bono. Aliás, trata-se de conduta expressamente autorizada pela lei 1.060/50 (artigo 5º, § 4º). E já se decidiu que "A circunstância da parte ser pobre na acepção jurídica do termo, não implica estar ela tolhida de escolher seu próprio advogado (RT 602/229)". Desse modo, reafirme-se que não precisa a parte fazer qualquer prova da insuficiência de recursos para arcar com as despesas processuais, pois a lei exige unicamente a declaração de pobreza específica para fins processuais. Ou seja, pela só declaração atestada na própria peça processual há indicação suficiente para se extrair da necessidade de seu deferimento, garantindo-se o acesso à justiça, garantia fundamental. Saliente-se, ademais, que não vinga a alegação, às vezes esposada em Juízo, de que a parte deve fornecer os documentos previstos no § 3º, do art. 4º, da lei 1.060/50, e isso porque tal diploma está revogado. O referido § 3º, do art. 4º foi acrescentado pela lei 6.654/79, que exigia a apresentação da carteira de trabalho e previdência social, quando do requerimento de assistência judiciária gratuita. Tal norma dispunha o seguinte: "§ 3º. A apresentação da carteira de trabalho e previdência social, devidamente legalizada, onde o juiz verificará a necessidade da parte, substituirá os atestados exigidos nos §§ 1º e 2º deste artigo" Acontece que, pela nova redação dos parágrafos 1º e 2º, do artigo 4º, dada pela lei 7.510/86, foram dispensados os atestados anteriormente exigidos nestes parágrafos, o que tornou implicitamente revogado o § 3º e sua exigência.1 Para terminar esse ponto, consigno também, que o pedido de concessão da justiça gratuita não preclui , podendo ser requerido a qualquer momento no processo quando a situação financeira da parte for insuficiente para honrar com o pagamento das custas sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família. 3. A confusão entre "assistência judiciária" e "assistência jurídica" Algumas decisões judiciais têm confundido "assistência judiciária" com "assistência jurídica", o que tem levado ao indeferimento do pedido de assistência judiciária, sob o argumento de que há uma exigência de ordem constitucional de comprovação de insuficiência de recursos ( conforme previsão do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal), extraindo-se daí a conclusão de que cabe à parte, demonstrar, documentalmente (através de comprovante de rendimento ou documento equivalente), a hipossuficiência alegada, pois o benefício é para quem realmente tem e demonstre a necessidade. Essa interpretação da norma constitucional, a nosso ver e com todo o respeito, é equivocada. Com efeito, dispõe o referido inciso LXXIV, do art. 5º, da Constituição Federal: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos." De uma simples leitura do texto e utilizando-se apenas e tão-somente da primeira das regras de interpretação, a gramatical, percebe-se que o comando lingüístico estampado no texto magno não se dirige a isenções de pagamento de taxas, custas e despesas processuais. A letra da lei expressamente trata de outro assunto: o da "assistência jurídica integral e gratuita" aos que, dela necessitando, requererem. Veja-se que a Constituição Federal utiliza o adjetivo "jurídico" e não o adjetivo "judiciário": aí reside a confusão. Não se perca de vista o fundamento de defesa democrática da cidadania trazido pela lei 1.060. Só por isso, deve-se, desde logo, prestar-se mais atenção no que disciplina a atual Constituição Federal em relação ao assunto, especialmente levando-se em consideração o fato de que ela inaugurou no país um vasto campo de defesa da cidadania e de acesso à justiça2. Ora, o que o legislador constituinte disciplinou foi uma determinação para que o Estado garanta assistência jurídica integral e gratuita a quem necessitar. É para esse tipo de serviço essencial que o cidadão deve comprovar insuficiência de recursos ___ e não para requerer a mera isenção de taxas, custas e despesas processuais. A doutrina define, sem sombra de dúvida, o que vem a ser a assistência jurídica integral e gratuita: "(...) Diferentemente da assistência judiciária prevista na constituição anterior, a assistência jurídica tem conceito mais abrangente e abarca a consultoria e atividade jurídica extrajudicial em geral. Agora, portanto, o Estado promoverá a assistência aos necessitados no que pertine a aspectos legais, prestando informações sobre comportamentos a serem seguidos diante de problemas jurídicos, e, ainda, propondo ações e defendendo o necessitado nas ações em face dele propostas."3 Percebe-se, pois, que é razoável exigir do cidadão a comprovação da insuficiência de recursos, mas somente quando se trate de assistência jurídica integral e gratuita (e não de simples assistência judiciária, diga-se mais uma vez), e isto por que: a) não se está falando apenas de ação judicial, mas de atos anteriores, de aconselhamento relativo ao comportamento que a pessoa deve ter diante do texto legal, de quais atitudes tomar, que caminhos seguir, de assinar ou não um contrato, fazer uma queixa, firmar uma quitação, notificar alguém etc., podendo chegar, claro, na ação judicial já encampada e patrocinada totalmente pelo Estado; b) se está tratando de entrega direta de serviço público, com prestação de serviço completo, o que exige do Estado aparelhamento específico ___ escritórios, advogados etc. ___ e custo adicional. 4. A recepção da lei 1060/50 pela Constituição Federal Examinando-se o texto constitucional e o da LAJ, não resta qualquer dúvida da recepção desta por aquela e sem qualquer risco de confusão ou injustiça. Na questão da exigência de comprovação de falta de recursos, inclusive, é importante anotar que em momento algum se está a dizer que a parte pode fraudar o sistema processual fazendo afirmação falsa. O que a LAJ faz é apenas, de um lado, garantir que a parte não tenha bloqueado o acesso ao Judiciário por uma exigência burocrática e, de outro, transferir para a parte contrária o ônus da demonstração da não veracidade da afirmação daquele que recebe o benefício da assistência judiciária gratuita. Em outras palavras, a lei 1.060/50 dá o direito subjetivo à pessoa de, mediante simples afirmação especial, pleitear os benefícios de assistência judiciária gratuita. Exercida essa prerrogativa, ao Juiz só cabe indeferi-la se tiver fundadas razões para tanto (art. 5º). Não tendo, nada pode fazer a não ser deferir o pleito. Daí, caberá à parte contrária ___ caso queira ___ impugnar a concessão, sendo dela o ônus da prova da inveracidade da afirmação. Se a parte contrária fizer tal prova, então, o beneficiário será condenado ao pagamento do décuplo das custas judiciais (§ 1º, do art. 4º). Vê-se, portanto, que não só a lei 1.060/50 foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, como está em plena sintonia com seus princípios, ao garantir acesso à justiça, de forma célere, imparcial, e fundada no devido processo legal.4 5. Conclusão Portanto, não há qualquer incompatibilidade entre a lei 1060/50 e o inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal, posto que esta norma regula a assistência jurídica integral e gratuita e para o exercício deste direito é exigida a comprovação da insuficiência de recursos. Quanto à assistência judiciária gratuita, relativa à isenção de taxas, custas e despesas processuais, basta a afirmação da insuficiência de recursos para a concessão do benefício. __________ [11Nesse sentido e por todos: Theotônio Negrão. Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor, 35ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, nota 7 ao art. 4º, p. 1.150. [22V. a respeito Nelson Nery Jr., "Princípios do Processo Civil na Constituição Federal", 5ª ed. rev. Ampl., São Paulo: RT, Seção III. 3Nelson Nery Jr, ob. cit., p. 77. 4Anote-se, em acréscimo, ainda que em rodapé, que a garantia constitucional do acesso à justiça não significa que o processo deva ser gratuito. No entanto, se a taxa judiciária for excessiva de modo a criar obstáculo ao acesso à justiça, tem-se entendido ser ela inconstitucional por ofender o princípio aqui estudado.(Conf. Nelson Nery Jr., ob. cit., p. 98)
quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Um presente para a reflexão no dia das crianças

