Continuo a análise dos vícios dos produtos tratados pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC-lei 8078/90).
Vejamos, agora, o caput do art. 18, que dispõe que o consumidor, em caso de vício, pode exigir a substituição das partes viciadas, o que está inserido no conteúdo do disposto no § 1º:
"Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
§ 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 (trinta) dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço."
O § 1º do art. 18, surpreendentemente, apresenta uma norma que talvez, na maior parte das aplicações concretas, atente contra o protecionismo legal da Lei n. 8.078. É que o prazo de 30 dias concedido ao fornecedor para sanar o vício geralmente é muito elevado. É verdade que o legislador não tinha muitas alternativas, uma vez que elaborou um texto amplo e abrangente, capaz de dar conta de todas as situações envolvendo a mais variada gama de tipos de relações de consumo. Na hora de fixar um prazo genérico, não tinha muitas alternativas: ou ele seria longo para um sem-número de aplicações (como o é) ou seria curto.
O CDC até tenta amenizar esse problema por meio da estipulação da norma contida no § 2º desse mesmo art. 18 ("§ 2º Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a 7 (sete) nem superior a 180 (cento e oitenta) dias. Nos contratos de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor."). Contudo, como se verá, sua implementação, de um lado, é bastante remota - a da diminuição do prazo -, e, de outro, muito perigosa - a do aumento.
Algumas situações de cumprimento dos 30 dias são, inclusive, bastante desproporcionais, e por isso injustas. Tanto que o próprio mercado - aquela parte boa, mais séria - cumpre prazos muito menores. Alguns exemplos elucidarão o que estamos dizendo.
Examinemos, então, esses aspectos. A norma diz: "não sendo o vício sanado no prazo de 30 (trinta) dias pode o consumidor exigir...", e apresenta as alternativas de exigências que o consumidor pode fazer diante do fornecedor. Note-se: apenas se o vício não for sanado em 30 dias. Ou seja, o fornecedor, desde o recebimento do produto com vício, tem 30 dias para saná-lo sem qualquer ônus. Eventuais ônus surgirão somente após os 30 dias se o serviço de saneamento do produto não tiver sido feito - o que comentaremos na sequência.
Acontece que essa parca alternativa a favor do consumidor é, de fato, injusta. Tomemos alguns exemplos.
Um consumidor sonha em ter um novo aparelho de televisão que foi lançado no mercado. Resolve, então, guardar dinheiro para adquiri-lo. Separa, todo mês, de seu salário, uma quantia e a coloca numa aplicação financeira. Oito meses depois, ansioso pela espera, ele avisa sua esposa e filho que vai à loja, finalmente, comprar o tal televisor. Sucesso! Adquire-o.
Recebida e instalada a tevê, ele reune a família para assistirem juntos alguns films, comendo pipoca.Decepção! A imagem surge lenta e o aparelho desliga a todo instante. Não dá para assistir nada. Vício do produto! No dia seguinte, o consumidor poderá optar por levar o aparelho à loja, à assistência técnica ou diretamente ao fabricante (os fornecedores do caput do art. 18). Porém, qualquer deles terá até 30 dias para efetuar o conserto do aparelho. Trinta dias! E o consumidor esperou 8 meses. Deu azar. Por certo, outros consumidores que adquiriram produto igual no mesmo dia estejam dele desfrutando sem problema.
Esse exemplo serve para ilustrar o que pode potencialmente acontecer na compra de qualquer produto. Após a aquisição, havendo vício, poderá o fornecedor usar dos 30 dias para solucionar o problema. É verdade, porém, que o § 3º do mesmo art. 18 atenua essa circunstância, dizendo que o consumidor não precisa aguardar tal prazo. Contudo, como se verá em nossos comentários a respeito, essa alternativa somente vale em situações bem específicas - e com problemas de avaliação para o consumidor.
Note-se que o prazo de 30 dias concedido ao fornecedor independe do tempo de uso do produto - embora somente seja considerado vício, ensejando direito de acionar o fornecedor, aquele surgido dentro do período de garantia (previsto nos arts. 26 e 50), com duas características: vício aparente e vício oculto.
Assim, se, para aquele outro consumidor que adquiriu o mesmo televisor, o problema com o aparelho somente surgiu sessenta dias após a aquisição (que é caso de vício oculto), ao dirigir-se à loja, à assistência técnica ou ao fabricante para requerer o conserto do aparelho, estes terão, da mesma forma, trinta dias para realizar o conserto.
Há uma situação recorrente no mercado que merece comentário. Vamos utilizar-nos do exemplo de problemas que envolvem automóveis zero-quilômetro, especialmente os modelos novos, chamados de "lançamentos". Como se sabe, a competição entre as montadoras fez com que elas acabassem antecipando os lançamentos, e nem sempre foi possível detectar eventuais falhas surgidas no processo de produção. Aliás, talvez nunca dê mesmo. Os problemas desconhecidos surgem no uso regular pelos consumidores. Pois bem, a questão que se coloca é a seguinte: um automóvel zero-quilômetro apresenta problema de desempenho. As marchas, por mais que sejam trocadas no tempo certo, não geram aumento da velocidade. O veículo praticamente não anda, de tão lento que vai pelas ruas. É inútil ao fim a que se destina: o transporte; além de trazer um problema de segurança, pois não é possível fazer ultrapassagem segura, nem acelerar para desviar de um obstáculo etc.
