COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Os vícios dos serviços - 4ª parte

Hoje continuo a análise dos vícios dos serviços regulados no CDC (lei 8078/1990). Lembremos a redação do art. 20 do CDC: "Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço. § 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor. § 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade." Variações decorrentes da natureza do serviço O que o legislador não fez - e deveria - foi inserir no conceito de vício de qualidade do serviço a garantia de que não é vício aquele relativo às variações decorrentes de sua própria natureza. Recorde-se que no caput do art. 18, acertadamente, o legislador fez essa ressalva. Colocou que não são vícios de qualidade do produto os relativos às "variações decorrentes de sua natureza". No art. 20, para cuidar do vício de qualidade do serviço, omitiu essa consideração. Tem-se, então, mais uma vez, de lançar mão da interpretação extensiva e sistemática para preencher a lacuna deixada pelo redator da lei. É que também os serviços terão variações naturais, que não podem ser tidas como vícios, em especial aqueles que são oferecidos com um misto de produtos. Lembre-se que há vários serviços que são prestados juntamente com produtos, que são deles partes inerentes. A norma do art. 18, aplicável também ao art. 20, pretende salvaguardar certas alterações e até deteriorações que não chegam a se tornar impropriedade e que afetam o resultado do serviço prestado. Devido à natureza específica do serviço, a modificação é inexorável, não constituindo vício, e por isso fez bem a lei em resguardá-los para evitar a confusão dessa alteração com o vício. Vejamos dois exemplos: a) o do serviço de pintura de parede, cuja tinta utilizada irá naturalmente, com o passar do tempo, escurecer ou clarear; b) o do serviço de instalação de armários em paredes de madeira, cuja acomodação física natural alterará parcialmente a posição e confrontação dos armários instalados. Note-se, porém, que variações decorrentes de sua própria natureza não são aquelas naturais, decorrentes do uso. Essa modificação gera o que se chama desgaste: o carpete instalado, de tanto ser pisado, vai descolando do chão; o freio do veículo colocado pelo mecânico aos poucos não funciona tão bem; a porta consertada do armário ganha uma folga de tanto ser aberta e fechada. São casos de variações decorrentes do desgaste que não tornam o serviço viciado, dentro do normal e previsível para aquele serviço prestado. A cessação do problema Seguindo a oração do caput do art. 20, chega-se ao direito que tem o consumidor de exigir a cessação do problema. Examinemos de perto. A primeira observação a ser feita é a de que, ao contrário do estabelecido na regra do vício de qualidade do produto (art. 18), pela qual o fornecedor tem 30 dias para suprir o vício e somente depois desse tempo é que pode o consumidor exercer o direito de substituição, restituição ou abatimento do preço (§ 1º do art. 18), no caso da norma do inciso I do art. 20 o fornecedor não tem qualquer prazo. Constatado o vício, pode o consumidor exigir de imediato as garantias oferecidas na lei. É mais justa a estipulação do art. 20, uma vez que a aplicação concreta do exercício dos direitos do consumidor, somente após o término do período de 30 dias, acaba atentando contra o protecionismo legal do próprio CDC. Antes de avaliar os incisos do art. 20, examino o final da redação do caput, que dispõe que as garantias fixadas nos incisos I a III é exercitável pelo consumidor "alternativamente e à sua escolha". Escolha do consumidor É a mesma regra instituída no § 1º do art. 18 e no caput do art. 19. Trata-se de direito objetivo posto à disposição do consumidor, que exerce a opção por qualquer das alternativas, sem ter de apresentar qualquer justificativa ou fundamento para tanto. Basta a manifestação da vontade; apenas sua exteriorização objetiva. É um querer pelo simples querer manifestado. + + +   Continua na próxima semana.
quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Os vícios dos serviços - 3ª parte

Hoje continuo a análise dos vícios dos serviços regulados no CDC (lei 8.078/90). Lembremos a redação do art. 20 do CDC: "Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço. § 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor. § 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade." Consumir e usar Indico agora outra falha do legislador por ausência de uso de vocábulos. Quando comentei o art. 18, especialmente o § 6º, tive oportunidade de apontar a indicação de dois verbos postos na ação do consumidor em relação aos produtos: "usar" e "consumir". Na oportunidade, dissemos que, ao colocar no § 6º o vocábulo "uso", o legislador corrigiu uma falha do caput, que apenas fala em "consumo". Aqui no art. 20, o legislador simplesmente omitiu o termo "uso", preferindo manifestar-se apenas pelo verbo "consumir". Conforme explicado nos comentários ao art. 18, mesmo que em nenhum ponto da norma consumerista se tivesse feito referência ao verbo "usar", ainda assim seria possível extraí-lo de outro ("consumir"), porquanto dá para construir uma classificação colocando o uso como uma forma especial de consumo. Contudo, como pelo menos no § 6º do art. 18 a lei faz a colocação dos dois conceitos, e como se deve interpretar a norma sistematicamente, tem-se de inserir o termo "uso" no sentido do caput do art. 20, mais uma vez pelo esforço interpretativo de extensão para suprimir a omissão do legislador. Com efeito, consumo diz respeito aos serviços (e produtos) consumíveis, isto é, não duráveis. São aqueles que se extinguem na medida em que vão sendo utilizados: serviços de transporte, hospedagem, diversões públicas em geral, guarda de veículos em estacionamento etc. Uso diz respeito aos serviços (e produtos) que não se extinguem enquanto vão sendo utilizados. São os serviços duráveis: consertos de veículos e de eletroeletrônicos em geral, de instalações domésticas e serviços domésticos em geral (pintura, desentupimento, eletricidade etc.) etc. São, também, considerados duráveis os serviços que, apesar de, ao serem prestados, extinguirem-se, por estipulação contratual duram no tempo, em função de sistema de contraprestação instituído: a prestação de serviço das administradoras de cartões de crédito; a dos bancos aos seus correntistas; a das escolas; a das operadoras de planos de saúde etc. Como reforço à necessidade de utilizar os dois verbos ("usar" e "consumir"), é de colocar que, ao tratar das garantias dos serviços (e dos produtos), a lei consumerista faz a distinção entre serviços (e produtos) duráveis (isto é, de uso) e não duráveis (de consumo. Definição Vê-se, portanto, que deve ser entendido no contexto da regra do caput do art. 20 que vício de qualidade é o que torne impróprio ou inadequado o serviço para o consumo e uso a que se destina, diminua seu valor ou esteja em desacordo com o contido na mensagem publicitária, apresentação, oferta, informação em geral e no contrato. Vício aparente Os vícios aparentes ou de fácil constatação, como o próprio nome diz, são os de fácil verificação, perceptíveis no consumo ordinário que se tem do serviço, de maneira que o consumidor logo os perceba, como no exemplo da pintura do veículo cujo capô ficou manchado. Eles aparecem indicados no caput no art. 26 Vício oculto Os vícios ocultos são aqueles que não estão acessíveis ao consumidor no uso ordinário ou que só aparecem depois de algum ou muito tempo. Por exemplo, num serviço de instalação de carpete, a cola que é de má qualidade e faz com que o carpete colocado se solte depois de certo tempo de uso. O vício oculto aparece indicado no § 3º do art. 26. Expectativa do consumidor Como complemento ao exame do problema do vício de qualidade do serviço, é preciso concluir a interpretação do contido no § 2º do art. 20: "São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares da prestabilidade". O legislador volta a usar na norma do § 2º em comento um conceito que está estampado no caput do art. 8º. Lá está escrito: "Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde e segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição...". A norma, então, mais uma vez fala em expectativa do consumidor naquilo que seja o fim que razoavelmente possa o serviço ofertado concretizar. + + +   Continua na próxima semana.
quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Os vícios dos serviços - 2ª parte

Hoje continuo a análise dos vícios dos serviços regulados no CDC (lei 8078/1990). Lembremos a redação do artigo 20 do CDC: "Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço. § 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor. § 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam às normas regulamentares de prestabilidade." Vícios de qualidade dos serviços A norma fala apenas em "vícios de qualidade", deixando de lado os "vícios de quantidade". Iremos na sequência apontar também os vícios de quantidade dos serviços. Examinemos primeiramente os vícios de qualidade. São aqueles, diz a norma, que tornem os serviços "impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor", assim como aqueles "decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária". Como sempre, enquanto norma protetora do consumidor, as hipóteses aventadas são meramente exemplificativas. No caso em exame há referência expressa ao aspecto da publicidade e da informação - que está posta com o termo "indicação". Mas, de qualquer maneira, refira-se outra vez que sempre entram no rol das possibilidades de causar vício (ou defeito) a oferta, a apresentação, a informação e a publicidade, por previsão dos arts. 30 e 31. Todas, enquanto elemento essencial do serviço, podendo ser, de per si, causadoras do vício. Distinção entre impróprio ou inadequado A norma do caput do art. 20 fala em vício como aquele que torne o serviço "impróprio". No caput do art. 18 aparece uma distinção. Lá está colocado que o vício torna o produto "impróprio ou inadequado". Já vimos que há diferença entre os termos "impróprio" e "inadequado". "Impróprio" é a característica que impede o uso ou consumo do produto. "Inadequado" é a que faz com que o produto possa ser utilizado, mas com eficiência reduzida. Isto é, o consumidor pode dele se servir, mas há alguma perda na eficiência da qualidade ofertada. No primeiro caso estão produtos tais como os enlatados cujo conteúdo encontra-se embolorado, com mau cheiro etc.; as carnes com manchas escurecidas; as salsichas e linguiças com líquidos dentro da embalagem etc. No outro está a televisão que tem chuvisco ou sombra na imagem; a geladeira que "solta água"; a máquina de lavar louça que vaza etc.. Pois bem. Com os serviços acontece o mesmo. Há os vícios que tornam o serviço impróprio ao consumo a que se destina e há os que o tornam inadequado. No primeiro caso está, por exemplo, o serviço de colocação de freio no veículo que, malfeito, impede que este possa ser brecado. No outro, o lançamento de débito indevido na conta do cartão de crédito, que torna o serviço inadequado, mas não impede seu uso. Por isso, tem-se, aqui, mais uma vez, de fazer uma interpretação extensiva, na busca, por analogia ao art. 18, de um conceito, o de inadequação. Com isso, deve-se ler o caput do art. 20 apontando o vício de qualidade como aquele que torna "impróprio ou inadequado" o serviço ao consumo a que se destina. Serviços "impróprios ou inadequados" É verdade que o § 2º do art. 20 pretendia especificar o que entendia por impropriedade. Mas, ao fazê-lo, confundiu os dois conceitos, pois disse que o impróprio é o que se mostra inadequado: "São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidades". Assim, a esse § 2º deve-se dar novo e cabal sentido para deixar expressamente consignado que impróprio, como já dissemos, é o serviço que, em função de sua má execução, impede seu uso, não tendo qualquer eficácia de prestabilidade para o consumidor. E inadequado, também conforme já dito, é o serviço que, apesar de imperfeitamente prestado, permite o uso parcial, não tendo a total eficiência esperada e desejada pelo consumidor, mas, ainda assim, mesmo insuficiente, podendo ser utilizado.  + + +   Continua na próxima semana.
quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Os vícios dos serviços - 1ª parte

Hoje começo a análise dos vícios dos serviços regulados no CDC (lei 8078/1990). Vícios de qualidade e também de quantidade Na seção III do capítulo IV do título I, ao tratar da responsabilidade pelos vícios, o CDC colocou a questão do vício de qualidade do produto no art. 18 e a do vício de quantidade do produto no art. 19. Para os serviços, reservou apenas o art. 20 e regulou somente os vícios de qualidade, como se não pudessem existir vícios de quantidade dos serviços. Mas se enganou, porque há sim vícios de quantidade de serviço, conforme demonstrarei. Logo, a primeira observação é a de que se deve fazer uma interpretação extensiva do caput do art. 19 para incluir, nas salvaguardas que ele pretende estabelecer, o vício de quantidade do serviço. E, uma vez incluído o vício de quantidade do serviço no sistema protecionista, tudo o mais que se aproveitar da norma também valerá para essa outra proteção que se dá ao consumidor. Antes de prosseguir, leiamos  os arts. 19 e 20 do CDC: "Art. 19. Os fornecedores respondem solidariamente pelos vícios de quantidade do produto sempre que, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, seu conteúdo líquido for inferior às indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou de mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - o abatimento proporcional do preço; II - complementação do peso ou medida; III - a substituição do produto por outro da mesma espécie, marca ou modelo, sem os aludidos vícios; IV - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos. § 1° Aplica-se a este artigo o disposto no § 4° do art. anterior. § 2° O fornecedor imediato será responsável quando fizer a pesagem ou a medição e o instrumento utilizado não estiver aferido segundo os padrões oficiais. Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço. § 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor. § 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade." Quem é o responsável Primeira observação a ser feita é a do sujeito da oração: "o fornecedor". Ao contrário do estabelecido nos arts. 18 e 19, nos quais aparecem como sujeitos os "fornecedores", assim no plural, aqui no art. 20 há designação do termo no singular: "fornecedor". Dessa forma, o melhor entendimento é o de que a lei se refere ao fornecedor direto dos serviços prestados. E isso é adequado, na medida em que o serviço é sempre prestado diretamente ao consumidor por alguém. E é essa pessoa, quer seja física quer seja jurídica, a responsável. Claro que, se for pessoa jurídica, o fato concreto de prestação será feito por pessoa física, mas haverá casos em que o serviço poderá ser realizado diretamente por instrumentos, como acontece, por exemplo, nos caixas eletrônicos dos bancos, nos lançamentos de contas em geral efetivados automaticamente por computador, celular etc. Solidariedade Ainda que a norma esteja tratando do fornecedor direto, isso não elide a responsabilidade dos demais que indiretamente tenham participado da relação. Não só porque há normas expressas nesse sentido (art. 34 e §§ 1º e 2º do art. 25), mas também e em especial pela necessária e legal solidariedade existente entre todos os partícipes do ciclo de produção que geraram o dano (cf. o parágrafo único do art. 7º), e, ainda mais, pelo fato de que, dependendo do tipo de serviço prestado, o fornecedor se utiliza necessariamente de serviços e produtos de terceiros (Como, aliás, é regra geral da produção. Alguns fornecedores podem prestar serviço sem intervenção de terceiro, como, por exemplo, o profissional liberal quando dá algum conselho, o médico dando uma receita, o advogado indicando um comportamento ou fazendo um contrato etc.) Por exemplo, o instalador de carpetes que usa cola, o banco que se utiliza do correio para enviar cartões de débito e crédito, o funileiro que pinta o carro com certa tinta etc. Pode ocorrer em qualquer desses casos que o vício acabe decorrendo não diretamente do serviço prestado, mas do produto utilizado  e elaborado por terceiro (no exemplo do funileiro, a tinta que desbota), ou do serviço utilizado prestado por terceiro (no exemplo do banco, o correio que faz a entrega em local errado). Logo, o importante é consignar desde já o que se deve entender por serviço prestado: é aquele feito de conformidade com a oferta e cujo desenvolvimento esteja adequado e do qual advenha resultado útil, da maneira prometida, e que se tenha estabelecido pelo prestador, quer ele o faça diretamente (como no exemplo do profissional liberal), quer se utilize de produto ou serviço de terceiros. Insistamos um pouco mais nesse ponto para deixar clara essa responsabilização geral. Lembre-se que, na fabricação de qualquer produto, sempre entra em jogo uma série de componentes, desde a matéria-prima e insumos básicos até o próprio design, o projeto, passando pelas peças, equipamentos etc. O produto final tem um responsável direto: a montadora do automóvel. Mas é possível identificar os fabricantes dos componentes. Por exemplo, o fabricante dos amortecedores, dos pneus, dos vidros etc. (E lembremos que no processo de fabricação do produto entra também uma série de serviços) No caso do serviço, ocorre algo similar. Há alguns serviços prestados de maneira direta e praticamente pura, tais como o de consulta médica, o de ensino, o do corte de cabelos etc. Mas há serviços que são compostos de outros serviços, tais como os de administração de cartões de crédito, que envolve a administradora, os bancos, que recebem os pagamentos das contas e os boletos de venda dos comerciantes, os correios e demais serviços de entregas, os serviços de telefonia, cujos canais são importantes no atendimento ao consumidor etc. Há, ainda, outros serviços que são necessariamente compostos pela prestação dos serviços e da utilização de produtos. Não há o serviço sem o produto. Por exemplo, os serviços de consertos de automóveis e as respectivas trocas de peças, os serviços de assistência técnica de conserto de eletrodomésticos, os serviços domésticos de pintura e instalação elétrica etc. E, também, similares aos anteriores, produtos e serviços vendidos simultaneamente. Por exemplo, carpetes e sua colocação, papéis de parede e sua fixação, boxes de banheiro e sua instalação etc. + + +   Continua na próxima semana.
quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Os vícios em produtos usados