Como estamos na semana do Dia das crianças, apresento, mais uma vez, um texto para reflexão sobre a relação de pais e filhos. Hoje abordarei a questão dos incentivos. Penso que praticamente todo mundo já ouviu dizer que há pais que prometem dar de presente um automóvel ao filho ou filha, acaso ele ou ela ingresse na Faculdade. Isso, quanto aos mais abonados. Os de menores posses prometem viagens ou outros presentes mais baratos. Isso também ocorre com os mais jovens que ganham alguma coisa em troca de boas notas como, por exemplo, a ida a um evento desejado pelo pequeno ou ao McDonald's. Ou, ao contrário, deixam de levá-los se as notas foram fracas. Pergunto, então, que tal oferecer, de uma vez por todas, e sem rodeios, dinheiro para que a criança ou adolescente tire boas notas ou leia um livro? Ao invés de automóvel, viagem, roupas ou acessórios, pagamento cash ou depósito em conta! Pode até parecer estranho, mas isso já acontece nos Estados Unidos da América e, como quase tudo que por lá se inventa, acaba, mais cedo ou mais tarde, desembarcando por aqui - nesse nosso país catequizado e que adora copiar o grande irmão norte americano -, faço algumas considerações para que pensemos a respeito. Michael J. Sandel, em livro que aqui já citei mais de uma vez1, conta que um amigo dele costumava pagar um dólar aos filhos pequenos toda vez que escreviam um bilhete de agradecimento. Ele revela que, geralmente, dava para perceber que os bilhetes haviam sido escritos sob pressão. Sandel levanta a hipótese de que, "pode acontecer que, depois de escrever muitos bilhetes, as crianças acabem apreendendo seu real significado e continuem manifestando gratidão ao receber alguma coisa, mesmo se não forem mais pagas para isso"2. No entanto, também é possível, observa ele, que aprendem a lição errada e encarem esses bilhetes como uma obrigação, como uma tarefa a ser desempenhada em troca de remuneração. Pior: esse modelo pode "corromper sua educação moral e tornar mais difícil para elas o aprendizado da virtude da gratidão".3 Sandel conta que, em várias partes dos Estados Unidos, o sistema escolar passou a tentar melhorar o desempenho acadêmico com a remuneração das crianças para estimulá-las a tirar boas notas ou obter boa pontuação em testes de avaliação. E que, cada vez mais, os incentivos financeiros são considerados um elemento-chave do melhor desempenho educacional, especialmente no caso de alunos de escolas em centros urbanos com resultados medíocres. Um professor de economia de Harvard, Roland G. Fryer Jr, colocou em prática essa ideia de incentivos destinando US$6,3 milhões a alunos de 261 escolas urbanas de produção predominantemente afro-americanos hispânica, provenientes de famílias de baixa renda. Diferentes esquemas de incentivos foram usados em diferentes cidades4. Vejamos alguns exemplos referidos por Sandel: "- Em Nova York, as escolas envolvidas pagavam US$ 25 a alunos da 4ª série que se saíssem bem em testes padronizados de avaliação. Os alunos da 7ª série podiam ganhar US$ 50 por teste. Esses ganhavam em media um total de US$ 231,55. - Em Washington, as escolas pagavam a alunos do ensino médio por comparecimento, bom comportamento e entrega dos trabalhos de casa. As crianças mais compenetradas podiam ganhar US$ 100 quinzenalmente. O aluno médio recebia cerca de US$ 40 nesse período e um total de US$ 532,85 ao longo do ano escolar. - Em Chicago, os alunos da 9ª série recebiam dinheiro pelas boas notas: US$50 por um A, US$ 35 por um B e US$20 por um C. O melhor aluno tinha uma arrecadação de US$ 1.875 durante o ano escolar. - Em Dallas, pagam US$ 2 aos alunos da 2ª série para cada livro que lerem. Para receber o dinheiro os alunos devem responder a um questionário computadorizado e provar que leram o livro."5 Michael Sandel observa que "esses pagamentos em dinheiro deram resultados variáveis. Em Nova York, a remuneração da garotada por boas notas nos testes em nada contribuía para melhorar seu desempenho acadêmico. O dinheiro em troca das boas notas em Chicago levou a melhores níveis de comparecimento, mas não melhorou os resultados dos testes padronizados. Em Washington, os pagamentos ajudaram alguns alunos (hispânicos, meninos e alunos com problemas comportamentais) a alcançar melhor desempenho de leitura. O dinheiro funcionou, sobretudo, com os alunos de 2ª. série em Dallas; as crianças que receberam US$ 2 por livro chegaram ao fim do ano com melhor nível de compreensão na leitura"6. Muito bem. Os economistas costumam dizer e sempre pretendem mostrar que as pessoas reagem a uma política de incentivos. Por que, então, não pagar para que uma criança ou um adolescente tire boas notas ou leia um livro? Embora certas crianças ou adolescentes possam sentir-se motivadas a ler livros pelo prazer da própria leitura e pelo aprendizado, com outras isso não acontece. Por que "não usar o dinheiro como um incentivo a mais?"7 Sandel responde do seguinte modo: "o mercado é um instrumento, mas não um instrumento inocente. O que começa como um mecanismo de mercado se torna norma de mercado. O motivo mais óbvio de preocupação é que o pagamento acostume as crianças a pensar na leitura de livros como uma forma de ganhar dinheiro e comprometa, sobrepuje ou corrompa o gosto da leitura pela leitura".8 Esses são apenas alguns exemplos de como o pensamento contemporâneo tem uma tendência enorme a reduzir tudo à oferta, preço, pagamento e em dinheiro. Talvez em alguns casos isso não seja um problema. O perigo é que, cada vez mais, os valores morais mais elevados acabem sendo substituídos pela simples ideia de troca de algo pelo dinheiro, gerando uma precificação do comportamento humano e fazendo com que as pessoas esquecem as virtudes e percam a generosidade (ou nunca conheçam o seu sentido). É isso. Algo para refletirmos nesse dia das crianças. __________ 1O que o dinheiro não compra - os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5ª. ed, 2013.   2Livro acima citado, p. 61. 3Idem, p. 62. 4"Financial Incentives and Student Achievemnent: Evidence from Randomized Trials" in Quarterly Journal of Economics, 126, nov. 2011. Apud Sandel, livro citado, p. 53. 5Idem, p. 54 6Idem, mesma p. 7Idem, p. 62 8Idem, mesma p.
Tenho lido várias matérias envolvendo a questão da cobrança e pagamento da taxa de corretagem na venda de imóveis feito por construtoras, assim como também da cobrança da taxa pelo "serviço de assessoria técnico-imobiliária", mais conhecida pela sigla SATI. Como se trata de uma questão típica de consumo e como há posições divergentes em torno do assunto, resolvi opinar. O imbróglio, como se sabe, envolve a cobrança feita pelas construtoras ao comprador do percentual pago ao corretor de imóveis que intermedeia a venda. O valor tem sido cobrado com ou sem aviso prévio e/ou com ou sem inserção no compromisso ou contrato de compra e venda. Além disso, a mesma sistemática de cobrança tem sido utilizada para exigir do comprador o pagamento de uma taxa pela tal assessoria SATI e, do mesmo modo, com ou sem aviso prévio e/ou com ou sem inserção no compromisso ou contrato de compra e venda. Os casos que envolvem cobrança de ambas as taxas sem aviso prévio e sem inserção em documentos de negociação eu deixarei de lado, dado o evidente abuso. Cuidarei dos demais, isto é, quando há prévio aviso e/ou inserção em documentos de negociação. Para tanto, farei um rápido apanhado das regras que envolvem o caso e vigentes no Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90-CDC). Contrato de Adesão Regulamentado expressamente no CDC, o chamado contrato de adesão tem esse nome pelo fato de que suas cláusulas são estipuladas unilateralmente pelo fornecedor, cabendo ao consumidor aquiescer a seus termos, aderindo a ele. Essa forma de contrato é típica das sociedades capitalistas, que gerou a utilização dos contratos-formulário, impressos com cláusulas prefixadas para regular a distribuição e venda dos produtos e serviços de massa. São contratos que acompanham a produção. Ambos - produção e contratos - são decididos unilateralmente e postos à disposição do consumidor, que, caso queira ou precise adquirir o produto ou o serviço oferecido, só tem como alternativa aderir às disposições pré-estipuladas. Daí não ter qualquer sentido falar-se em pacta sunt servanda, que pressupõe autonomia da vontade no contratar e no discutir o conteúdo das cláusulas. No contrato de adesão não há autonomia1. Ele está previsto no caput do artigo 54, que dispõe: "Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo." Cláusula abusiva Além disso, e também por causa disso, o CDC estabeleceu que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais abusivas, conforme retratado no seu artigo 51. Para aquilo que nos interessa, basta a leitura do inciso IV e do §1º da referida norma: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade; (...) § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual; III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso." Examinemos os pontos de relevo que afetam o tema em análise. A disposição da primeira parte do inciso IV aponta iniquidade, que é o oposto de equidade, literalmente2. Por isso é dispositivo redundante na proposição, que termina falando de equidade, algo que comentarei na sequência. Um dos conceitos estabelecidos na lei e que importa para o tema é o de desvantagem exagerada: é a própria norma do art. 51 que, no § 1º, define o conceito, ao regular o que entende por vantagem exagerada a favor do fornecedor. Anoto que a redação desse § 1º, desde logo, aponta seu caráter exemplificativo, por se utilizar da expressão "entre outros casos" e falar em presunção ("presume-se"). Trata-se de presunção relativa, que admite prova em contrário do fornecedor, que deve ser levada em consideração pelo magistrado no exame do caso concreto. Já a redação do inciso I do mesmo § 1º ensina que é exagerada a vantagem que ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence - nos vários subsistemas jurídicos. E como "sistema" de proteção ao consumidor há que entender todas as normas, além da lei 8.078, que atingem e regulam as relações de consumo, tais como a Lei de Economia Popular (lei 1.521/51), a Lei Delegada (lei 4/62), a lei dos Crimes Contra a Ordem Econômica (lei 8.137/90), a Lei de Plano e Seguro-Saúde (lei 9.656/98), dentre outras. E a onerosidade excessiva para o consumidor (inciso III) está ligada ao princípio da equivalência contratual, que há de ter vigência no cumprimento das regras contratuais. Importante também apontar que a segunda parte da regra do inciso IV diz que a cláusula é abusiva quando seja incompatível "com a boa-fé ou a equidade". O princípio da boa-fé, apesar de estar inserido no rol das cláusulas abusivas do art. 51, é verdadeira cláusula geral a ser observada em todos os contratos de consumo. Esse princípio vai exigir, portanto, sua verificação em todo e qualquer contrato, funcionando como determinação ao intérprete: "A aplicação da cláusula geral de boa-fé exige, do intérprete, uma nova postura, no sentido da substituição do raciocínio formalista, baseado na mera subsunção do fato à norma, pelo raciocínio teleológico ou finalístico na interpretação das normas jurídicas, com ênfase à finalidade que os postulados normativos procuram atingir"3 Dessa maneira, percebe-se que a cláusula geral de boa-fé permite que o juiz crie uma norma de conduta para o caso concreto, atendo-se sempre à realidade social, o que nos remete à questão da equidade, prevista na redação do final da norma. E, como a equidade é posta na condição de cláusula geral, funciona como princípio de igualdade contratual, determinando que o intérprete busque encontrar e manter as partes em equilíbrio na relação obrigacional estabelecida, com o fim de alcançar uma justiça contratual. Informação e oferta No presente assunto, há ainda uma questão que envolve a oferta e a informação que é, pelo que penso, um sofisma. Pergunto: para poder cobrar basta informar previamente? Respondo a seguir. Primeiramente, examinemos o que diz a Lei sobre a oferta. No regime da Lei 8078/90 toda oferta relativa a produtos e serviços vincula o fornecedor ofertante, obrigando-o ao cumprimento do que oferecer. É o que dispõe seu artigo 30, nesses termos: "Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado." Oferecida a mensagem, fica o fornecedor a ela vinculado, podendo o consumidor exigir seu cumprimento forçado nos termos do art. 354. Além disso, o caput do artigo 31 especifica quais e como devem ser as informações veiculadas, verbis: "Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidade, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores." No entanto, e respondendo à questão acima, digo que não é verdade que basta anunciar previamente para que a oferta tenha validade jurídica. Dou um exemplo simples: é muito comum que os estabelecimentos comerciais anunciem que não fazem trocas aos sábados. Trata-se de uma oferta negativa. Todavia, de há muito que se sabe que essa oferta é abusiva, pois há consumidores que somente podem comparecer ao estabelecimento aos sábados, tornando-as ilegítimas (além de claramente antipática). Dá-se o mesmo nas ofertas casadas ilegais. Não é por que elas estejam estabelecidas clara e previamente, que têm validade. (Na sequência abordo a questão da venda casada). Operação casada Há, ainda, nesse tema, uma outra prática ilegal relativa à venda casada, prática proibida pelo CDC, nesses termos: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;" Apesar disso, consigno, antes de prosseguir, que nem toda venda casada está proibida e até ao contrário: há várias permitidas e legítimas e algumas que somente podem ser oferecidas em conjunto. Dentre elas, cito o "pacote" de viagem oferecido por operadoras e agências de viagem e o comerciante que pode se negar a vender apenas a calça do terno, por motivos óbvios. Não é também proibido fazer ofertas do tipo "compre este e ganhe aquele". O mercado cria, desenvolve e oferece produtos e serviços que somente podem ser oferecidos em conjunto. Nesses casos, não há que se falar em operação casada, pois se trata de verdadeiros pacotes legais que não podem ser separados sem que haja uma violação de sua natureza. O que não pode o fornecedor fazer é impor a aquisição conjunta de produtos e serviços que tem características próprias de vendas isoladas, ainda que o preço global seja mais barato que a aquisição individual, sem oferecer a alternativa simultânea (ainda que mais cara) de aquisição isolada. A operação casada ilegal se dá quando o vendedor exige do consumidor que quer adquirir um produto que ele, obrigatoriamente, adquira outro que não precisaria (o mesmo se dá com os serviços). Algumas dessas operações são bem conhecidas. Dentre elas estão certas imposições feitas por bancos para abrir conta ou oferecer crédito, como, por exemplo, somente dar empréstimos se o consumidor fizer algum tipo de investimento. Conclusão provisória Por tudo quanto exposto até aqui, vê-se que a imposição de pagamento ao consumidor-comprador da taxa de corretagem e também da taxa SATI: a) viola o princípio da boa-fé objetiva, que determina a realização concreta da igualdade e equilíbrio (a justiça contratual); b) estando num contrato, trata-se de cláusula abusiva, nula de pleno direito, por implicar vantagem exagerada a favor do vendedor; c) oferecida como venda casada configura prática abusiva; d) ainda que informada previamente, não tem o condão de legitimar a cobrança. Custo da atividade pode ser repassado? Mas, antes de concluir, é preciso abordar outro ponto de vista: o daqueles que argumentam que o valor da taxa de corretagem, por fazer parte do custo da atividade da construtora, pode ser repassada ao consumidor-comprador. Esse foi o entendimento adotado, por exemplo, por Juizados Especiais de São Paulo5. No entanto, penso que o argumento não se sustenta, pelo seguinte: não é verdade que todo e qualquer custo pode ser repassado ao consumidor, de forma separada. Veja-se, por exemplo, o caso de um simples vendedor comissionado de uma loja de roupas. O estabelecimento comercial não pode cobrar o preço da camisa e acrescer o valor da comissão do vendedor, apesar disso ser custo de sua atividade. É apenas um exemplo de muitos outros, uma vez que, naturalmente, toda ação empresarial envolve uma série de custos típicos de cada uma e própria atividade. Na realidade, repassar o custo da corretagem ao consumidor-comprador é o mesmo que repassar ao preço de uma camisa a comissão do vendedor, como acima anotei. Trata-se de uma simples questão de formação do preço. O empresário pode fixá-lo em quanto quiser. Para tanto, ele usará como base seu custo de produção, tais como os salários dos empregados, os impostos em geral, o custo de aluguel e dos serviços necessários para o funcionamento do estabelecimento, tais como água, energia elétrica, gás etc., os juros que ele paga ao banco, quando toma empréstimo para capital de giro ou outro interesse, o preço de aquisição dos produtos quando se tratar de revenda, o preço dos insumos quando se trata de produção própria, etc. etc. Daí, quando uma construtora fixa o valor de um imóvel, já computou todos os custos da operação o que, obviamente, incluiu o custo da taxa de corretagem pela venda a ser feita, do mesmo modo como o lojista com seus vendedores, as administradoras de consórcios com seus operadores, as agências de viagens com seus agentes, as seguradoras com seus corretores etc. E incluiu também o custo das despesas com avaliações de documentos e assessoria financeira, a chamada taxa SATI. Os vendedores dizem que esse serviço é composto da análise da documentação do imóvel e dos compradores, de pesquisa feita perante os bancos, de orientação quanto a financiamento, de assessoria para assinatura dos contratos, etc. Ora, trata-se de serviço típico da própria atividade de venda do imóvel. Ele é prestado como forma de articular e possibilitar a venda ao consumidor, por intermédio dos representantes das construtoras e/ou vendedores, que aguardam os consumidores nos estandes ou mesmo nos escritórios. Do mesmo modo que a intermediação do corretor, esse tipo de serviço (feito diretamente pelo vendedor ou por terceiro) é típico da atividade e, seguindo o mesmo padrão acima apresentado, é parte integrante do custo do negócio. Envolve também o risco natural da operação a ser feita com o consumidor que se apresenta como comprador. Compõe, portanto, o custo básico embutido no preço do imóvel. Conclusão Muito bem. Dito isso, devo dizer, pelo que penso, conforme acima adiantei, que a taxa de corretagem não pode ser repassada ao consumidor-comprador nem por cláusula contratual nem por informação feita na oferta de venda. E, decorrente disso, não pode também ser imposta via operação casada. Penso que o destino é o mesmo em relação ao serviço de assessoria técnico-imobiliária (indicada pela sigla SATI). Jurisprudência O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem decidido nesse sentido. Cito como exemplo, e por todos, trechos de uma decisão da 7ª Câmara de Direito Privado6: "(...) a Apelante não teve liberdade sobre a contratação desses serviços (SATI e corretagem), tendo aparentemente sido informada do seu pagamento apenas após o fechamento do contrato de compra e venda do imóvel. A imposição das remunerações por esses serviços configura efetivamente "venda casada" (art. 39 I CDC) e também por essa razão devem os valores de SATI e corretagem serem reembolsados." "Concebendo-se "causa" como "a função econômico-social que caracteriza o tipo [contratual]" e que, "sendo diferente para cada tipo de negócio, serve para diferenciar um tipo de outro" (Maria Celina Bodin de Moraes, "A Causa do Contrato", civilistica.com, n. 4, ano 2, 2013, p. 8), entendo que as funções atribuídas ao SATI e a corretagem não se distinguem da mera representação da vendedora, descabendo remuneração autônoma." Quanto ao SATI, a vendedora diz, em contestação, que ele abrange "análise da documentação do imóvel, dos vendedores e dos compradores", "pesquisa junto aos bancos", "assessoria na assinatura do compromisso de venda e compra" e "orientação sobre as normas do SFH." "A prestadora do SATI, porém, encontrava-se no plantão de vendas a pedido da própria vendedora, circunstância que faz presumir que os documentos do imóvel e da vendedora já haviam sido analisados e que o verdadeiro interesse é da vendedora na análise dos documentos da compradora." "A pesquisa junto aos bancos igualmente interessa somente à vendedora, à medida que se torna credora da compradora. A 'assessoria na assinatura do compromisso de venda e compra' é o próprio objeto do negócio e equivale a tautologia, pois SATI é o acrônimo de serviço de assessoria técnica-imobiliária." "As orientações sobre o SFH tampouco justificam um negócio a parte, à medida que as regras do SFH são explicadas pelo próprio agente financiador, restando dispensável o serviço." "O SATI confunde-se, assim, com o mero atendimento de representantes da vendedora à compradora, não tendo causa distinta do negócio de compra e venda, o que solapa a causa de um negócio autônomo, com preço diferente." "Sobre a corretagem, pode-se dizer o mesmo. Da sua definição legal, depreende-se que a corretagem pressupõe a aproximação de partes do negócio. No caso dos autos, a Apelante vai ao encontro da vendedora, no plantão de vendas, o que dispensa a necessidade da corretagem e afasta a justificativa de cobrança de remuneração." No referido acórdão, o Relator Desembargador Luiz Antonio Costa enumera uma série de decisões das demais Câmaras da Primeira Subseção de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que consideram que a cobrança da SATI e da taxa de corretagem é abusiva e que transcrevo a seguir: "1ª Câm.: Apelação nº 0010430-78.2013.8.26.0576, Rel. Des. Claudio Godoy, j. em 14.01.2014; 2ª Câm.: Apelação nº 0011018-70.2011.8.26.0248, Rel. Des. José Carlos Ferreira Alves, j. em 21.01.2014; 3ª Câm.: Apelação nº 0025472-74.2012.8.26.0004, Rel. Des. Beretta da Silveira, j. em 21.01.2014; 4ª Câm.: Apelação nº 0001547-42.2008.8.26.0472, Rel. Des. Fábio Quadros, j. em 12.12.2013; 6ª Câm.: Apelação nº 0025273-51.2012.8.26.0554, Rel. Des. Fortes Barbosa. j. em 16.01.2014; 7ª Câm.: Apelação nº 0191817-04.2010.8.26.0100, Rel. Des. Walter Barone, j. em 30.10.2013; 8ª Câm.: Apelação nº 0036270-90.2013.8.26.0576, Rel. Des. Salles Rossi, j. em 18.12.2013; 9ª Câm.: Apelação nº 1007562-83.2013.8.26.0100, Rel. Des. Galdino Toledo Júnior, j. em 03.12.2013; 10ª Câm.: Apelação nº 0113205-18.2011.8.26.0100, Rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. em 26.11.2013." __________ 1Há, no CDC, uma sutil exceção, prevista na segunda parte da redação do inciso I do art. 51, que dispõe: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;". Para esses casos em que o consumidor seja uma pessoa jurídica, que disponha de departamento profissional - comercial, jurídico, financeiro etc. - que permita uma verdadeira negociação com o fornecedor em termos técnicos e jurídicos, pode ser firmado um típico contrato negociado com, inclusive, limitação da responsabilidade. Não comentarei esse ponto, pois não interessa ao tema deste artigo.   2"Iniquidade" vem do latim iniquatate, e "equidade" tem origem no latim aequitate (cf. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, cit., p. 948 e 675, respectivamente). 3Agathe Schmidt, Cláusula geral da boa-fé nas relações de consumo, Revista Direito do Consumidor, 17:156. 4"Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos." 5Conf. Migalhas de 27/8/14. 6Apelação 1035551-64.2013.8.26.0100 da comarca de São Paulo. Relator Desembargador Luiz Antonio Costa, j.19-8-2014, publ. 21-8-2014, v.u.
Na semana passada, à guisa de mostrar a experiência paradoxal vivida pelas pessoas em relação à violência eu disse, dentre outras coisas, que sua transformação numa espécie de produto, criado, embalado e vendido pelo mercado, aliado a trabalhos de marketing de primeira linha fazem dela algo recebido com naturalidade. E que, apresentada numa estética que a banaliza, gera uma espécie de entorpecimento, fazendo com que a morte não natural, causada por agressões de todo tipo, incluindo as guerras, não seja mais vista em todo seu drama. As pessoas acabam recebendo a informação sobre a violência e/ou assistindo-a em imagens, como se fosse um filme ou uma encenação ou, então, um simples produto, que pode ser consumido. Citei o entretenimento das lutas de vale-tudo, realmente violentas, e seu sistema de promoções com fotos de rostos retorcidos por socos; sangue escorrendo pelos narizes, bocas e bochechas; estrangulamentos, chutes e joelhadas; socos violentos diretos na cara etc. numa espécie de produto cuja violência explícita parece atrair o público alvo. Mas, no cinema, isso pode ser mostrado explicitamente com o argumento de que se trata de ficção. E, de fato, quando lá aparecem socos, pontapés, vítimas esfaqueadas, esquartejadas etc. é tudo truque. Não só em filmes como o do Diretor Tarantino, mas numa série de outros que explícita ou implicitamente vendem a violência como diversão. Morte, sangue, vísceras e muita crueldade fazem um enorme sucesso junto ao público. Sei que a violência, de um modo ou de outro, sempre esteve presente no cinema e na tevê, inclusive, nos desenhos animados, mas isso apenas confirma o processo de naturalização que foi se desenvolvendo. É como se a violência, via cinema, sofresse já um banho civilizatório. No mundo real, alguns atos de violência contra a pessoa chamam mais a atenção do que outros. Dizimar vilas matando homens, mulheres e crianças, mediante bombas lançadas de aviões ultra modernos com imagens transmitidas via tevê e/ou web passou a ser algo rotineiro. As imagens, às vezes, são muito parecidas com as de um verdadeiro vídeo game. De outro lado, usando esse mesmo modo de mostrar ao mundo a morte, recentemente, o autointitulado Estado Islâmico horrorizou a todos mostrando a execução por decapitação de jornalistas ocidentais. São tantas as cenas de violência que realmente as pessoas ficam atordoadas. Lembro que, no ocidente, em alguns lugares, a morte recebeu, de fato, essa embalagem civilizatória, se é que se pode dar esse nome a certas atrocidades cometidas em nome da lei. Refiro a execução de condenados à morte em alguns Estados norte-americanos. No mês de agosto passado, Joseph Wood, condenado por matar em 1989 sua ex-namorada e o pai dela, agonizou durante quase duas horas após receber uma injeção letal durante uma execução no Arizona, sudoeste dos Estados Unidos1. No caso da execução naquele Estado e em outros por lá, a morte "benévola" é planejada e executada mediante a aplicação de uma injeção contendo uma mistura de duas drogas: midazolam combinada com hidromorfona, um derivado da morfina. Mas, no caso referido, o coquetel falhou: Joseph Wood lutou para respirar por cerca de uma hora e quarenta minutos antes de ser declarado morto. A execução de sua pena de morte nos EUA não foi feita em praça pública, mas pôde ser assistida por pessoas convidadas. E, na sala, havia jornalistas que se horrorizaram com a crueldade da medida, denunciando-a rapidamente, gerando reação dos que são contra a pena de morte. Com isso, acabou vindo a público o trecho do voto dissidente do juiz que havia sido contra a execução via injeção com medicamentos: Alex Kozinski, que é Presidente do Tribunal de Recursos da Costa Oeste dos EUA, disse que usar drogas para matar é um grande erro, porque elas foram desenvolvidas para curar2. Para executar pessoas, os estados que mantêm a pena de morte deveriam usar instrumentos feitos especificamente para matar. Ironicamente, para este momento da história, o magistrado havia sugerido a guilhotina como mais eficaz e menos cruel: "A guilhotina é, provavelmente, o melhor instrumento, embora pareça inconsistente com o etos nacional"; "Se querem matar, devem abandonar esse caminho equivocado (do uso de drogas) e retornar a métodos de execução mais primitivos, mas infalíveis3", que não causariam sofrimento ao executado. "O uso de drogas, criadas para ajudar indivíduos com necessidades médicas, é um esforço equivocado para mascarar a brutalidade das execuções, para que pareçam um acontecimento tranquilo e sereno - como algo que qualquer um de nós pode experimentar em nossos momentos finais", escreveu Kozinski4. Mas não há nada que transforme uma execução em um ato tranquilo e sereno, ele diz. "Nem poderia haver. Assim, se nós, como uma sociedade, queremos realizar execuções, deveríamos estar prontos para enfrentar o fato de que o estado está cometendo uma brutalidade horrenda em nosso nome"5. É isso, então: a violência relativa ao ser humano acabou ganhando contornos civilizatórios e por causa de sua multiplicação e banalização, tornou-se um fato comum que, talvez, já não espante tanto, ainda que, de quando em vez, seja mostrada com algum ou muito escândalo pela mídia; em contrapartida, foi transformada em produto de consumo, vendida e comprada como um passa tempo, um momento de lazer. __________ 1Colhido em Folha de S.Paulo. 2Clique aqui. 3Conf. Mesma matéria da nota anterior 4Idem, nota anterior. 5Mesma nota.
Uma das características mais marcantes da sociedade capitalista contemporânea é o de sua capacidade holística. A partir de segunda metade do século XX, com as vitórias sucessivas contra os regimes comunistas e o surgimento do modelo de imposição mundializante conhecido como "globalização", aos poucos, o regime foi incorporando uma série de práticas e vivências que subsistiam à margem do sistema ou existiam e eram aceitos, mas ainda não estavam incorporados ou simplesmente existiam e eram ignorados. Cito, como exemplo, vários produtos que se tornaram de consumo regulares (alguns regulamentados, outros não) como a venda de sangue, a barriga de aluguel, os presídios privados, as doações às igrejas via cartão de crédito, etc. Há, pois, uma determinação capitalista de controle e de ingerência em praticamente toda a vida social e também, digamos assim, uma estética que acaba apresentando como comum e até certo ponto banal, algo que já foi proibido e/ou escondido. Esse aspecto formal e estilístico é significativo no ato de incorporação, e nesta se podem destacar as técnicas de controle estruturadas em métodos próprios, gerando a ideia de que tudo se passa com muita naturalidade, desde que visto como produto. Dou um exemplo simples: a pornografia vendida nos canais pagos como um mero programa de lazer, simples e objetivo: trata-se da mais profunda e deslavada pornografia que se produz pelo mundo afora, vendida como um simples produto de consumo: o que até meados do século XX era produzido e visto mais ou menos às escondidas ainda que não fosse proibido em todos os lugares, agora é abertamente mostrado (inclusive em sites livres na web) como mero serviço de entretenimento. Todos esses temas estimulam a pesquisa, o que, claro, envolve vários setores do conhecimento, tais como o Direito, a Filosofia, a Psicologia e a Psicanálise, a Sociologia, etc. Para que possamos fazer hoje uma reflexão, proponho que se pense num elemento instigante e incorporado: a violência, ela que, paradoxalmente, é temida e adorada. Inicio, pois, com seu problema comunicacional e psicológico: a violência está colocada na sociedade contemporânea como um paradoxo. Não pretendo desenvolver em larga escala o conceito de paradoxo, mas fico com a seguinte definição: trata-se de "uma contradição que resulta de uma dedução correta a partir de premissas coerentes"1. O paradoxo pode também ser apresentado como uma espécie de armadilha que aprisiona o interlocutor. No livro que acabei de citar, há o exemplo de uma placa de trânsito na estrada na qual está escrito: "ignore este sinal". Para obedecer à instrução de ignorar o sinal é, preciso, antes, prestar atenção nele: ou seja, só se pode ignorá-lo não o ignorando2 ; é o mesmo que escrever: "não leia esta frase". Pode haver também comunicação ativa paradoxal: alguém diz: "Eu estou mentindo". Daí que a pessoa somente estará mentindo se estiver dizendo a verdade3. Alguns paradoxos são pragmáticos e surgem num dilema sem alternativa, como o do caso da "desesperada situação do homem encurralado no sexto andar de um edifício em chamas e a quem só resta a alternativa de morrer carbonizado ou saltar por uma janela"4. Para terminar, eu acrescento o paradoxo do comando e da obediência: o pai, no exercício de seu poder sobre o filho, diz: "Vá! Seja livre!" ou, então, "Vá. Siga minhas orientações. Faça o que você quiser"; situação na qual o filho para fazer o que quiser sempre fará o que o pai determinou. Pois bem, a violência está posta na sociedade contemporânea como um produto consumido até com entusiasmo e admiração e, simultaneamente, como um fenômeno a ser evitado e que não só causa medo, como várias doenças de ordem psicológica. Eis, então, o ponto para reflexão: ela, a violência, tem de ser estudada, compreendida e combatida como um paradoxo pragmático real e perigoso. E, de fato, o mundo atual vive um dos seus momentos mais violentos em todos os seus sentidos, nas guerras em geral, nas guerras urbanas, na agressividade vivida de pessoa a pessoa, etc. Mas, ao mesmo tempo, ela é apresentada como um elemento natural no meio social, numa banalização que gera uma espécie de ocultação: pessoas morando nas ruas, crianças passando fome e mendigando, as condições de vida precárias e miseráveis de milhares e milhões de pessoas etc. não são necessariamente enquadradas como algo violento; esses fatos, às vezes, são apresentados apenas como algo inevitável. Ademais, o fenômeno humano da violência, ele próprio, tornou-se também um produto de consumo apresentado, oferecido e, dependendo do caso, vendido com o apoio de muito marketing. Vejamos os meios de comunicação: espremidos entre a violência cotidiana mundial e a publicidade comercial que lhes mantém, os âncoras, apresentadores e repórteres tornam-se muitas vezes meros repassadores de dados e sem emoção5. Dou um único exemplo, dentre tantos: criminosos invadiram uma chácara, no último dia 2 de setembro, renderam uma família, espancaram um caseiro de 79 anos e, um deles, não satisfeito, empunhando um facão, cortou um pedaço da língua do idoso! O crime foi cometido na cidade de Águas Lindas, Estado de Goiás6. Eu ouvi a história numa rádio: o âncora do programa passou a palavra para um repórter que narrou a ocorrência e devolveu a palavra. Sem qualquer pausa ou comentário a apresentadora disse: "Vejamos agora como fica o tempo nesse fim de semana" e passou para um representante de um instituto que daria notícias sobre o clima! Talvez a quantidade ou, quem sabe, não só a quantidade, mas a repetição diuturna e constante de notícias desse tipo acabem por entorpecer não só os jornalistas como a todos, de tal modo, que se estabelece uma indiferença diante do fato estarrecedor e o dado surge como um outro qualquer. Por outro lado, alguns crimes são transformados em espetáculo: os atos de violência não só ganham as manchetes de jornais, revistas e destaques em programas de rádio tevê, como são martelados insistentemente e de forma marcante. São, como regra, os que envolvem pessoas conhecidas ou refletem algum acontecimento incomum. Mas, falemos, agora, um pouco mais do mercado. Pensemos nos vídeo games. Nem preciso discorrer muito sobre os jogos violentos vendidos e usados por milhões de jovens e adultos no mundo inteiro, como um produto altamente rentável. Mas, numa busca na web encontrei um site que apresenta os "10 jogos mais violentos de todos os tempos"7. Lá aparecem os tais 10 vencedores de violência com comentários interessantes do articulista, nesses termos: - do 10º lugar, Carmageddon: "Checkpoints, danos aos competidores, pedestres atropelados ou objetos bônus. (Adorava passar por cima de um monte de gente e ganhar altos bonus.. ehehhe)"; - do 9º, Soldier of fortune: "O melhor de tudo, você pode atirar nos bandidos e arrancar braços, pernas e até cabeça, tudo com muito sangue. (ótimo para jogar em rede)"; - do 7º, Gears of war: "Muito bom serrar os outros ao meio." Em relação aos entretenimentos relacionados às lutas, o produto sempre teve boa audiência, desde o boxe até as chamadas lutas livres, tais como UFC, MMA, etc. Os atos de agressividade e violência entre os humanos nessa área são muito bem vendidos e edulcorados com um bom marketing e adquiridos por consumidores, que pagam bons preços para assistir às pelejas. (Há também as chamadas lutas livres "falsas", como o WWE, nas quais os contendores fingem que acertam o oponente e que têm boa popularidade nos EUA). Em relação às lutas realmente violentas, há, inclusive, um elemento de marketing bastante esquisito: são fotos de rostos retorcidos por socos; sangue escorrendo pelos narizes, bocas e bochechas; estrangulamentos, chutes e joelhadas; socos violentos diretos na cara etc. numa espécie de produto cuja violência explícita parece atrair o público alvo. Essa transformação da violência numa espécie de produto, criado, embalado e vendido pelo mercado, aliado a trabalhos de marketing de primeira linha fazem da violência algo recebido com naturalidade e apresentado numa estética que a banaliza e gera uma espécie de entorpecimento, fazendo com que a agressão contra a pessoa e a morte não natural, causada por violências de todo tipo, incluindo as guerras, não seja mais vista em todo seu drama. As pessoas acabam recebendo a informação sobre a violência e/ou assistindo-a em imagens, como se fosse um filme ou uma encenação ou, então, um simples produto, que pode ser consumido. *** Continuo da próxima semana: 2ª parte - a violência civilizada ou institucionalizada. __________ 1Watzlawick, Beavin e Jackson. Pragmática da comunicação humana. São Paulo: Cultrix, 6ª.ed. 1991, pág. 169. Aliás, sobre essa questão do paradoxo e demais no âmbito da comunicação humana, indico este excelente livro. 2No livro citado, pag. 204. 3Idem, pag. 174. 4Idem, p.195. 5O jornalista Bob Fernandes mostrou que no Brasil em 30 anos foram cometidos 1 milhão e 200 mil homicídios. 6Cito por todos. 7Clique aqui.
Estacionar em local proibido, em fila dupla, descumprir regras mínimas de civilidade no trânsito deve, naturalmente, sofrer a devida sanção legal. Ninguém discorda. Mas, é necessário cumprir estritamente o comando normativo. Meu amigo Outrem Ego fez essa pergunta novamente: "Os agentes públicos estão preparados para cumprir a lei? Ou, a perspectiva é outra: a da arrecadação?" A CET - Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, em termos de eficiência como agente arrecadador, está de parabéns, pois é muito competente para lançar multas. Na sociedade capitalista, como bem sabe, as empresas são avaliadas pelo desempenho, por sua capacidade de produção, distribuição, assim como por suas vendas, receitas e lucratividade. Ou seja, a empresa que dá certo administra bem seu negócio, atingindo seus objetivos de forma eficiente e com alto retorno. Outra forma de avaliar empresas diz respeito a seus empregados e colaboradores. Se eles conhecem o produto e o serviço, se respeitam seus clientes, atendendo-os adequadamente, com respeito e segundo as regras estabelecidas, então, a empresa merece nota 10. Bem, se a CET estiver focada na arrecadação está atingindo seus objetivos, mas e o cumprimento da lei e a função social da atividade pública como andam? Num antigo artigo meu (publicado nesta coluna em 12/4/2012) narrei dois casos absurdos envolvendo funcionários dessa empresa pública. Veja agora mais esse: o filho de meu amigo citado, cursa o ensino médio numa grande escola no bairro de Pinheiros, na capital de São Paulo. Na semana passada, como faz todo dia, Bete, sua mulher, foi buscar o filho na escola. Como são dezenas de crianças que saem ao mesmo tempo por um único local e como não há lugar para estacionamento de veículos, forma-se na porta da escola uma fila de carros que flui devagar, na medida em que os jovens vão saindo e entrando nos veículos de seus pais ou condutores. Repito: trata-se de uma escola repleta de estudantes. O saída é por volta das 13h10. Obviamente, os pais vão chegando um pouco antes e vão se enfileirando. E assim que as crianças e adolescentes saem, a fila anda. Muito bem, na semana passada, um funcionário dessa eficiente empresa, a CET, mais conhecido como marronzinho, bateu no vidro de um a um dos veículos e foi dizendo que no dia seguinte eles seriam multados. Veja o diálogo com a mulher de meu amigo: - A senhora não pode ficar aqui. - Por quê? - perguntou ela. - Porque é proibido estacionar. - Mas, eu estou esperando meu filho sair, como, aliás, todos os demais que aqui estão. - A que horas ele sai? - Às 13h10. - Agora são 13h. A senhora saia e volte em 10 minutos. - Mas, como? Se eu tentar dar a volta no quarteirão, vai demorar mais de 10 minutos. E se todos saírem da fila para darem a volta no quarteirão não só vai demorar mais de 10 minutos, como vai entupir todo o tráfego local. - Não me interessa. É o último aviso. Amanhã virei multar todo mundo. O que pretende o marronzinho? Que dezenas de veículos fiquem rodando em volta do quarteirão, dificultando ainda mais a vida dos demais veículos que passam por ali? Mas, não é função da CET ajudar o fluxo de tráfego ao invés de piorá-lo? Pequenos poderes, grandes abusos. Uma das piores coisas que existe na relação do Estado com a sociedade é essa de funcionários investidos de pequenos poderes, mas sem o preparo adequado para exercê-los. Os fatos são esses. A lei, eu coloco a seguir, para que possamos refletir a respeito e de forma jurídica. Antes de prosseguir, repito: é uma escola! Não é uma boate ou casa noturna. É uma escola! Na via em que é proibido estacionar, a proibição é esta: estacionar. Parar pode. Estar parado não é estar estacionado. O marronzinho devia saber disso. E se, por conjuntura momentânea (como a saída simultânea dos alunos) muitos carros param ao mesmo tempo, isso não muda o fato: eles estão parados e não estacionados. Sabe-se que a norma penal (no caso, a multa de trânsito) só pode ser interpretada restritivamente. Agora, o que diz a lei. Dispõe o artigo 47 do Código de Trânsito Brasileiro, verbis: "Quando proibido o estacionamento na via, a parada deverá restringir-se ao tempo indispensável para embarque ou desembarque de passageiros, desde que não interrompa ou perturbe o fluxo de veículos ou a locomoção de pedestres." O legislador visou o condutor individual. A hipótese não foi pensada para as portas de escola, onde, por causa do fluxo normal de saída de estudantes e chegada de veículos o "tempo indispensável" não é o mesmo que o de apenas uma pessoa embarcando ou desembarcando. Basta um pouco de bom senso para sabê-lo. Bom senso... E, veja só, meu caro leitor. Numa rápida pesquisa na web, encontrei a opinião de um agente de trânsito do Estado de Minas Gerais a respeito do tema. Trata-se do Sargento Carvalho, do Batalhão de Polícia de Trânsito de Belo Horizonte. Ele diz, com muita propriedade, que a "parada tem que estar atrelada a embarque/desembarque", mas a lei refere pelo "tempo necessário". Ele ressalta que quando fala em "tempo estritamente necessário", a lei não define que tempo é esse, mas é preciso haver bom senso"1. Repito, então: bom senso, algo que talvez exista em Belo Horizonte, por que em São Paulo, se depender do funcionário da CET citado será caso de puro e simples abuso de poder. Além, obviamente, do desvio de finalidade das funções da empresa, que deveria cuidar de auxiliar o funcionamento do fluxo de veículos e não atrapalhá-lo! __________ 1In clique aqui.
quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Leniência, conivência e racismo

