COLUNAS

Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 17 de janeiro de 2021

As clínicas particulares e as vacinas

A humanidade não só acompanhou como também torceu pelo bom desempenho das instituições que pesquisaram vacinas para combater o coronavírus e neste início de ano - ao que tudo indica promissor para a saúde - suspirou com alívio quando as agências reguladoras foram aprovando e autorizando a utilização de algumas delas para a imunização mundial. A corrida pela aquisição da vacina teve início bem antes de findar a terceira fase dos estudos científicos e muitos países conseguiram a preferência junto aos laboratórios, assinando contratos de reserva de aquisição do imunizante. Assim foi feito por eles e a vacinação já se faz presente na ordem do dia. No Brasil a ANVISA recebeu dois pedidos de uso emergencial, sendo um deles do Instituto Butantan em parceria com a empresa chinesa Sinovac e o outro feito pela Fiocruz em parceria com a farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford. A agência solicitou, cumprindo rigorosamente o protocolo estabelecido, a juntada de documentos faltantes e complementares e marcou para o dia 17 de janeiro a reunião da diretoria para decidir a respeito da autorização para os dois imunizantes. Apesar de se tratar de uma corrida contra o vírus, que vai provocando cada vez mais mortes, todo o cuidado é necessário para garantir a segurança e eficácia das vacinas que serão utilizadas pela população. Entre tantas dúvidas e incertezas a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVac) anunciou que está negociando cerca de 5 milhões de doses da vacina indiana Covaxin contra a Covid-19, também sem pedido de uso emergencial ou registro junto à ANVISA.1 Em recente reunião anual, a Organização Mundial da Saúde - responsável pela decretação da pandemia do coronavírus - conclamou a todos os membros, em caso de descoberta de uma vacina, que ela seja considerada um bem público global, com acesso irrestrito a toda comunidade mundial.2 Neste diapasão pode-se considerar a vacina como sendo res communis omnium - expressão tão largamente utilizada no Direito Romano -, dando a entender o pertencimento coletivo de tudo aquilo que a natureza proporciona, como também a criação pelo homem de algo que beneficia a humanidade, observando que, conforme preceitua a Constituição Federal, no artigo 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. O Plano Nacional de Imunização (PNI), instituído em 1973, advindo após a lei 6.259/1975, que criou as políticas públicas voltadas à imunização contra enfermidades, contempla a vacinação de crianças, adolescentes, adultos, idosos, gestantes e povos indígenas, de acordo com o Calendário Nacional de Vacinação. O Brasil sancionou a lei 13.979/20, norma excepcional caracterizada pela decretação da pandemia e que prevê, em seu texto, medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública com a finalidade de conter a contaminação ou propagação do vírus. Dentre as medidas previstas no artigo 3º da referida lei, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos. Pode-se concluir, sem muito esforço interpretativo, que cabe ao Estado a responsabilidade de assumir a iniciativa de inocular a população gratuitamente, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Plano Nacional de Imunização, obedecendo os parâmetros da igualdade entre os cidadãos e a equidade na distribuição dos recursos. Ocorre que, diante da escassez dos recursos, pela ausência de uma vacina e pela falta de agulhas e seringas, além dos dois estágios da vacinação, não destoando dos princípios acima enunciados, na própria igualdade reina uma desigualdade intrínseca que a diferencia e é voltada justamente para as pessoas que compõem os grupos de maior risco e vulnerabilidade como, por exemplo, profissionais da saúde, da segurança, crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, pessoas com comorbidade e outras que exigem escolhas prioritárias para receber a inoculação necessária. É interessante observar que o Brasil é considerado um país exemplar e que cumpre zelosamente pela cobertura vacinal, embora nos últimos três anos não tenha atingido a meta almejada em suas campanhas em razão provavelmente de movimento antivacinal, que vem prosperando a cada ano e não encontra qualquer amparo científico de malefício comprovado e muito menos a adesão da Organização Mundial da Saúde. Pois bem. É justamente neste espaço que as clínicas