Como venho tratando de produtos, suas características, qualidade, vícios etc., hoje comento um caso que me deixou perplexo. Já disse várias vezes por aqui que, em matéria de Direito do Consumidor, não se pode baixar a guarda, de jeito nenhum. O CDC está em vigor há 34 anos e, infelizmente, ainda não é respeitado de forma global. Há alguns dias, li uma decisão num acórdão do TJ/SP que dizia que, ao comprar um automóvel usado numa concessionária, a consumidora deveria ter submetido o veículo à análise de um mecânico de sua confiança antes da compra, para se garantir da real condição do veículo. Uma incrível inversão do regime legal, que desconsiderou que a responsabilidade pela entrega de produto em conformidade é do fornecedor - e não da adquirente. Apesar da decisão reconhecer que a relação jurídica estabelecida entre as partes era regida pelo Código de Defesa do Consumidor omitiu-se quanto à análise da imprescindível inversão do ônus da prova prevista no artigo 6º, inciso VIII, do mesmo diploma legal. Além disso, também não fez a análise necessária sobre a hipossuficiência da consumidora, nem da verossimilhança de suas alegações, presumindo uma igualdade inexistente entre as partes. A hipossuficiência não pode ser interpretada de forma restritiva. E a vulnerabilidade é o conceito que afirma a fragilidade econômica do consumidor e, também, técnica. Para fins de análise da possibilidade de inversão do ônus da prova, a vulnerabilidade tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, de sua distribuição, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem gerar um acidente de consumo e o dano, das características do vício etc. O Tribunal exigiu da consumidora a produção de prova técnica sobre o estado do veículo no momento da aquisição, ignorando que tal medida é naturalmente inacessível a uma pessoa comum, especialmente diante de vícios que não se revelam de imediato (vícios ocultos). A decisão afastou a responsabilidade da fornecedora pelos vícios ocultos apresentados pelo veículo, exigindo da consumidora a prova de que tais vícios já existiam à época da entrega do bem, o que, como se sabe (há 34 anos!) colide diretamente com a sistemática objetiva e solidária prevista no art. 18 do CDC. O art. 18, caput, da lei 8.078/1990, assim dispõe: "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas." Ora, exigir da consumidora a demonstração de culpa ou dolo por parte da fornecedora, ofende a natureza objetiva da responsabilidade imposta pelo CDC. A decisão da Câmara incorreu em lógica contraditória, pois reconheceu que os problemas no veículo podiam ser considerados vícios, mas afirmou que a responsabilidade não recaia sobre a fornecedora, por suposta ausência de prova do momento em que surgiram os defeitos. Isso equivale a exigir do consumidor prova impossível - especialmente no caso de vícios ocultos, que se manifestam apenas com o uso continuado. Como é notório, vícios ocultos, exatamente por serem ocultos, não são identificáveis no momento da compra. O sistema do CDC é construído justamente para proteger o(a) consumidor(a) nessas situações. No caso levado a juízo, a exigência seria a de que a consumidora tivesse ido ao estabelecimento do fornecedor que vendia veículos usados, acompanhada de um engenheiro-perito especialista em automóveis. Seria o mesmo que exigir que um(a) consumidor(a), antes de almoçar num restaurante self-service, levasse um(a) nutricionista para conferir a qualidade dos produtos oferecidos. O(a) consumidor(a) só pode conhecer a qualidade dos produtos adquiridos depois de adquiri-los e/ou consumi-los.  Quem assume o risco da atividade, que está diretamente ligado à responsabilidade objetiva é o fornecedor. Jamais o consumidor. As normas do CDC têm como base o fato de que aquele que se beneficia da atividade econômica deve arcar com os riscos inerentes à sua atuação no mercado. Ou seja, o fornecedor, ao colocar produtos ou serviços no mercado, assume os riscos que essa atividade traz. No sistema do CDC, mesmo sem culpa, o fornecedor pode ser responsabilizado por danos causados ao consumidor. Isso decorre da teoria do risco do empreendimento. E o CDC protege a parte vulnerável da relação de consumo. Desse modo, os riscos da atividade não podem ser transferidos ao(a) consumidor(a).
quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Os vícios dos produtos - 7ª parte

Continuo a análise dos vícios dos produtos tratados pelo CDC (lei 8078/1990), ainda nas hipóteses dos incisos do § 1º do art. 18 do CDC e, também, de seus § 2º e § 3º. Lembremos a redação: "§ 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço. § 2° Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a sete nem superior a cento e oitenta dias. Nos contratos de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor. § 3° O consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do § 1° deste art. sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir-lhe o valor ou se tratar de produto essencial." Quanto ao § 2º do art. 18, o legislador talvez tenha tido a pretensão de permitir que uma prática saudável de serviço de qualidade fosse incrementada pelos fornecedores no mercado, com a possibilidade de diminuição do prazo de 30 para até 7 dias, para que o saneamento do vício fosse efetivado. O fornecedor pode diminuir o prazo oferecido para o saneamento do vício a quanto quiser. Essa resposta decorre não só da lógica da prática do mercado como da relação coerente com o sistema de proteção ao consumidor. Mas, a par disso, decorre da própria interpretação da norma contida no parágrafo anterior. Com efeito, o § 1º, como já vimos, diz que o fornecedor tem o prazo máximo de 30 dias para efetuar o conserto, sem qualquer outra ressalva, nem indicação ou conexão com o § 2º. Assim, se ele tem o tempo máximo de 30 dias, pode efetuar o conserto no prazo mínimo: um dia. Ou, mesmo, em algumas horas, ou, ainda, pode simplesmente trocar aquele produto viciado entregue pelo consumidor por outro da mesma espécie, marca e modelo em perfeitas condições de uso, o que leva alguns minutos. Isso é óbvio e decorre do previsto no próprio § 1º. Como, ao término dos 30 dias, sem saneamento, surge a prerrogativa ao consumidor de poder exigir a troca, nada impede que esta seja feita imediatamente. Agora, o problema: o prazo pode ser aumentado? A norma o permite, infelizmente. Parece que essa norma foi escrita pelos próprios fornecedores e para proteger os mais relapsos e relutantes em oferecer produtos de qualidade e que, após vendê-los, recebendo o dinheiro do consumidor, pretendem adiar ao máximo possível seu perfeito funcionamento. Por essa regra, o tempo para que um produto viciado fosse consertado poderia ser elevado para 180 dias! É algo inimaginável. O consumidor adquire um produto; paga por ele; ele não funciona; tem de ser levado para conserto; quando lá chega, o fornecedor responde: "volte daqui a 6 meses, que o produto estará novinho em folha!". Pareceria brincadeira, se não fosse norma. É verdade que, na última parte do § 2º, a norma determina que a cláusula de prazo deva ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor. Isso ajuda, mas não explica, e ainda implica riscos: a) não há motivos para a existência dessa regra; b) se o consumidor for consciente, jamais concordará com o aumento do prazo; c) o consumidor pode acabar sendo enganado e assinar o adendo, concordando com o aumento do tempo. De todo modo, anoto que, ao que consta, essa norma não foi incrementada no mercado. Já o § 3º do art. 18 elimina o direito do fornecedor de utilizar o prazo de 30 dias para o saneamento do vício previsto no § 1º. Dessa forma, o consumidor, sempre que tiver produto enquadrado nas hipóteses do § 3º, poderá fazer uso imediato - isto é, sem conceder qualquer prazo ao fornecedor - das alternativas previstas nesse parágrafo. Como se depreende da leitura da redação do § 3º, para fazer uso imediato das alternativas dos incisos I, II e III do § 1º, há que estar presente pelo menos uma das seguintes hipóteses: a) em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas: a.1) pode comprometer a qualidade do produto; a.2) pode comprometer as características do produto; a.3) diminua o valor do produto. b) quando se tratar de produto essencial. *** Continua na próxima semana.
quinta-feira, 31 de julho de 2025

Os vícios dos produtos - 6ª parte

Continuo a análise dos vícios dos produtos tratados pelo CDC (Lei 8078/1990), ainda nas hipóteses dos incisos do §1º do art. 18 do CDC. Lembremos a redação: "§ 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 (trinta) dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço". Passemos ao exame do inciso II do § 1º do art. 18, que apresenta algumas questões intrigantes. A primeira parte da oração aponta o mais natural para um consumidor desgostoso com a não solução do seu problema. Está disposto que o consumidor pode exigir "a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada...". É uma boa alternativa: tomar de volta o dinheiro pago e com ele procurar outro produto de marca diferente. A questão que se coloca é a relativa à segunda parte da oração: "sem prejuízo de eventuais perdas e danos". Quer dizer, então, que a opção pela alternativa II dá ao consumidor o direito de pleitear também indenização pelos danos sofridos em função da espera de 30 dias, sem o saneamento do vício? A resposta é sim, mas comporta uma série de nuances. Primeiramente, o sentido de "perdas e danos". A expressão há de ser entendida como danos materiais (emergentes e lucros cessantes) e morais. Ou seja, a norma garante ao consumidor o direito a pleitear indenização pelos danos sofridos, em função da passagem do prazo de 30 dias sem o efetivo conserto do produto. A responsabilidade civil nesse caso é diversa daquela firmada no caput do art. 12, ainda que da mesma forma seja objetiva. É responsabilidade objetiva porque, como já disse algumas vezes, a responsabilidade do fornecedor fixada no CDC é objetiva, com a única exceção do caso do profissional liberal na previsão do § 4º do art. 14. Porém, não é responsabilidade que nasça do mesmo tipo de defeito apontado no caput do art. 12. Há defeito sim, mas ele é caracterizado pela não realização do serviço de conserto, e dentro do prazo oferecido. Ou, em outras palavras, a caracterização do defeito aqui nasce da conjunção de dois fatores: a) serviço incompleto ou não realizado e que manteve o produto viciado; b) extinção do prazo de 30 dias para o saneamento do vício. A sistemática de pleito e apuração da indenização segue o seguinte esquema: o consumidor tem de demonstrar o dano, o nexo de causalidade entre este e a ausência ou incompletude do serviço que manteve o produto viciado, bem como a extinção do prazo de 30 dias, indicando o fornecedor responsável. Dessa maneira, ao optar pela alternativa do inciso II do § 1º do art. 18, o consumidor pleiteará a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada (isto é, corrigida pelos índices oficiais de inflação), e, além disso, poderá pleitear indenização pelos danos materiais e morais sofridos. Examinemos agora a regra que permite que o consumidor peça abatimento proporcional do preço. Isto é, que requeira devolução da parte do valor já pago ou que deixe de pagar parte ou toda a quantia ainda faltante (caso o pagamento do preço seja a prazo), na exata medida do vício existente e não solucionado no prazo de 30 dias. É a prevista no inciso III do § 1º do art. 18 da lei. Essa terceira alternativa à escolha do consumidor dependerá de uma análise feita por ele no caso concreto, verificando se vale a pena o pedido de abatimento do preço. Apesar de se poder negociar com o fornecedor o valor do abatimento, nem sempre será fácil chegar a um número. Pode-se tratar de mero vício estético e o consumidor conformar-se em ficar com o produto mediante a devolução de parte do preço pago ou pode ser vício que impeça o funcionamento, mas que o consumidor tenha como consertar com terceiro - nessa hipótese o abatimento será o valor cobrado pelo terceiro para o conserto. Não é, de qualquer forma, fácil chegar ao valor do abatimento. Numa ação judicial, por exemplo, as alternativas processuais não são muito favoráveis. O feito terá curso regular e dependerá de perícia. Terminando esta parte, lembre-se e repita-se que é o consumidor quem escolhe qual fornecedor irá acionar. No caso de uma televisão que não sintonize os canais, ele pode requerer o conserto na assistência técnica, na fábrica ou na loja em que a adquiriu. Esse fornecedor será a parte passiva de todas as reivindicações. Como sempre, após resolver o problema do consumidor - a) consertando o produto; b) trocando-o por outro da mesma espécie, marca e modelo; c) devolvendo o valor do preço, de maneira atualizada monetariamente; d) oferecendo abatimento do preço; e) e junto com as hipóteses b, c, e d, pagando indenização pelos danos materiais e/ou morais sofridos pelo consumidor -, ele pode ressarcir-se com os demais partícipes do ciclo de produção, pela via de regresso e na medida em que os fornecedores são todos responsáveis solidários. Cada um arcará com sua participação, e na proporção das partições das responsabilidades. A questão nesse ponto é de direito privado, o que permite que os fornecedores entre si elaborem contrato, prevendo a participação de cada um nas despesas para o caso de gastos com vício e/ou pagamento de indenizações ao consumidor. Podem ser estabelecidos rateios, partições, divisões em partes iguais, em percentuais diferenciados etc.
quinta-feira, 24 de julho de 2025