Martin Luther King disse: "O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons". Uma das características de algumas sociedades contemporâneas é o forte individualismo, centrado numa espécie de isolacionismo que, no limite, faz a pessoa viver na solidão ou, o que é mais comum, faz com que ela só se importe com o que lhe interessa e/ou com o que interessa ao seu restrito grupo social de parentes e amigos. Muitos agem como se nem vivessem em sociedade. Como se o que os outros fazem ou sofrem não pudessem atingi-los. Peguemos a falta de educação reinante, que, aliás, como vírus se espalhou. Meu amigo Outrem Ego vive reclamando que no prédio em que mora, várias vezes, entra no elevador, cumprimenta quem lá está, mas a pessoa não devolve o cumprimento. Ele diz: "Não é possível que eu seja tão azarado que só no meu prédio os moradores sejam mal-educados". De fato, penso que ele está certo. Não é só no edifício onde ele mora que a má educação grassa; ela está em toda parte. Meu amigo dá, ainda, outro exemplo: "Eu levo meu filho e vou buscá-lo na escola três vezes por semana. Encontro sempre os mesmos pais e mães, vejo os mesmos rostos. Com o passar do tempo, é natural que nós nos cumprimentos. Apenas um "bom dia" ou uma "boa tarde" e quem sabe um "até logo". Não é preciso mais que isso, para demonstrar educação. Mas, é incrível! Há pessoas que, por mais que cruzemos nunca nos cumprimentam. Muitas vezes meu "bom dia" ou "boa tarde" soam de forma estranha viajando ao léu, sem nenhuma perspectiva de recepção ou retorno. Será que em todo lugar é assim?". Não, não é meu caro amigo. Em muitas sociedades as pessoas são educadas. Mas, aproveito essa reclamação dele para propor uma reflexão sobre coisas ruins que habitam nossa sociedade. Algo se perdeu, exigindo um resgate ou, quem sabe, nem tenham sido elevadas à categoria civilizatória. É uma pena, e, talvez, um sintoma de algo mais grave. Esse isolacionismo não é inconsequente. Ainda que as pessoas não percebam, de um jeito ou de outro, ele acaba se voltando contra a sociedade como um todo. No Brasil, isso está em muitos lugares. Está por exemplo, na leniência que se tem para com os ladrões, corruptos e demais salafrários caras de pau, que não têm vergonha de mostrarem o rosto publicamente. Parece que o padrão do "não é comigo" está muito enraizado entre nós. Vejamos um episódio na área específica do consumidor. Eu já narrei mais de um caso aqui. Vou contar outro, vivido exatamente por meu amigo há algum tempo. Num sábado, ele foi a uma loja de calçados num Shopping Center, comprar um par de tênis para seu filho, mas não serviu. Ficou pequeno e ele deixou a embalagem no porta-malas do carro. No sábado seguinte, voltou à loja para fazer a troca por um de número maior. Tão logo colocou os pés dentro do espaço da loja, a vendedora disse que ele nem deveria estar ali. Vamos ouvi-lo: "Quando entrei na loja, a vendedora usou um raciocínio lógico: olhou para mim e viu que eu estava carregando uma sacola com a marca da loja. Pensou: 'ele carrega uma sacola da loja, acaba de entrar e vem na minha direção. Logo, vai querer fazer uma troca'. Assim, veio em minha direção e, com uma certa grosseria, disse: 'Você não viu o cartaz? Hoje é sábado e não fazemos trocas!'. De fato, havia uma cartaz na parede que estabelecia expressamente o abuso. Eu dei de ombros e respondi que ela era uma quase boa adivinha. Havia acertado que eu queria fazer troca, mas disse: 'eu farei sim a troca, pois o único dia que tenho para vir aqui é sábado'". Meu amigo, sempre bem informado de seus direitos, pediu que a vendedora chamasse a gerente, pois ele iria explicar para ela que o cartaz implicava em cláusula contratual abusiva e nula, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor. Em seguida, um vendedor surgiu e começou a bater boca com ele, que muito calmo, insistiu em que queria apenas um par de tênis de número maior. A discussão prosseguiu por alguns minutos, o que gerou um certo tumulto: outros clientes começaram a reclamar. E, você, leitor, sabe com quem? Com meu amigo Outrem Ego. Isso! Dois outros clientes que estavam na loja esperando atendimento começaram a xingá-lo. Porém, ele não desistiu e apesar de estarem todos contra ele, depois de mais alguns minutos, conseguiu a troca. Mais uma vez, o que se percebe, é que os outros dois clientes da loja pensaram apenas em si mesmo e , aliás, bastante enganados. Pensaram eles que a luta de meu amigo por seu direito seria apenas dele, quando na verdade ele lutava pelo direito de todos. Agora, tratarei de uma outra mazela muito praticada numa conhecida atividade de consumo: o das diversões públicas de jogos de futebol. Cuido do racismo explícito verificado no jogo do último dia 28 de agosto entre o Santos Futebol Clube e o Grêmio de Porto Alegre. Como se sabe, as câmeras da tevê captaram a imagem de uma torcedora, identificada como Patrícia Moreira, em típica atitude racista praticada contra o goleiro Aranha, do time santista. Naquelas imagens, um fato chamou minha atenção, além, claro, da manifestação odiosa da torcedora: o da outra torcedora e outro torcedor que estavam ao lado dela e também dos demais que lá estavam, mas que a imagem não captou por causa do enquadramento (aparece apenas o braço de alguém bem ao lado. Mas, havia, naturalmente, outros ao redor). A racista gritava: "Macaco!". A seu lado, obviamente, os outros torcedores ouviram tudo. Mas, não se espantavam nem se escandalizavam. Concordavam, então, com a atitude racista de Patrícia? Era sinal de sua aquiescência? E os demais que estavam ao lado, não se chocaram com aquelas palavras? Conivência? Fruto desse terrível isolacionismo? O estigma do não é comigo é uma das maiores mazelas das sociedades. E trata-se de uma ilusão. Ninguém vive numa ilha. Nem os que se escondem por detrás de altos muros, pois mais cedo ou mais tarde é preciso sair da muralha. E essas muralhas do comportamento não protegem ninguém de nada. Ver um crime ser praticado e nada dizer ou fazer é omissão. Para que a sociedade evolua e se torne realmente civilizada é necessário que todos assumam seu papel como agentes vigilantes não só da melhor moralidade e atos de humanidade como dos direitos e garantias estabelecidos. E alguns dos delitos praticados, como esse de racismo, mostra a tranquilidade de quem os pratica a céu aberto, à vista de todos. Num estádio de futebol repleto de torcedores a omissão é enorme! Esse silêncio é o que mata! Como diria meu amigo Outrem Ego: "Não adianta dizer: 'não é comigo'. É sim!"
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) está em vigor há mais de 23 anos! Não é pouca coisa, mesmo levando-se em consideração nossa cultura da "lei que pega e que não pega". Até porque, na hipótese, trata-se de lei que pegou. A lei é mesmo de proteção, mas não implica nenhum prejuízo aos fornecedores. Muito ao contrário, como tenho insistido aqui neste espaço: o cumprimento de suas regras faz bem para os negócios; gera melhores produtos e serviços e novos clientes; estes se tornam fieis; enfim á favorável ao desenvolvimento das empresas e do mercado de consumo. O CDC prega a harmonização das relações entre fornecedores e consumidores. De todo modo, há algumas normas que diferem daquelas do direito privado tradicional. E, tendo em vista que em alguns casos, apesar da passagem do tempo, isso ainda não é claro, eu volto ao assunto. Especificamente o da noção não prevista na norma consumerista do famoso brocardo latino pacta sunt servanda. Neste tema, um dos problemas está atrelado àquilo que chamo de força da memória: grande parte dos operadores do direito que militam atualmente foram formados na tradição privatista larga e profundamente estudada a partir do Código Civil de 1916 e também das demais normas, penais e processuais. Quando se dirigem ao contrato para fazer um exame de suas cláusulas os elementos mnemônicos se impõem e os fazem lê-las como se fossem um texto escrito e firmado aos moldes do regime privatista. E, pior: o que é uma virtude no CDC, sua generalidade e seu modo normativo principiológico, acaba sendo um entrave para o operador jurídico formado no antigo modelo privado. A simples leitura do texto da lei consumerista não é suficiente para sua compreensão. Uma retrospectiva histórica permite que se entendam as modificações operadas nos contratos, que acabaram desembocando naqueles típicos de consumo. Vejamos. A lei 8078/90 entrou em vigor em 11-03-1991. O vetusto Código Civil entrou em vigor em 1917, fundado na tradição do direito civil europeu do século anterior. Pensemos num ponto de realce importante: em relação ao direito civil, pressupõe-se uma série de condições para contratar, que não vigem para relações de consumo. No entanto, durante praticamente todo o século XX no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para resolver os problemas que iam surgindo e, por isso, o fizemos de forma equivocada. Esses equívocos remanesceram na nossa formação jurídica, ficaram na nossa memória influindo na maneira como nós enxergamos as regras de consumo, e, atualmente, temos alguma dificuldade para interpretar e compreender o texto da lei que é bastante enxuto, curto, que diz respeito a um novo corte feito no sistema jurídico, e que regula especificamente as relações que envolvem os consumidores e os fornecedores. O CDC, apesar de atrasado no tempo, acabou tendo resultados altamente positivos, porque o legislador, isto é, aqueles que pensaram na sua elaboração, trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Olhemos, então, um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E esta sociedade tem uma origem bastante remota. Para o que aqui interessa, parto do período pós-Revolução Industrial. Sinteticamente, se pode dizer que, com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para mais pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização de produtos e serviços. Essa produção homogeneizada, "standartizada", em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção deu certo e foi crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial teve um incremento, e na Segunda Guerra Mundial se solidificou. A partir da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações, a melhoria dos transportes etc., o modelo se fortaleceu ainda mais e cresceu em níveis extraordinários. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passou a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos se pudesse considerar a noção de globalização. Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo, destaco o ponto em exame: a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e se a reproduz milhares, milhões de vezes. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta certa quantia em dinheiro na criação de um único modelo, e depois o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas. Esse modelo de produção industrial pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele que produz um produto ou um serviço massificado planeja um tipo de contrato que veio a ser chamado pela Lei n. 8.078 de contrato de adesão. Aliás, lembro que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor, no seu art. 54. E por que o contrato é de adesão? Por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços, o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. Este é, pois, o modo de produção contemporâneo. E eis o problema: apesar disso, nós aplicamos, no caso brasileiro, até 10 de março de 1991, o Código Civil às relações jurídicas de consumo. Isto gerou problemas sérios para a compreensão da própria sociedade. Passamos a interpretar as relações jurídicas de consumo e os contratos com base na lei civil, inadequada para tanto, e como isso se deu até a penúltima década do século XX, ainda temos dificuldades em entender o CDC em todos os seus aspectos. E, na questão contratual, nossa memória privatista impõe que, ao lermos o contrato, pensemos pacta sunt servanda, posto que no direito civil essa é uma das características contratuais, com fundamento na autonomia da vontade. Ora, sabe-se que nas relações contratuais no direito civil, pressupõe-se que aqueles que querem contratar sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo num pedaço de papel. São proposições organizadas em forma de cláusulas que, impressas num pedaço de papel, fazem surgir o contrato escrito. É a tentativa de delineamento objetivo de uma vontade, portanto, elemento subjetivo. É a escrita posta no contrato, o que o direito civil tradicional pretende controlar. Então, quando nos referimos às relações contratuais privatistas, estamos fazendo uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que devem representar a vontade das partes que lá estavam, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E, uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, o pacto deve ser respeitado. Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é equivocado, porque o consumidor não senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC passou a controlar, e de forma inteligente. O problema é que a aplicação da lei civil, assim como a memória dos operadores do direito, atrapalha a interpretação. Então esta era, foi e ainda é uma situação que acabou afetando o entendimento da lei. Se não atentarmos para esses pontos históricos do fundamento da sociedade contemporânea, ainda teremos muita dificuldade de interpretar aquilo que a lei 8.078/90 regrou especificamente.
O consumidor entra numa loja e compra uma camisa que viu na vitrine. Na hora de pagar, é colocado um acréscimo no preço. Ele pergunta do que se trata e a vendedora diz: "É do ar condicionado que você respirou e curtiu". Parece bobagem, mas já está em vigor num aeroporto da Venezuela1 e, do jeito que as coisas andam, pode desembarcar (desculpe o trocadilho) por aqui. O consumidor irá pagar não só pelo ar condicionado, mas também, quem sabe, pelos direitos autorais pagos ao Ecad pela música ambiente (o mau gosto de algumas deveria gerar descontos ao consumidor, que é obrigado a ouvi-las.), pela folha de papel da nota fiscal, pela tinta da caneta da vendedora, pelo aluguel da linha usada no computador, ou um adicional pelo aumento do IPTU, etc. E, eu não estou exagerando: sacolas plásticas nos supermercados já são cobradas (sei que há ação judicial em curso discutindo o tema); nas viagens de aviões há companhias áereas cobrando até água. A novidade da semana passada é que o plenário do Senado Federal aprovou, no último dia 6, projeto que autoriza o comerciante a cobrar preços distintos para o pagamento realizado com dinheiro ou com cartão de crédito. O projeto de Decreto Legislativo (O PDS 31/2013) susta os efeitos da resolução 34 de 5/6/1989 do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, que proíbe ao comerciante estabelecer diferença de preço de venda quando o pagamento ocorra por meio de cartão de crédito. A pretensão dos Senhores Senadores é permitir essa antiga prática e a matéria segue agora para análise da Câmara. O incrível é que a resolução é tão antiga, que foi baixada antes mesmo da aprovação do Código de Defesa do Consumidor, que é de 11/9/1990 (entrou em vigor em 11/3/1991). São 25 anos de vigência, sem que nenhum comerciante tenha quebrado por causa disso! Meu amigo Outrem Ego estava em pânico com a notícia. Ele disse "Há novos perigos rondando o ar. Se a moda pega, em breve, os comerciantes cobrarão preço diferenciado para pagamento com cheques, ou melhor, cheque do Bradesco com um percentual de acréscimo, do Itaú com outro, do Banco do Brasil com outro e assim por diante. Nos restaurantes, o uso dos talheres será acrescido à conta e também o serviço de pratos e copos. A ida ao banheiro será caríssima, assim como o ato de lavar as mãos (afinal, a água tem seu preço e é cada vez mais escassa). Quem sabe fique romântico os restaurantes à luz de velas, pois a energía elétrica (cobrada) é mais cara que as velas. ou não?" Neste ponto, ele ficou em dúvida sobre o que é mais caro: energia elétrica ou velas? Mas, prosseguiu: "Enfim, o céu é o limite (se bem que é bem provável que fique mais caro sentar na janela do avião, pois de lá dá para apreciar a paisagem.)". Dito isso, aproveito o tema de hoje para explicar porque não se pode exigir preço diferenciado para pagamento com cartão de crédito. Risco e custo da atividade Pensemos, então, nos preços. No Brasil, a maior parte deles é livre e, no comércio, o empresário pode fixá-los em quanto quiser. Para tanto, ele usará como base seu custo de produção, o que inclui os salários dos empregados, os impostos, em geral, o custo de aluguel e dos serviços necessários para o funcionamento do estabelecimento, tais como água, energia elétrica, gás etc., os juros que ele paga ao banco, quando toma empréstimo para capital de giro ou outro interesse, o preço de aquisição dos produtos quando se tratar de revenda, o preço dos insumos quando se trata de produção própria, etc. etc. Preço é sempre à vista do comprador Embora atualmente a inflação não seja mais tão grave como foi outrora, o consumidor brasileiro tem uma experiência bastante negativa com os aumentos em geral, fruto do longo processo inflacionário que assolou o país. Ainda existe uma memória do aumento constante de preços. Mas, uma vez fixado o preço, este, naturalmente, tem vigência no tempo e vale para o ato da oferta e apresentação e para o momento presente em que se concretiza a venda e compra. Assim, uma vez fixados unilateralmente pelo fornecedor, eles somente existem à vista do comprador. Não se pode confundir preço com forma de pagamento. Este pode ser a prazo, com 30, 60, 90 dias ou mais; em duas ou três parcelas iguais, financiado por instituição financeira; pode ser feito com a entrega de cheques pré-datados; mediante carnê; com cartão de crédito, de débito ou qualquer outro meio de pagamento. A forma pode variar, o preço não. Este tem de ser o mesmo que foi estipulado à vista da compra. Não existe preço a prazo; apenas pagamento a prazo. Se o preço à vista é R$100,00 e o pagamento é a prazo, só é possível cobrar juros em operação sustentada por instituições financeiras (são as únicas autorizadas a cobrarem juros remuneratórios). Se o fornecedor cobra R$ 100,00 à vista e recebe cheque pré-datado para 60 dias, não pode dizer que para 60 dias o preço é R$ 120,00. Veja-se nesse exemplo que não foi o preço que variou, uma vez que o bem não tem dois preços no ato da compra. O que o fornecedor fez foi aumentar o preço acrescentando um percentual. Naturalmente, no desconto para pagamento à vista, ocorre o mesmo. Altera-se apenas a base e o percentual incidente: R$120,00 para pagamento com cheque pré para 60 dias e R$100,00 para pagamento no ato. É que, se for dado desconto para pagamento à vista, então o preço só pode ser o resultado líquido: eis que o preço é sempre algo do ato presente da oferta e apresentação do produto ou serviço. Logo, no pagamento parcelado aparecerá o acréscimo. Com a forma de pagamento do cartão de crédito ou débito se dá exatamente o mesmo. Anoto que são conhecidos os argumentos daqueles que querem cobrar preço diferenciado. O principal é o do custo para o comerciante, em função dos valores cobrados pelas administradoras de cartões e pelos bancos. Mas, como demonstrado, trata-se tão somente de custo da atividade. Por fim, dou um outro exemplo, visando deixar esse assunto plenamente esclarecido. Pensemos no escambo (que aqui defino como troca de um produto por outro produto). Suponhamos que um consumidor pretenda comprar uma cadeira que lhe falta para um jantar que irá dar em casa. Vai à loja de produtos usados e encontra exatamente a cadeira que precisa. Daí pergunta o preço para o vendedor. "São R$ 100,00", responde este. O consumidor, então, diz que não tem dinheiro para pagar a cadeira, mas explica que o preço é exatamente o que vale o paletó que está usando. Pergunta se o lojista aceita a troca. Ele aceita. O negócio está fechado. Preço adequado: R$ 100,00 da cadeira, igual aos R$ 100,00 do paletó. Forma de pagamento: escambo. Mas, antes de sair do estabelecimento, o consumidor propõe: "Olha, eu gostaria de usar o paletó uma última vez no jantar de amanhã, sábado, e preciso da cadeira. Posso levar a cadeira e trazer o paletó segunda-feira?". O vendedor concorda. Logo, a compra foi feita, mas o pagamento (entrega do paletó) foi postergado para três dias depois. Isso equivale a dizer que o preço foi fixado à vista e a forma de pagamento a prazo. O preço não podia mesmo variar. O fato é que, quando o fornecedor diz que o preço varia, não é este que aumenta: o acréscimo é simples tentativa de recebimento de remuneração sobre a quantia não recebida à vista. E, repita-se, trata-se de financiamento que somente ser feito por instituição financeira. __________ 1Não sei se é verdade, pois na web não se pode confiar piamente. Mas, a matéria saiu. Veja-se, por exemplo.
quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O sagrado segredo