O carro está na garantia de fábrica (art. 50). O consumidor, digamos, João da Silva, leva-o à concessionária e lá o deixa para exame e conserto. Na hora os funcionários que o atendem estranham o tipo de problema. Parece que é desconhecido.
Dez dias depois o automóvel está pronto. Na concessionária dizem que o problema foi solucionado, mas não deixam muito claro qual era. João pega o veículo, de manhã, e vai para o trabalho. À tarde o problema retorna. João mal acredita que esteja acontecendo tudo de novo. Insiste e espera para ver como é que fica no dia seguinte: igual. Vai, então, de novo à concessionária1. O pessoal que o atende tenta demonstrar surpresa e diz que deve ser porque o carro é novo!
Passam-se mais 15 dias ("agora vão descobrir o problema", pensa João).
Quinze dias depois, João recebe um telefonema dizendo que o veículo está pronto: "novinho em folha", dizem. À tarde vai buscá-lo e dirige até sua casa. O automóvel anda bem, finalmente, para alívio de João. No dia seguinte, porém, logo de manhã, ao dirigir no caminho para o trabalho, o problema volta.
E assim vai. Têm início as idas e vindas, a verdadeira via-sacra de João - que aqui representa todos os consumidores que passam pelo mesmo problema, não só com automóveis; há casos semelhantes com microcomputadores e com outros produtos.
Passam-se meses, sem solução. Um dia, talvez, o problema se resolva.
Terminemos, então, o caso de João: no oitavo mês de muitas idas e vindas, efetiva e finalmente o problema acaba sendo solucionado. João lê, então, nos jornais, um comunicado da montadora fazendo um recall para veículos iguais ao dele, dizendo que devem ser levados às concessionárias para que aquele tipo de problema seja resolvido. João sente-se aliviado com a solidariedade em sua desgraça: não estava só.
A questão que se coloca, a partir do caso narrado, é a seguinte: o prazo de 30 dias do § 1º do art. 18 para que o fornecedor sane o vício recomeça a contar toda vez que o consumidor leva o produto para o conserto? Será que a lei, ao conceder um prazo tão longo, ainda assim pretendia que ele pudesse prolongar-se mais ainda? E pelo mesmo problema?
A resposta, em nossa opinião, é não! Vejamos.
a) Proibida a recontagem do tempo
O fornecedor não pode beneficiar-se da recontagem do prazo de 30 dias toda vez que o produto retorna com o mesmo vício. Se isso fosse permitido, o fornecedor poderia, na prática, manipulando o serviço de conserto, sempre prolongar indefinidamente a resposta efetiva de saneamento - como aconteceu no caso narrado. Bastaria fazer um conserto "cosmético", superficial, que levasse o consumidor a acreditar na solução do problema, e aguardar sua volta, quando, então, mais 30 dias ter-se-iam para pensar e tentar a solução.
Entendemos que nossa resposta é a única interpretação teleológica possível do § 1º do art. 18. Isto porque a redação desse parágrafo é explícita em permitir alternativas definitivas para a solução do problema, se este não foi sanado nos 30 dias (as dos três incisos que ainda examinaremos). Se assim não fosse, a lei não diria que após os 30 dias o consumidor pode exigir a solução definitiva.
Acreditamos que o prazo total de 30 dias vale para o vício de per si. É o tempo máximo que a lei dá para que o fornecedor definitivamente elimine o vício.
É que o CDC até admite o vício como elemento intrínseco do processo de produção em massa, mas não aceita - nem poderia - que o consumidor pague o preço exigido pelo fornecedor, receba o produto e este não funcione indefinidamente. Seria praticamente a permissão da apropriação indébita ou do locupletamento ilícito pelo fornecedor. E isso seguramente nenhuma lei pode permitir.
b) Trinta dias: limite máximo
Quando muito - e essa é também nossa opinião - o prazo de 30 dias é um limite máximo que pode ser atingido pela soma dos períodos mais curtos utilizados. Explicamos: se o produto foi devolvido a primeira vez no décimo dia, depois retornou com o mesmo vício e se gastaram nessa segunda tentativa de conserto mais 15 dias, na terceira vez em que o produto voltar o fornecedor somente terá mais 5 dias para solucionar definitivamente o problema, pois anteriormente despendeu 25 dias, sem ter levado o produto à adequação esperada.
Seria o caso narrado do consumidor João da Silva. Na terceira vez, a concessionária teria de ter sanado definitivamente o vício no prazo máximo de 5 dias. A partir daí, João poderia ter-se utilizado das prerrogativas dadas pela lei, exigindo do fornecedor a alternativa que tivesse escolhido (conf. incisos I, II e III do § 1º, que ainda examinaremos).
Repita-se: o dinheiro do consumidor somente pode ir para o fornecedor se vier em troca um produto que cumpra o fim ao qual se destina. Permitir a ida do dinheiro para o bolso do fornecedor sem que o produto funcione adequadamente dentro do prazo - e, já vimos, 30 dias não é razoável, é exagerado - seria ilegal e afrontaria os mais comezinhos princípios de direito.
c) Vício diferente
O que permite a utilização do prazo completo de 30 dias por uma segunda ou uma terceira vez é o surgimento de vícios diversos. Mas mesmo isso tem limites, conforme veremos na interpretação do § 3º deste mesmo art. 18.
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Continua na próxima semana.
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1 Não nos esqueçamos que todas essas ocorrências dão trabalho, geram gasto e perda de tempo para o consumidor.