Os vícios dos produtos - 5ª parte

Continuo a análise dos vícios dos produtos tratados pelo CDC (lei 8078/1990). Vejamos, agora, a questão do prazo de garantia. Há uma importante questão ligada ao direito de ter o vício sanado que en passant já comentamos nos artigos anteriores: a do prazo que tem o consumidor para procurar o fornecedor requerendo o conserto. Esse assunto é o relativo à garantia do produto. O direito ao pleito do saneamento do vício somente existe dentro do prazo de garantia. Se, por exemplo, um veículo, depois do uso por três anos consecutivos, tendo rodado 70 mil km e estando, assim, fora de todos os prazos de garantia (legal e/ou contratual), tiver uma pane mecânica, não se trata de vício, mas de problema que o consumidor terá de resolver por conta própria. Com isso, pode parecer, à primeira vista, que os vícios ocorrem apenas nos produtos novos. Mas não. Não é o fato de ser novo ou usado que garante o direito ao saneamento do vício, mas sim o vício em si e a data da comercialização. Dessa forma, existirá produto usado com vício sempre que o prazo de garantia não tenha expirado. Da mesma maneira haverá produto usado com vício oculto, cujo prazo de reclamação, por isso, nem sequer se iniciou. Além disso, há a comercialização de produtos usados. Neste caso, o comerciante pode oferecer prazo de garantia contratual. Porém, se não o fizer, ainda assim resta o prazo da garantia legal previsto no art. 26, de modo que nenhum produto comercializado, seja novo, seja usado, deixa de ter prazo de garantia, ainda que no mínimo legal. Por exemplo: o comerciante que vende veículos usados, quer queira, quer não, garante o funcionamento adequado destes por 90 dias. Isso pelo idêntico motivo de a lei conferir garantia aos produtos novos: o consumidor entrega seu dinheiro, portanto tem de receber o produto funcionando. Claro que se está falando de vício autêntico e não de problemas com desgaste. É evidente que um veículo usado pode ser vendido com pneu desgastado, lonas dos freios gastas, motor consumindo mais óleo do que quando está novo etc., sem que isso possa ser considerado vício. E, ainda, que o desgaste do pneu gere a necessidade de sua troca num prazo, digamos, de 60 dias. O vício terá de ser daqueles que não decorram do desgaste. Por exemplo, 3 dias após a aquisição do veículo usado, o motor funde. Assim, a partir do CDC, aquela famosa expressão inserida nos documentos de venda de veículos usados (recibos e/ou notas fiscais), "veículo vendido 'no estado' ", tem de ser interpretada segundo as circunstâncias retromencionadas e que conformam o contrato de venda e compra do veículo. Passemos agora ao exame dos incisos I, II e III do §1º do art. 18, em função do contido na segunda parte de sua redação: "§ 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço". Se o problema não for sanado no prazo de 30 dias, o consumidor passa a ter direito a executar certas alternativas que a norma garante. Proibição de oposição Não pode o fornecedor se opor à escolha pelo consumidor das alternativas postas. É fato que ele, o fornecedor, tem 30 dias. E, sendo longo ou não, dentro desse tempo, a única coisa que o consumidor pode fazer é sofrer e esperar. Porém, superado o prazo sem que o vício tenha sido sanado, o consumidor adquire, no dia seguinte, integralmente, as prerrogativas do § 1º ora em comento. E, como diz a norma, cabe a escolha das alternativas ao consumidor. Este pode optar por um delas, sem ter de apresentar qualquer justificativa ou fundamento. Basta a manifestação da vontade, apenas sua exteriorização objetiva. É um querer pelo simples querer manifestado. Substituição do produto A primeira alternativa à disposição do consumidor (a do inciso I) é a da substituição do produto por outro da mesma espécie, obviamente em perfeitas condições de uso. A norma disse menos do que devia, necessitando ser, então, interpretada extensivamente. É que a redação do inciso I diz: "substituição do produto por outro da mesma 'espécie'...". O certo seria dizer "mesma espécie, marca e modelo". Essa é a intenção da norma, tanto que, ao tratar de outra alternativa dada ao consumidor, quando ele não pode obter o mesmo tipo de produto, o CDC fala em "espécie, marca ou modelo". A par disso não poderia a alternativa colocada no inciso I ser entendida de outra forma, pois, se assim fosse, o consumidor, por absurdo, poderia exigir a troca de uma TV de 20 polegadas de uma marca de reconhecida menor qualidade (espécie) por outra de 29 polegadas de marca de melhor qualidade (mesma espécie, mas com marca e modelo diferentes). Assim, a alternativa do inciso I deve ser lida como: "substituição do produto por outro da mesma espécie, marca e modelo, em perfeitas condições de uso". A lei dá ao consumidor uma alternativa e gostaríamos de lembrar: é preciso que o consumidor avalie se a saída é boa, já que será o mesmo produto, que pode vir a apresentar novamente o mesmo vício. E se o novo produto também apresentar vício, começará tudo de novo, com a devolução do prazo de 30 dias para o fornecedor sanar o vício. É que a hipótese do inciso I implica o desfazimento da entrega do produto com efeito ex tunc. Retorna-se ao início da relação. Os prazos para ambos os lados começam a fluir novamente, como se a operação anterior não existisse. A única ação inexistente é a de pagamento do preço e a emissão de notas fiscais de venda e compra (a nota fiscal será de troca). O risco da escolha, de qualquer maneira, é do consumidor, como se estivesse agora adquirindo o produto novo. + + +   Continua na próxima semana.
quinta-feira, 17 de julho de 2025

Os vícios dos produtos - 4ª parte

Continuo a análise dos vícios dos produtos tratados pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC-lei 8078/90).  Vejamos, agora, o caput do art. 18, que dispõe que o consumidor, em caso de vício, pode exigir a substituição das partes viciadas, o que está inserido no conteúdo do disposto no § 1º:  "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.  § 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 (trinta) dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço."  O § 1º do art. 18, surpreendentemente, apresenta uma norma que talvez, na maior parte das aplicações concretas, atente contra o protecionismo legal da Lei n. 8.078. É que o prazo de 30 dias concedido ao fornecedor para sanar o vício geralmente é muito elevado. É verdade que o legislador não tinha muitas alternativas, uma vez que elaborou um texto amplo e abrangente, capaz de dar conta de todas as situações envolvendo a mais variada gama de tipos de relações de consumo. Na hora de fixar um prazo genérico, não tinha muitas alternativas: ou ele seria longo para um sem-número de aplicações (como o é) ou seria curto.  O CDC até tenta amenizar esse problema por meio da estipulação da norma contida no § 2º desse mesmo art. 18 ("§ 2º Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a 7 (sete) nem superior a 180 (cento e oitenta) dias. Nos contratos de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor."). Contudo, como se verá, sua implementação, de um lado, é bastante remota - a da diminuição do prazo -, e, de outro, muito perigosa - a do aumento.  Algumas situações de cumprimento dos 30 dias são, inclusive, bastante desproporcionais, e por isso injustas. Tanto que o próprio mercado - aquela parte boa, mais séria - cumpre prazos muito menores. Alguns exemplos elucidarão o que estamos dizendo.  Examinemos, então, esses aspectos. A norma diz: "não sendo o vício sanado no prazo de 30 (trinta) dias pode o consumidor exigir...", e apresenta as alternativas de exigências que o consumidor pode fazer diante do fornecedor. Note-se: apenas se o vício não for sanado em 30 dias. Ou seja, o fornecedor, desde o recebimento do produto com vício, tem 30 dias para saná-lo sem qualquer ônus. Eventuais ônus surgirão somente após os 30 dias se o serviço de saneamento do produto não tiver sido feito - o que comentaremos na sequência.  Acontece que essa parca alternativa a favor do consumidor é, de fato, injusta. Tomemos alguns exemplos.  Um consumidor sonha em ter um novo aparelho de televisão que foi lançado no mercado. Resolve, então, guardar dinheiro para adquiri-lo. Separa, todo mês, de seu salário, uma quantia e a coloca numa aplicação financeira. Oito meses depois, ansioso pela espera, ele avisa sua esposa e filho que vai à loja, finalmente, comprar o tal televisor. Sucesso! Adquire-o.  Recebida e instalada a tevê, ele reune a família para assistirem juntos alguns films, comendo pipoca.Decepção! A imagem surge lenta e o aparelho desliga a todo instante. Não dá para assistir nada. Vício do produto! No dia seguinte, o consumidor poderá optar por levar o aparelho à loja, à assistência técnica ou diretamente ao fabricante (os fornecedores do caput do art. 18). Porém, qualquer deles terá até 30 dias para efetuar o conserto do aparelho. Trinta dias! E o consumidor esperou 8 meses. Deu azar. Por certo, outros consumidores que adquiriram produto igual no mesmo dia estejam dele desfrutando sem problema.  Esse exemplo serve para ilustrar o que pode potencialmente acontecer na compra de qualquer produto. Após a aquisição, havendo vício, poderá o fornecedor usar dos 30 dias para solucionar o problema. É verdade, porém, que o § 3º do mesmo art. 18 atenua essa circunstância, dizendo que o consumidor não precisa aguardar tal prazo. Contudo, como se verá em nossos comentários a respeito, essa alternativa somente vale em situações bem específicas - e com problemas de avaliação para o consumidor.  Note-se que o prazo de 30 dias concedido ao fornecedor independe do tempo de uso do produto - embora somente seja considerado vício, ensejando direito de acionar o fornecedor, aquele surgido dentro do período de garantia (previsto nos arts. 26 e 50), com duas características: vício aparente e vício oculto.  Assim, se, para aquele outro consumidor que adquiriu o mesmo televisor, o problema com o aparelho somente surgiu sessenta dias após a aquisição (que é caso de vício oculto), ao dirigir-se à loja, à assistência técnica ou ao fabricante para requerer o conserto do aparelho, estes terão, da mesma forma, trinta dias para realizar o conserto.  Há uma situação recorrente no mercado que merece comentário. Vamos utilizar-nos do exemplo de problemas que envolvem automóveis zero-quilômetro, especialmente os modelos novos, chamados de "lançamentos". Como se sabe, a competição entre as montadoras fez com que elas acabassem antecipando os lançamentos, e nem sempre foi possível detectar eventuais falhas surgidas no processo de produção. Aliás, talvez nunca dê mesmo. Os problemas desconhecidos surgem no uso regular pelos consumidores. Pois bem, a questão que se coloca é a seguinte: um automóvel zero-quilômetro apresenta problema de desempenho. As marchas, por mais que sejam trocadas no tempo certo, não geram aumento da velocidade. O veículo praticamente não anda, de tão lento que vai pelas ruas. É inútil ao fim a que se destina: o transporte; além de trazer um problema de segurança, pois não é possível fazer ultrapassagem segura, nem acelerar para desviar de um obstáculo etc.  O carro está na garantia de fábrica (art. 50). O consumidor, digamos, João da Silva, leva-o à concessionária e lá o deixa para exame e conserto. Na hora os funcionários que o atendem estranham o tipo de problema. Parece que é desconhecido.  Dez dias depois o automóvel está pronto. Na concessionária dizem que o problema foi solucionado, mas não deixam muito claro qual era. João pega o veículo, de manhã, e vai para o trabalho. À tarde o problema retorna. João mal acredita que esteja acontecendo tudo de novo. Insiste e espera para ver como é que fica no dia seguinte: igual. Vai, então, de novo à concessionária1. O pessoal que o atende tenta demonstrar surpresa e diz que deve ser porque o carro é novo!  Passam-se mais 15 dias ("agora vão descobrir o problema", pensa João).  Quinze dias depois, João recebe um telefonema dizendo que o veículo está pronto: "novinho em folha", dizem. À tarde vai buscá-lo e dirige até sua casa. O automóvel anda bem, finalmente, para alívio de João. No dia seguinte, porém, logo de manhã, ao dirigir no caminho para o trabalho, o problema volta.  E assim vai. Têm início as idas e vindas, a verdadeira via-sacra de João - que aqui representa todos os consumidores que passam pelo mesmo problema, não só com automóveis; há casos semelhantes com microcomputadores e com outros produtos.  Passam-se meses, sem solução. Um dia, talvez, o problema se resolva.  Terminemos, então, o caso de João: no oitavo mês de muitas idas e vindas, efetiva e finalmente o problema acaba sendo solucionado. João lê, então, nos jornais, um comunicado da montadora fazendo um recall para veículos iguais ao dele, dizendo que devem ser levados às concessionárias para que aquele tipo de problema seja resolvido. João sente-se aliviado com a solidariedade em sua desgraça: não estava só.  A questão que se coloca, a partir do caso narrado, é a seguinte: o prazo de 30 dias do § 1º do art. 18 para que o fornecedor sane o vício recomeça a contar toda vez que o consumidor leva o produto para o conserto? Será que a lei, ao conceder um prazo tão longo, ainda assim pretendia que ele pudesse prolongar-se mais ainda? E pelo mesmo problema?  A resposta, em nossa opinião, é não! Vejamos.  a) Proibida a recontagem do tempo O fornecedor não pode beneficiar-se da recontagem do prazo de 30 dias toda vez que o produto retorna com o mesmo vício. Se isso fosse permitido, o fornecedor poderia, na prática, manipulando o serviço de conserto, sempre prolongar indefinidamente a resposta efetiva de saneamento - como aconteceu no caso narrado. Bastaria fazer um conserto "cosmético", superficial, que levasse o consumidor a acreditar na solução do problema, e aguardar sua volta, quando, então, mais 30 dias ter-se-iam para pensar e tentar a solução.  Entendemos que nossa resposta é a única interpretação teleológica possível do § 1º do art. 18. Isto porque a redação desse parágrafo é explícita em permitir alternativas definitivas para a solução do problema, se este não foi sanado nos 30 dias (as dos três incisos que ainda examinaremos). Se assim não fosse, a lei não diria que após os 30 dias o consumidor pode exigir a solução definitiva.  Acreditamos que o prazo total de 30 dias vale para o vício de per si. É o tempo máximo que a lei dá para que o fornecedor definitivamente elimine o vício.  É que o CDC até admite o vício como elemento intrínseco do processo de produção em massa, mas não aceita - nem poderia - que o consumidor pague o preço exigido pelo fornecedor, receba o produto e este não funcione indefinidamente. Seria praticamente a permissão da apropriação indébita ou do locupletamento ilícito pelo fornecedor. E isso seguramente nenhuma lei pode permitir.  b) Trinta dias: limite máximo Quando muito - e essa é também nossa opinião - o prazo de 30 dias é um limite máximo que pode ser atingido pela soma dos períodos mais curtos utilizados. Explicamos: se o produto foi devolvido a primeira vez no décimo dia, depois retornou com o mesmo vício e se gastaram nessa segunda tentativa de conserto mais 15 dias, na terceira vez em que o produto voltar o fornecedor somente terá mais 5 dias para solucionar definitivamente o problema, pois anteriormente despendeu 25 dias, sem ter levado o produto à adequação esperada.  Seria o caso narrado do consumidor João da Silva. Na terceira vez, a concessionária teria de ter sanado definitivamente o vício no prazo máximo de 5 dias. A partir daí, João poderia ter-se utilizado das prerrogativas dadas pela lei, exigindo do fornecedor a alternativa que tivesse escolhido (conf. incisos I, II e III do § 1º,  que ainda examinaremos).  Repita-se: o dinheiro do consumidor somente pode ir para o fornecedor se vier em troca um produto que cumpra o fim ao qual se destina. Permitir a ida do dinheiro para o bolso do fornecedor sem que o produto funcione adequadamente dentro do prazo - e, já vimos, 30 dias não é razoável, é exagerado - seria ilegal e afrontaria os mais comezinhos princípios de direito.  c) Vício diferente O que permite a utilização do prazo completo de 30 dias por uma segunda ou uma terceira vez é o surgimento de vícios diversos. Mas mesmo isso tem limites, conforme veremos na interpretação do § 3º deste mesmo art. 18.  ***  Continua na próxima semana. __________ 1 Não nos esqueçamos que todas essas ocorrências dão trabalho, geram gasto e perda de tempo para o consumidor.
quinta-feira, 10 de julho de 2025