particulares de vacinação esboçaram a pretensão de realizar conjuntamente a cobertura vacinal. Um ponto deve ser considerado e não admite qualquer negociação: a legitimidade para estabelecer as regras e obrigatoriedade de imunização é exclusiva do Estado. Daí que as clínicas não são concorrentes e nem exercem funções substitutivas, aliás, como ocorre no cotidiano vacinal que abre espaço para as duas frentes. O que não se admite - e fere frontalmente os princípios fundamentais da cidadania - é a iniciativa privada antecipar-se à ação estatal, frustrar as prioridades consensuais adotadas e atender preferencialmente o público que tiver condições de arcar com o custo da vacina, demonstrando, desta forma, uma quebra ao princípio da diferenciação positiva. Se o próprio Estado concorda com a ação subsidiária e adesiva das clínicas particulares, e se houver autorização da ANVISA para importação e homologação do registro, não há como obstar que os particulares desenvolvam paralelamente seu comércio, desde que obedecida a ordem preferencial estatal. Em tempo de pandemia em que a vacina se apresenta como o único recurso para combater o vírus e o Estado ainda está desenhando sua estratégia de pronta atuação, nada mais justo do que aceitar a colaboração de terceira entidade para fazer o quanto antes a cobertura total de vacinação do povo brasileiro. Trata-se de um verdadeiro estado de necessidade. __________ 1 Procura de vacinas por clínicas privadas causa temor de prejuízos à rede pública. 2 Em reunião da OMS, países defendem vacina contra covid-19 para todos.
A vacinação que está prestes a ser iniciada no Brasil ocupa quase a totalidade dos noticiários da imprensa. Nunca se aguardou com tamanha expectativa o anúncio de uma vacina que tenha potencial suficiente e qualidade comprovada para combater o coronavírus. Todos os projetos para o ano que se inicia ficam aguardando a tão esperada imunização para que a vida possa retomar o seu curso normal. Visando regulamentar as medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas, insumos, bens e serviços de logística, tecnologia da informação e comunicação, comunicação social e publicitária e treinamentos destinados à vacinação contra a covid-19 e sobre o Plano Nacional de Operacionalização de Vacinação contra a covid-19, o presidente da República editou a Medida Provisória 1026/21. Trata-se de documento necessário para atender às necessidades momentâneas que sejam relacionadas, direta ou indiretamente, com a cobertura vacinal da população brasileira. Porém, no clima pandêmico em que se encontra, muitas vezes insegura e sem as informações necessárias, chama a atenção e de certa forma causa preocupação o disposto no artigo 16, § 3º, que dispõe textualmente: O profissional de saúde que administrar a vacina autorizada pela Anvisa para uso emergencial e temporário deverá informar ao paciente ou ao seu representante legal: I - que o produto ainda não tem registro na Anvisa e que teve o uso excepcionalmente autorizado pela Agência; e II - os potenciais riscos e benefícios do produto. É certo que somente após a Constituição Federal de 1988, começou a fortalecer a ideia de que a pesquisa em saúde é imprescindível para o país estabelecer políticas públicas e estratégias para melhorar a saúde da população, apelo que reiteradamente vem sendo proclamado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Após breve consolidação regulamentar na área de pesquisa envolvendo seres humanos, o Conselho Nacional de Saúde, incorporando os pilares bioéticos traçados e reconhecidos na resolução 196/1996, aprovou a resolução 466, de 12 de dezembro de 2012, como sendo um trabalho de inevitável revisão da anterior, acrescentando mais dados e exigências, visando ao aprimoramento ético e à adequação com as descobertas científicas promovidas pela biotecnociência e biotecnologia. Assim é que, com uma roupagem diferenciada e com metodologia apropriada, a resolução referida, com ênfase necessária, traça diretrizes a respeito: a) dos aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos; b) do processo de consentimento livre e esclarecido; c) dos riscos e benefícios envolvendo seres humanos; d) do protocolo de pesquisa; e) do sistema CEP/CONEP e suas atribuições e competências para análise ética dos protocolos e a emissão de pareceres devidamente motivados; f) da responsabilidade do pesquisador responsável. Nesta linha de raciocínio, quando a agência reguladora recebe a documentação para