Na última semana do mês de julho, a imprensa noticiou que os telefones fixos e os celulares de pelo menos 10 advogados de defesa de ativistas denunciados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro foram grampeados pela Polícia Civil durante o inquérito instaurado em junho do ano passado para apurar as ações violentas praticadas em manifestações na capital fluminense1. Não entrarei no mérito do caso, que não conheço, mas a partir dele, quero, nesta semana do advogado, cuidar dessa importante garantia estampada clara e expressamente no sistema legal. A eventual quebra do sigilo das relações entre advogados e seus clientes não só viola a lei, como a Constituição Federal e também o Estado Democrático de Direito. Não se pode construir uma sociedade civilizada sem garantir a privacidade e a intimidade das pessoas nas suas necessárias relações profissionais como a da advocacia. Segredo e sigilo Os termos segredo e sigilo são usados como sinônimos, mas, de fato, embora imbricados, têm conotações um pouco diversas. Ambos traduzem aquilo que não pode ser exposto publicamente, aquilo que não pode ser comunicado. Mas, o sigilo indica um dever legal, uma determinação para que o segredo seja mantido e que é conhecido como regra em várias profissões: na advocacia, na psiquiatria e na psicanálise, na medicina e até na confissão que é feita ao religioso (padre, bispo etc.). O jornalista, por exemplo, deve resguardar o sigilo de fonte quando as circunstâncias o exigirem. Entre nós, está estabelecido o sigilo fiscal e o sigilo bancário. Há também o sigilo das telecomunicações e o sigilo das correspondências, enfim, uma enorme gama de situações de segredos resguardada pelas leis. Interesse público e segredo Existem fatos que devem ser mantidos em segredo, exatamente por causa do interesse público. Há situações que naturalmente nascem bloqueadas. Vejamos alguns exemplos: nas licitações públicas para venda de companhias estatais, deve ser guardado segredo das ofertas dos interessados; nos vários tipos de concursos públicos para ingressos nos cargos estatais ou para ingresso no quadro da Ordem dos Advogados, ou na Magistratura, no Ministério Público e em todas as carreiras públicas em todos os níveis, as questões não podem tornar-se públicas antecipadamente (óbvio!); o mesmo se dá no Enad, nos vestibulares etc.; acaso o Ministro da Fazenda e seus subordinados resolvam baixar medidas que afetarão o câmbio ou a bolsa de valores, tais resoluções devem ser guardadas até que possam ser levadas a público; há um longo etc. de situações que devem permanecer em segredo. O fato é que o interesse público exige o segredo, algo que não é contestado. Sigilo profissional O sigilo profissional se impõe a certas pessoas que exercem atividades, que, em função de suas especificidades e competências, possibilitam o conhecimento de fatos que envolvem a esfera íntima e privada de outras pessoas (em alguns casos, como dos advogados, esses fatos dizem respeito a pessoas físicas e também jurídicas). Essas informações privadas são, como regra, fornecidas pelo próprio interessado (cliente, paciente, fonte) para que a relação profissional possa ter andamento. Pode se tratar de um cliente acusado de um crime, que deve revelar fatos para seu advogado; pode ser um paciente fazendo suas confissões no consultório do psiquiatra ou alguém confessando seus pecados a um padre; pode ser, também, um cliente recebendo diagnóstico de seu médico ou um jornalista colhendo informações de interesse público de uma fonte não revelada (e que ele promete resguardar), etc. No Brasil, o sigilo profissional nasce no texto constitucional: "É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional" (inciso XIV do art. 5º da Constituição Federal - CF). E é garantido em várias normas relacionadas às profissões específicas. Cito, a título de exemplo, o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que regula o tema nos artigos 25 a 27; refiro também o Código de Ética Médica, que normatiza a questão nos artigos 73 a 79. De maneira mais ampla o Código Civil também regula o sigilo no inciso I do artigo 229, dispondo que "Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo". E, na mesma linha, o Código Penal no seu artigo 154 já dispunha: "Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa" Vê-se, pois, que é da essência do sistema constitucional e legal a salvaguarda do sigilo profissional e, consequentemente, da inviolabilidade das comunicações entre o profissional e seu cliente. Afinal, quem é que poderia imaginar uma relação entre um psiquiatra e seu paciente ou entre um advogado e seu cliente que não recebesse a proteção do sistema?. Essa defesa legal é a mesma que a proteção da própria consciência individual, a mesma que o pensamento, este "locus" inviolável que, na história da humanidade, tem gerado as torturas (algo, infelizmente, ainda presente). Digo isso, por que o sigilo profissional é simultaneamente uma garantia e uma interdição: uma garantia para quem oferece a informação e uma interdição para quem a recebe. O sigilo funciona assim como se as duas ou mais pessoas (mais de um cliente, mais de um profissional) fossem apenas uma, aquela que fala, confessa, entrega informações e dados etc.. Nem importa se a informação representa um segredo ou não, pois ela se torna sigilosa pelo simples fato de ter sido entregue durante a relação profissional estabelecida. Simples assim: trata-se de um garantia fundamental, que deve ser respeitada para o bom funcionamento de uma sociedade democrática. __________ 1Por exemplo e por todos.
quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O golpe dos boletos fraudados

No mês de julho p.p., a mídia deu destaque para um novo golpe aplicado contra consumidores e instituições financeiras consistente na emissão de boletos de pagamentos com números alterados. Um dos modelos de golpe está relacionado a necessidade de emissão de uma segunda via do boleto no site do banco. Quando o consumidor clica para atualizar o documento, um dos blocos de números é modificado; trata-se do número da agência e conta bancária que não é a do credor original, mas dos larápios. Esse procedimento é feito com a instalação de um vírus que faz a alteração enganosa. Esse vírus pode tanto ter sido colocado no computador do consumidor como no site do banco e/ou do credor. O noticiário falava em valores estimados em bilhões de reais (!) e dizia que havia um envolvimento da Polícia Federal brasileira, do FBI e do próprio ministro da Justiça nas investigações. Mas, de forma imprecisa, algumas reportagens falavam que o valor pago no boleto iria direto para uma conta no exterior, o que, como se sabe, não corresponde aos fatos. Não é possível mediante a quitação de um boleto junto a uma agência bancária (via web ou na boca do caixa) fazer com que o dinheiro se dirija imediatamente para uma conta no estrangeiro. Na verdade, o dinheiro entra primeiramente numa conta de uma agência bancária em território nacional. Somente depois, com o dinheiro em conta, é que os golpistas podem fazer uma transferência internacional ou sacar o valor. Isso traz certas consequências do ponto de vista jurídico e dá algumas oportunidades. Trato, pois, desse tema na sequência. O Código de Defesa do Consumidor é claro no estabelecimento da responsabilidade civil objetiva da instituição bancária no seu artigo 14. Transcrevo-o juntamente com o § 1º do mesmo artigo: "Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;..." Antes de prosseguir, deixo apenas anotado que o § 1º do art. 14, do modo como ficou redigido, é dispensável, uma vez que nada acrescenta ao conteúdo do caput, nem o excepciona. Está escrito: "O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar...". Ora, defeito no serviço dá origem a acidente de consumo com dano ao patrimônio jurídico material e/ou moral do consumidor. Não é evidente que sempre se espere que nenhum serviço cause dano ao consumidor? Não existe serviço que possa gerar alguma insegurança que cause dano sem ser defeituoso. Logo, não era preciso dizê-lo. E, pior ainda: ao contrário do que está dito, o serviço pode ser defeituoso apesar de oferecer toda a segurança que dele se espera. Na realidade, esse é o elemento mais relevante do defeito: a surpresa. O serviço parece seguro, mas causa o dano. Eis o problema. Bem o oposto do que está escrito na norma. Veja: um consumidor pode estar bastante seguro de que suas joias e ouro estão muito bem guardados no cofre-forte de um banco. No entanto, uma fraude perpetrada pelos funcionários do banco pode causar-lhe boa surpresa: abrir o cofre e nada encontrar; e com enorme prejuízo. Quanto ao inciso I, ele nada significa, pois diz que o "modo do fornecimento" do serviço pode ser caracterizador do defeito. Mas não é o modo o problema; é o dano. O modo tem que ser sempre adequado. É verdade que o inciso II desqualifica o defeito do serviço pelo "resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam", mas, na hipótese, sem nenhuma incidência, eis que ninguém espera que seja perigoso ingressar num site de banco para fazer transações como o da emissão de um simples boleto ou, dito de outro modo, nenhum consumidor espera que seja perigoso emitir uma segunda via de um boleto num site de uma instituição financeira1. De qualquer maneira, no tema, incide também a Súmula 479 do Superior Tribunal de Justiça, nesses termos: "As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias". Muito bem, voltemos ao assunto. O problema inicial consiste em saber onde o vírus está instalado. Se for no site do banco, naturalmente, é deste a responsabilidade, eis que é ele que possui o site infectado e que gerou o boleto falsificado. Do mesmo modo, pode-se pensar na responsabilidade do outro banco que recebeu o valor, pois foi para lá que o dinheiro se dirigiu. Esta outra instituição financeira tem também responsabilidade porque permitiu a abertura de conta corrente por falsários. (Anoto que é possível que a importância pode ter ido parar até no mesmo banco por cujo site foi o boleto emitido, uma vez que os fraudadores podem ter lá mesmo aberto a conta fajuta). Mas, e se o vírus estiver instalado no computador do consumidor, como fica a questão? Para responder à pergunta, primeiramente transcrevo o § 3, incisos I e II do mesmo artigo 14: "§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro." Vê-se, pois, que se o vírus estava instalado no computador do próprio consumidor, a culpa, a princípio, é exclusivamente sua quanto à emissão do documento. Todavia, o consumidor tem ainda uma saída para tentar evitar o prejuízo. É que, como dissemos, o valor pago é enviado para uma conta existente num outro banco (ou no mesmo), mas não para a conta do credor. Assim, o consumidor poderá pleitear ressarcimento junto ao banco credor do valor apontado no boleto falso, pois, como acima lembrei, a abertura da conta corrente do golpista foi feita na esfera de competência e responsabilidade dessa outra instituição financeira. E há procedimentos de identificação tanto para o saque de valores como para o envio de recursos para o exterior. Nada disso é feito às escondidas, como pareceu sugerir parte do noticiário. Aliás, como os valores indicados nos boletos falsificados acabam indo inicialmente para o banco cuja conta aparece indicada no boleto, medidas judiciais de bloqueio dos valores podem ser tomadas com decisões liminares, visando salvaguardar o interesse tanto do consumidor lesado como do próprio banco responsável. __________ 1O § 1º do art. 14 tem também um outro inciso, o III ("a época em que foi fornecido"), que nem referi, pois inaplicável. Para quem tiver interesse em mais detalhes sobre a interpretação dessa parte do CDC, indico meus Comentários ao CDC. São Paulo: Saraiva, 7ª. edição, 2013 (a 8ª edição está no prelo, mas não há modificações nesse ponto).
Empresas mentem para seus clientes? Recentemente, uma decisão da 3ª turma do TRT da 4ª região deixou comprovado que sim, elas mentem. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) tipificou o crime de informação ou afirmação enganosa em relação aos produtos e serviços, mesmo por omissão1. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa regra é bastante didática. Isto é, apesar de pretender punir os enganadores, para os fornecedores que souberem aprender com ela (e também com várias outras normas contidas no CDC), certamente se beneficiarão no trato com seus clientes e no incremento de clientela. Lembro que a harmonização é um princípio fundamental do CDC, que sempre pretendeu que as relações jurídicas de consumo fossem equilibradas e pudessem beneficiar a todos os envolvidos. Infelizmente, uma boa parte do empresariado não tem como base o comportamento ético esperado pela lei (embora, eu reconheça que haja avanços pela atitude de alguns empresários mais inteligentes e menos gananciosos). Trato, pois, da "empresa mentirosa" para lembrar que, tecnicamente, a pessoa jurídica não mente nem pode mentir, pois é uma mera ficção (como, do mesmo modo, não pode sofrer dano moral, embora possa sofrer dano à imagem). Quando se fala que uma empresa mentiu, enganou, ludibriou um consumidor, evidentemente, está se querendo dizer que alguém nela o fez: foi o presidente e/ou os diretores e/ou os gerentes e/ou os demais empregados subalternos. Nos cargos de direção da alta cúpula, normalmente, existe uma espécie de amálgama entre as pessoas físicas que ocupam essa posição e a pessoa jurídica; uma fusão, uma espécie de mistura que gera uma imagem de que a pessoa humana falando como a própria pessoa jurídica, fala em nome dela, como se ela existisse realmente (embora, claro, os altos salários pagos sempre sejam depositados na conta da pessoa física!). Descendo do nível da alta direção para baixo na pirâmide burocrática, os empregados são intitulados de "colaboradores" e deles se espera que "vistam a camisa" da empresa. Nenhum problema quanto a isso, desde que as ações implementadas sejam legais, o que não é o caso em exame. A mentira e a enganação são sempre perpetradas por dirigentes e colaboradores. Eis a ironia: todos eles são consumidores e nenhum deles - nem mesmo os dirigentes do primeiro nível hierárquico - estão livres de ser, por sua vez, enganados no mercado por outras empresas. É o fenômeno tipicamente capitalista de controle e implantação antiética de modelos de prestação de serviços trabalhistas que impõe que um trabalhador engane outro ou, dito de outro modo, é o procedimento amplamente implementado (embora não conscientizado) de batalha de um consumidor contra outro. No último dia 17 de julho, este poderoso rotativo Migalhas publicou uma decisão da 3ª Turma do TRT da 4ª região que deixou claro como funciona esse tipo de procedimento ilegal, enganoso e que já devia ter sido extirpado dos modelos de gestão das relações empresa-consumidor2. Lembremos o caso: a direção da empresa Vivo, visando enganar seus clientes, determinava (melhor dizendo, tudo indica que ainda determina, eis que se trata de procedimento devidamente estudado e decidido pela alta cúpula) que seus empregados se recusassem a fazer a contratação de contas de celulares pré-pagos, pois tinha interesse apenas no pós-pago. Cabia aos empregados mentirem dizendo que o sistema estava fora do ar. Faço aqui um parêntese: quantos de vocês leitores já não ouviram essa ladainha: "o sistema está fora do ar", "o sistema está muito lento", etc.? Voltemos ao caso. Ele mostra que pelo menos uma empregada, agindo eticamente, recusava-se a cumprir a determinação ilegal da empresa e, consequentemente, não mentia para os consumidores. O incrível da história é que a atitude correta e elogiável dessa empregada passou a ser reprimida por seus colegas de trabalho e seu supervisor, que passaram a hostilizá-la. Mal sabem eles que são meros joguetes na mão de seus patrões gananciosos e que eles mesmos, quando vão às compras como simples consumidores que são, acabam sendo enganados por outros empregados que, iguais a eles, mentem, fingem, enganam para lesá-los. Tudo num círculo vicioso que de há muito deveria ter sido eliminado da sociedade capitalista. (Lembro que a empregada citada ganhou a causa e será indenizada por danos morais no importe de R$50.000,00. Anoto, também, que a apuração feita no processo deixou comprovada a atitude abusiva e ilegal da empresa e seus empregados tanto que, como bem decidido, a Turma Julgadora determinou a remessa de cópia da decisão ao Ministério Público e ao Procon/RS para que sejam apuradas as violações aos direitos dos consumidores). Insisto num ponto: não há motivo algum para que as empresas não sejam transparentes na oferta e venda de seus produtos e serviços. Elas não deixarão de faturar, de auferir altas receitas e obter lucros por causa disso. Bem ao contrário: uma empresa moderna e que cumpre sua função social, respeitando a lei, seus clientes e seus empregados só tem a ganhar com isso. Não são conhecidos casos de empresas que não deram certo por que agiram corretamente na relação com seus consumidores. __________ 1"Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.§ 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta.§ 2º Se o crime é culposo;Pena Detenção de um a seis meses ou multa". 23ª. Turma do TRT da 4ª região, relator juiz convocado Marcos Fagundes Salomão, processo 0000689-35.2011.5.04.0030 RO, votação unânime.
sexta-feira, 13 de junho de 2014

Brasil: campeão mundial de futebol!