Os vícios dos produtos - 3ª parte

Continuo a análise dos vícios dos produtos tratados pelo CDC (lei 8078/1990). Vejamos, agora, o que está estabelecido no § 6º do art. 18, porque o legislador lá inseriu aquilo que entendia impróprio para o consumo e introduziu outro substantivo: "uso": "Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. (...)  § 6° São impróprios ao uso e consumo:         I - os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos;         II - os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação;         III - os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam." A redação do § 6º corrigiu uma falha do caput, que apenas utiliza o substantivo "consumo". Colocou também o "uso", embora seja possível considerar um inserido noutro. Em outras palavras, se a norma não o fizesse seria possível dizer que "uso" é uma espécie de consumo, já que tudo é consumo e alguns produtos se usam. Mas, como a lei distinguiu, também trabalharemos com os dois conceitos. Comecemos, então, nesse ponto. A norma fala em uso e consumo. Consumo diz respeito aos produtos consumíveis, que se extinguem na medida em que vão sendo utilizados: produtos alimentícios, de higiene e limpeza, cosméticos etc. Uso diz respeito aos produtos que não se extinguem enquanto vão sendo utilizados. Eles apenas se desgastam: veículos, casas, eletrodomésticos, roupas, sapatos etc. As hipóteses previstas nos três incisos do § 6º são exemplificativas e seus três incisos merecem exame, o que vai na sequência. O inciso I, apesar da clareza, merece uma consideração. O prazo de validade dos produtos é garantia de dupla face: a) Garante ao consumidor que o produto até a data marcada encontra-se em condições adequadas de consumo; b) Garante o fabricante, produtor, importador ou comerciante que, após a data marcada, o risco do consumo do produto é do consumidor. Mas, de fato, é possível que o produto esteja estragado dentro do prazo de validade, como também é natural que no dia seguinte ao último dia do prazo de validade ele possa não estar. No primeiro caso, o consumidor está garantido; no outro, não. Decorre, ainda, da leitura desse inciso a proibição da comercialização de produtos fora do prazo. Aliás, a introdução do CDC no mercado brasileiro trouxe rapidamente a informação do prazo de validade para as embalagens e possibilitou a queda de preços dos produtos que estão próximos do último dia desse prazo - prática bastante comum nos supermercados. Quanto ao inciso II, é abrangente e claro no que pretende. Todavia, o adjetivo "alterado" não está bem colocado, porque não se entende o que ele quer dizer. A alteração proibida é aquela que apenas gere vício, o que independe do uso do termo, já que vício está mais do que explicitado. Há vários produtos que, inclusive, precisam ser alterados para serem vendidos: milk-shakes, sucos, sanduíches etc. O restante da redação do inciso fala de impropriedade por discordância com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação, o que está em consonância com o estabelecido no caput do art. 7º, bem como com o estabelecido no inciso VIII do art. 39. Por fim, o inciso III, conforme já dissemos, designa como vício todo e qualquer motivo que faça o produto tornar-se inadequado ao fim a que se destina, o que garante o caráter exemplificado dos casos apontados no § 6º e na própria norma do art. 18. A redação do caput do art. 18 permite ainda outra avaliação. É a relativa à parte da oração que diz: "respeitadas as variações decorrentes de sua natureza...". A norma pretende salvaguardar certas alterações e até deteriorações que não cheguem a se tornar impropriedades, mas que afetam alguns produtos. Devido à natureza específica desses produtos, a modificação é inexorável, e fez bem a lei em resguardá-los, evitando a confusão dessa alteração com vício. A norma, contudo, deveria estar repetida também no art. 19, já que há produtos que sofrem variação na massa, modificando a quantidade. De qualquer forma, valerá por força de interpretação sistemática a regra também para o caso de salvaguarda da alteração da quantidade. Como exemplo de alteração na qualidade, sem sua transformação em vício, isto é, respeitando a variação decorrente da natureza do produto, tem-se a da tinta colocada na parede que escurece ou clareia, as folhas de alface que perdem o frescor, murchando, e todos os alimentos in natura que sofrem essas variações naturais etc. Note-se, porém, que variações decorrentes de sua própria natureza não são alterações decorrentes do uso. Por exemplo, a faca perde o corte com o uso; o pneu desgasta; etc. São casos de variações decorrentes do desgaste que também não tornam o produto viciado, dentro do normal e previsível para aquele produto. Uma calça pode, com o tempo, ficar desgastada de tanto ser usada ou lavada. Isso é normal e não a transforma em viciada, mas, se encolher na primeira lavada, é vício. + + +   Continua na próxima semana.
quinta-feira, 3 de julho de 2025

Os vícios dos produtos - Parte 2

Continuo a análise dos vícios dos produtos tratados pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC - lei 8.078/90).  As hipóteses aventadas no caput do art. 18 como determinantes do vício de qualidade são exemplificativas. Isso é decorrência da própria teleologia da norma, porém está expresso no inciso III do § 6º, que dispõe o que entende por impróprio ao uso e consumo1. Como está estabelecido que são impróprios "os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam", salta aos olhos o caráter exemplificativo da norma.  No caso do caput do art. 18 - ao contrário do caput do art. 12 - há referência ao aspecto da publicidade e da informação - que está posta com o termo "indicação". De qualquer maneira, refira-se outra vez que sempre entram no rol das possibilidades de causar vício (ou defeito) a oferta e a apresentação, conforme previsão do art. 31 (e o art. 30 cuida da informação e da publicidade). Todas, enquanto elemento essencial do produto, podendo ser de per si causadoras do vício2.  Temos, então, que, pela definição legal, o vício de qualidade é aquele que: a) torne o produto impróprio ao consumo a que se destina; b) torne o produto inadequado ao consumo a que se destina; c) diminua o valor do produto; d) esteja em desacordo com o contido: d.1) no recipiente (lata, pote, garrafa etc.); d.2) na embalagem (caixa, saco etc.); d.3) no rótulo (estampado no recipiente ou embalagem); d.4) na mensagem publicitária; d.5) na apresentação (no balcão, na vitrine, na prateleira etc.); d.6) na oferta e informação em geral (dada verbalmente por telefone, pessoalmente, no folheto, livreto etc.).  Na sequência apresentaremos exemplos de cada uma das hipóteses de vícios. Note-se que os exemplos estão colocados apenas como casos principais no enquadramento legal previsto. Quase como tipos puros. Nada impede, todavia - aliás é algo bem comum -, que uma mesma situação de vício possa ser enquadrada em mais de uma hipótese. Por exemplo, um automóvel com problemas mecânicos é inadequado ao consumo a que se destina e tem simultaneamente seu valor diminuído. Um forno de micro-ondas que solte faísca sem aquecer corretamente o alimento, é inadequado e também impróprio ao consumo. Um produto que se estrague porque a embalagem não manda refrigerá-lo, mas devia fazê-lo, está em desacordo por falha na informação contida na embalagem e ao mesmo tempo é impróprio para o consumo. A partição nos exemplos, portanto, tem função didática.  Vejamos, assim, exemplos de cada uma das hipóteses. Exemplos relativos à letra "a" São casos de vício que torna o produto impróprio para o consumo: - enlatados cujo conteúdo esteja deteriorado - embolorado, com cheiro de podre etc. (e não foi ingerido); - carnes com zonas (ou manchas) escurecidas ou com zonas ou pontos secos; - aves com cor esverdeada, cheiro forte ou consistência não firme; - peixes com corpo flácido ou escamas soltando; peixes secos, como o bacalhau, com manchas úmidas ou avermelhadas; - os embalados (de salsichas, linguiças etc.) com líquidos dentro da embalagem ou manchas esverdeadas etc. Exemplos relativos à letra "b" - veículos com problema elétrico, mecânico etc.; - eletrodomésticos em geral com avarias: - televisão que não sintoniza algum canal, que tem chuvisco ou sombra etc.; - geladeira que descongela sozinha, solta água, a porta não fecha etc.; - fogão com queimador entupido, com o vidro do forno rachado, a porta do forno não fecha etc.; - forno de micro-ondas que descongela ou cozinha só de um lado, que não marca o tempo, com prato giratório que não gira etc.; - máquina de lavar roupas ou lavar louças que vaza enquanto funciona, ou que não aquece a água etc. - eletroeletrônicos em geral com avarias: - microcomputador que não salva programas, que não imprime etc.; - aparelho de som/toca-fitas/CD player/toca-discos/rádio que não sintoniza estações, o CD pula, a fita enrosca etc.; - videocassete que não volta ou não avança a fita, a fita enrosca, a imagem fica distorcida etc. Exemplos relativos à letra "c" São exemplos de vícios que diminuem o valor do produto: - automóvel com amassados na lataria, com peças não fundamentais quebradas ou avariadas (estofado furado, teto rasgado etc.), com pintura manchada ou riscada, com pontos de ferrugem etc.; - imóvel construído (apartamento/casa) ou casa pré-fabricada cujo material apresenta pequenas avarias. Exemplos relativos à letra "d" São exemplos de vícios de casos em que os produtos estão em desacordo com informações em geral: - produto em cuja embalagem não constam as condições de acondicionamento ou em que as informações estejam incorretas; - televisor moderno acoplado a vídeo cujo manual não explica como acionar os botões; - imóvel construído (casa/apartamento) ou casa pré-fabricada cujo material é diverso e de pior qualidade daquele contido na publicidade e/ou folheto e/ou contrato e/ou informação fornecidos.  Continua na próxima semana. __________  1 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:         (...)        III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;      2 E, claro, também, dos aspectos da publicidade enganosa e abusiva (art. 37) e clandestina (art. 36).
quinta-feira, 26 de junho de 2025

Os vícios dos produtos - Primeira parte

O CDC (lei 8.078/1990) regulou os vícios dos produtos, que são tratados nos arts. 18 e 19. Os vícios podem ser aparentes ou ocultos. O uso da expressão "vício aparente ou de fácil constatação" está no caput do art. 26, que, como o próprio nome diz, é aquele que aparece no singelo uso e consumo do produto (ou serviço). Os vícios ocultos são aqueles que só aparecem algum ou muito tempo após o uso e/ou que, por estarem inacessíveis ao consumidor, não podem ser detectados na utilização ordinária. A primeira observação a ser feita diz respeito aos sujeitos da oração da proposição do caput do art. 18. A norma diz: "Os fornecedores". Utiliza-se, assim, de termo genérico, ao contrário do que consta, por exemplo, do caput do art. 12, em que aparecem espécies. Lembramos que o termo "fornecedor" é o gênero daqueles que desenvolvem atividades no mercado de consumo. Assim, toda vez que o CDC refere-se a "fornecedor" está envolvendo todos os participantes que desenvolvem atividades, sem qualquer distinção. E esses fornecedores respondem solidariamente. (Aliás, lembre-se: essa é a regra da responsabilidade no CDC) Dessa maneira, a norma do caput do art. 18 coloca todos os partícipes do ciclo de produção como responsáveis diretos pelo vício, de forma que o consumidor poderá escolher e acionar diretamente qualquer dos envolvidos, exigindo seus direitos. Vejamos o seguinte exemplo: uma consumidora e um consumidor comparecem no mesmo momento a uma loja de departamentos para adquirir um liquidificador. Após escolherem, resolvem comprar o mesmo produto, da mesma marca e modelo; ambas as unidades saíram da fábrica na mesma série de fabricação. Os dois vão para suas casas, cada um com seu liquidificador. Cada um, em sua residência, resolve utilizar o produto. Ele pretende fazer um bolo. Ela, um suco. Retiram o aparelho da caixa, passam uma água e preparam-se para acioná-lo. Ele pressiona o botão. O motor, de forma violenta, gira e uma das pás de liquidificação se quebra e sai voando, fura o copo e entra na barriga do consumidor. Ele tem de ser hospitalizado e por pouco não morre. Ela, por sua vez, pressiona o botão. O motor, de forma violenta, gira, e uma das pás de liquidificação se quebra e sai voando, fura o copo e cai no chão, sem atingi-la.1 No primeiro caso, ele sofreu acidente de consumo. É defeito. No segundo, ela nada sofreu. Apenas o liquidificador deixou de funcionar. É vício. Utilizando-se desse exemplo, teremos que, no caso do consumidor que foi ferido, ele deverá acionar o fabricante do liquidificador para pleitear indenização pelos danos materiais e morais sofridos2. E a consumidora poderá pedir a troca do aparelho viciado por outro idêntico, mas funcionando adequadamente3: a) na loja onde ela o adquiriu; ou b) diretamente do fabricante. Na sequência, um equívoco voltado para a especificidade do conteúdo do próprio art. 18. A norma diz: os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente "pelos vícios de qualidade ou quantidade". Acontece que o art. 18, caput, e seus seis parágrafos cuidam apenas de vícios de qualidade. Os vícios de quantidade estão regulados no art. 19. Assim, ficou  esse termo inútil colocado no caput do art. 18. A norma reafirma a solidariedade ao colocar que "os fornecedores"... "respondem solidariamente". Algo bem claro: todos os fornecedores são solidariamente responsáveis pelos vícios (e pelos defeitos, na medida de suas participações). Na sequência da proposição é que a norma propriamente especifica aquilo que entende por vício de qualidade. Diz ela que são vícios de qualidade aqueles que tornem os produtos "impróprios ou inadequados ao consumo e que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária..." (art. 18, caput). Esse tema avaliaremos no próximo artigo. _______ 1 O exemplo é exagerado apenas no intuito de reforçar as diferenças. Tecnicamente falando, deve ser impossível acontecer acidente com liquidificador da maneira como foi relatado. 2 Por força do estabelecido no caput do art. 12 do CDC. 3 As hipóteses de acionamento por vício serão examinadas mais a frente. A troca do produto, no caso, nasce da combinação do § 1º com o § 3º, ambos do art. 18.
quinta-feira, 12 de junho de 2025