expedir autorização de uso de emergência ou até mesmo para proceder ao registro do medicamento, o iter científico do estudo já foi realizado em todas as suas fases, inclusive naquela que envolve a participação do colaborador voluntário, que já foi informado a respeito dos eventuais riscos e benefícios. Ora, seria cautela desmedida, completamente desnecessária, informar ao paciente ou ao seu representante legal, no ato vacinal, que o produto não possui registro na Anvisa e que seu uso foi autorizado de forma excepcional, além de adverti-lo a respeito dos potenciais riscos e benefícios. Isto porque a agência responsável, quando da análise do produto para autorizá-lo provisoriamente, observou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ofertado pelo participante de pesquisa, que é um colaborador abnegado, sem qualquer remuneração e que preza o progresso da ciência e tecnologia, com a finalidade específica de buscar benefícios atuais e potenciais para a humanidade. Neste ponto reside a grande diferença entre o colaborador da pesquisa e o paciente na sua relação linear com o médico. Na pesquisa ocorre uma relação triangular - participante, pesquisador e Estado - um verdadeiro actum trium personarum, compreendendo aqui a intervenção adesiva e obrigatória do Estado que, pelos seus agentes de atuação no Sistema CEP/CONEP, serão corresponsáveis por garantir a proteção dos participantes da pesquisa com os melhores padrões éticos. Não se trata de paciente e sim de voluntário que assume relevante postura em se oferecer para colaborar com a pesquisa. Desta forma, ainda que seja concedida a autorização pela Anvisa, a título precário, provisório ou excepcional, o produto já traz a garantia necessária para a utilização em humanos. O próprio texto legal foi incisivo em usar o termo "paciente", deixando a entender que se trata de um produto devidamente autorizado pela agência responsável. Qualquer interpretação em contrário colidirá com a confiabilidade do órgão homologador. De nenhuma valia, portanto, a advertência proclamada na Medida Provisória, a não ser para afastar ainda mais as pessoas da inoculação necessária.
domingo, 3 de janeiro de 2021

Efeitos legais e jurídicos da pandemia

O ano de 2020, que iniciou com os melhores auspícios para a recuperação da economia brasileira, num repente transformou-se totalmente atípico para a saúde do povo brasileiro. A decretação da pandemia pela Organização Mundial da Saúde - na realidade uma verdadeira sindemia - encontrou a rede pública de saúde sucateada e abandonada em leito de UTI aguardando o provável estertor. Tanto é que, de forma apressada e com a urgência necessária, as autoridades responsáveis injetaram vários recursos para ampliação de instituições de saúde, construções de hospitais de campanhas e tendas hospitalares para atendimento dos pacientes infectados pela Covid-19, em casos de média e alta complexidades. A mesma providência foi tomada com relação à aquisição de insumos e aparelhos necessários. Paralelamente, como providência legal, o Brasil proclamou a Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) e sancionou a lei 13.979/2020, lei excepcional caracterizada pelas circunstâncias específicas que determinaram sua edição, que prevê medidas de enfrentamento da emergência da saúde pública, com a finalidade de evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus. Dentre as medidas previstas no artigo 3º para o enfrentamento, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos. No campo científico, com o incessante avanço da pandemia provocada pela Covid-19, muitos países se lançaram numa verdadeira competição em busca da descoberta de medicamentos e até mesmo da imunização total por meio da vacina. Percebe-se que é um trabalho de grande fôlego e, até o presente, a comunidade científica, após vários estudos clínicos que completaram a terceira fase, ofertou vacinas que receberam a homologação das agências credenciadas para autorizar a imunização em massa. Todas as normas relacionadas com a experimentação em seres humanos no Brasil são de competência do Ministério da Saúde que, pelo Conselho Nacional de Saúde, expediu a resolução 466/2012, estabelecendo, de forma disciplinada, as regras de proteção, garantia e demais tutelas aos participantes voluntários. O participante de pesquisa voltada para os seres humanos é detentor de um dos pilares estabelecidos na Constituição Federal, que é a dignidade da pessoa humana. O Judiciário, por