No dia 15 de maio de 2010 publiquei no meu blog do Terra Magazine um artigo intitulado "Direito, Futebol e Justiça". Nele apresentei uma teoria que dizia que o Brasil não seria campeão da Copa de 2010 (ver parte do artigo ao final). Segundo aquela teoria não ficaria bem o Brasil ganhar, uma vez que em 2014 estaríamos sediando o campeonato com final no estádio do Maracanã. Seria inadmissível um novo fiasco brasileiro em pleno "país do futebol". Isto é, nós perderíamos em 2010, mas a vitória estaria garantida em 2014. Ao final do artigo eu me desculpava acaso estivesse errado. Mas, o Brasil perdeu. Veja agora, o que escrevi na coluna de 5 de julho de 2010 no artigo intitulado "Futebol e Capitalismo", no mesmo blog, após a derrota para a Holanda (segue parte do texto ao final): "Mas, querido leitor, não perca a esperança, pois o campeonato de 2014 já está sendo anunciado, quem sabe, com novo técnico, novos jogadores - talvez até os melhores sejam dessa vez convocados (Na teoria da coluna de 17 de maio disse que em 2014 o Brasil há de vencer e dei os motivos. Tomara!). Só espero que a reforma e a construção dos estádios impostos pelos empresários da FIFA não impeçam a construção de novos leitos hospitalares, nem reajustes e aumentos salariais para quem tiver direito, nem que se deixe de investir em segurança pública, etc. (um longo etc.)." Se a teoria estiver certa, então os torcedores brasileiros já podem comemorar. Temos novo técnico e novos jogadores; leitos hospitalares, melhores condições de transporte, segurança pública etc. não vieram, mas, pelo menos, tudo indica que seremos novamente campeões. Será? Falta pouco para sabermos. (Claro que, se o Brasil não ganhar, tudo estará como dantes no quartel de Abrantes: a FIFA e as demais corporações que administram o futebol mundial seguirão com seu projeto capitalista; por aqui o estrago está feito e o extraordinário faturamento já foi embolsado). *** Futebol, Direito e Justiça Com o pontapé inicial para a Copa do mundo de futebol deste ano, dado com a convocação dos jogadores que integrarão a seleção brasileira, não posso deixar passar o tema em branco. (...) PS: Há uma outra teoria que pretende explicar um eventual fracasso da seleção brasileira na Copa. O futebol, na atualidade, é um dos maiores negócios do mundo. Adotando os modelos das grandes corporações da sociedade capitalista contemporânea, os cartolas conseguiram criar um modelo de oferta de entretenimento altamente rentável. Não me alongarei aqui, mas veja, nesse exemplo, a inteligência dos formatos dos vários tipos de competições existentes. A disputa entre os times é mais ou menos sem fim. Todos concorrem a alguma vaga, ou no grupo dos quatro ou dos oito de cima ou dos 4 ou dos 8 de baixo e, mesmo não vencendo, conseguem se classificar para outras competições ou, pelo menos, não são rebaixados. E, até nas competições de baixo, a disputa segue o mesmo padrão etc.. Tudo a fazer com que os consumidores, isto é, os torcedores, fiquem praticamente o tempo todo do ano ligado nos jogos de seu time, num espetáculo sem fim, cujo objetivo maior é faturar. A Copa do Mundo de Futebol, além de um grande espetáculo, é, de fato, um enorme negócio que envolve bilhões de dólares. Está em jogo um grande lucro dos empresários envolvidos no negócio, financiados pelos patrocinadores, afetando os meios de comunicação televisivos, os fabricantes de roupas e calçados, os editores etc. Não fica bem, dizem, que o Brasil possa ser campeão muito mais vezes que os outros países, pois, certamente, isto traria desânimo aos torcedores, o que pode significar prejuízos aos patrocinadores e demais agentes empresariais globais envolvidos. É preciso que haja maior equilíbrio de forças entre as seleções. Não é bom para os negócios que o Brasil fique muito à frente. Por isso, pode vir bem a calhar a formação de uma seleção que não contemple os melhores jogadores. Quem sabe o Brasil perca para o bem do campeonato e dos bilhões envolvidos. Nós continuaremos a ser o maior celeiro produtivo de craques que existe, mas isso foi assimilado e transformado em dólares e, portanto, aceito. Mas, vencer de novo, ah!... Isso já é demais, fora o prejuízo. E a teoria lembra que a próxima Copa do Mundo será no Brasil. Nós vamos ganhar essa e perder a próxima, confirmando o fiasco de 1950? Ou vamos ganhar esta e a próxima? Tudo isso? Parece demais mesmo. É bom nos contentarmos em perder essa para podermos ganhar a próxima aqui no Brasil. Se quisermos, podemos torcer contra a teoria. Evidente que, se o Brasil ganhar esta Copa do Mundo - que é o que todos nós esperamos - essa teoria não vela nada. Mas que faz pensar, faz. *** Futebol e Capitalismo Infelizmente, meu caro leitor, quase tudo quanto o modo de produção capitalista contemporâneo põe a mão se corrompe, apodrece e passa a existir como ficção. A maior parte dos empresários desses tempos globalizados é gananciosa e só visa o lucro, custe o que custar. Sua grande arma de ataque para a tomada do mercado - esse bem que não lhe pertence - é o marketing, cuja ponta de lança é a publicidade. E, esse império materialista do mercado, com sua grande mão invisível e também visível absorveu praticamente todo o corpo social, acabando por imiscuir-se em setores antes imunes. Veja o exemplo dos esportes ditos amadores: a Olimpíada é, atualmente, um enorme negócio. E, claro, do futebol nem preciso referir, porque faz muito tempo que a organização, local ou internacional, tem como meta o faturamento. Aliás, a FIFA hoje funciona como uma grande empresa franqueadora e licenciadora de produtos e serviços. (...) neste capitalismo deve haver resultado financeiro, não importando se o produto é bom, se funciona adequadamente, se as promessas da publicidade serão cumpridas. O que vale é a meta. E, nesse sentido, a FIFA tem um poder só comparado às grande corporações do planeta. Ela consegue impor a governos e nações seus interesses, seus modelos, seus estádios. Ela consegue determinar quanto de gasto os países farão em prol dela, isto é, em prol de seu faturamento crescente. E isso, mesmo que as populações locais estivessem precisando de outros bens. Claro que, tudo isso é feito com muito marketing e moderna publicidade, mexendo com a paixão dos torcedores, fazendo com que eles acreditem que o resultado de um jogo ou de um campeonato resolverá muitos problemas, e que trará orgulho e benefícios à nação. Aliás, muitas vezes, a publicidade é claramente abusiva: que exemplo dão esportistas que fazem publicidade de cerveja? Uma cervejaria sendo patrocinadora oficial de um evento esportivo: um irresponsável estímulo à ingestão de bebidas alcoólicas. Só o cinismo e o dinheiro poderiam explicar. Muito bem. O Brasil perdeu o jogo. Uma pena. Mas isso, muitas pessoas já sabiam que ia acontecer. Na minha coluna de 17 de maio deste ano eu apresentei uma teoria que buscava explicar porque o Brasil perderia. Aproveito e apresento outra teoria: Porque o jogo de futebol não se moderniza? Porque não se usa tecnologia para fazer as regras serem cumpridas? A bola entra e o Juiz não dá o gol. Essa vergonha continuará até quando? Essa outra teoria diz que a não modernização no jogo de futebol nada tem a ver com seu movimento e o espetáculo, mas sim com a perda do poder de manipulação. Afinal, se não se puder mais dar gols impedidos, anular gols legítimos, expulsar jogadores indesejados etc., se perderá uma boa maneira de interferir nos resultados. De minha parte, espero que haja alguma pressão da opinião pública para que o futebol passe a ser um jogo mais real, honesto e verdadeiro. A tecnologia ajudaria, sem tirar a graça do espetáculo. Mas, volto à Copa do Mundo. Terminou o jogo do Brasil versus Holanda e os locutores passaram a dizer que, afinal, se tratava apenas de um jogo de futebol. Apenas um jogo de futebol. Ora bolas (perdão pelo trocadilho), não é assim que a publicidade vende o campeonato mundial. (...) O que realmente importa é a receita e o lucro. Empresários, cartolas, técnicos, jogadores, todos faturam alto às custas desses produtos bem vendidos e administrados. Hoje, até os jogadores são produtos, criados desde pequenos para poderem valer algo no futuro do mercado futebolístico. Mas, querido leitor, não perca a esperança, pois o campeonato de 2014 já está sendo anunciado, quem sabe, com novo técnico, novos jogadores - talvez até os melhores sejam dessa vez convocados (Na teoria da coluna de 17 de maio disse que em 2014 o Brasil há de vencer e dei os motivos. Tomara!). Só espero que a reforma e a construção dos estádios impostos pelos empresários da FIFA não impeçam a construção de novos leitos hospitalares, nem reajustes e aumentos salariais para quem tiver direito, nem que se deixe de investir em segurança pública etc. (um longo etc.).
Nos Estados democráticos, uma das principais garantias é a da liberdade de pensamento e de expressão. O indivíduo sabe que pode pensar tudo e falar quase tudo. E sua opinião pode ser propagada. De fato, somos livres para falar. Mas, quem é que nos ouve? Artistas das mais variadas estirpes e apresentadores de tevê são ouvidos, isto é, exercem plenamente seu direito de se expressar livremente. Basta ficar com o exemplo da apresentadora da tevê norte-americana Oprah Winfrey, que exerce uma enorme influência sobre seu público mundial de milhões de pessoas. Mas, e o cidadão comum, quem ouve? Será que ele tem de aguardar o momento das urnas para se fazer ouvir? É só isso? E as reivindicações? É que, naturalmente, de nada adianta poder se expressar se for apenas para que as palavras viagem com o vento. Lançar palavras ao léu serve para quê? Adianta falar sem interlocutor eficiente? Meu amigo Outrem Ego, para responder minhas indagações, me contou a piada do rabino que, todo dia, ia ao muro das lamentações pedir que Deus mandasse finalmente a paz para a região. Um dia, um repórter foi entrevistá-lo. Perguntou: "O senhor vem aqui todos os dias?" "Venho", disse ele. "Há quanto tempo?". "Trinta anos, respondeu". "E o que o senhor sente?". "Sinto como se estivesse falando com a parede". *** A verdade é que exerce realmente "liberdade de expressão" aquele que consegue ou pode ser ouvido. E, nos tempos atuais, os que podem são os que governam os mercados e as sociedades; os que têm canais de comunicação eficazes como tevês, rádios, jornais; os grandes empresários que fazem seus produtos e serviços falarem; os líderes religiosos, claro, enfim aqueles que exercem poder de fato econômico, político ou religioso. Os demais têm muita dificuldade de fazê-lo. Quanto às redes sociais, elas são uma esperança: dali pode surgir algo. Agora, examinemos o panorama dos movimentos de rua dos últimos tempos no Brasil. Será que os vários integrantes dos grupos de reivindicações estão sendo ouvidos? Por quem? As pessoas que eles querem atingir, sentem-se atingidas? Será que a tática está correta? Quando, recentemente, na cidade de São Paulo, os motoristas e cobradores de ônibus (chamados de rodoviários) abandonaram seus veículos literalmente nos leitos das ruas interrompendo o tráfego, meu querido amigo perguntou: "Será que os empresários do setor estão ouvindo as reclamações dos rodoviários? Parar o trânsito da maior cidade da Americana Latina ajuda a melhorar a audição dos patrões?". E o que dizer dos professores municipais da cidade de São Paulo, que estão em greve há mais de um mês? Paralisar a avenida Vinte e Três de Maio por várias horas, prejudicando literalmente milhões de pessoas, faz com que o prefeito amplie sua capacidade auditiva? Meu amigo, após assistir a tantos movimentos e paralisações (paradoxalmente o movimento de reivindicação tem paralisado as cidades), apontou um aspecto relevante: o da necessidade de busca de apoio do restante da sociedade. "Mas, como obter solidariedade dos demais, se estes acabam sendo prejudicados pelos que reclamam?", perguntou. E ele realçou: "Veja a greve dos professores municipais de São Paulo. No início, eu vi com muita simpatia os pleitos, afinal os professores merecem bons salários, boas condições de trabalho, etc. Eles são muito importantes para a sociedade. Mas, quando vi que, em várias oportunidades, eles paralisaram por horas a cidade de São Paulo, prejudicando milhões... Repito: milhões de paulistanos, desisti de pensar neles. Não é possível que o grupo pense apenas em si mesmo e esqueça os direitos dos outros", disse, dessa vez indignado. De fato, esses movimentos que prejudicam de forma extraordinária a vida da cidade e das demais pessoas é altamente improdutivo, porque desde logo não consegue maior adesão popular. E são fruto de uma ilusão: a de que os responsáveis em resolver seus problemas ou atender suas demandas ouvirão suas reclamações exatamente por que estão paralisando a cidade. (Anoto, claro, que: ou eles estão iludidos ou mal intencionados e querem mesmo paralisar a cidade, usando as greves e reivindicações como desculpa. Isso é também possível). Os motoristas e cobradores de ônibus não foram mais nem menos ouvidos porque prejudicaram milhões de pessoas. Esse tipo de ação não assusta políticos nem empresários. Normalmente, quando explodem problemas nas ruas, o que se vê é povo contra povo, com a polícia no meio ou ao lado assistindo. Os empresários estão confortavelmente acomodados em seus escritórios ou em casa com a família, assim como os políticos. É preciso mudar o projeto do grito para ser ouvido. Meu amigo lembrou uma questão típica de consumidor. Quando o consumidor deixa de comprar algum produto ou cancela uma assinatura de um serviço ou se nega a renovar um contrato, etc., é certamente ouvido pelo empresário-fornecedor. Aliás, o consumidor nessas hipóteses até inverte a situação: o fornecedor passa a procurá-lo para ouvi-lo! Lembrou também dos boicotes que são bem utilizados nos mercados mais desenvolvidos, como o norte americano. Os consumidores, reunidos em associações de defesa do consumidor ou mesmo de maneira informal, organizam boicotes a certos produtos, a supermercados que vendem produtos deteriorados, a estabelecimentos financeiros, etc. Esses consumidores organizados servem de exemplo para manifestações. Ele deu uma sugestão: "Querem mesmo afetar os empresários, os patrões, os políticos? Chamar a atenção deles? Então, atinjam seus bolsos ou algo que os façam parar e refletir. Os motoristas e cobradores de ônibus, por exemplo. Poderiam continuar trabalhando regularmente oferecendo viagens grátis para a população. Aí sim conseguiriam apoio popular e assustariam os patrões". Utilizar as redes sociais de maneira inteligente, organizando boicotes e abaixo assinados pode ser mais eficaz que paralisar ruas e avenidas. Não só mais eficaz, como geraria maior apoio das demais pessoas e assim mais legitimidade. Não é difícil descobrir que os gritos das ruas somente são ouvidos quando há intensa participação popular. Foi o que quase aconteceu em junho de 2013, mas o apoio aos protestos arrefeceu com todos os demais problemas ocasionados pelas passeatas, que atrapalha fortemente a vida de todos: foi-se esvaziando o conteúdo das reivindicações, muitas vezes importante para toda a sociedade, e enfraquecendo os movimentos. Além disso, lembro que existe um conflito de direitos, conforme tem sido amplamente apresentado por juristas, conflito esse ligado às garantias fundamentais do direito à liberdade de pensamento, expressão e reunião (Constituição Federal, art. 5º, inciso IV, IX e XVI) e do direito de ir e vir (CF, art.5º, inciso XV) Não entrarei nessa discussão, mas quero apenas lembrar o que diz a CF a respeito do direito de reunião: "Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente" (art. 5º, XVI). A garantia constitucional, portanto, impõe o caráter pacífico e sem armas. Não basta não portarem armas, a reunião há também de ser pacífica. Se alguém estiver de posse de qualquer tipo de arma já há uma violação. E, mesmo sem armas, não sendo pacífica, também. Logo, é de se ver que colocar fogo em pneus e em latões de lixos no meio das ruas e estradas está longe de receber a garantia constitucional. Ademais, qualquer reunião, para receber a proteção legal, tem que ser previamente comunicada à autoridade competente. Simples assim. Agora, entenda-se, "previamente" não significa meia hora antes, mas o tempo necessário para que as autoridades possam garantir a segurança pública e a locomoção das demais pessoas que não querem participar da reunião. Aliás, diga-se bem claramente isto: participar ou não da reunião há de ser livre; ninguém pode ser obrigado a dela participar nem nela ficar preso! Penso que, infelizmente, não devemos ter ilusões com o resultado desses movimentos por causa do modo como estão sendo projetados e executados. O tempo passará e as pessoas que tanto gritaram com ou sem megafone acabarão ficando como o rabino da piada: sentirão que andaram falando com a parede!
quinta-feira, 29 de maio de 2014