A distinção entre vício e defeito no CDC

O CDC (Lei 8078/1990), em termos conceituais, estabeleceu uma confusão ao pretender, como fez, utilizar dois termos distintos: "defeito" e "vício". Os defeitos são tratados nos arts. 12 a 14 e os vícios nos arts. 18 a 20. Para entender "defeito", é necessário antes - por motivos que adiante se saberá - conhecer o sentido de "vício". Além disso, várias passagens são mal escritas, dando margem a dúvidas e dificuldades de interpretação. Comecemos, então, fazendo a distinção - que é do CDC - entre vício e defeito. O termo "vício" lembra vício redibitório, instituto do direito civil que tem com ele alguma semelhança na condição de vício oculto, mas com ele não se confunde. Até porque é regra própria do sistema do CDC. São consideradas vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os produtos ou serviços impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam e, também, que lhes diminuam o valor. Da mesma forma são considerados vícios os decorrentes da disparidade havida em relação às indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem, oferta ou mensagem publicitária. Os vícios, portanto, são os problemas que, por exemplo: a) fazem com que o produto não funcione adequadamente, como um liquidificador que não gira; b) fazem com que o produto funcione mal, como a televisão sem som, o automóvel que "morre" toda hora etc.; c) diminuam o valor do produto, como riscos na lataria do automóvel, mancha no terno etc.; d) não estejam de acordo com informações, como o vidro de mel de 500 ml que só tem 400 ml; o saco de 5 kg de açúcar que só tem 4,8 kg; o caderno de 200 páginas que só tem 180 etc.; e) façam os serviços apresentarem características com funcionamento insuficiente ou inadequado, como o serviço de desentupimento que no dia seguinte faz com que o banheiro alague; o carpete que descola rapidamente; a parede mal pintada; o extravio de bagagem no transporte aéreo etc. Os vícios podem ser aparentes ou ocultos. Os aparentes ou de fácil constatação, como o próprio nome diz, são aqueles que aparecem no singelo uso e consumo do produto (ou serviço). Ocultos são aqueles que só aparecem algum ou muito tempo após o uso e/ou que, por estarem inacessíveis ao consumidor, não podem ser detectados na utilização ordinária. O defeito, por sua vez, pressupõe o vício. Há vício sem defeito, mas não há defeito sem vício. O vício é uma característica inerente, intrínseca do produto ou serviço em si. O defeito é o vício acrescido de um problema extra, alguma coisa extrínseca ao produto ou serviço, que causa um dano maior que simplesmente o mau funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago - já que o produto ou serviço não cumpriram o fim ao qual se destinavam. O defeito causa, além desse dano do vício, outro ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral e/ou estético e/ou à imagem do consumidor. Logo, o defeito tem ligação com o vício, mas, em termos de dano causado ao consumidor, é mais devastador. Temos, então, que o vício pertence ao próprio produto ou serviço, jamais atingindo a pessoa do consumidor ou outros bens seus. O defeito vai além do produto ou do serviço para atingir o consumidor em seu patrimônio jurídico mais amplo (seja moral, material, estético ou da imagem). Por isso, somente se fala propriamente em acidente, e, no caso, acidente de consumo, na hipótese de defeito, pois é aí que o consumidor é atingido1. Mostro, agora, dois exemplos que elucidam a diferença entre vício e defeito. 1. Dois consumidores vão à concessionária receber seu automóvel zero-quilômetro. Ambos saem dirigindo seu veículo alegremente. Os consumidores não sabem, mas o sistema de freios veio com problema de fábrica. Aquele que sai na frente passa a primeira esquina e segue viagem. No meio do quarteirão seguinte, pisa no breque e este não funciona. Vai, então, reduzindo as marchas e com sorte consegue parar o carro encostando-o numa guia. O segundo, com menos sorte, ao atingir a primeira esquina, depara com o semáforo no vermelho. Pisa no breque, mas este não funciona. O carro passa e se choca com outro veículo, causando danos em ambos os carros. O primeiro caso, como o problema está só no freio do veículo, é de vício. No segundo, como foi além do freio do veículo, causando danos não só em outras áreas do próprio automóvel como no veículo de terceiros, trata-se de defeito. 2. Um consumidor compra uma caixinha longa-vida de creme de leite. Ao chegar em casa, abre-a e vê que o produto está embolorado. É vício, pura e simplesmente. Outro compra o mesmo creme de leite. Abre a caixa em casa, mas o faz com um corte lateral. Prepara um delicioso strogonoff e serve para a família. Todos têm de ser hospitalizados, com infecção estomacal. É caso de defeito. É, portanto, pelo efeito e pelo resultado extrínseco causado pelo problema que se poderá detectar o defeito. O chamado acidente de consumo está relacionado com o defeito. _______ 1 Seria mais adequado dizer "mais atingido", porque, quando há vício, o consumidor já é afetado de alguma maneira, ainda que apenas no aspecto patrimonial do preço pago pelo produto ou serviço viciado.
Anteriormente, vimos que o estabelecimento da responsabilidade de indenizar nasce do nexo de causalidade existente entre o consumidor (lesado), o produto e/ou serviço e o dano efetivamente ocorrente. Demonstrada, assim, a teoria - e a realidade - fundante da responsabilidade civil objetiva estatuída no CDC, assim como as amplas garantias indenizatórias em favor do consumidor que sofreu o dano - ou seus familiares ou, ainda, o equiparado e seus familiares -, podemos passar ao exame da responsabilidade civil objetiva. O CDC, no capítulo sobre os princípios e direitos básicos do consumidor, garante ao consumidor a reparação integral dos danos patrimoniais e morais (no inciso VI do art. 6º). Logo, quando, na Seção II do Capítulo III (nos arts. 12 a 17), o CDC determina a reparação dos danos, está-se referindo à ampla reparação dos danos materiais (patrimoniais), morais, estéticos e à imagem. Como se sabe, a composição da indenização do dano material compreende os danos emergentes, isto é, a perda patrimonial efetivamente já ocorrida e os chamados "lucros cessantes", que compreendem tudo aquilo que o consumidor lesado deixou de auferir como renda líquida, em virtude do dano. No primeiro caso, apura-se o valor real da perda e manda-se pagar em dinheiro a quantia apurada. No segundo, calcula-se  quanto o consumdor  deixou de faturar e determina-se seu pagamento. Nessa hipótese, encontra-se a fixação das pensões pela perda de capacidade para o trabalho, pela morte do parente que mantinha e sustentava a família etc. E é bem possível - fatal e desafortunadamente - que produtos e serviços causem danos de ordem patrimonial de monta, quer emergentes, quer oriundos de lucros cessantes. Danos físicos irreparáveis e até a morte do consumidor ocorrem e devem ser indenizados. Não é preciso ir muito longe para pensar nos exemplos. Um simples - e trágico - acidente de automóvel, ocasionado por defeito no freio, pode gerar toda sorte de dano; a ingestão de um remédio mal produzido; o consumo de alimentos deteriorados; o serviço hospitalar mal realizado; o acidente de transporte - lembrem-se os acidentes da viação aérea ocorridos no Brasil; o mero extravio de bagagens numa viagem aérea; enfim, potencialmente, os acidentes de consumo estão à volta de todos, consumidores que são. O importante é ter claro que, havendo dano material - emergente ou de lucros cessantes -, ele tem de ser indenizado na exata medida de sua extensão. Além dos danos materiais, há os danos morais, o dano estético e o dano à imagem. O dano moral é aquele que afeta a paz interior da pessoa lesada; atinge seu sentimento, o decoro, o ego, a honra, enfim, tudo aquilo que não tem valor econômico mas causa dor e sofrimento. É, pois, a dor física e/ou psicológica sentida pela pessoa. A indenização por dano moral tem caráter satisfativo-punitivo e tem de ser fixada segundo certos critérios objetivos. De maneira assemelhada deve-se apurar a indenização relativa ao dano estético e à imagem. Resta agora falarmos dos consumidores equiparados. Com efeito, a definição de consumidor está no art. 2º, caput do CDC. O conceito é ampliado pelo parágrafo único do próprio art. 2º e cresce pela disposição do art. 29. Complementa-se pelo art. 17, na inclusão das vítimas de acidente de consumo. Esta última hipótese é a que nos interessa aqui. Com a criação pelo CDC da figura do consumidor equiparado, resolveu-se qualquer problema que poderia existir em termos de descoberta do instituto jurídico aplicável no caso de acidente de consumo envolvendo pessoas diversas do próprio consumidor diretamente interessado. Em outros termos, ocorrendo acidente de consumo, o consumidor diretamente afetado tem direito à ampla indenização pelos danos ocasionados e, também, todas as outras pessoas que foram atingidas pelo evento têm o mesmo direito. Importante levantar aqui outra questão de alto relevo envolvendo dois tipos de terceiros: a) os familiares do consumidor diretamente atingido e que por conta do acidente de consumo tenha falecido; b) os familiares do terceiro - consumidor equiparado - envolvido no acidente de consumo e que por causa do evento danoso tenha falecido. Em ambos os casos, os familiares dos consumidores vítimas do acidente - quer sejam consumidores diretos, quer sejam equiparados - têm direito a indenização de natureza material e moral. Isso porque a amplitude da lei consumerista no que respeita à indenização devida ao consumidor, garantindo de um lado sua esfera patrimonial, alcança as pessoas sucessoras e com interesse jurídico na questão, e, assegurando de outro a recomposição dos danos de natureza moral, no caso de falecimento, abrange aquelas pessoas que estão a padecer a dor da perda.
Hoje continuo a análise da teoria do risco do negócio, que é a base da responsabilidade objetiva estabelecida no CDC. Vimos que em produções massificadas, seriadas, é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número muito maior de consumidores. Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem de correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. Mas, recebe de faturamento o valor de todos os produtos vendidos/serviços fornecidos. Está, pois, justificada a estipulação de uma responsabilidade objetiva do fornecedor. Mas ainda existe um outro reforço dessa justificativa e que formatará por completo o quadro qualificador que obrigou o sistema normativo a adotar a responsabilização objetiva. É o relacionado não só à dificuldade da demonstração da culpa do fornecedor, assim como ao fato de que, efetivamente, muitas vezes, ele não tem mesmo culpa de o produto ou serviço terem sido oferecidos com vício/defeito. Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria fatalmente lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como era no regime anterior). No exemplo que eu dei na semana passada: aqueles 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito, muito provavelmente, não conseguiriam demonstrar a culpa do fabricante. Explicando melhor: no regime de produção em série - característica da produção em massa - o fabricante, produtor, prestador de serviços etc. não podem ser considerados, por via de regra, negligentes, imprudentes ou imperitos. Como se sabe, o negligente é aquele que causa dano por omissão (ex.: o motorista que não coloca óleo no freio do automóvel e, por causa disso, numa brecada, o freio falha, causando um acidente); o imprudente é quem causa dano por ação (ex.: o motorista que, dirigindo seu carro, passa o sinal vermelho de trânsito, atingindo outro veículo); e o imperito é o profissional que não age com a destreza que dele se espera (ex.: o médico que não fecha de forma adequada a parte do corpo da pessoa que sofreu a cirurgia). Ora, o produtor contemporâneo, em especial aquele que produz em série, não é negligente, imprudente ou imperito. Ao contrário, numa verificação de seu processo de fabricação, percebe-se que no ciclo de produção trabalham profissionais que avaliam a qualidade dos insumos adquiridos, técnicos que controlam cada detalhe dos componentes utilizados, engenheiros de qualidade que testam os produtos fabricados, enfim, no ciclo de produção como um todo não há, de fato, omissão (negligência), ação imprudente ou imperícia. No entanto, pelas razões já expostas, haverá produtos e serviços viciados/defeituosos. Vê-se, só por isso, que, se o consumidor tivesse de demonstrar a culpa do produtor, não conseguiria. E, na sistemática do CC anterior (art. 159), o consumidor tinha poucas chances de se ressarcir dos prejuízos causados pelo produto ou pelo serviço. Além disso, ainda que culpa houvesse, sua prova como ônus para o consumidor levaria ao insucesso, pois o consumidor não tinha e não tem acesso ao sistema de produção e, também, a prova técnica posterior ao evento danoso tinha pouca possibilidade de demonstrar culpa. Poder-se-ia dizer que antes - por incrível que possa parecer - o risco do negócio era do consumidor. Era ele quem corria o risco de adquirir um produto ou serviço, pagar seu preço (e, assim, ficar sem seu dinheiro) e não poder dele usufruir adequadamente ou, pior, sofrer algum dano. É extraordinário, mas esse sistema teve vigência até 10 de março de 1991, em flagrante injustiça e inversão lógica e natural das coisas. Com a lei 8.078, o risco integral do negócio é do fornecedor. Registre-se, por fim, apenas, corroborando tudo o que foi dito, que o CDC intitula a Seção II do Capítulo IV (arts. 12 a 17) como "Da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço", porque a norma, dentro do regramento da responsabilidade objetiva, é dirigida mesmo ao fato do produto ou serviço em si, conforme já tivemos oportunidade de demonstrar. É o "fato" do produto e do serviço causadores do dano o que importa. O estabelecimento da responsabilidade de indenizar nasce do nexo de causalidade existente entre o consumidor (lesado), o produto e/ou serviço e o dano efetivamente ocorrente.