sua vez, em razão do princípio da inafastabilidade da apreciação judicial previsto no artigo 5º, XXXV, da Lei Maior, passa a ser o catalisador das pretensões relacionadas com o direito à saúde dos cidadãos e o responsável para dirimir os conflitos existentes entre eles e os representantes públicos das três esferas. O Judiciário, ao contrário do gestor público, apreciará a questão levando-se em consideração o preceito constitucional da dignidade humana em sua modalidade mais ampla, um dos alicerces da Carta Magna. Assim, na visível colidência de interesses, irá atender aquele que patrocina a vida humana em todas as suas nuances, sempre entregando uma decisão que seja adequada e protetiva para o bem-estar coletivo, retirando-o do estágio de vulnerabilidade e seguindo as recomendações científicas comprovadas e idôneas. Conforme foi noticiado pela imprensa, em razão de imensas filas, o representante legal do paciente que se encontra internado aguardando vaga em UTI, aciona o órgão jurisdicional pleiteando tutela provisória de emergência em caráter antecipatório para que seja feita a transferência do paciente para o leito pretendido. Se a justiça acatar o pleito e deferir a tutela, o paciente que, juntamente com vários outros aguardava sua vez para ser promovido à UTI, com toda certeza está sendo beneficiado em detrimento dos demais concorrentes que aguardam o cumprimento do protocolo estabelecido pelos médicos. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal foi chamado para decidir a respeito da obrigatoriedade ou não da vacinação. Foi incisivo em declarar que a vacina contra a Covid-19 deve ser compulsória, não no sentido de imunização coercitiva, forçada e sim compreendendo medidas indiretas e oblíquas ao cidadão que se mantiver irredutível em sua autonomia. Quando se determina a obrigatoriedade vacinal compreende-se - e é necessário que assim seja - a limitação ao direito individual da autonomia da pessoa em favor do bem-estar e da saúde dos demais. A voz da maioria é absoluta. O ordenamento legal e, somente ele, estribado na justiça geral em favor da necessidade humana, faz evidenciar não só a defesa da saúde da comunidade, como também os interesses econômicos, sociais e outros necessários para o compartilhamento harmônico das atividades humanas. Em uma sociedade democrática e pluralística é totalmente admissível a restrição de um direito individual em favor da assistência sanitária que visa à proteção do direito à saúde de toda a comunidade, inclusive daquele que se recusa à imunização.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Natal de esperança

O Natal está chegando, o novo ano se aproximando e a Covid-19, intrusa e inconveniente, permanece ainda no palco mundial provocando uma verdadeira existência caótica. Neste momento, como que incorporando a humanidade e por ela falando com sua implícita autorização, lanço o olhar para fora e vejo o mundo paralisado, como se uma engrenagem houvesse se soltado. Olho para dentro e dou de cara com um mundo estranho e conturbado, calibrado por sentimentos detonados por mensagens sem parâmetros por parte da mídia e do meu estreito mundo de comunicação. Ninguém entende nada. Verdadeira Torre de Babel. Diante desta quase paranóica sensação de viver sem saber como viver uma vida enviesada e sem soluções aparentes, eu me instalo definitivamente como posseiro do meu interior e passo a quixotear comigo mesmo. É como um morrer fora do tempo e sair flutuando nas pesadas nuvens que cobrem o nebuloso céu. A única certeza é que a humanidade foi aturdida pelas tocaias e ciladas de um insipiente e indesejado vírus. Perdido nos porões das minhas memórias, nem sei por onde começar a faxina, mas tenho consciência que nada pode ser jogado por baixo do tapete. É hora de devassar meu interior, fazer a leitura intimista, vasculhar todos os pontos, retirar o pó que grassa sobre os pesados móveis, onde estão guardadas as lembranças, as desejadas e as indesejadas, e pinçar, no mais fundo, os invasores que lá habitam sem autorização, num verdadeiro processo de despejo coletivo. Como se fosse uma lavagem da alma, na mesma intenção que move as baianas nas escadarias. Assim consigo expurgar os fantasmas que, como ébrios, deambulam com insistência pelas minhas estreitas veredas, criando um verdadeiro labirinto de dúvidas e incertezas. Vou, também, ajustar os ponteiros do meu emocional e racional. Estabelecer regras fixas para dividir o terreno de cada um, sem