A vitória de Pirro do capitalismo - parte II

Continuo abordando alguns dos temas para tentar responder a questões que envolvem a vitória do capitalismo como o regime que deu certo. Como disse antes, para defender essa afirmação, os neoliberais de plantão sempre têm na manga dados e números que o demostrariam. Tentarei, pois, responder as seguintes questões: do que trata essa vitória? Quem são os vitoriosos? Quais foram os louros colhidos? Se essa vitória está ligada ao marco civilizatório, este foi atingido? A humanidade, de fato, tornou-se melhor, mais feliz? E o planeta Terra como está? *** No artigo anterior, mostrei a enorme devastação do meio ambiente feita pelo modelo de produção e consumo. Hoje trato da questão da superpopulação e da excepcional diferença social reinante. Não entrarei em questões subjetivas e de qualidade de vida, que são por demais conhecidas. Ficarei apenas com números, que não deixam qualquer margem a dúvidas ou interpretações espúrias sobre a realidade. Mas, antes de prosseguir, gostaria de consignar que, apesar de utilizar aqui dados estatísticos, não sou daqueles que acreditam cegamente nos números. Algumas pesquisas são bem feitas, mas muitas padecem de falhas não só nas expressões utilizadas como nos objetos escolhidos para a análise. Para ficar com alguns exemplos do que quero dizer, é muito comum manchetes que dizem: "Criminalidade subiu 200 por cento em tal local". Vamos checar e vemos que é verdade: antes havia 1 crime, agora são 3. Igual a 200%. Ou, então, o inverso; "No último feriado, uma vitória: os acidentes caíram 20%". A queda parece relevante, mas quando olhamos os dados vemos que antes eram 300 mil acidentes, agora são só 240 mil! Há várias estatísticas desse tipo. Números e estatísticas servem também para iludir. Como diria meu amigo Outrem Ego: "Se nós dois saímos para jantar e eu como dois frangos e você não come nenhum, na média comemos um frango cada um. Só que, na realidade, eu fico empanturrado e você com fome". Ou então: "Se uma pessoa coloca a cabeça no forno e o pé no congelador, pode até ser que a temperatura média de corpo seja boa, mas a chance de sobrevivência é nenhuma..." Enfim, quando se fala em renda per capta, por exemplo, esse é sempre um dos problemas, pois a divisão comporta poucos que ganham muito e muitos que ganham pouco. A média pode ser boa, mas muitos seres humanos estão na faixa de pobreza extrema. Por isso tudo, tenho cautela quando uso dados estatísticos e números, mas em alguns casos eles são, pelo menos, o mínimo do que se pode observar. Ou, dizendo em outros termos, alguns números servem para mostrar uma realidade que pode ser pior do que se apresenta. Penso que é o caso dos dados que usarei neste artigo. Talvez os números não sejam precisos por que a situação deve ser pior, o que, certamente, é mais assustador. Vamos lá. Como antecipei, a população mundial está em explosão demográfica desde a época da Revolução industrial a partir de meados do século XVIII. Para se ter uma ideia, demorou 126 anos para que a população do planeta passasse de um bilhão de habitantes para dois bilhões (de 1802 a 1928). Para atingir três bilhões, apenas 33 anos (em 1961) e para chegar aos 4 mais 13 anos (em 1974). E assim, numa média de 12 a 15 anos, chegou a sete bilhões em 2011. Atualmente, somamos mais de sete bilhões e 200 milhões de habitantes1. A Terra nunca foi habitada por um tão grande contingente de seres humanos. Aliás, basta olhar o quadro acima da evolução do número de habitantes para ver que isso se tornou um problema (em termos de ocupação do espaço existente) e uma oportunidade de aumento de vendas e receitas (para os exploradores capitalistas). Contudo, com o modelo de produção e consumo implantado, o planeta e as pessoas estão sofrendo. Infelizmente, ao chegarmos ao século XXI, vê-se que não atingimos um estágio civilizatório de que possamos nos orgulhar. Um relatório da ONG britânica Oxfam divulgado recentemente - e que já referi nesta coluna -- mostra que nos últimos 25 anos, a riqueza ficou cada vez mais concentrada nas mãos de poucos. O patrimônio das 85 pessoas mais ricas do mundo equivale às posses de metade da população mundial, isto é, um grupo de pessoas que caberia num ônibus de dois andares detém o patrimônio de mais de 3 bilhões e 600 milhões e seres humanos. "Este fenômeno global levou a uma situação na qual 1% das famílias do mundo são donas de quase metade (46%) da riqueza" do planeta2. Veio a crise econômica de 2008/2009. Passaram cinco anos e os indicadores seguem apontando para uma exagerada concentração da riqueza ao redor do globo. De acordo com o relatório "Credit Suisse 2013 Wealth Report", um dos mapeamentos mais completos elaborados sobre o assunto, 0,7% da população mundial concentra 41% da riqueza mundial, confirmando os dados fornecidos pela Oxfam. Em termos de valores, a riqueza mundial atingiu em 2013 o recorde de todos os tempos: US$ 241 trilhões. Apesar desse crescimento, a desigualdade social continuou absurda: os 10% mais ricos do planeta detêm atualmente 86% da riqueza mundial. A divisão desse patrimônio em milhões de dólares mostra o seguinte: 0,7% da população possuem mais de US$1 milhão. 7,7% possuem entre US$100 mil e US$1 milhão. 22,9% possuem entre US$10 mil e US$100 mil. E o restante, a grande maioria, 68,7%, possuem menos de US$10mil de patrimônio. Anoto que nessa última faixa estão aqueles milhões de seres humanos que não possuem nada! (Eis aqui uma das falhas estatísticas que comentei. Ou seja, o real é muito pior). Vejamos outros dados. O valor fixado pelo Banco Mundial para delimitar a linha de pobreza é de 1,25 dólares por dia. Segundo o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), estão nessa condição 1 bilhão 140 milhões de seres humanos3. É bom realçar esse aspecto quantitativo, pois é possível encontrar artigos "elogiando" o "avanço" na luta contra a fome e a miséria, mostrando que os índices têm caído! Um bilhão, cento e quarenta milhões de humanos (sobre) vivem (?) com uma renda de 1,25 dólares/dia! E, ainda de acordo com o Pnud , 1 bilhão 570 milhões de pessoas vivem em estado de "pobreza multidimensional", que é aquela em que há carências em várias dimensões, como saúde, educação e renda. O IPM (Índice de Pobreza Multidimensional) foi criado para ir além das medidas tradicionais de pobreza, que se baseiam apenas na renda4. Por fim, a pesquisa intitulada Índice Global da Fome do Instituto Internacional de Investigação sobre Políticas Alimentares (IFPRI) mostra que pelo menos 1 bilhão de pessoas sofrem de desnutrição no planeta, sendo que metade são crianças5. *** Examinando as pesquisas, com esses números que mostram cabalmente o incrível sofrimento por que passam milhões de seres humanos todas as horas, todos os dias, semanas, meses e com muito pouca esperança de mudança, quase esqueço de pensar nas perguntas sobre a vitória do capitalismo globalizado. Vitória? Sim, como diria o Rei Pirro, outra vitória dessas e a humanidade estará perdida... *** Eu já tive oportunidade de indicar aqui nesta coluna os filmes abaixo nomeados. Mas, como ambos estão diretamente ligados ao que se assiste na sociedade capitalista contemporânea, não posso deixar de apontá-los novamente. O primeiro, chama-se "Chicken-a-la-carte". É um documentário exibido num festival na Alemanha, que mostra uma realidade vivida neste nosso mundo globalizado capitalista, desorganizado, injusto e em que as riquezas são sempre muito mal distribuídas. Assista: é bem curtinho. O segundo, é o filme do cineasta brasileiro Jorge Furtado, "Ilha das Flores" (disponível em DVD), um dos melhores filmes nacionais e que nos faz pensar na condição humana neste mundo incrivelmente desumano. É filme para ver, pensar e divulgar. __________ 1Current World Population e população mundial. 2O relatório é facilmente encontrado na web. 3Desigualdade mundial diminui, mas 1,57 bilhão ainda vive na pobreza. 4Idem, ibidem. 5Pesquisa do ano de 2010.
quinta-feira, 22 de maio de 2014

A vitória de Pirro do capitalismo - parte I

Como se sabe, a expressão "vitória de Pirro" é utilizada para apontar alguma vitória cujo preço foi tão alto que trouxe prejuízos irreparáveis. A expressão tem o nome do Rei Pirro, que, numa batalha na qual se saiu vencedor, perdeu seus principais comandantes do exército e uma parte enorme da força de batalha e quase todos seus amigos íntimos. Perguntado sobre a vitória, ele teria dito: "uma outra vitória como esta e eu estarei completamente arruinado". É lugar comum dizer que o capitalismo é o regime vitorioso sobre todos os demais; é aquele que deu certo. E para defender essa afirmação, os neoliberais de plantão sempre têm na manga dados e números que o demostrariam. A pergunta que faço é: do que trata essa vitória? Quem são os vitoriosos? Quais foram os louros colhidos? Se essa vitória está ligada ao marco civilizatório, este foi atingido? A humanidade, de fato, tornou-se melhor, mais feliz? E o planeta Terra como está? Abordarei uma parte dos temas capazes de responder a algumas dessas perguntas e, quem sabe, ver se estamos diante de uma vitória autêntica ou os prejuízos são maiores que os benefícios, como diria o Rei Pirro. *** Os historiadores costumam apontar a origem do modelo de capitalismo que vingou ao final do feudalismo vigente na idade Média. Mas, para não entediar o leitor, passando pelos vários momentos históricos, vou direto ao século XVIII. Neste, as características que conhecemos do regime capitalista já estão quase todas determinadas: a exploração da mão de obra assalariada e do meio ambiente, a moeda como base de pagamento e compra de produtos, as relações financeiras e bancárias, o aumento dos lucros, o acúmulo de riquezas, o fortalecimento da burguesia, etc. Com a Revolução Industrial no século XVIII, o sistema capitalista se fortalece e se expande não só na Europa como em outras regiões do planeta. Surgem as fábricas, começam as produções massificadas e em série, diminuem os preços dos produtos que podem ser oferecidos a um maior número de consumidores e aumentam as receitas e os lucros dos fabricantes. Esse modelo homogeneizador se expande aos serviços, que por sua vez vão se massificando também. Quando chegam ao crédito, o cerco sobre os consumidores está fechado: mesmo quem não tem dinheiro pode comprar; surge o endividamento - que se torna interminável. Muito bem. Olhando assim, parece que a expansão do modo de produção era algo favorável às pessoas, pois lhes possibilitaria adquirir cada vez mais produtos e serviços para seu conforto e bem estar, de tal maneira que, talvez, ao chegarmos ao século XXI teríamos sociedades e, consequentemente, um planeta com pessoas mais felizes. Com a queda dos regimes socialistas e comunistas na maior parte das nações, a esperança aumentou, pois o capitalismo tornou-se o regime majoritário no século XX e, praticamente absoluto no século XXI. Some-se a isso o incremento da tecnologia - que permitiu enormes avanços na medicina e área de medicamentos - , as telecomunicações, os transportes modernos, etc. e estávamos chegando num admirável mundo novo (Aldous Huxley que nos diga...). De fato, havia alguma esperança. Veja-se que o modelo existente até início dos anos 80 do século XX oferecia elementos para que pudéssemos acreditar. Havia, por exemplo, concorrência entre as empresas. Era pela concorrência que se acreditava que as empresas poderiam, de um lado, oferecer melhores produtos e serviços a menores preços e, de outro, multiplicarem-se. Quanto mais empresas, mais postos de trabalho, menos concentração de renda (e de poder), mais distribuição de riquezas, mais benefícios para um maior número de pessoas, enfim, mais Justiça distributiva e social. Acontece que, muito antes, ainda no século XX, e fortemente incrementado após a segunda grande guerra, as corporações financeiras e os executivos com formação em finanças, passaram a exercer enorme influência não só na forma de produção, como na distribuição e no controle das vendas aos consumidores. Com o passar do tempo, os empregos, ou melhor, os empregados passaram a ser enxergados como custos e as oportunidades do mercado alvo (leia-se uma vaga/uma chance de venda = um certo preço) como commodities. A relação entre as empresas e seus empregados tornou-se impessoal (um empregado = um número na planilha de custos). O mesmo ocorreu com o consumidor (um consumidor = uma oportunidade de receita na planilha de vendas). As pessoas reais, isto é, trabalhadores e consumidores, passaram a não ter mais tanta importância: são números que ajudam ou atrapalham. A melhora dos sistemas de distribuição e transporte permitiu que a produção se "globalizasse". As grandes empresas passaram a fabricar seus produtos (e também a explorar seus serviços) fora das sedes dos países desenvolvidos. Instalaram-se em outros locais, onde a mão de obra era mais barata e os trabalhadores podiam ser mais fortemente explorados, com a ajuda ou não dos governos locais. Estava, pois, tudo pronto para as fusões e incorporações. Antes concorrentes, agora as empresas passaram a se associar e trabalhar juntas. Antes disputavam o mesmo consumidor, oferecendo melhores produtos e serviços a menores preços, agora, em conjunto, nos gabinetes, os executivos das corporações, planejam como explorar cada vez mais o mesmo consumidor, que lhes pertence. Além disso, com as fusões, milhões de seres humanos (os números para os executivos) ficaram desempregados. Diminuindo o número de empresas, a concorrência foi se esvaindo, e a receita e o lucro das corporações tornam-se monstruosos. A concentração de renda transformou-se em algo jamais visto na história da humanidade. Esse é, em resumo, o quadro atual. Pergunto: deu certo? É isso? O planeta está indo bem? A humanidade conseguiu atingir seu objetivo de viver em paz, harmonia, bem- estar? Ou, estamos num dos piores períodos da história da humanidade? *** Os números, claro, podem ser manipulados ao bel prazer dos neoliberais de plantão. É possível, por exemplo, apontar o desenvolvimento da medicina como algo positivo, o aumento da produção agrícola e as melhoras das condições de higiene ou mostrar os casos de confortos como o uso de telefones, de ar condicionado e chuveiro com água quente, o uso de lentes de contato, etc. No entanto, os dados reais estão muito longe das ilusões vendidas pelos controladores do sistema. Indico um dado inexorável, que nem eles próprios podem mais esconder nem manipular com números ou fantasias: o planeta Terra está sendo destruído pelo modo de produção e consumo existentes. As catástrofes climáticas estão à mostra de todos. Secas de um lado e enchentes de outro, ar venenoso circulando livremente, frio no verão e calor no inverno, o aquecimento global em números nunca vistos, novos tipos de ciclones e tufões, o esgotamento de reservas naturais importantes, etc. Ironicamente, não só os povos dos países pobres e emergentes sofrem, mas também os dos países desenvolvidos. Gaia não escolhe pessoas por sua capacidade de riqueza, nem por suas roupas de grife ou dinheiro depositado no banco (declarados e não declarados). Gaia apenas devolve o que lhe tiraram, para voltar ao seu equilibrado ecossistema. Como se sabe, Gaia, na mitologia grega, é o nome da deusa da Terra, companheira de Urano (Céu) e mãe dos Titãs (gigantes). Gaia é a personificação do planeta Terra, representada como uma mulher gigantesca e poderosa. O cientista britânico James Lovelock, em sua homenagem à deusa grega, criou a Hipótese de Gaia, na qual descreve o planeta Terra como um organismo vivo, que apresenta algumas características como a atmosfera com química e a capacidade para manter e alterar suas condições ambientais - o que não acontece com outros planetas do sistema solar. Lovelock acredita que o planeta recuperará seu equilíbrio sozinho, mesmo que demore milhões de anos. Todavia, prevê, a civilização humana pode acabar ou restar poucas pessoas. "É bem possível considerar seriamente as mudanças climáticas como uma resposta do sistema que tem como objetivo se livrar de uma espécie irritante: nós, os seres humanos. Ou pelo menos fazer com que diminua de tamanho"1. Claro que ele sabe que não se trata de uma ciência exata: "Posso estar errado a respeito de tudo isso. O problema é que todos os cientistas bem intencionados que argumentam que não estamos sujeitos a nenhum perigo iminente baseiam suas previsões em modelos de computador. Eu me baseio no que realmente está acontecendo"2. Nossa atmosfera, diz, "não é meramente um produto biológico. É mais provável que seja uma construção biológica: uma extensão de um sistema vivo feito para manter um ambiente específico"3. Assim, pela Teoria de Gaia, a vida é participante ativa que ajuda a criar exatamente as condições que a sustentam, ou seja, a vida sustenta a vida. E Gaia está dando o troco! Bem, se isso é já um imbróglio criado em larga medida pelo modelo de produção e consumo, há ainda o lado humano e civilizatório. A população mundial está em explosão demográfica desde a época da Revolução Industrial a partir de meados do século XVIII. Para se ter uma ideia, demorou 126 anos para que a população do planeta passasse de um bilhão de habitantes para dois bilhões (de 1802 a 1928). Para atingir três bilhões, apenas 33 anos (em 1961) e para chegar aos quatro mais 13 anos (em 1974). E assim, numa média de 12 a 15 anos, chegou a sete bilhões em 2011. Atualmente, somamos mais de sete bilhões e 200 milhões de habitantes4. A Terra nunca foi habitada por um tão grande contingente de seres humanos. Aliás, basta olhar o quadro acima da evolução do número de habitantes para ver que isso tornou-se um problema (em termos de ocupação do espaço existente) e uma oportunidade de aumento de vendas e receitas (para os exploradores capitalistas). Contudo, com o modelo de produção e consumo implantado, o planeta está sofrendo. Infelizmente, ao chegarmos ao século XXI, vê-se que não atingimos um estágio civilizatório de que possamos nos orgulhar. Há muito o que falar sobre a miséria nas sociedades, a violência, o desemprego, o desamparo, os crimes de todos os tipos, as doenças comuns, os problemas de saneamento e atendimento médico, guerras, etc. Eu ficarei apenas com um outro ponto, que também não comporta tergiversação: esse da quantidade de pessoas e a excepcional diferença social. Isto é, referirei apenas um dos aspectos da profunda injustiça reinante. Continuarei na próxima semana. __________ 1Entrevista concedida à Revista Rolling Stone, in . Tradução de Ana Ban. 2dem, ibidem 3dem, ibidem. 4Current World Population e população mundial.
quinta-feira, 15 de maio de 2014

A língua como produto de consumo e controle

Há muito tempo que se sabe que a chamada globalização é mais uma mentira inventada pelos países mais poderosos para impingir seu modo de produção e consumo para o resto da humanidade, gerando riqueza (para eles) e custo (para os demais países). Antigamente, esse método chamava-se imperialismo e os demais países, hoje, intitulados de emergentes, eram qualificados como subdesenvolvidos. Essa manipulação linguística é tão boa que pegou forte: todo mundo gostou. Os países ricos continuaram assim e os subdesenvolvidos foram "promovidos" a emergentes. Uma vitória simbólica. Vitória dos poderosos e não dos oprimidos, pois como diz o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a base da violência simbólica está presente nos símbolos e signos culturais, especialmente no reconhecimento tácito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas, como por exemplo, a mídia, a religião, a publicidade, etc. Por isso, a violência simbólica propriamente dita nem é percebida como violência, mas sim como uma espécie de indicação, uma permissão ou uma proibição desenvolvida com base em um respeito ao que "naturalmente" se faz; ela se apresenta como um modelo de conduta a ser seguida1. A produção cultural e tecnológica dos países dominantes é desenvolvida e entregue aos países emergentes (eu ia dizer "imposta", mas a aquiescência mansa e pacífica é tamanha que sou obrigado a abandonar esse verbo autoritário). Assim, na atual globalização, a invasão não se faz em termos de territórios, mas de mercados. Toma-se conta do polo de consumo e, na medida em que os consumidores aderem aos produtos e serviços inventados e produzidos pela indústria dominante, passam a se comportar como esses detentores do poder global querem que eles se comportem. Quanto aos produtos e serviços, vale de tudo, desde um refrigerante até os chamados "produtos culturais", tais como filmes de cinema (hollywoodianos de preferência), enlatados de tevê como séries e programas, etc. E um dos modos mais eficientes de dominação é o do uso da linguagem. Para ficarmos com a posição de Bourdieu, o uso de palavras e expressões pelos dominadores (os que vêm de fora ou que estão mesmo dentro da comunidade) é um dos modos mais eficientes de controle. Meu amigo Outrem Ego gosta muito de brincar com esse poder que a língua estrangeira tem, especialmente, o anglicismo (que no mais das vezes aparece escondido no termo "estrangeirismo". É que cada vez mais por aqui o estrangeirismo tem uma única origem e direção: a língua inglesa, como diria a banda britânica que acaba de passar por aqui, One Direction). Numa conversa sobre o tema, ele me disse: "Minha filha me contou que seu boyfriend foi até o shopping center de bike. Ela estava lá, esperando por ele, na pista de skate, que fica em frente a um outdoor. Quando ele chegou, foi que ela reparou que ele tinha um piercing na barriga, pois estava quase sem camisa por causa do vento. Parecia até que queira fazer strip tease. Brincando, ela perguntou se ele não queria fazer de vez um topless e aproveitar para arrancar o apetrecho do umbigo e colocar um band-aid no lugar. Ele riu e disse que estava tudo bem com ele, pois tinha feito um checkup recentemente. Daí eles encontraram outro casal e entraram correndo para comer numa lanchonete fast food. Ela comeu um hamburger, no qual passou ketchup e bebeu uma coca-cola light. Ele deglutiu um cheeseburger bacon e tomou um milk-shake de chocolate. De sobremesa, ela comeu um cupcake de blueberry e ele um sundae de creme. Os outros dois amigos, que sentaram na mesma mesa da praça de alimentação, haviam ido a lugares diferentes: ela foi a um restaurante self-service e de lá levou uma caesar salad e um smoothie de morango. Ele variou: pegou um tuna wrap num lugar, uma porção de onion rings em outro e bebeu um suco detox. De sobremesa, ela tomou frozen yogurt e ele um cookie de chocolate". Eu, em flash-back, voltei ao meu tempo de adolescente, quando comia hot-dog com suco natural e comia banana-split de sobremesa. De fato, a linguagem é um sistema aberto e, naturalmente, cada língua, de um jeito ou de outro, recebe influência externa. Não há necessariamente um mal nisso até por que é inevitável. Muitas vezes, inclusive, a língua pátria acaba por fazer uma adaptação. No caso brasileiro, são muitas as palavras aportuguesadas (ou abrasileiradas), tais como abajur, futebol, purê, batom, chofer, baguete, ateliê, bife, boate, sutiã, etc. Mas, o que nos últimos tempos chama a atenção é a enorme quantidade de termos em inglês que passou a fazer parte do dia a dia do mercado de consumo brasileiro, com muita naturalidade, a indicar, como acima referi, de um lado o poder de controle dos americanos e ingleses e, de outro, uma aceitação passiva do modelo. Não é pouca coisa. Junto com os termos e expressões, vêm regras e comportamentos, nem sempre declarados. Eu mesmo aqui neste espaço já fiz, por exemplo, uma análise do Halloween no Brasil e sua capacidade de influência e direção para a aquisição de produtos esdrúxulos, além de porcarias e guloseimas que só fazem mal à saúde das crianças. Uma simples passada d'olhos no mercado brasileiro mostra uma interminável sucessão de termos ingleses. Nem preciso ficar na tecnologia, com iphones, smarthphones, blue-rays, etc., ou nos computadores e seus inputs, outputs, backups, mouse, scanner, software, hardware, etc. ou, ainda, na internet e redes sociais com o skype, facebook, o twitter, as hashtags, etc. (Aliás, permita-me um parêntese para mostrar nossa capacidade de assimilação ligeira. Essa palavra "hashtag" tão difícil de pronunciar é usada com orgulho por locutores nas rádios...). Por falar em rádio, há uma empresa de TI, que faz uma propaganda, na qual diz mais ou menos isso: "Nossa empresa conta com grande portfolio de clientes, storage, data center, service desk e field services". Na área dos automóveis e demais veículos é incrível: os automóveis possuem transmissão automática H-matic com shiftronix, freios ABS, ar condicionado com AQS (Air quality control system), tração 4X4 full time, air-bags, pneus radiais com banda larga all season passenger, blue tooth, bluemediatv, bancos de couro premium, e muitos outros adereços, em inglês, claro. O novo Honda Fit permite uma acomodação dos bancos da seguinte forma: modo utility, modo tall, modo long e modo refresh. Capisce? Para terminar, conto a história do professor de Direito que, num Congresso, assistia a uma palestra de um outro professor. Este defendia que se usassem mais expressões em latim na comunicação jurídica, por que isso era um bem inominável e um patrimônio a ser preservado. O citado professor discordava disso. Daí, levantou a mão, pediu a palavra e com o braço estendido ao alto disse: "Prezado colega, permita-me discordar, data máxima vênia..." E ficou lá, parado, examinando sua própria fala em silêncio! __________ 1O Poder simbólico. Lisboa: Edições 70, passim.
quinta-feira, 8 de maio de 2014