Hoje continuo a análise da teoria do risco do negócio, que é a base da responsabilidade objetiva estabelecida no CDC. Muito bem. Em produções massificadas, seriadas, é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito1. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número muito maior de consumidores. Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem de correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. Aliado a isso está o indelével fato de que produções desse tipo envolvem dezenas, centenas ou milhares de componentes físicos que se relacionam, operados por outra quantidade enorme de mãos que os manuseiam direta ou indiretamente2. A falha é inexorável: por mais que o fornecedor queira, não consegue evitar que seus produtos ou serviços cheguem ao mercado sem vício/defeito. Mesmo nos setores mais desenvolvidos, em que as estatísticas apontam para vícios/defeitos de fabricação próximos de zero, o resultado final para o mercado será a distribuição de um número bastante elevado de produtos e serviços comprometidos. E isso se explica matematicamente: supondo um índice percentual de vício/defeito no final do ciclo de fabricação de apenas 0,1%3 aplicado sobre alta quantidade de produção, digamos, 100.000 unidades, ter-se-ia 100 produtos entregues ao mercado com vício/defeito. Logo, temos de lidar com esse fato inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito. Dessa maneira, nada mais adequado do que controlar, como fez o CDC, o resultado da produção viciada/defeituosa, cuidando de garantir ao consumidor o ressarcimento pelos prejuízos sofridos. Note-se que a questão do vício/defeito envolve o produto e o serviço em si, independentemente da figura do produtor (bem como de sua vontade ou atuação). São o produto e o serviço - e não o fornecedor - que causam diretamente o dano ao consumidor. Este só é considerado na medida em que é o responsável pelo ressarcimento dos prejuízos. Nesse ponto temos, então, de colocar outro aspecto relevante, justificador da responsabilidade do fornecedor, no que respeita ao dever de indenizar: é o da origem do fundo capaz de pagar os prejuízos. É a receita e o patrimônio do fabricante, produtor, prestador de serviço etc. que respondem pelo ônus da indenização relativa ao prejuízo sofrido pelo consumidor. O motivo, aliás, é simples: a receita abarca "todos" os produtos e serviços oferecidos. "Todos", isto é, tanto os produtos e serviços sem vício/defeito quanto aqueles que ingressaram no mercado com vício/defeito. O resultado das vendas, repita-se, advém do pagamento do preço pelo consumidor dos produtos e serviços bons e, também, dos viciados/defeituosos. Vejamos um exemplo. Vamos supor uma produção de 100 mil liquidificadores/mês e um vício/defeito no final do ciclo de produção de apenas 0,1%. Como resultado, tem-se que o mercado receberá 100 mil liquidificadores. E o produtor aferirá uma receita advinda da totalidade dos liquidificadores. Acontece que apenas 99.900 consumidores adquirirão efetivamente liquidificadores em perfeito estado de funcionamento. Os outros 100 arcarão com o ônus de ter comprado os liquidificadores com vício/defeito. Nesse ponto, é preciso inserir outro princípio legal justificador do tratamento protecionista dos consumidores que adquiriram os produtos com vício/defeito. É o princípio constitucional da igualdade4. Não teria, nem tem cabimento, que os 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito e que pagaram por eles o mesmo preço dos demais 99.900 consumidores não tivessem os mesmos direitos e garantias assegurados a estes últimos. Para igualá-los é preciso que: a) recebam outro produto em condições perfeitas de funcionamento; b) ou aceitem o valor do preço de volta; c) ou, ainda, sejam ressarcidos de eventuais outros prejuízos sofridos. É dessa forma que se justifica a estipulação de uma responsabilidade objetiva do fornecedor. Continua na próxima semana. __________ 1 Usarei inicialmente o termo "vício" conjugado com "defeito" (vício/defeito) porque o CDC se utiliza dos dois, que são conceitos diferentes. Em outra oportunidade, mais à frente farei a distinção entre ambos. 2 Inclusive com a contribuição dos robôs e dos sistemas de automação 3 Um número bastante ínfimo e apenas hipotético. Dependendo do setor, os índices reais podem ser superiores. 4 Art. 5º, caput, da Constituição Federal.
Hoje cuido da Teoria do Risco do Negócio, que é a base da responsabilidade objetiva estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC).  Com efeito, o CDC estabeleceu a responsabilidade objetiva dos fornecedores (especificando cada qual em seus arts. 12, 13 e 14) pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços. E  ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade), tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.  Para que possamos compreender o porquê dessa ampla responsabilização, precisamos conhecer a teoria do risco do negócio ou da atividade, que é sua base e que examinamos na sequência.  No Brasil,  a  Constituição Federal garante a livre iniciativa para a exploração da atividade econômica, em harmonia com uma série de princípios (CF, art. 170), iniciativa esta que é, de fato, de uma forma ou de outra, característica da sociedade capitalista contemporânea. A exploração da atividade econômica tem uma série de características, que não cabe aqui narrar. Mas, entre elas, algumas são relevantes  e certos aspectos teóricos que embasam o lado prático da exploração nos interessam.  Uma das características principais da atividade econômica é o risco1. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa, a ação dos empreendedores está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota.  É claro que são muitas as variáveis em jogo, que terão de ser avaliadas, tanto mais se existir uma autêntica competitividade no setor escolhido. Os insumos básicos para a produção, os meios de distribuição, a expectativa do consumidor em relação ao produto ou serviço a serem  produzidos, a qualidade destes, o preço, os tributos etc. são preocupações constantes. Some-se  o desenvolvimento de todos os aspectos que envolvem o marketing e  em especial a possibilidade - e, praticamente, a necessidade - da exploração da publicidade, arma conhecida para o desenvolvimento dos negócios. O fornecedor, naturalmente,  levará  sempre em consideração todos os elementos envolvidos.  Aqui o que interessa é o aspecto do risco, que se incrementa na intrínseca relação com o custo. Esse binômio risco/custo (ao qual acrescentarei um outro: o do custo/benefício) é determinante na análise da viabilidade do negócio. A redução da margem de risco a baixos níveis (isto é, a aplicação máxima no estudo de todas as variáveis) eleva o custo a valores astronômicos, inviabilizando o projeto econômico. Em outras palavras, o custo, para ser suportável, tem de ser definido na relação com o benefício. Esse outro binômio custo/benefício tem de ser considerado. Descobrir o ponto de equilíbrio de quanto risco vale a pena correr a um menor custo possível, para aferir a maximização do benefício, é uma das chaves do negócio.  Dentro dessa estratégia geral dos negócios, como fruto da teoria do risco, um item específico é o que está intimamente ligado à sistemática normativa adotada pelo CDC. É aquele voltado à avaliação da qualidade do produto e do serviço, especialmente a adequação, finalidade, proteção à saúde, segurança e durabilidade. Tudo referendado e complementado pela informação.  Em realidade, a palavra "qualidade" do produto ou do serviço pode ser o aspecto determinante, na medida em que não se pode compreender qualidade sem o respeito aos direitos básicos do consumidor.  E nesse ponto da busca da qualidade surge, então, nova e particularmente, o problema do risco/custo/benefício, acrescido agora de outro aspecto considerado tanto na teoria do risco quanto pelo CDC: a produção em série2.  Com a explosão da revolução industrial, a aglomeração de pessoas nos grandes centros urbanos e o inexorável aumento da complexidade social, exigia-se um modelo de produção que desse conta da sociedade que começava a surgir. A necessidade de oferecer cada vez mais produtos e serviços para um número sempre maior de pessoas fez com que a indústria passasse a produzir em grande quantidade. Mas o maior entrave para o crescimento da produção era o custo.  A solução foi a produção em larga escala e em série, que, a partir de modelos previamente concebidos, permitia a diminuição dos custos. Com isso,  era possível fabricar mais bens para atingir um maior número de pessoas. O século XX inicia-se sob a égide desse modelo de produção: fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, com um custo de produção menor de cada um dos produtos, possibilitando sua venda a menor preço individual, com o que maiores parcelas de consumidores passaram a ser beneficiadas.  A partir da Segunda Guerra Mundial,  esse projeto de produção capitalista passou a crescer numa velocidade jamais imaginada, fruto do incremento dos sistemas de automação, do surgimento da robótica, da telefonia por satélite, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação etc.  ***  Continua na próxima semana. __________ 1 Não nos cabe aqui, também, abordar o aspecto negativo da exploração de certas atividades econômicas que, no Brasil, não comportam risco. Os monopólios são atividades sem risco, como também as ações econômicas de produção perpetradas diretamente pelo Estado, bem como a formação de oligopólios (que a legislação pátria pretende proibir). São exceções ao princípio  geral da atividade econômica de risco que, de qualquer maneira, não interferem no lema fundamental da teoria do risco do negócio, incorporada pelo CDC.  2 Por causa disso, a responsabilidade objetiva tal como regulada  remanesce como um grande problema, praticamente insolúvel, para aqueles fornecedores que não produzem em série, especialmente  pequenos produtores, microprodutores e fabricantes pessoas físicas de produtos manufaturados e pequenos prestadores de serviços (pessoas físicas e jurídicas). A lei consumerista não abre exceção para tais fornecedores, que acabam tendo de arcar com o peso da responsabilidade objetiva, como se grandes fornecedores de produtos e serviços em série fossem.
Continuo a análise dos arts. 8º, 9º e 10 do CDC, que cuidam da proteção à saúde e segurança do consumidor.  Agora, vou examinar o "recall".  Com efeito, o § 1º do art. 10 cuida do chamado recall: "Art. 10. (...) § 1º O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários."  Na prática, o recall começou a funcionar no Brasil, especialmente após a edição da lei 8.078/90.  Por meio desse instrumento, a norma protecionista pretende que o fornecedor impeça ou procure impedir, ainda que tardiamente, que o consumidor sofra algum dano ou perda em função de vício que o produto ou o serviço tenham apresentado após sua comercialização.  Essa regra legal tem um alvo evidente: trata-se das produções em série. Após gerar determinado produto, por exemplo, um automóvel, o fabricante constata que um componente apresenta vício capaz de comprometer a segurança do veículo. Esse componente, digamos, um amortecedor, que é o mesmo modelo instalado em toda uma série de 1.000 automóveis que saiu da montadora, apresentou problema de funcionamento, e, por ter origem no mesmo lote advindo do seu fabricante (isto é, do fabricante do amortecedor), tem grande probabilidade de repetir o problema nos automóveis já colocados no mercado. Então, esses veículos vendidos devem ser "chamados de volta" (recall) para serem consertados.  O § 2º do art. 10 dispõe que para efetivar o recall o fornecedor deve utilizar-se de todos os meios de comunicação disponíveis e, claro, com despesas correndo por sua conta:  "§ 2º Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço."  Mas não basta. É preciso fazer uma interpretação extensiva do texto para cumprir seu objetivo.  Assim, utilizando-se o mesmo exemplo acima, dos amortecedores, se os veículos são zero-quilômetro, as concessionárias que os venderam têm registro, nas notas fiscais, dos endereços dos compradores. Nada mais natural, portanto, que as montadoras chamem os consumidores por correspondência, telegrama, telefonema, whatsapp, mensageiros etc.  Então, deve-se entender que o sentido desejado no § 2º é o de amplamente obrigar o fornecedor a encontrar o consumidor que adquiriu seu produto ou serviço criado para que o vício seja sanado.
Continuo a análise dos arts. 8º, 9º e 10 do CDC, que cuidam da proteção à saúde e segurança do consumidor.  Vejamos agora a redação do art. 9º para poder complementar nossa análise. Dispõe o art. 9º: "O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto". Surge aqui com o art. 9º o problema da definição do que seja produto ou serviço "potencialmente nocivo ou perigoso à saúde ou segurança" do consumidor. A lei permite que produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança do consumidor sejam produzidos e comercializados. O problema é que o art. 10 proíbe a venda dos produtos e serviços que apresentem alto grau de nocividade e periculosidade: "Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança." Logo, a permissão legal está estabelecida entre o que seja potencialmente e o que se apresenta com alto grau de nocividade e periculosidade. O texto da norma é vago. Usando essa terminologia, jogou para a discussão de casos concretos o exame da nocividade e periculosidade. Para entender o estabelecido pelas letras da norma, é necessário recorrer aos estudos da linguagem jurídica. Nossa escolha nesse assunto recai sobre Genaro Carrió, que apresenta aspectos de linguagem que nos interessam1. A proposição normativa tanto do art. 9º quanto do art. 10 é formada por conceitos vagos, que, por conta disso, situam-se na chamada "zona de penumbra". Os termos que têm essa característica dependem do contexto linguístico ou pragmático para terem sanadas suas indeterminações. Assim, por exemplo, o termo "calvo" ou "careca". Se alguém não tem cabelo nenhum é, com certeza, calvo ou careca. Se tem muito cabelo, por certo não é. Mas, quando está começando a perder cabelo ou já perdeu bastante mas ainda mantém muitos fios na cabeça, é ou não calvo? Sabe-se que o direito se utiliza dessas indeterminações quando lança mão, como faz, por exemplo, no direito penal, do conceito de "noite", bem como luta contra elas, quando, por exemplo, define limites: de idade para a maioridade; de velocidade nas estradas; de tempo para os recursos etc. No caso presente, o tratamento linguístico de potencialidade da nocividade e periculosidade volta-se, então, ao regime normativo, que impõe restrições e condutas aos fornecedores no caso de produtos e serviços potencialmente nocivos e perigosos, determinando que informações especiais, além das regularmente exigidas, sejam fornecidas. Elimine-se uma outra dúvida que poderia surgir em função do estabelecido no caput do art. 10. É que a redação pode levar o leitor a pensar em culpa, uma vez que está escrito "sabe ou deveria saber". Se o fornecedor sabe que o produto ou serviço apresenta alto grau de nocividade ou periculosidade e ainda assim o coloca no mercado, age, então, com dolo. Se devia saber é porque agiu com culpa (negligência, imprudência ou imperícia). Essa designação vale apenas para fins penais e tem relação com o tipo do art. 64 do CDC2.Qualquer problema relativo à nocividade ou periculosidade dos produtos e serviços oferecidos ao consumidor, quer seja no que tange a vícios, quer diga respeito a defeito, resolve-se com base na responsabilidade objetiva do fornecedor. Culpa não interessa aos aspectos civis das relações de consumo, com a única exceção da hipótese do § 4º do art. 14 que cuida da responsabilidade do profissional liberal. ___________ 1  No livro Notas sobre derecho y lenguage. (2ª. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, s.d.). O problema da indeterminação dos conceitos utilizados pelas normas não é privilégio do CDC, e mesmo neste não é questão que apareça só nos artigos ora em análise. Poder-se-ia falar na "vagueza" dos conceitos em vários momentos. Contudo, nos outros pontos da lei consumerista há alternativas linguísticas que, arranjadas em argumentos, resolvem os problemas. Nos arts. 9º e 10 a situação é mais grave. Por isso tive que lançar mão desse recurso de análise dos problemas linguísticos para melhor produzir a interpretação dos textos.  2 Art. 64. Deixar de comunicar à autoridade competente e aos consumidores a nocividade ou periculosidade de produtos cujo conhecimento seja posterior à sua colocação no mercado: Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa. Parágrafo único. Incorrerá nas mesmas penas quem deixar de retirar do mercado, imediatamente quando determinado pela autoridade competente, os produtos nocivos ou perigosos, na forma deste artigo.