invasão. Apesar de os dois habitarem o mesmo espaço, terão tarefas distintas. O emocional passará por uma reforma integral cujos cacos disformes serão encaminhados para restauração. Uma nova estrutura será edificada tendo como suporte uma sensibilidade que floresça sem provocação artificial, como foi direcionada pelo mundo digitalizado. O racional continuará sua tarefa, menos ridículo e mais sábio, calibrado pela precisão do pensamento ponderado e inteligente. Afinal, sou um homem emprestado para o mundo, mas me pertenço. Feita a limpeza necessária nos desvãos de minhas memórias, vou emergir dos escombros, explorar meus sonhos, não como castelos utópicos que o passado sepultou, mas sim como promessas fertilizadas pela esperança, ajustar minhas balizas corretamente apontadas para a verdadeira mudança. O tempo que passou serviu de aprendizado e daqui para a frente cabe a mim fazer as podas de algumas distorções, sem transformar o mundo num clipe triste de uma crônica do coronavírus. Apesar de constatar que os anos correram rapidamente, tenho tempo suficiente para procurar ver as boas coisas que a vida oferece com mais vagar. Vou colocar no meu espírito a tonalidade própria da minha mudança, temperando-a com moderação, harmonia e amor neste novo formato que se avizinha. São estas as propostas que ofereço para a humanidade.  Apesar de calcadas no mesmo lampejo epifânico que orientou Clarice Lispector, guardam a verdadeira mensagem de que a vida é bela e merece ser exaurida intensamente. Afinal, somos merecedores de um Natal com paz e harmonia e um novo ano com a infindável esperança de um próspero amanhã. Basta ter fé e acreditar.
domingo, 20 de dezembro de 2020

Perseguição obsessiva

As relações humanas, ao longo do tempo, sofrem profundas alterações na medida em que as pessoas vão imprimindo em suas condutas ações que contrariam o bem-estar comum e até a mesmo a segurança alheia. A inevitável transformação social, principalmente aquela provocada pelas redes sociais e outros meios de comunicação, amplia-se rapidamente e a legislação existente, apropriada para uma outra época, não suporta carregar em seu tipo penal a mudança produzida e que necessita urgentemente da tutela penal. Nesta linha de pensamento, a contravenção penal disposta no artigo 65 do decreto-lei 3.688/41, que trata da perturbação da tranquilidade, dispõe taxativamente: "Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou motivo reprovável", apesar da abrangência do tipo, não suporta o acréscimo que lhe sobrecarrega em razão das novas necessidades advindas da vida moderna e que exigem uma pronta providência do legislador penal. Até mesmo o artigo 147 do Código Penal, que assim se expressa: "Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave", também não reúne elementos constitutivos de uma nova conduta que ultrapassa os limites de uma mera ameaça e vem revestida com outras circunstâncias comprometedoras.  A Câmara dos Deputados, diante da lacuna legislativa, aprovou recentemente (10/12/20), a proposta que estabelece a criação do crime de perseguição obsessiva, com a pena de até quatro anos de prisão. Vários países já introduziram em suas legislações o crime em inglês denominado "stacking", com o significado de perseguir, vigiar, monitorar, espiar, enfim manter o controle de uma determinada pessoa, seja a distância ou próxima.  Sua incidência ocorre geralmente tanto no final de um relacionamento amoroso mal sucedido ou até mesmo em decorrência das ações habituais do dia a dia.1 Assim ficou redigido o texto do projeto de lei 1.369/2019, de autoria da senadora Leila Barros, para tipificar o crime de perseguição obsessiva, com a inclusão do artigo 147-A ao Código Penal: "Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade". Percebe-se, claramente, pela leitura do texto legal sua atualidade em enfrentar várias situações até então não compartilhadas pela legislação contravencional que se pretende revogar. Fica evidenciado, portanto, que a aceleração da mudança social vem se desenvolvendo em velocidade excessiva e exige uma norma compatível com a segurança daqueles que figuram como vítima do novo ilícito. É comum a pessoa - tanto faz homem ou mulher como vítima - procurar uma delegacia de polícia e relatar que vem sendo reiteradamente perseguida, assediada e até mesmo ameaçada em sua integridade física ou psicológica por alguém com quem tivera um relacionamento amoroso ou até mesmo uma situação diversa, sem qualquer