O direito de não ser perturbado

Meu amigo Outrem Ego estava revoltado. Numa manhã dessas - era um domingo - às 8h, bem em frente à sua casa (logo, em frente à janela de seu quarto) estacionou um carro de som, tocando músicas de carnaval e de outros tipos, cercado de jovens que ficavam apenas olhando uns para os outros diante do barulho. Ele me ligou e disse: "Será que eles têm mãe? Ou pai? Se têm, por que é que eles não levam o carro de som pra frente da porta dos genitores e ficam lá fazendo barulho?" Eu, particularmente, nem pensava mais nessa reclamação de meu amigo, que se deu antes do carnaval. Mas, lendo a noticiário dos últimos dias, lembrei. Não sei se o leitor viu, mas o PSIU - Programa de Silêncio Urbano da Prefeitura de São Paulo, fechou, administrativamente, no dia 18 p.p. o Bar Mercearia, que fica na Vila Madalena, zona oeste da Capital. Segundo as reportagens, o fechamento se deu após "anos de reclamações dos vizinhos". "Bem", pensei, "acabou dando certo e a lei foi cumprida. Só demorou alguns anos de sono e perturbação do sossego das pessoas..." Porém, o que mais me chamou atenção na reportagem foi que os clientes barulhentos estavam revoltados. Para se ter uma ideia, a manchete da matéria da Folha de São Paulo era "Clientes defendem o bar 'Mercearia' e falam até em protesto". Li o texto e vi que uma frequentadora disse: "Se fechar esse bar é o caos, a gente faz protesto"1. Uma outra amiga dela disse: "O velhinho vai querer sossego na Vila Madalena? Vai morar no Morumbi!" Comentei com meu amigo que disse: "Será que as pessoas se esqueceram de que o direito de um termina onde começa o de outro?" Parece que sim. Mas, o pior é que esse padrão, individualista e egoísta ao extremo, acaba por ser leniente em relação às demais violações e, mais cedo ou mais tarde, voltam-se para o próprio violador (quem sabe quando a citada frequentadora do bar ficar "velhinha".) O direito de não ser perturbado, mais conhecido como direito ao sossego, que é correlato do direito de vizinhança, nasce naturalmente da garantia constitucional do direito à intimidade e privacidade prevista no inciso X do art. 5º da Constituição Federal. Do mesmo modo que a intimidade e a privacidade, o direito ao sossego é um direito de negação, de interdição da ação dos outros. Trata-se, pois, da imposição de um limite físico, visando garantir a tranquilidade das pessoas. O direito ao silêncio é um direito sagrado não só por ser exercício pleno da intimidade e privacidade, mas também por compor a sadia qualidade de vida, garantida, do mesmo modo, no texto constitucional (artigo 6º). Ele é instituído como prerrogativa a todo indivíduo, que pode, por isso, impor que o outro cesse o ruído ou barulho. Falei de Constituição Federal, mas o tema em análise e a atitude dos barulhentos nos remetem a tempos mais remotos. Jesus Cristo já tinha alertado para que façamos aos outros o que queremos que eles nos façam2. Todavia, parece que na sociedade capitalista brasileira, na qual se pode verificar uma falta de educação bastante ampla aliada a um baixo nível de civilização, o lema "o outro que se dane" ou "os incomodados que se mudem" está tornando-se lugar comum. Uma pena. Quem sabe se de, de fato, como diz meu amigo Outrem Ego, o barulho pudesse ser transferido para a casa dos barulhentos ou de seus parentes, a ficha caísse! *** PS.: O direito ao silêncio é um assunto de que já tratei em minhas colunas. Como se sabe, temos leis claras a respeito e o Poder Judiciário tem decidido a favor do direito de não ser perturbado. Apresento, assim, na sequência, as principais normas vigentes e a posição do Judiciário em alguns casos. Com efeito, a lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda". Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo decreto-lei 24.645/1934 que dispõe que "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos." É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora." E o Código Civil Brasileiro garante o direito ao sossego no seu art. 1.277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Consigno que, para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si. Evidente que os danos causados são, primeiramente, de caráter moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras. A questão, portanto, ao contrário do que sempre é mostrado nos noticiários, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais. O Judiciário, por sua vez, considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente, etc. __________ 1Reportagem de Artur Rodrigues, de 24/4/2014.   2Em Mateus 7:12
E não é que aconteceu mais uma vez! O Congresso Nacional aprovou o texto da medida provisória 627, que dentre seus dispositivos inclui um que estabelece um teto para a aplicação de multas às operadoras de planos de saúde, beneficiando as empresas. O plenário do Senado aprovou o texto que veio da Câmara com este aditivo de contrabando, como se diz, inserido numa MP que trata de outro assunto, o da tributação do lucro das empresas no exterior. Aguarda-se o veto da Presidenta da República, o que, diga-se, restabeleceria a lei a e ordem. Eu já tive oportunidade de tratar dessa questão, que deveria simplesmente nem existir, pois a lei é clara a respeito. Mas, tendo em vista mais essa tentativa e que envolve o direito dos consumidores, volto ao tema, lembrando os pontos principais. Com efeito, "acostumou-se" por aqui a produzir leis com um objetivo expresso e declarado e, aproveitando a oportunidade, colocar em vigor normas cuidando de assunto diverso (e muito diverso!). Em matéria de direito do consumidor, tal conduta já foi adotada mais de uma vez. A doutrina e também algumas decisões judiciais têm deixado claro que a prática é inconstitucional por violação à LC 95 de 26/2/1998. Sem entrar na discussão sobre a existência ou não de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, eis que não interessa especificamente para a solução do problema nem a modifica, fico apenas com uma das posições possíveis que é a de que, a partir de 5 de outubro de 1988, quando entrou em vigor a nova Carta Constitucional, não há mais que se falar em hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, isto é, a lei complementar não determina as condições de validade da lei ordinária. No entanto, apesar de não ser condicionante em função do conteúdo, ao menos uma Lei Complementar, a citada LC 95, exerce controle no modo de produção das demais leis, por se tratar de norma geral dirigida ao próprio legislador. O texto constitucional dá mais, digamos assim, "peso" normativo à lei complementar, reservando para ela temas legislativos de relevo. As leis complementares têm como função tratar de certas matérias que a Constituição Federal entende devam ser reguladas por normas, cuja aprovação exija controle mais rígido dos parlamentares. Por isso, o quorum legislativo exigido para sua aprovação é especial; é o da maioria absoluta (CF, art. 69: "As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta"). E as matérias para as quais é feita essa exigência de votação aparecem taxativamente no texto constitucional. Por exemplo, o art. 93, que trata do Estatuto da Magistratura; o art. 131, que disciplina a Advocacia Geral da União; o art. 192, que cuida do sistema financeiro nacional etc. Portanto, o que diferencia a lei complementar da ordinária é a matéria específica e o quorum qualificado de aprovação para as leis complementares e não exatamente uma posição hierárquica. Remanesce, também, uma dúvida, às vezes apontada pela doutrina, em relação ao tema da hierarquia, por conta da existência de uma específica LC, a suso apontada de número 95, que dispõe sobre a elaboração e consolidação das leis. E, em função do conteúdo dessa norma, argumenta-se que ela teria que ser hierarquicamente superior às leis ordinárias, para que estas a pudessem obedecer. Penso que esse argumento é inconsistente. Em primeiro lugar, se isso fosse verdade, ao menos um tipo de norma não precisaria obedecê-la: exatamente as demais leis complementares, que estão no mesmo patamar, mas não é isso que se espera, conforme veremos. Em segundo lugar, não é o conteúdo da norma que define sua hierarquia, mas sua posição jurídico-política aceita historicamente pelos operadores do direito e em geral por toda a sociedade. A citada LC 95 é norma de organização. Diz como o próprio legislador deve produzir um texto de lei, separando-o por capítulos, artigos, parágrafos etc. De fato, haverá conflitos - como há - entre essa norma complementar e outras normas do sistema, na medida em que o legislador não a siga à risca. No entanto, a solução do conflito, se puder ser dada, não se fará pela via da hierarquia, mas sim pela da solução interpretativa sistêmica. O intérprete terá de verificar se o sistema, dando qualificação especial de conteúdo à lei complementar, traz solução capaz de adequar os dois tipos de norma. Não se trata, portanto, de um problema de hierarquia, mas de diálogo. É caso do já conhecido diálogo das fontes, tema bastante atual e necessário ao exame dos novos modelos jurídicos vigentes no mundo contemporâneo, como ensina com muita precisão em suas obras a Profª. Cláudia Lima Marques. Ora, a LC 95 é verdadeira lei geral de elaboração e consolidação das leis. Veja o que diz seu art. 1º e parágrafo único: "Art. 1º A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta Lei Complementar. Parágrafo único. As disposições desta Lei Complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo". E uma das importantes funções e, talvez, a principal, é aquela estabelecida no art. 7º. Extrai-se da teleologia desse artigo o claro intuito de impedir uma prática escusa que consiste em se aprovar uma lei, cuidando de determinado assunto e, "escondido" entre seus artigos, colocar-se outro tema totalmente desconectado do objeto da norma editada. O texto do art. 7º é preciso nesse sentido: "Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa". Antes de prosseguir, chamo atenção para o fato de que, como acima pode ser lido, é o art. 1º de qualquer lei que indica seu objeto e seu âmbito de aplicação. É importante atentar para esse ponto. É verdade que o art. 18 da LC 95 diz que "eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento". Mas, claro, entende-se por inexatidão formal mero erro que seja incapaz de desnaturar a norma, como, por exemplo, um parágrafo estar numerado erradamente ou artigos com números repetidos, etc. O "contrabando" é a técnica de inserir um texto para cuidar de assunto diverso do regulado pela norma, como é o caso da MP referida. Esse modo de criação legislativa ao que se diz, visa, se não enganar os destinatários, ao menos ocultar da população e retirar do debate aberto questões de relevo. Na verdade, esse tipo de produção legislativa põe à mostra o poder de pressão dos grupos de interesse que atuam nos bastidores do sistema. Veja-se o exemplo da MP 1.925/99, que foi convertida na lei 10.931/2004. Esta institui o "regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação" (art. 1º). Essa lei, com esse objeto, também de forma sub-reptícia, nos arts. 26 e s., criou a Cédula de Crédito Bancário, um título de crédito a ser utilizado por instituições financeiras em operações de crédito, ou seja, um novo objeto diferente daquele instituído por ela. Veja-se a doutrina a respeito: "Criando e regulando cédula de crédito bancário, a LPAII desrespeitou flagrantemente o artigo 7º da lei complementar - LC 95/98 - que regula a elaboração e redação de leis no País, ofendendo-se a garantia do due process of law, maculando-se de inconstitucionalidade, no tópico que cria e regula a cédula de crédito bancário. Essa inconstitucionalidade, por ofensa às regras do processo legislativo, é, a um só tempo, formal e substancial. São inconstitucionais, portanto, os arts. 26 a 46 da LPAII" (Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, 10. ed., São Paulo: RT, 2007, p. 988). E no mesmo sentido a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao afirmar que "...a lei ordinária, o decreto-lei e a lei delegada estão sujeitos à lei complementar, em conseqüência disso não prevalecem contra elas, sendo inválidas as normas que a contradisserem". (Do processo legislativo. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 247) Relembro o alerta de Otto Von Bismarck que dizia que "Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis". E nós continuamos a produzir normas de contrabando. O paradoxo está no fato de que a LC 95 foi editada pelo próprio Poder Legislativo num momento de alta sabedoria. Vai entender!
Meu amigo Outrem Ego veio-me com este pensamento, um tanto quanto nostálgico. "Há muitos anos", disse ele, "Havia um jornal, o Notícias Populares, que nós dizíamos que se fosse espremido verteria sangue. Pois, não é que agora, eu, que ouço rádio todas as manhãs, sinto que estou ouvindo o tempo todo as mesmas manchetes do extinto jornal. E não adianta trocar de estação: todos os noticiários falam da mesma coisa, isto é, crimes, violência sexual e algo acrescido como corrupção, miséria, injustiças etc"1. Mas, meu caro leitor, o foco dele era outro. Meu amigo disse que, de fato, a culpa não é dos jornalistas e repórteres, que são obrigados a divulgar as mazelas da sociedade brasileira. Isso é a realidade ou, nada mais que a verdade ou parte dela. O que chamava a atenção dele é que, prestando atenção aos programas, ele percebia dois mundos muito nítidos e bem diferentes: um, o da realidade violenta e cruel; outro, o das propagandas, onde tudo é belo, respeitoso, todos sorriem, são educados, as coisas funcionam bem, enfim, um mundo ideal. "Vivemos, pois, em dois mundos: um real, que nos aflige e outro, fantasioso, no qual nos refugiamos, um mundo de ilusão". De fato, a primeira constatação é básica. O jornal Notícias Populares publicava a verdade, como anunciava, isto é, a realidade nua e crua. A História prosseguiu seu caminho na direção da deterioração da sociedade e de tal modo pungente, que nenhum noticiário mais pode ignorar. Atualmente, se "espremêssemos" os jornais impressos ou se pudéssemos "espremer" os jornalísticos das rádios e tevê "sairia sangue". A segunda constatação é também evidente: no mundo da fantasia da publicidade comercial e também da propaganda política, tudo parece funcionar muito bem. E é isso que, em parte, leva o consumidor às compras, muitas delas que não deveriam ser feitas. Porém, há mais. Examinando-se os anúncios publicitários, num primeiro momento, o que se percebe é a intenção de levar o público a comprar os produtos e serviços oferecidos. Porém, dando um passo adiante, vê-se que, além disso, a publicidade quer ir além. Ela pretende indicar um certo modo de agir, quer dar a direção de um comportamento a seu público alvo, quer também gerar crenças e modos de pensamento. É nesse sentido que se diz que a publicidade funciona como ideologia: incutindo crenças e valores nos consumidores. Jogado a própria sorte de seu dia-a-dia atribulado, o consumidor assiste ou ouve aos anúncios publicitários como uma espécie de válvula de escape. Realmente, é mais agradável ouvir um anúncio do novo e delicioso panetone que está sendo vendido no período de páscoa que ficar sabendo que alguém foi assassinado, esquartejado e as partes do seu corpo foram espalhadas pela cidade; melhor descobrir que é gostoso tirar férias no Caribe que saber de toda roubalheira e corrupção que campeia pelo país afora etc. - um longo etc. de dor e alívio. Com isso, as chances de influência do apelo publicitário aumentam. Claro que não impedem que o próprio anúncio seja ruim. Mas, é preciso treinar os olhos e ouvidos para entender. Explico. O publicitário, naturalmente, pretende seduzir o público e convencê-lo de que o que ele mostra e diz é o que vale e deve ser seguido. Só que, às vezes, erra. Da realidade não se pode falar em erro, apenas verdade ou não. Nos anúncios - além do aspecto ético e legal de que devem dizer a verdade - há tropeços e inconsistências, sutis ou brutas. E também arrogância, prepotência, machismo e outros tipos de violações escancaradas ou não. Após eu ter feito essa colocação, meu amigo Outrem Ego lembrou de um exemplo. Num anúncio de bebida energética, o piloto Fernando Alonso diz: "Eu aguento mais pressão numa curva que você a vida inteira". E, como disse meu amigo: "Vai ser pretensioso assim lá nas suas curvas. Você apenas dirige um automóvel, bem preparado e em pistas planejadas! Quer pressão? Vá morar em favelas, lutar na guerra, ficar desempregado e passar fome". E completou: "Por que você não experimenta a pressão de dirigir nas ruas esburacadas de alguma cidade brasileira e tenta ficar tranquilo nos nossos congestionamentos monstruosos diários e eternos!". Realmente, muito arrogante esse piloto. Erro crasso de quem produziu o texto, mas sabe-se lá, como se trata de um confessional, é possível que o tal piloto se sinta assim mesmo, melhor que os outros mortais. Sabe-se lá. O problema é que nem sempre os equívocos e valores que são transmitidos são perceptíveis. Eu, já aqui nesta coluna, mais de uma vez, referi a machismo das publicidades de cervejas, que violam abertamente as regras do Código de Defesa do Consumidor. Todavia, apesar da lei, eles estão sendo produzidos e veiculados há dezenas de anos, sem problemas. Aliás, fatalmente os dois mundos se encontram e nem sempre da melhor maneira, o que ocorre quando as promessas do mundo ficcional não são cumpridas, como, por exemplo, experimentam os usuários de internet banda larga não tão larga assim e com velocidade de tartaruga, ou como os possuidores de milhagens que não conseguem passagens para o destino desejado, ou tomadores de empréstimos que descobrem que baixos percentuais de juros escondem altos custos das demais taxas cobradas, ou os turistas que compram pacotes para lugares paradisíacos e que de paraíso encontram apenas as fotos dos anúncios, etc. De todo modo, a regra geral da publicidade comercial (e em parte também da política) é que ela seja agradável, atraente, bonita de se ver e ouvir e faça o consumidor sonhar. Ela cumpre essa função de tirar por alguns instantes o indivíduo de seu duro chão - esburacado ou não! Em teoria, esse modo paradoxal de vivenciar o que se lhe apresenta deve ser angustiante, mas como mostrei no artigo da semana passada, essa a angustia e outros tipos de aflições são muito boas para o mercado, pois para fugir delas o consumidor vai às compras... __________ 1O jornal Notícias Populares foi um jornal que circulou entre 1963 e 2001 na cidade de São Paulo e que ficou conhecido por suas manchetes violentas e sexuais. Ele veiculava um slogan: "Nada mais que a verdade".
Volto ao tema da felicidade e mais uma vez focado no problema do consumismo. Eu já tive oportunidade de levantar um questionamento a respeito da felicidade como produto de consumo e, na oportunidade, tentei mostrar que, ao que tudo indicava, o mercado promete, explícita ou implicitamente, a felicidade, que pode ser alcançada a partir e pela aquisição de produtos e serviços, mas que isso funciona como um chamariz para as compras e como uma ilusão. As propostas feitas mostram que os fornecedores conhecem profundamente os consumidores em suas dificuldades, necessidades, anseios, desejos, etc. e, por isso, por trás de muitas ofertas, surge essa promessa como uma espécie de esperança apresentada. Do ponto de vista do consumismo, isto é, das compras exageradas de produtos e serviços, muitas delas desnecessárias, isso talvez explique um círculo vicioso contínuo e interminável: o consumidor vai ao mercado procurar a felicidade - ainda que isso não esteja claro com todas as letras em sua mente - e, para tanto, compra sapatos, relógios, roupas, viagens, veículos, etc. Mas, como nem sempre se consegue chegar ao objetivo de se sentir feliz por esse meio, continua comprando na esperança vã de atingi-lo. Muito bem. Definir felicidade não é tarefa fácil. É possível encontrar-se dezenas de opiniões e posições no âmbito da filosofia, da religião, da psicologia, etc. A felicidade seria a ausência do sofrimento; um estado de plenitude, de êxtase ou júbilo intenso; os momentos de paz e tranquilidade; um estado durável de emoções positivas, etc. No cristianismo, por exemplo, o amor é um modo de atingimento da felicidade, no que se inclui a caridade. É o amor a Deus sobre todas as coisas e a seu próximo como a si mesmo, que faz com que a pessoa ganhe sua vida.  Querer encontrar a felicidade no receber é egoísmo e frustrante, porquanto há mais felicidade em dar do que em receber. Amor é doação e o amor que se dá nunca se perde: tanto mais que se o dê, mais ele cresce. No que respeita às sociedades capitalistas, há uma difusão de que felicidade é algo ligado ao dinheiro, à aquisição de bens. São bem conhecidos os slogans, que, com sua força simbólica, reforçam esse aspecto puramente materialista e de aquisições: "Dinheiro não compra felicidade, mas manda busca." "Dinheiro não compra felicidade, mas é melhor ficar triste numa mansão ou num carrão último tipo." "Dinheiro não compra felicidade, mas compra algo bem parecido."  Não pretendo fazer uma discussão sobre o conceito nem buscar uma melhor definição. Basta que aceitemos o fato de que as pessoas  desejam ser felizes. Mas, proponho uma reflexão: será que o mercado de consumo quer mesmo que as pessoas  sejam felizes? Recentemente, recebi um texto da professora Mirella Caldeira Fadel, doutora em Direito pela PUC/SP, no qual ela questiona exatamente a promessa de felicidade feita aos consumidores, dizendo que, ao contrário do que parece, tudo leva a crer que o mercado prefere consumidores infelizes aos felizes. Diz a professora: "A felicidade não é eterna, ao contrario, é efêmera. Ninguém é feliz. A pessoa está feliz. Temos momentos de felicidade, mas não conseguimos ser feliz o tempo todo. A esperança de quem se sente feliz é poder eternizar o momento". Assim, a felicidade é passageira e é também uma utopia, pois não se realiza plenamente, pelo menos para milhões ou bilhões de pessoas. Acontece que, como utopia, ela movimenta os indivíduos. Como diz o escritor uruguaio Eduardo Galeano: "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar". Tudo leva a crer que há aí mais um dado de controle e inteligência do sistema capitalista: a alimentação constante e bem engendrada dessa utopia da conquista da felicidade. A professora Mirella complementa: "... essa felicidade não tem a ver com o capitalismo contemporâneo. Ela não é alcançada pelo consumo; quem esta feliz nem precisa consumir"; "... quem está feliz, vê beleza nas coisas mais simples. Aprecia o pôr do sol e uma tarde no parque com os filhos. E basta. Não há vazio a ser preenchido". E, como entre um momento de felicidade e outro, as pessoas voltam, digamos assim, à realidade nua e crua com seus problemas, temores, desejos, alegrias, sofrimentos etc., surge o perigo: a oferta de produtos e serviços para suprir essas necessidades. Como explica a professora Mirella: "Os intervalos entre esses momentos felizes é que são perigosos. Porque a angústia, a ansiedade, o sofrimento e a sensação de vazio motivam as pessoas a consumirem, visando atenuar essas sensações. Eis, pois o estado de espírito que o capitalismo precisa"  . Ou, dizendo em outros termos, pessoas felizes não são boas para o capitalismo, pois consomem menos ou nem consomem. Se muitos consumidores tornassem-se felizes em muitos momentos, se conseguissem prolongar o tempo dessa sensação, desviariam a atenção das compras. De fato, o excesso de consumo não pode ser bom. Não só o excesso, como o gasto financeiro que o acompanha e que é estimulado pelo mercado. Nós, estudiosos consumeristas que combatemos o consumo exacerbado, desmesurado, descontrolado, desnecessário temos, então, um desafio: encontrar modos de realização dessa utopia. Como tornar as pessoas mais felizes, mais tempo? Talvez, indicando os caminhos da simplicidade; da volta à natureza; do prazer em admirar a beleza das flores e dos jardins; e do sol, quando nasce e quando se põe; e também da lua em todas as suas fases e formas; com a alegria da aproximação com os amigos e da convivência em família, enfim, das coisas que valem a pena, independentemente de estarem sendo anunciadas e vendidas em shopping centers ou lojas reais e virtuais com preços à vista ou a prazo. Sei que não incentivar o consumo é algo que vai contra toda política econômica da atualidade, cuja manutenção e crescimento são baseados quase que exclusivamente no consumo e que, aliás, por isso mesmo está destruindo o planeta. Bem, mas não é problema de quem quer ser feliz sem consumir. Se o consumo decrescer por esse motivo - pessoas que estão felizes - certamente encontrar-se-á outro caminho, e até mais justo, equilibrado e que respeite a natureza e as pessoas visando à manutenção do progresso tecnológico e econômico. Eis, pois, essa teoria para reflexão: mais felicidade, menos consumo. Para terminar, deixo indicado um texto conhecido de uma placa sobre a felicidade que alguém colocou na porta de entrada de sua casa:  Todos trazem felicidade a esta casa.Uns quando entram, outros quando saem.
"Todo filme é político. Nada mais político do que os filmes de super-heróis." (Costa-Gavras) Faço outra citação, mais longa: "Pressionada pela necessidade de mercados sempre mais extensos para seus produtos, a burguesia conquista a terra inteira. Tem que imiscuir-se em toda parte, instalar-se em toda a parte, criar relações em toda a parte. Pela exploração do mercado mundial, a burguesia tornou cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, retirou da indústria sua base nacional. As antigas indústrias nacionais foram aniquiladas e ainda continuam a ser nos dias de hoje. São suplantadas por novas indústrias cuja introdução se torna uma questão de vida ou de morte para toda as civilizações: essas indústrias não empregam mais matérias-primas locais, mas matérias-primas provenientes das mais longínquas regiões, e seus produtos acabados não são mais consumidos 'in loco', mas em todas as partes do mundo, ao mesmo tempo. As antigas necessidades, antes satisfeitas por produtos locais, dão lugar a novas necessidades que exigem, para sua satisfação, produtos dos países e dos climas mais remotos. A auto-suficiência e o isolamento regional e nacional de outrora deram lugar a um intercâmbio generalizado, a uma interdependência geral entre as nações. Isso vale tanto para as produções materiais quanto para as intelectuais. Os produtos intelectuais de cada nação tornam-se um bem comum. O espirito nacional tacanho e limitado torna-se cada dia mais inviável, e da soma das literaturas nacionais e regionais cria-se uma literatura mundial". Em 2012, o cineasta Costa-Gavras, atualmente com 81 anos, lançou seu último filme, O Capital, e em 2005, o anterior O corte. Como se sabe, em vários de seus trabalhos, o Diretor grego investiu contra ditaduras e a violência humana dos vários fascismos, apontando crimes e criminosos reais (cito apenas parte: Z, Missing, Estado de sítio, Muito mais que um crime, Amém etc.). Nesses dois de 2005 e 2012 mostrou as vicissitudes do mercado capitalista. Há muito a dizer dos dois filmes (que vale a pena serem vistos, assim como os demais), e anoto desde logo um dado interessante, relativamente ao último: O capital é uma adaptação do livro homônimo escrito por Stéphane Osmont, economista francês, egresso dos altos quadros dos bancos europeus. O livro, assim como o filme, investem contra o capital especulativo e a ganância dos banqueiros pelo mundo afora e que poderia gerar um crise internacional. A crise veio mesmo, em 2008/2009, como se sabe, mas o livro foi escrito em 2004, algo premonitório. A citação mais longa que abre este artigo, e que descreve muito bem os caminhos do capitalismo, eu retirei do famoso Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848, e escrito por Karl Marx e Friedrich Engels1, livro também premonitório em vários aspectos. Na verdade, o capitalismo contemporâneo tornou-se avassalador, penetrando com seu modelo de exploração em todas as partes do planeta, destruindo o meio ambiente global, e também as indústrias e o comércio locais e regionais, as tradições e as culturais locais. No modelo atual, a lucro foi globalizado e o prejuízo localizado. Recentemente, a ONG britânica OXFAM revelou que o patrimônio de apenas 85 pessoas, as mais ricas do mundo, é igual às posses de metade da população mundial, isto é, mais de três bilhões e meio de seres humanos. O filme O capital, de Costa-Gavras, é repleto de citações com forte ironia e cinismo: "Os estados democráticos não podem mais se livrar dos bancos que os asfixiam"; "O luxo é democrático! É um direito de todos!" "A moral do capital é deixar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres." Coisas de filme? Nem tanto. No programa "The Lang and O'Leary Exchange", da TV CBC canadense, de 20 de janeiro deste ano, o bem sucedido empresário Kevin O'Leary, para comentar a pesquisa que acima citei, mostrando a extraordinária concentração e injusta distribuição de renda, declarou: "É uma grande coisa, porque isso inspira todo mundo. Faz com que as pessoas olhem para o 1% e digam 'quero fazer parte dessa turma' e passem a trabalhar duro para chegar ao topo. É uma notícia fantástica, é claro que eu aplaudo. O que poderia estar errado com isso?" A afirmação foi tão surpreendente que sua colega de Programa, Amanda Long, perguntou: "Verdade? Então, uma pessoa que vive na África com um dólar por dia, ao acordar de manhã, deve pensar que poderá ser um Bill Gates?"2. No filme O capital, o personagem principal é Marc, um alto executivo que, com a doença do presidente de um grande banco francês, acaba assumindo o cargo. Assim que assume, descobre que foi colocado num jogo, no qual será usado. E a trama mostra várias jogadas internas da instituição e na relação com outros parceiros. Para satisfazer os acionistas, Marc é obrigado a fazer demissões em massa. Há uma demonstração de que, a cada demissão, o valor das ações do banco sobe. Ele acaba demitindo dez mil empregados, fazendo o banco valorizar-se sobremaneira. Claro que a versão dada publicamente para as demissões é outra. Explica-se que era a única forma de impedir a quebra da empresa e com isso salvar os empregos dos outros, num conjunto de mentiras contadas muitas vezes em todos os lugares deste planeta capitalista. Trata-se apenas de um jogo, no qual as pessoas perdem suas economias e vão à miséria como se fosse algo natural. As pessoas acreditam? Após contar mais uma mentira, Marc, rindo, diz em voz baixa para sua mulher que está ao lado: "Agora aceito dar qualquer entrevista. A gente diz uma bobagem e pronto". O filme mostra claramente o esquema da especulação financeira e dos indivíduos que dela vivem. Marc, apesar de surgir nas telas com relances de conflitos de consciência, decidira enriquecer. E não há limites para a quantidade de dinheiro que se ganha, por que a partir de certo ponto não é mais o dinheiro o que importa, e sim o poder, algo que não se pode saciar. Marc vivia algumas contradições e, quando assumiu, tentou evitar práticas que envolviam lavagem de dinheiro, mas percebeu que seria difícil escapar das armadilhas que existiam pelo caminho. Há um ensaio de tentar mostrar que havia alguma diferença entre o velho capitalismo europeu, digamos assim, ético, e o vale-tudo norte-americano. Porém, a conclusão é que, de fato, o capitalismo é o mesmo em todos os cantos do mundo. No filme anterior do Diretor grego, O corte, o jogo do mercado é desviado para a luta da sobrevivência entre os empregados. Ironicamente, o término da concorrência entre as empresas (fenômeno verificado fortemente a partir do final do século XX, com as fusões, incorporações e demissões em massa), gerou, como gera, uma disputa entre os desempregados. Uma concorrência que, claro, já se constatava no Século passado. Para ficarmos com um depoimento insuspeito sobre a competição entre empregados, lembro Albert Einstein, que, em meados do século XX, reclamava dos métodos de produção. "Para corresponder de modo efetivo às necessidades de hoje, toda a mão de obra disponível é amplamente inútil. Daí o desemprego, a concorrência mansã entre os assalariados e, junto com essas duas causas, a diminuição do poder de compra e a intolerável asfixia de todo o circuito vital da economia".3 Voltando ao filme, cuja ficção envolve uma realidade incontornável: os empregados disputam corpo a corpo as vagas existentes no mercado e muitos fazem qualquer coisa para conquistá-las e mantê-las. A narrativa mostra a vida de Bruno, um executivo que trabalhou 15 anos numa fábrica de papel e que foi despedido quando a empresa efetuou um processo de reestruturação: a fusão feita com uma concorrente e o ganho de "sinergia"(leia-se: geração de desemprego, dentre outras mazelas). Apesar das tentativas, passam-se dois anos sem que Bruno consiga um novo emprego. Os problemas domésticos se agravam, a esposa trabalha em dois lugares se sujeitando aos baixos salários, um dos carros da família é vendido, o padrão de consumo cai, o filho comete furtos, enfim, a crise se instala. Desesperado, o executivo desempregado bola um plano para conseguir uma colocação: ele mapeia a concorrência, isto é, outros executivos especialistas no setor de papéis, que também estão desempregados e, por isso, são concorrentes em potencial e decide eliminar um a um, assassinando-os. Não contarei o final do filme, para não estragar a expectativa de quem quiser assistir. Apenas digo que o enredo é terrivelmente realista, apesar de fictício. Para terminar, retorno ao filme O capital para referir o momento em que Marc, que está na reunião de Diretoria e de acionistas do banco como Presidente, dirige-se à plateia e diz: "Meus amigos, sou seu Robin Hood moderno, continuarei roubando dos pobres para dar aos ricos." É. Este é o mundo capitalista, no qual estamos vivendo! __________ 1Trecho extraído das p. 29 e 30 da edição L & PM Pocket. Porto Alegre: L&PM Editores, 2001.2Extraí os dados do seguinte endereço eletrônico em 23/3/2014. 3"Como vejo o mundo". São Paulo: Saraiva/Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2011, os. 91/92.
quinta-feira, 20 de março de 2014