Continuo a análise dos arts. 8º, 9º e 10 do CDC, que cuidam da proteção à saúde e segurança do consumidor.   Com efeito, o § 1º do art. 8º especifica a obrigação do fabricante do produto industrializado de fornecer as informações em impressos que devem acompanhar o produto: "Art. 8º Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.  "§ 1º  Em se tratando de produto industrial, ao fabricante cabe prestar as informações a que se refere este artigo, através de impressos apropriados que devam acompanhar o produto.   (Redação dada pela lei 13.486, de 2017)"1 A designação da norma é exemplificativa. Isto porque, se o produto é importado e na origem é feito por indústria, é ao importador que caberá fornecer as informações, e, se elas já acompanharem o produto, será ele o responsável pela tradução, a ser oferecida em impresso próprio que deverá acompanhar o produto. Complementando, então, os comentários ao art. 8º, repita-se que seu entendimento total somente se elucida com a leitura dos arts. 9º e 10, analisados na sequência. E o art. 8º ganhou um parágrafo novo pela edição da lei 13.486, de 2017, o § 2º, que dispõe: "§ 2º O fornecedor deverá higienizar os equipamentos e utensílios utilizados no fornecimento de produtos ou serviços, ou colocados à disposição do consumidor, e informar, de maneira ostensiva e adequada, quando for o caso, sobre o risco de contaminação". Veja-se que, do ponto de vista da informação, o acréscimo diz respeito a obrigação que tem o fornecedor de avisar sobre risco de contaminação, algo que já se poderia extrair da redação do caput do art. 9º (que ainda examinarei).  De todo modo, agora há especificamente uma determinação para que esse risco específico seja informado de maneira ostensiva e adequada aos consumidores. Além disso, a nova norma também determina de forma direta que o fornecedor deve higienizar os equipamentos e utensílios utilizados no fornecimento de produtos ou serviços, ou colocados à disposição do consumidor.  Trata-se de regra despicienda. Não se consegue imaginar que o fornecedor pudesse colocar à disposição do consumidor ou oferecer, vender e entregar produtos ou serviços sem que antes tivesse se utilizado de equipamentos devidamente limpos e higienizados. Chega até a assustar que o legislador precise escrever uma norma para tanto. Dá medo de ir a restaurantes... O fato é que, infelizmente, a norma assim expressa parece ter nascido do fato de que muitos fornecedores oferecem, vendem e entregam produtos e serviços fora dos padrões normais de limpeza e higiene. Continua na próxima semana. _____________ 1 Disponível aqui. 
Os arts. 8º, 9º e 10 do CDC cuidam da proteção à saúde e segurança do consumidor.  Começo examinando o artigo 8º.  Com efeito, dispõe o caput do art. 8º, verbis: "Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito". A afirmativa do início da proposição do caput do art. 8º ("os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores") somente pode ser entendida se lida em consonância com a segunda proposição ("exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição"). Só da interpretação das duas proposições em conjunto é que se poderá extrair a essência normativa do caput do art. 8º. Se assim não fosse, não haveria como permitir a venda, por exemplo, de cigarros, já que ninguém em nenhum lugar do mundo civilizado poderia aceitar que fumar não traz ao menos riscos à saúde. Surge, então, de consequência, a necessidade de fixar adequadamente o sentido da segunda proposição. Que vem a ser "risco normal e previsível em função da natureza e fruição do produto ou serviço"? A norma está, de fato, tratando de expectativa. Uma espécie de expectativa tanto do consumidor em relação ao uso e consumo regular de algum produto ou serviço quanto do fornecedor em relação ao mesmo aspecto. A lei aqui se refere à normalidade e previsibilidade do consumidor em relação ao uso e funcionamento rotineiro do produto ou serviço. Assim, por exemplo, do ponto de vista da segurança, um liquidificador apresenta riscos na sua utilização. Não se pode, evidentemente, colocar a mão dentro do copo com o aparelho ligado. Quando afirmamos "evidentemente" estamos justamente querendo realçar esse aspecto do uso e funcionamento normal do produto. Trata-se de expectativa regular do consumidor, que detém o conhecimento sobre o regular uso daquele produto. Agora, do ponto de vista da realidade concreta, será possível encontrar algum consumidor que realmente não conheça o regular funcionamento do liquidificador. Pode tanto ser uma pessoa sem qualquer grau de instrução e informação quanto uma criança consumidora. Só que esse desconhecimento concreto não invalida o sentido da norma, que está, como dito, posta para controlar o funcionamento normal, dentro da expectativa-padrão do consumidor. Além disso, é de destacar que a regra legal, ao referir a expectativa do consumidor, está supondo o grau de conhecimento-padrão existente no mercado. Esse conhecimento é tanto o usual, adquirido no senso comum, quanto o formal, adquirido nos cursos de formação. Por exemplo, um automóvel sempre apresenta riscos à segurança. A norma não vai supor que quem adquire um veículo não saiba utilizá-lo regularmente. O controle do uso regular dos veículos automotores, inclusive, é das autoridades competentes para o setor. Esses aspectos normativos relativos ao consumidor e seu conhecimento-padrão do uso e funcionamento regular dos produtos e serviços vão refletir-se na terceira parte da redação do caput do artigo, que diz: "obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito". Já tive oportunidade de demonstrar que a informação passou a ser elemento inerente ao produto e ao serviço, bem como a maneira como deve ser fornecida. Repita-se que toda informação tem de ser correta, clara, precisa, ostensiva e no vernáculo. No art. 8º o dever de informar do fornecedor está relacionado ao aspecto do risco à saúde e segurança do consumidor, e, como estou dizendo, tal obrigatoriedade, no caso, está intimamente relacionada ao núcleo da norma. Isto é, o fornecedor deve dar informações sobre os riscos que não são normais e previsíveis em decorrência da natureza e fruição dos produtos e dos serviços. Tomemos o caso da faca de cozinha e do automóvel, já citado, para ilustrar com exemplos. Será que no caso de uma faca de cozinha o fornecedor tem de informar que o consumidor não pode friccioná-la na mão com o lado que corta? Se não der tal informação e um consumidor se acidentar, cortando os dedos, será o fornecedor responsabilizado? A resposta a essas questões está atrelada ao que já expus até aqui. Desde que o risco do uso e funcionamento do produto e do serviço seja do conhecimento-padrão do consumidor, isto é, seja normal e previsível, o fornecedor não precisa dar a informação. Logo, no caso da faca não é necessário que o fornecedor diga que o consumidor não deve experimentar a força do corte no próprio corpo1 . Havendo acidente desse tipo, a responsabilidade é exclusiva do consumidor. Por outro lado, diga-se que, se o produto que está sendo vendido é novo e desconhecido do consumidor, o fornecedor tem de, exaustivamente, apresentar todas as informações quanto aos riscos à saúde e segurança daquele. Se uma industria cria e produz, por exemplo, um triturador, cujo manuseio não é, ainda, do conhecimento-padrão do consumidor, tem de dar-lhe informações corretas, claras, ostensivas e suficientes, visando esclarecer todos os riscos inerentes à utilização do produto. No outro exemplo mencionado, do automóvel, existe uma série de dados relativos aos riscos para a utilização que não necessitam ser fornecidos, porque já são do conhecimento do consumidor. Não precisa o fabricante informar que para o veículo ser frenado o condutor tem de pisar no breque, nem que para virar o veículo a direção tem de ser acionada etc. ________ 1 Não se trata apenas de informação no caso do uso da faca, mas de conhecimento leigo regular: todos sabem que ela corta.
Vimos que dispõe o inciso VIII do citado art. 6º o seguinte: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:       (...) VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;" Eu terminei o artigo anterior afirmando  que há alguma disputa em torno do momento processual no qual o magistrado deverá decidir a respeito da inversão do ônus da prova, mas, em nossa opinião, como se verá, esta é fruto de falta de rigorismo lógico e teleológico do sistema processual instaurado pela lei 8.078 e ainda resquícios da memória privatista do regime do processo civil tradicional. Com efeito, os que entendem que o momento de aplicação da regra de inversão do ônus da prova é o do julgamento da causa alinham o pensamento com a distribuição do ônus da prova do art. 373 do CPC e não com aquela instituída no CDC. As partes que litigam no âmbito do processo civil, fora da relação de consumo, têm clareza da distribuição do ônus. Ou, melhor dizendo, os advogados das partes sabem de antemão a quem compete o ônus da produção da prova. Leiamos o art. 373 da lei adjetiva: "Art. 373.  O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor." É, portanto, distribuição legal do ônus que se faz, sem sombra de dúvida. Naturalmente, nessas hipóteses não precisa o(a) juiz(a) fazer qualquer declaração a respeito da distribuição do gravame. Basta levá-lo em consideração no momento de julgar a demanda. Não haverá qualquer surpresa para as partes, porquanto elas sempre souberam a quem competia a desincumbência da produção da prova1. Ora, não é essa certeza que se verifica no sistema da lei consumerista. Não teríamos dúvida em afirmar que nas relações de consumo o momento seria o mesmo se a Lei n. 8.078 dissesse: "está invertido o ônus da prova". Aliás, como fez na hipótese do art. 382. Mas acontece que não é isso o que determina o CDC: a inversão não é automática. Como vimos antes, a inversão se dá por decisão do(a) juiz(a) diante de alternativas postas pela norma: ele/ela inverterá o ônus se for verossímil a alegação ou se for hipossuficiente o consumidor (Ou, obviamente, se ocorrerem as duas situações simultaneamente). É que pode acontecer de nenhuma das hipóteses estar presente: nem verossímeis as alegações nem hipossuficiente o consumidor. No artigo anterior, apontei que verossimilhança é conceito jurídico indeterminado. Depende de avaliação objetiva do caso concreto e da aplicação de regras e máximas da experiência para o pronunciamento. Logo, o raciocínio é de lógica básica: é preciso que o(a) juiz(a) se manifeste no processo para se saber se o elemento da verossimilhança está presente. Da mesma maneira, a hipossuficiência depende de reconhecimento expresso do(da) magistrado(a) no caso concreto. É que o desconhecimento técnico e de informação capaz de gerar a inversão tem de estar colocado no feito sub judice. São as circunstâncias do problema aventado e em torno do qual o objeto da ação gira que determinarão se há ou não hipossuficiência (que, como regra geral atinge a maior parte dos consumidores). Pode muito bem ser caso de um consumidor engenheiro que tinha claras condições de conhecer o funcionamento do produto, de modo a ilidir sua presumida hipossuficiência. Como pode também ser um engenheiro e ainda assim, para o caso, constatar-se sua hipossuficiência. Então, novamente o raciocínio é de singela lógica: é preciso que o(a) juiz(a) se manifeste no processo para se saber se a hipossuficiência está reconhecida. _____________ 1 É verdade que o CPC atual mitigou essa situação da distribuição do ônus, conferindo ao juiz alternativa diversa, desde que fundamentada e que a determinação não seja impossível ou excessivamente difícil. Está prevista nos §§ 1º e 2º do art. 373, nesses termos: "§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. § 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil." 2 "Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina." Veja-se que aqui a distribuição do ônus já foi feita ao patrocinador da publicidade. O(a) juiz(a), então, apenas a levará em conta quando proferir a sentença.
Volto a examinar os direitos básicos do consumidor previstos no art.6º do CDC, agora com a segunda parte da análise da inversão do ônus da prova. Vimos que dispõe o inciso VIII do citado art. 6º o seguinte: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:       (...) VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;" E terminei o artigo anterior afirmando que na hipótese do art. 6º, VIII, do CDC, cabe ao juiz decidir pela inversão do ônus da prova se for verossímil a alegação ou hipossuficiente o consumidor. Vale dizer, deverá o magistrado determinar a inversão. E esta se dará pela decisão entre duas alternativas: verossimilhança das alegações ou hipossuficiência. Presente uma das duas, está o magistrado obrigado a inverter o ônus da prova. É fato que o vocábulo "verossímil" é indeterminado, mas isso não impede que da análise do caso concreto não se possa aferir verossimilhança. Para sua avaliação não é suficiente, é verdade, a boa redação da petição inicial. Não se trata apenas do bom uso da técnica de argumentação que muitos profissionais têm. Isto é, não basta relatar fatos e conectá-los logicamente ao direito, de modo a produzir uma boa peça exordial. É necessário que da narrativa decorra verossimilhança tal que naquele momento da leitura se possa aferir, desde logo, forte conteúdo persuasivo. E, já que se trata de medida extrema, deve o juiz aguardar a peça de defesa para verificar o grau de verossimilhança na relação com os elementos trazidos pela contestação. E é essa a teleologia da norma, uma vez que o final da proposição a reforça, ao estabelecer que a base são "as regras ordinárias de experiência". Ou, em outros termos, terá o magistrado de se servir dos elementos apresentados na composição do que usualmente é aceito como verossímil. É fato, também, que a narrativa interpretativa que se faz da norma é um tanto abstrata, mas não há alternativa, porquanto o legislador se utilizou de termos vagos e imprecisos ("regras ordinárias de experiência"). Cai-se, então, de volta ao aspecto da razoabilidade e, evidentemente, do bom senso que deve ter todo juiz 1. O significado de hipossuficiência do texto do preceito normativo do CDC não é econômico, é técnico. A vulnerabilidade é o conceito que afirma a fragilidade econômica do consumidor e também técnica. Mas hipossuficiência, para fins da possibilidade de inversão do ônus da prova, tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, de sua distribuição, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício etc. Há alguma polêmica em torno do momento processual no qual o magistrado deverá decidir a respeito da inversão do ônus da prova, mas, em nossa opinião, como se verá, esta é fruto de falta de rigorismo lógico e teleológico do sistema processual instaurado pela lei n. 8.078 e ainda resquícios da memória privatista do regime do processo civil tradicional. É o que examinarei no próximo artigo. ____________ 1 São também termos vagos dos quais não se escapa ("razoável" e "bom senso"), mas que o caso concreto ajuda a decidir.
quinta-feira, 20 de março de 2025