aproximação afetiva, tendo como intuito a sua desestabilização, seu apavoramento, enviando recados, fazendo chamadas no celular, insinuações nos grupos sociais, mensagens via grupos sociais e não receber da autoridade a devida providência em razão da carência legislativa. Pela proposta que foi aprovada na Câmara dos Deputados e será agora encaminhada ao Senado Federal, o objetivo do texto é proteger e amparar a pessoa que se encontra ameaçada em sua integridade física e psicológica que também representa uma verdadeira enfermidade e, em consequência, sofre restrições em sua capacidade de locomoção com invasão de sua esfera de privacidade e liberdade. A intenção, portanto, o elemento subjetivo do agente na novatio legis, é fazer com que a vítima se sinta perseguida, atormentada, ameaçada física e psiquicamente, por qualquer meio, transformando sua vida em um inferno existencial, impingindo sérios danos à sua intimidade e restringindo sua liberdade, como é sempre relatado por aqueles que sofrem perseguição obsessiva. Tais circunstâncias faltantes foram reunidas na nova proposta e preenchem uma lastimável lacuna corroída pelo tempo. É importante ressaltar que a persecução penal só poderá ser intentada se a vítima, ou seu representante legal, oferecer a condição específica do direito de ação, consubstanciada na representação, ato pela qual autoriza a autoridade policial a dar início à investigação e ao Ministério Público o oferecimento da peça delatória pública.  Como muito bem observou o sempre arguto e criterioso Luiz Flávio Gomes: "Tal previsão é salutar, haja vista caber ao destinatário da violência a ponderação sobre os custos pessoais a serem enfrentados pelo processamento da demanda, uma vez que, em regra, o agente provocador é pessoa de convívio próximo da vítima."2 Também é de se consignar que a pena é aumentada de metade se o crime é praticado contra criança, adolescente ou idoso; contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 do Código Penal; mediante concurso de duas ou mais pessoas ou com o emprego de arma. Referido arsenal legislativo, contando com a aprovação do Senado Federal, com certeza trará a proteção legal consentânea com a necessidade da sociedade atual. __________ 1 Câmara aprova criminalização da perseguição obsessiva ou stalking. 2 "stalking" (perseguição obsessiva)
domingo, 13 de dezembro de 2020

O Direito Penal na era da tecnologia

Pelo que narram os estudiosos, até o final do século passado o tempo foi se escoando dentro de um padrão de normalidade, com poucas mudanças radicais a respeito da vida e do comportamento do homem. Principalmente no Direito, que é uma ciência que caminha pari passu com o desenvolvimento social. A lei, responsável pela elaboração do equilíbrio das relações, nem sempre antecede o fato. Aguarda-o a ganhar corpo para, em sequência, conhecendo seus meandros, elaborar a norma que seja adequada. O início do século XXI, no entanto, trouxe uma acelerada transformação que foi rompendo estruturas arcaicas e já carcomidas temporalmente. Veja, a título de exemplo: O Código Penal foi editado em 1940 e nele várias mudanças foram introduzidas, assim como novas práticas delituosas foram inseridas e outras, ultrapassadas e em desacordo com o pensamento atual, excluídas. O Código de Processo Penal, por sua vez, com vigência a partir de 1941, também providenciou suas adaptações para atender às necessidades de uma entrega de prestação jurisdicional mais célere e menos complicada. Ambos os estatutos, rapidamente, tiveram que sair da inércia que frequentavam em razão da indisfarçável interação com as tecnologias de última geração. Nesta linha de raciocínio é interessante observar que a lei processual penal - para expedição de um édito condenatório - é exigente com relação à autoria e materialidade do delito, estruturas básicas e fundamentais da função persecutória judicial. Assim, a autoria de um crime deve ser demonstrada de forma inequívoca, preferencialmente, por testemunhas presenciais, quando possível. Tanto é que no Direito Romano vigia a regra testis unus, testis nullus, no sentido de que o depoimento de uma só pessoa não era suficiente para condenar, exigindo-se a confirmação por outra testemunha.  