Você acredita em tudo o que lê, vê e escuta?

Conta-se a seguinte piada de um menino conversando com sua mãe: - Manhêêêê! - grita o menino. - O que foi, meu filho? - Lá na escola, os meus coleguinhas estão dizendo que eu sou um grande mentiroso! - Larga de bobagem, meu amor. Você ainda nem está na escola! * * * Nem toda mentira tem assim perna tão curta. Mas, nessa área, há episódios pitorescos produzidos no mercado, tanto do mundo real como do virtual. E mais: na atualidade, a entrega da informação e sua força viral ou memes de web ou internet, como se diz, se propagam a tal velocidade e geram uma quantidade tão grande de reproduções que, muitas vezes, essa quantidade acaba sendo vista como medida da verdade. Há de tudo, desde coisas sem importância e bobagens engraçadas até boatos causadores de danos, verdades idem e falsidades planejadas. Recentemente, li num site informativo que um bispo, líder de uma grande igreja evangélica do país, acreditando no poder da língua inglesa - isto é, vivendo neste ambiente em que o inglês, ao menos aparentemente, domina -fez uma pregação extraordinária para seus seguidores: ele proibiu que os fiéis de sua Igreja consumissem a maionese da marca Hellmann's. Disse o bispo que, traduzindo o nome da maionese da língua inglesa para a portuguesa, o resultado seria 'homem do inferno', já que hell significa inferno e man, homem. Para reforçar seu ponto de vista, ele teria dito aos seguidores: "Você passaria o satanás no seu pão? Colocaria ele na sua salsicha ou comeria ele na sua salada com a sua família?". Estranho e engraçado! O problema do bispo era que, como se sabe, a colocação da apóstrofe após o nome e antes do ésse significa que algo pertence ao nome vindo antes. E Helmmann é o nome do criador da maionese, Richard Helmann, um alemão que a inventou e começou a vendê-la em 1905. Além disso, como a palavra tem origem alemã, na pior das hipóteses poderia ser traduzida por homem da luz ou gente da luz (hell = claro, iluminado, luminoso e man = gente, alguém), muito ao contrário do que ele pregou. Engraçado eu disse, mas falso. A notícia era, como é, falsa e já pipocou na web muitas vezes (a notícia que li trazia foto e nome do bispo!). *** Em matéria de Direito do Consumidor, por exemplo, o dever de informar é princípio fundamental no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Com efeito, na sistemática implantada pelo CDC, o fornecedor está obrigado a prestar todas as informações acerca do produto e do serviço, suas características, qualidades, riscos, preços etc., de maneira clara e precisa, não se admitindo falhas ou omissões. E, naturalmente, oferecendo informações verdadeiras. Trata-se de um dever exigido mesmo antes do início de qualquer relação. A informação passou a ser componente necessária do produto e do serviço, que não podem ser oferecidos no mercado sem ela. Ademais, o CDC tem também estabelecido o princípio da transparência, que se traduz na obrigação de o fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do contrato que está sendo apresentado. Assim, da soma desses princípios, compostos de dois deveres - o da transparência e o da informação -, fica estabelecida a obrigação de o fornecedor dar cabal informação sobre seus produtos e serviços oferecidos e colocados no mercado, bem como das cláusulas contratuais por ele estipuladas. Sabe-se que a web - mas não só - é um campo fértil para que sejam produzidas toda sorte de enganações, ao lado de tudo o que há de bom por lá. A pergunta que faço é a do título deste artigo: dá para acreditar em tudo o que é publicado, divulgado, mostrado, enfim, naquilo que se nos surge diariamente na web, nos folhetos, nos anúncios de tevê, revistas, jornais e até via SMS? Coincidentemente, enquanto escrevia este artigo, recebi via SMS o seguinte texto: "Parabéns! Você ganhou a portabilidade premiada! Ligue agora... e receba grátis instalação da TV, 3G e o melhor aparelho fixo com DDD ilimitado e de graça!" Por que é que o consumidor acredita nesse tipo de propaganda, que utiliza um dos motes mais antigos e fajutos da publicidade? Sei que, às vezes, a informação é bem feita e nos engana, como talvez seja o caso citado do Bispo acima e sei também que quando é bem feita demora para cair a máscara da falsidade e, por isso, podem acontecer muitos estragos. Recentemente, a ministra dos Direito Humanos, Maria do Rosário, sofreu injúria com a divulgação de notícia falsa a seu respeito e na semana passada circulou na web uma foto de uma camiseta de uma escola de Brasília, na qual estaria estampado "Centro de Encino Médio", o que teria causado problemas para os próprios alunos da escola. A foto seria uma montagem feita de "brincadeira". Enfim, são apenas dois exemplos divulgados nos últimos dias, dentre as centenas de outros casos. E a moda de gerar informação falsa, parece que pegou: há um site na web que ensina como fazer e divulgar notícias falsas via Facebook. Seu título é "notíciafalsa.com" e a chamada de abertura diz: "Divirta-se com seus amigos no Facebook!" O site ensina como produzir a notícia falsa, incluir fotos, etc. Trata-se de uma pegadinha, anunciam: "Com o NoticiaFalsa.com você pode criar e compartilhar notícias falsas que deixarão seus amigos de cabelo em pé. Crie um link falso para sacanear sua turma no Facebook. Quem sabe ele não se transforme em um viral?" Não sei se a divulgação, no caso, fica parecendo verdade, pois no exemplo que está na página do site, ao clicar na notícia surge uma frase deixando clara a brincadeira: "É pegadinha!". Há, como se sabe, muitos comediantes e metidos a tal que inventam situações falsas que acabam se passando por verdadeiras. Muitos são explicitamente falsos e têm apenas a função de divertir e, muitas vezes, divertem mesmo. O problema surge quando a informação e/ou imagem torna-se viral e é divulgada como se fosse verdadeira, ligada a alguma específica pessoa, pública ou não. Não nos esqueçamos de que nesses casos, é possível enquadrar o fato em um ou mais dos crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria). Mas, nem tudo é proposta de falsidade na web. Até ao contrário: há um site já antigo - e, por isso, bem conhecido - especializado em desvendar as mentiras. Trata-se do "e-farsas.com", cujo slogan diz: "Descobrindo farsas na web desde 2002!". E, de fato, o site é muito interessante, merecendo uma visita. Lá há dicas de como, desde logo, tentar descobrir se a informação é falsa ou verdadeira e há relatos de dezenas de casos desvendados (inclusive o da ministra que citei acima). *** É Isso! Se antes já era difícil saber como lidar com as informações em geral, conhecendo-se a fonte ou não, atualmente a dificuldade é muito maior. Aliás, como toquei no assunto e apenas para terminar, lembro que o maior problema de uma fofoca está exatamente no fato de a pessoa que a recebe conhecer a fonte e, muitas vezes, é por isso que acredita! __________ 1Informação retirada do site da Helmann's.