O Dia Mundial do Consumidor

Hoje dou uma pausa na análise dos direitos básicos do consumidor previstos no artigo 6º do CDC, para lembrar do dia mundial do consumidor, celebrado no último sábado, dia 15 de março. Foi nesse dia, há mais de 60 anos (em 1962), que o então Presidente norte americano John Kennedy enviou ao Congresso uma mensagem na qual defendia os direitos dos consumidores, tais como o direito à segurança, à informação e à escolha e o direito de ser ouvido. E no último 11 de março, o nosso Código de Defesa do Consumidor (CDC) fez 34 anos de sua entrada em vigor (o que se deu em 11/3/1991). De lá pra cá os consumidores passaram a ser mais respeitados. Todavia, como sempre aconteceu, infelizmente, as empresas e até setores inteiros, ainda conseguem dar um jeito de retirar direitos dos consumidores e, também, violar esses direitos. Veja-se, por exemplo, o setor aéreo que passou a cobrar quase tudo que está atrelado à uma viagem: passagem e data de compra, assento e localização, bagagem, tamanho e peso, direito a cancelamento, alimentação etc.; já as operadoras de planos de saúde conseguem  abusar abertamente de seus clientes; na Europa, em vários lugares, se a pessoa não tem cartão de crédito/débito acaba por ter dificuldade de fazer compras, pois o papel-moeda não é aceito (não dá nem para comprar uma  garrafa de água!) etc. Enfim, a luta pelos direitos dos consumidores exige vigilância o tempo todo. De todo modo, eu aproveito  essas datas para lembrar, mais uma vez, algumas virtudes de nossa famosa lei consumerista.  Os autores do anteprojeto apresentado pelo então Deputado Geraldo Alckmin, que  fez nascer o CDC,  pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Trata-se de uma lei tão importante que fez com que nós, conhecidos importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu, e ainda serve, de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, nele inspiradas.  Não resta dúvida de que o CDC representa um bom momento de atuação de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como seu texto foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e, também, em relação às demais normas do sistema jurídico nacional. O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea, o exercício da cidadania confunde-se com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Anoto, também, que a proteção aos consumidores não está apenas relacionada às pequenas questões de varejo. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nos esportes em geral, nas diversões públicas,  em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como cursos, livros, filmes etc.;  as compras via web/internet; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; as matrículas e os cursos realizados em escolas particulares de todos os níveis de ensino;  a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos;  a aquisição de imóveis e da tão sonhada casa própria e um interminável etc. Está tudo regulado pela lei 8078/90. E quero realçar algo importante: o CDC não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário ou nenhuma empresária; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege a parte vulnerável que é a pessoa consumidora, em função do modo de produção estabelecido. Ademais, leis que protegem o consumidor são a favor do mercado e não contra. Basta olhar para a sociedade da América do Norte e verificar que a proteção lá existente há mais tempo ajudou em muito o crescimento do mercado. Como já disse aqui, o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, uma data sempre lembrada. Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossas mentes sua existência, que é tão importante para o exercício da cidadania no Brasil. De todo modo, apesar da longeva vigência e forte proteção, ainda há abusos em várias situações. Mas, repito, dá orgulho saber que o CDC é uma lei que impactou positivamente as relações jurídicas de consumo e colocou o Brasil na linha de frente do que existe de mais moderno em termos de leis de proteção aos consumidores.
Para finalizar o exame dos direitos básicos do consumidor previstos no art. 6º do CDC, cuido agora da inversão do ônus da prova. Com efeito, dispõe o inciso VIII do citado art. 6º o seguinte: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...)VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;" Já tive oportunidade de deixar consignado que o CDC constitui-se num sistema autônomo e próprio, sendo fonte primária (dentro do sistema da Constituição) para o intérprete. Dessa forma, no que respeita à questão da produção das provas no processo civil, o CDC é o ponto de partida, aplicando-se a seguir, de forma complementar, as regras do Código de Processo Civil (arts. 369 a 484). Para entender, então, a produção das provas em casos que envolvam as relações de consumo é necessário levar em conta toda a principiologia da lei 8.078, que pressupõe, entre outros princípios e normas, a vulnerabilidade do consumidor, sua hipossuficiência (especialmente técnica e de informação, mas também econômica), o plano geral da responsabilização do fornecedor, que é de natureza objetiva etc. Ao lado disso, têm-se, na lei consumerista, as determinações próprias que tratam da questão da prova. Na realidade, é a vulnerabilidade reconhecida no inciso I do art. 4º que principalmente justifica a proteção do consumidor nesse aspecto. A primeira situação envolvendo provas na lei consumerista é a relacionada à responsabilidade civil objetiva do fornecedor pelo fato do produto e do serviço (arts. 12 a 14), bem como à responsabilidade pelo vício do produto e do serviço (arts. 18 a 20, 21, 23 e 24) e que se espraia por todo o sistema normado da lei 8.078/90. Veja-se que, haverá, por exemplo, necessidade de o consumidor provar o nexo de causalidade entre o produto, o evento danoso e o dano, para pleitear a indenização por acidente de consumo. E a produção dessa prova preliminar necessária se fará pelas regras do Código de Processo Civil, a partir dos princípios e regras estabelecidos no CDC. Todavia, também essa prova, como qualquer outra que tiver de ser produzida, deverá guiar-se pelo que está estabelecido no art. 6º, VIII, do CDC (e também no art. 38, no caso específico da publicidade). Além de tudo o que disse acima, consigne-se que em matéria de produção de prova o legislador, ao dispor que é direito básico do consumidor a inversão do ônus da prova, o fez para que, no processo civil, concretamente instaurado, o juiz observasse a regra. E a observância de tal regra ficou destinada à decisão do juiz, segundo seu critério e sempre que se verificasse a verossimilhança das alegações do consumidor ou sua hipossuficiência. Para entender o sentido do pretendido pela lei consumerista é preciso primeiro compreender o significado do substantivo "critério", bem como o do uso da conjunção alternativa ou. O substantivo "critério" há de ser avaliado pelo valor semântico comum, que já permite a compreensão de sua amplitude. Diga-se, inicialmente, que agir com critério não tem nada de subjetivo. "Critério"1 é aquilo que serve de base de comparação, julgamento ou apreciação; é o princípio que permite distinguir o erro da verdade ou, em última instância, aquilo que permite medir o discernimento ou a prudência de quem age sob esse parâmetro. No processo civil, como é sabido, o juiz não age com discricionariedade (que é medida pela conveniência e oportunidade da decisão). Age sempre dentro da legalidade, fundando sua decisão em bases objetivas. O que a lei processual lhe outorga são certas concessões, como acontece, v. g., na fixação de prazos judiciais na hipótese do art. 762 ou do art. 9703, ambos do Código de Processo Civil. Assim, na hipótese do art. 6º, VIII, do CDC, cabe ao juiz decidir pela inversão do ônus da prova se for verossímil a alegação ou hipossuficiente o consumidor. Vale dizer, deverá o magistrado determinar a inversão. E esta se dará pela decisão entre duas alternativas: verossimilhança das alegações ou hipossuficiência. Presente uma das duas, está o magistrado obrigado a inverter o ônus da prova. 1 Aurélio Buarque de Holanda, Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2 Art. 76. Verificada a incapacidade processual ou a irregularidade da representação da parte, o juiz suspenderá o processo e designará prazo razoável para que seja sanado o vício. 3 Art. 970. O relator ordenará a citação do réu, designando-lhe prazo nunca inferior a 15 dias nem superior a 30 dias para, querendo, apresentar resposta, ao fim do qual, com ou sem contestação, observar-se-á, no que couber, o procedimento comum.
Hoje continuo no exame do previsto nos incisos XI e XII, com a segunda parte da análise do conceito de mínimo existencial: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(...)XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;       XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;" No artigo anterior, terminamos dizendo que, com a evolução do pensamento jurídico e da fixação de uma ampla garantia para os direitos humanos, consolidou-se a orientação de que os Estados implementem em seus sistemas legais uma série de direitos, a partir de um mínimo existencial. Isso aparece em termos internacionais nos documentos da ONU e, no caso brasileiro, está fixado no texto constitucional. Com efeito, o art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) dispõe, verbis: "1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços so-ciais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social". Posteriormente, em 1966, a ONU editou o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que assegurou como norma internacional a proteção contra a fome1 e, também, a educação como um direito social básico2. A ideia de um mínimo existencial garantido a todos os seres humanos é base de uma civilização que evolui. A realidade em todos os lugares do mundo mostra que há muito a realizar nessa direção, mas podemos dizer que, do ponto de vista jurídico, os textos legais estão bem-posicionados. Trata-se, na verdade, da tentativa de garantir ao ser humano um "mínimo vital" de qualidade de vida, o qual lhe permita viver com dignidade, tendo a oportunidade de exercer a sua liberdade no meio social em que vive. Esse mínimo existencial tem, portanto, relação direta com a dignidade de pessoa humana e, também, com o próprio Estado Democrático de Direito. No caso brasileiro, ele está contemplado na Constituição Federal, gerando um dever ao Estado para sua implementação concreta. No atual diploma constitucional, pensamos que o principal direito constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana3. É ela, a dignidade, o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. Coloque-se, então, desde já, que, após a soberania, aparece no texto constitucional a dignidade como fundamento da República brasileira: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:I - a soberania;II - a cidadania;III - a dignidade da pessoa humana". E esse fundamento funciona como princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional. E, para tratar do assunto, o professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo usou a expressão "mínimo vital"4. Diz o professor que, para começar a respeitar a dignidade da pessoa humana, tem-se de assegurar concretamente os direitos sociais previstos no art. 6º da Carta Magna, que, por sua vez, está atrelado ao caput do art. 225. Tais normas dispõem: "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição"."Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações." De fato, não há como falar em dignidade se esse mínimo não estiver garantido e implementado concretamente na vida das pessoas. Como é que se poderia imaginar que qualquer pessoa teria sua dignidade garantida se não lhe fossem asseguradas saúde e educação? Se não lhe fosse garantida sadia qualidade de vida, como é que se poderia afirmar sua dignidade? A dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato de ser pessoa. Se - como se diz - é difícil a fixação semântica do sentido de dignidade, isso não implica que ela possa ser violada. Como dito, ela é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais. Ainda que não seja definida, é visível sua violação, quando ocorre. Ou, em outros termos, se não se define a dignidade, isso não impede que na prática social se possam apontar as violações reais que contra ela se realizem. Retorno, agora, às normas introduzidas expressamente no CDC a respeito do tema. Como se trata de evitar o superendividamento, visando garantir o mínimo existencial, as situações concretas de cada consumidor exigirão um exame detalhado e cauteloso dos fatos que envolveram, envolvem e/ou envolverão ele e seu credor ou credores. Digo isso porque haverá situações em que, apesar de dívidas, limites existenciais, problemas pessoais e sociais etc., o consumidor somente poderá (ou poderia) modificar sua situação para melhor obtendo empréstimo. Muitas vezes, somente fazendo dívidas, a pessoa consegue sair da situação ruim em que se encontra. É verdade que o decreto 11.150/22 cuidou do refinanciamento de dívidas e dos novos empréstimos, desde que preservado o mínimo existencial. É o que está estabelecido no art. 5º: "A preservação ou o não comprometimento do mínimo existencial de que trata o caput do art. 3º não será considerado impedimento para a concessão de operação de crédito que tenha como objetivo substituir outra operação ou operações anteriormente contratadas, desde que se preste a melhorar as condições do consumidor.§ 1º O disposto no caput se aplica à substituição das operações contratadas:I - na mesma instituição financeira; ouII - em outras instituições financeiras.§ 2º As contratações em outras instituições financeiras de que trata o inciso II do § 1º ocorrerão exclusivamente por meio da sistemática da portabilidade de crédito regulamentada pelo Conselho Monetário Nacional". Mas ainda é pouco, pois existem milhares de pessoas que não conseguem sair da difícil situação financeira em que se encontram apenas e tão somente repactuando suas dívidas. Seria preciso que o Estado agisse diretamente, oferecendo ajuda e subsídios capazes, não só de preservar o mínimo existencial, como também algum tipo de incremento de renda ou novo empréstimo subsidiado. 1 Art. 11, parágrafo 2º: "§ 2. Os Estados-partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para: 1. Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais. 2. Assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios". 2 Art. 13, parágrafo 1º: "§ 1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz". 3 Consultar a respeito, o meu Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. 4 O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2000, passim.
Continuo examinando os princípios da lei 8.078/90 (CDC - Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos. Nos artigos anteriores, vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC. Hoje continuo no exame do previsto nos incisos XI e XII, com a análise do conceito de mínimo existencial:  "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(...)XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;        XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;" O conceito de "mínimo existencial" aparece em cinco hipóteses na reforma: as dos incisos XI e XII do art. 6º, a do § 1º do art. 54-A, a do caput do art. 104-A e do § 1º do art. 104-C. Em todos os casos o legislador colocou "nos termos da regulamentação" após o termo "mínimo existencial". O decreto 11.150/22 regulamentou "a preservação e o não comprometimento do mínimo existencial para fins de prevenção, tratamento e conciliação, administrativa ou judicial, de situações de superendividamento em dívidas de consumo" (art. 1º) e definiu que o superendividamento é "a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial" (art. 2º, caput), sendo que as dívidas de consumo são "os compromissos financeiros assumidos pelo consumidor pessoa natural para a aquisição ou a utilização de produto ou serviço como destinatário final" (parágrafo único do art. 2º). E foi no art. 3º, caput, que o decreto, com a alteração trazida pelo decreto 11.567/23, definiu o valor do mínimo existencial, nestes termos: "No âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a R$ 600,00". Esse valor é considerado como base mensal, conforme disposto no § 1º do art. 3º: "A apuração da preservação ou do não comprometimento do mínimo existencial de que trata o caput será realizada considerando a base mensal, por meio da contraposição entre a renda total mensal do consumidor e as parcelas das suas dívidas vencidas e a vencer no mesmo mês". E o patamar de R$ 600,00 será atualizado pelo Conselho Monetário Nacional (§ 3º do mesmo art.). O decreto 11.150/22 estabeleceu que o mínimo existencial é garantido no que diz respeito às dívidas oriundas de relação de consumo, conforme o caput do art. 4º: "Não serão computados na aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial as dívidas e os limites de créditos não afetos ao consumo". No entanto, em contradição, o parágrafo único desse mesmo artigo exclui da aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial, as seguintes operações (algumas delas típicas de consumo): "I - as parcelas das dívidas:a) relativas a financiamento e refinanciamento imobiliário;b) decorrentes de empréstimos e financiamentos com garantias reais;c) decorrentes de contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval;d) decorrentes de operações de crédito rural;e) contratadas para o financiamento da atividade empreendedora ou produtiva, inclusive aquelas subsidiadas pelo BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social;f) anteriormente renegociadas na forma do disposto no capítulo V do título III da lei 8.078, de 1990;g) de tributos e despesas condominiais vinculadas a imóveis e móveis de propriedade do consumidor;h) decorrentes de operação de crédito consignado regido por lei específica; ei) decorrentes de operações de crédito com antecipação, desconto e cessão, inclusive fiduciária, de saldos financeiros, de créditos e de direitos constituídos ou a constituir, inclusive por meio de endosso ou empenho de títulos ou outros instrumentos representativos;II - os limites de crédito não utilizados associados a conta de pagamento pós-paga; eIII - os limites disponíveis não utilizados de cheque especial e de linhas de crédito pré-aprovadas". Isso, de fato, representa um avanço, mas nessa questão do mínimo existencial no Brasil, ainda há muito o que fazer para poder ajudar as consumidoras e os consumidores, que estão endividados, a saírem da difícil situação em que se encontram e poderem retornar a um patamar digno de vida e consumo. Ante a isso, com a evolução do pensamento jurídico e da fixação de uma ampla garantia para os direitos humanos, consolidou-se a orientação de que os Estados implementem em seus sistemas legais uma série de direitos, a partir de um mínimo existencial. Isso aparece em termos internacionais nos documentos da ONU e, no caso brasileiro, está fixado no texto constitucional.
Continuo examinando os princípios da lei 8.078/90 (CDC - Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos. Nos artigos anteriores, vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC. Vamos agora aos incisos VII a XII: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(...)"VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;"VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;IX - (Vetado);X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral;XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;       XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;" A proteção de acesso aos órgãos administrativos e judiciais para prevenção e garantia de seus direitos enquanto consumidores é ampla, o que implica abono e isenção de taxas e custas, nomeação de procuradores para defendê-los, atendimento preferencial etc. O inciso VIII do art. 6º cuida da inversão dos ônus da prova a favor do consumidor. Esse tema será abordado em separado, após o exame dos demas incisos do art. 6º. Por sua vez, o inciso X do art. 6º,  estabeleceu a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos como decorrência do princípio maior da eficiência previsto na Constituição Federal. O legislador constitucional acresceu ao elemento obrigatório da adequação do serviço público o da eficiência. Isso significa que não basta haver adequação, nem estar à disposição das pessoas. O serviço tem de ser realmente eficiente; tem de cumprir sua finalidade na realidade concreta. O significado de eficiência remete ao resultado: é eficiente aquilo que funciona. A eficiência é um plus necessário da adequação. O indivíduo recebe serviço público eficiente quando a necessidade para a qual este foi criado é suprida concretamente. É isso o que o princípio constitucional pretende. E é isso o que dispõe a lei 8.0781. A lei 14.181/21 introduziu no CDC uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Foram várias as modificações. De início alterou o CDC para incluir na política das relações de consumo o fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores (inciso IX do art. 4º) e também para incrementar ações contra o superendividamento, visando evitar a exclusão social do consumidor (inciso X do art. 4º). Além disso, determinou que fossem instituídos mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural (inciso VI do art. 5º) e que sejam criados núcleos específicos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento (inciso VII do art. 5º). Por fim, estabeleceu como direito básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas (inciso XI do art. 6º), assim como a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito (inciso XII do art. 6º). No próximo artigo, cuidarei do conceito de mínimo existencial. 1 O art. 22 do CDC cuida especificamente desse tema, que estudaremos em outra oportunidade:"Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código."
Continuo examinando os princípios da lei 8.078/90 (CDC - Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos. Nos artigos anteriores, vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC. Vamos agora ao inciso VI: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(...)"VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;" Realço no contexto da garantia estabelecida no inciso VI do art. 6º, alguns aspectos: O valor da indenização por danos materiais há de ser tal que possibilite a reabilitação integral do dano (emergente ou dos lucros cessantes), de forma que está proibido o tarifamento. Mas, se dúvidas ainda persistiam, o preceito do CDC as espancou definitivamente. Com efeito, a utilização do adjetivo "efetivo", ligado à prevenção (e depois à reparação) do dano, tem o sentido de manter estável, permanente, fixo, o patrimônio do consumidor1. Ora, se o patrimônio do consumidor é, digamos, avaliado em R$ 10.000,00 antes de o dano surgir, e a norma quer que ele se previna de modo a mantê-lo nesse mesmo patamar, o tarifamento está proibido, porque este implicaria a diminuição do patrimônio caso houvesse dano. A prevenção ao dano material ou moral significa que está garantido ao consumidor o direito de ir a juízo requerer medidas cautelares com pedido de liminar a fim de evitá-lo. E, dando especificidade a essa garantia, a lei 8.078 firmou regras processuais importantes nos arts. 83 e 84: "Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela." "Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1º A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.§ 2º A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287 do CPC).§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.§ 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.§ 5º Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial." De todo modo, havendo dano material representado por perdas emergentes ou relativas a lucros cessantes, ou dano moral, sua reparação tem de ser integral. Acertadamente, a norma deixou consignado que a prevenção e a reparação dos danos não dizem respeito apenas aos direitos dos consumidores individuais, mas também aos coletivos e aos difusos, ao que, por necessária ligação, é de se referir a garantia aos direitos individuais homogêneos2. 1 "Efetivo": que se manifesta por um efeito real, permanente, estável, fixo (Aurélio Buarque de Holanda, Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, cit., p. 620). 2 A definição de direito difuso, coletivo e individual homogêneo está prevista no parágrafo único do art. 81.
Continuo examinando os princípios da lei 8.078/90 (CDC - Código de Defesa do Consumidor) e os direitos básicos lá estabelecidos. Vimos algumas garantias estampadas no art. 6º do CDC: "Art. 6º São direitos básicos do consumidor:I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;(...)         Examino agora as cláusulas contratuais que estabelecem prestações desproporcionais. As garantias instituídas no inciso V do art. 6º trazem implícito o princípio da conservação do contrato de consumo. É que a instituição do direito à modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais e do direito à revisão de cláusulas em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas tem na sua teleologia o sentido de conservação do pacto. A lei quer modificar e rever as cláusulas, mas manter o contrato em vigência. O princípio do inciso V do art. 6º volta como norma de declaração de nulidade da cláusula desproporcional no art. 51 (inciso IV e § 1º), mas a nulidade não significa que o contrato será extinto. Como essa regra garante a modificação do contrato, pelo princípio da conservação o magistrado que reconhecer a nulidade deve fazer a integração das demais cláusulas e do sentido estabelecido no contrato em função de seu objeto, no esforço de mantê-lo em vigor. Esse princípio da conservação, que é implícito na hipótese da regra do inciso V do art. 6º, está explicitado no § 2º do art. 51. A garantia de revisão das cláusulas contratuais em razão dos fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas tem, também, fundamento nos outros princípios instituídos no CDC: boa-fé e equilíbrio (art. 4º, III), vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I), que decorre do princípio maior constitucional da isonomia (art. 5º, caput, da CF). Entenda-se, então, claramente o sentido de revisão trazido pela lei consumerista. Não se trata da cláusula rebus sic stantibus, mas, sim, de revisão pura, decorrente de fatos posteriores ao pacto, independentemente de ter havido ou não previsão ou possibilidade de previsão dos acontecimentos. Explique-se bem. A teoria da imprevisão prevista na regra da cláusula rebus sic stantibus tem como pressuposto o fato de que, na oportunidade da assinatura do contrato, as partes não tinham condições de prever aqueles acontecimentos, que acabaram surgindo. Por isso se fala em imprevisão. A alteração do contrato em época futura tem como base certos fatos que no passado, quando do fechamento do negócio, as partes não tinham condições de prever. Já na sistemática do CDC, não há necessidade desse exercício todo. Para que se faça a revisão do contrato basta que, após ter ele sido firmado, surjam fatos que o tornem excessivamente oneroso. Não se pergunta, nem interessa saber, se, na data de seu fechamento, as partes podiam ou não prever os acontecimentos futuros. Basta ter havido alteração substancial capaz de tornar o contrato excessivo para o consumidor. Esse princípio, que é fundamental, tem por base as características da relação de consumo, fruto da proposta do fornecedor, que assume integralmente o risco de seu negócio e que detém o conhecimento técnico para implementá-lo e oferecê-lo no mercado. Além disso, o princípio decorre de uma das características do contrato, que é típico de adesão, e, claro, fundado naqueles princípios apresentados acima.