O legislador do século passado satisfazia-se com o reconhecimento feito por uma testemunha (de visu) ou até mesmo pelo reconhecimento pessoal previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, que é uma recomendação e não uma exigência. Pois bem. As câmeras de segurança instaladas em locais estratégicos nas vias públicas e nos interiores de estabelecimentos frequentados por razoável número de pessoas, com seus olhos eletrônicos, clicam a imagem que interessa e, quando possível, no mesmo instante, já ostentam a qualificação do infrator. É uma delação muito mais perfeita e sem qualquer margem de erro, como às vezes acontece com a humana. Não há que se falar em invasão à privacidade da pessoa investigada porque a captação de imagens em local essencialmente público visa também à proteção e segurança dos frequentadores. Não deixa de ser uma tecnologia interessante para o combate preventivo e até mesmo repressivo da criminalidade, tanto aquela praticada de forma sorrateira, como o caso de um punguista na subtração de um pertence do pedestre, como na modalidade organizada, envolvendo várias pessoas na empreitada criminosa de um assalto a banco. São os meios técnicos que vão gradativamente substituindo as provas humanas, expondo as imagens e muitas vezes o som do ilícito, possibilitando uma interpretação perfeita, com base exclusivamente nos fatos reais, sem qualquer interferência narrativa do homem. O olho humano é substituído pela lente da câmara. Assim como o radar instalado na cidade e rodovia, substituto perfeito da fiscalização humana. Como o detector de metal, no controle de acesso a determinados lugares. Com a obrigatoriedade do uso de máscara de segurança em razão da pandemia, cogita-se a respeito de uma determinada limitação dos instrumentos óticos de vigilância eletrônica, por terem acesso parcial ao rosto do investigado. Tanto é assim que os infratores sempre tiveram uma preferência de cobrir total ou parcialmente o rosto durante a empreitada criminosa, mesmo antes da pandemia. A própria tecnologia, no entanto, veio a se superar, eliminando a dificuldade apresentada. A Secretaria de Segurança Pública da Bahia, em local monitorado por câmeras para garantir a segurança de muitos frequentadores, ajustou a tecnologia de reconhecimento facial, que equipara traços dos rostos com as imagens disponíveis nos bancos de pessoas com ordens de prisões, mesmo com a utilização de máscaras, de tal forma que obtém 94% de similaridade, indicativo relevante para a função de segurança.1 De acordo com a evolução cada vez mais acentuada da tecnologia, as audiências atuais realizadas com o auxílio da ferramenta de videoconferência em "sala virtual", também abrigarão dispositivos eletrônicos que irão figurar como testemunhas dos fatos perquiridos. A Justiça, desta forma, pode continuar com os olhos vendados porque a tecnologia irá proporcionar as melhores provas obtidas, dispensando-se os depoimentos das falíveis testemunhas. __________ 1 Clique aqui.
domingo, 6 de dezembro de 2020

A diversidade étnico-racial nas vacinas

Inegavelmente agora é a hora e a vez da ciência que, com toda a experiência acumulada, reúne as melhores condições para ditar e aconselhar as normas de segurança para a manutenção da vida de cada cidadão, principalmente quando a humanidade se encontra diante de um inevitável e, até o presente, invencível inimigo que já exterminou incontáveis vidas humanas. No presente e angustiante processo pandêmico as recomendações constantes nos protocolos de segurança sanitária, já conhecidos de todos, não surtiram os resultados desejados, pois enquanto para os outros países tem início a segunda onda de ataques do coronavírus, no Brasil, em razão de sua imensidão territorial, a primeira continua a reverberar e a aumentar os índices que até então se encontravam sob aparente controle. A pesquisa em torno do ser humano é de vital importância, a qualquer tempo. São inúmeros pesquisadores que trabalham em equipe e se dedicam exclusivamente a encontrar soluções não só para as doenças habituais, mas também aquelas consideradas raras e as que surgem em razão de uma epidemia ou pandemia. Por isso que as pesquisas peregrinam 24 horas pelo mundo coletando informações consideradas consistentes por um grupo de cientistas e, em seguida, serão utilizadas por outro, tudo para vencer o difícil terreno do desconhecido e trazer uma solução que seja permanente e saudável para a humanidade. Daí que a ciência, entre seus erros e acertos, demora muitos anos para andar poucos metros. As vacinas, neste roteiro, desde seu nascedouro até a comprovação de sua eficácia e segurança, carecem de alguns anos para o seu aperfeiçoamento. Tanto é que, no caso presente, aquelas