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Os vícios em produtos usados

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Atualizado em 13 de agosto de 2025 11:25

Como venho tratando de produtos, suas características, qualidade, vícios etc., hoje comento um caso que me deixou perplexo.

Já disse várias vezes por aqui que, em matéria de Direito do Consumidor, não se pode baixar a guarda, de jeito nenhum. O CDC está em vigor há 34 anos e, infelizmente, ainda não é respeitado de forma global.

Há alguns dias, li uma decisão num acórdão do TJ/SP que dizia que, ao comprar um automóvel usado numa concessionária, a consumidora deveria ter submetido o veículo à análise de um mecânico de sua confiança antes da compra, para se garantir da real condição do veículo. Uma incrível inversão do regime legal, que desconsiderou que a responsabilidade pela entrega de produto em conformidade é do fornecedor - e não da adquirente.

Apesar da decisão reconhecer que a relação jurídica estabelecida entre as partes era regida pelo Código de Defesa do Consumidor omitiu-se quanto à análise da imprescindível inversão do ônus da prova prevista no artigo 6º, inciso VIII, do mesmo diploma legal.

Além disso, também não fez a análise necessária sobre a hipossuficiência da consumidora, nem da verossimilhança de suas alegações, presumindo uma igualdade inexistente entre as partes.

A hipossuficiência não pode ser interpretada de forma restritiva. E a vulnerabilidade é o conceito que afirma a fragilidade econômica do consumidor e, também, técnica.

Para fins de análise da possibilidade de inversão do ônus da prova, a vulnerabilidade tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, de sua distribuição, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem gerar um acidente de consumo e o dano, das características do vício etc.

O Tribunal exigiu da consumidora a produção de prova técnica sobre o estado do veículo no momento da aquisição, ignorando que tal medida é naturalmente inacessível a uma pessoa comum, especialmente diante de vícios que não se revelam de imediato (vícios ocultos).

A decisão afastou a responsabilidade da fornecedora pelos vícios ocultos apresentados pelo veículo, exigindo da consumidora a prova de que tais vícios já existiam à época da entrega do bem, o que, como se sabe (há 34 anos!) colide diretamente com a sistemática objetiva e solidária prevista no art. 18 do CDC.

O art. 18, caput, da lei 8.078/1990, assim dispõe:

"Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas."

Ora, exigir da consumidora a demonstração de culpa ou dolo por parte da fornecedora, ofende a natureza objetiva da responsabilidade imposta pelo CDC.

A decisão da Câmara incorreu em lógica contraditória, pois reconheceu que os problemas no veículo podiam ser considerados vícios, mas afirmou que a responsabilidade não recaia sobre a fornecedora, por suposta ausência de prova do momento em que surgiram os defeitos. Isso equivale a exigir do consumidor prova impossível - especialmente no caso de vícios ocultos, que se manifestam apenas com o uso continuado.

Como é notório, vícios ocultos, exatamente por serem ocultos, não são identificáveis no momento da compra. O sistema do CDC é construído justamente para proteger o(a) consumidor(a) nessas situações.

No caso levado a juízo, a exigência seria a de que a consumidora tivesse ido ao estabelecimento do fornecedor que vendia veículos usados, acompanhada de um engenheiro-perito especialista em automóveis. Seria o mesmo que exigir que um(a) consumidor(a), antes de almoçar num restaurante self-service, levasse um(a) nutricionista para conferir a qualidade dos produtos oferecidos.

O(a) consumidor(a) só pode conhecer a qualidade dos produtos adquiridos depois de adquiri-los e/ou consumi-los. 

Quem assume o risco da atividade, que está diretamente ligado à responsabilidade objetiva é o fornecedor. Jamais o consumidor. As normas do CDC têm como base o fato de que aquele que se beneficia da atividade econômica deve arcar com os riscos inerentes à sua atuação no mercado.

Ou seja, o fornecedor, ao colocar produtos ou serviços no mercado, assume os riscos que essa atividade traz. No sistema do CDC, mesmo sem culpa, o fornecedor pode ser responsabilizado por danos causados ao consumidor. Isso decorre da teoria do risco do empreendimento.

E o CDC protege a parte vulnerável da relação de consumo. Desse modo, os riscos da atividade não podem ser transferidos ao(a) consumidor(a).