que se encontram na terceira fase, que é a da inoculação em humanos, já começaram a colher resultados satisfatórios nos ensaios preliminares, atingindo até 90% de eficácia, sem qualquer efeito adverso reportado e com excelente margem de tolerância. Tamanha pressa - plenamente justificável pela exiguidade temporal - faz com que as vacinas tenham como único e emergencial objetivo a produção voltada contra a Covid-19, exclusivamente, sem qualquer relato de benefício estendido a outras doenças. E, por este caminho, várias notícias indesejáveis passaram a trilhar. Eclodiu a informação de que as vacinas para a Covid-19 têm potencial suficiente para alterar o DNA das pessoas inoculadas, provocando mutações genéticas graves e que podem ser passadas para as próximas gerações. Tal informação, apesar de cientificamente refutada, fermentou o número de pessoas contrárias à vacinação e, com certeza, irá elevar o rol de seus seguidores. Nem se pode cogitar da obrigatoriedade ou não vacinal porque a questão foi judicializada perante o Supremo tribunal Federal, que em breve irá proferir sua decisão. Por outro lado, já com sedimentação científica mais ponderada e consistente, não basta somente a busca pela eficácia e segurança das vacinas, os ensaios clínicos devem envolver também a diversidade étnico-racial, que vem sendo desprezada em razão da urgência da cobertura vacinal pretendida. Uma vacina que é testada nos Estados Unidos, por exemplo, pode ter uma boa resposta imunológica à população americana, mas sem produzir os mesmos dividendos para a brasileira. Isto porque cada nação carrega sua genética e epigenética próprias, formadas com a participação de vários grupos étnicos. A cobertura vacinal, com tais diferenças, não é homogênea e nem irá cumprir a imunização proposta, pois pode ocorrer que certos grupos não sejam atingidos. É sabido que a população brasileira não é proveniente de uma única origem. Pelo contrário. Pela sua formação histórica, é fruto de uma miscigenação exacerbada. Aqui encontramos desde os povos indígenas, africanos, portugueses, italianos, espanhóis, alemães, americanos e outros imigrantes europeus, asiáticos e orientais, formando uma integração genética e cultural. Uma verdadeira Torre de Babel genética. Tanto é que, recentemente, foi lançado no Brasil o projeto "DNA do Brasil", que consiste na leitura do genoma da população  com a finalidade de garimpar informações importantes para o reconhecimento do código genético do povo e, a partir desse marco,  estabelecer políticas públicas para a prevenção das doenças com predisposição genética localizada. O conhecimento do genoma da população, desta forma, torna-se indispensável para os pesquisadores que irão produzir o imunizante para o país. Basta ver a prova desta assertiva nas vacinas ainda em estudos mais avançados. A Universidade de Oxford (Reino Unido), que desenvolve em parceria com a AstraZeneca, na avaliação dos grupos étnicos-sociais, na fase combinada 2/3, apontou que 95% dos participantes (524 de 552) eram brancos e um negro entre os 5% restantes, além de 3,4% asiáticos, 072% miscigenados e outras minorias, incluindo 0,72 de hispânicos, indianos e irlandeses.1 A Coronavac, desenvolvida pela chinesa Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan, do Brasil, em seus estudos ½ na China, não publicou a diversidade étnica dos participantes.2 A vacina Sputinik V, desenvolvida pelo Instituto Gamaleia, da Rússia, na fase combinada ½, revelou que 100% dos participantes eram brancos.3 Segundo os princípios da Bioética, dá-se por atendido o que recomenda a justiça distributiva ou da isonomia, mas não satisfaz plenamente a exigência da beneficência. Percebe-se que, sem visualizar qualquer bola de cristal, mas pela urgência da fabricação das vacinas, alguns detalhes referentes à diversidade étnico-racial não foram cumpridos rigorosamente e podem até fazer com que a vacina seja segura, porém com a eficácia reduzida. __________ 1 Testes de vacinas contra Covid-19 têm que ter diversidade étnico-racial para representar mundo real. 2 Testes de vacinas contra Covid-19 têm que ter diversidade étnico-racial para representar mundo real. 3 Testes de vacinas contra Covid-19 têm que ter diversidade étnico-racial para representar mundo real.  
domingo, 29 de novembro de 2020

Campanhas públicas de saúde

Interessantes as maciças campanhas lançadas para chamar a atenção de um maior número de pessoas da comunidade a respeito da realização de exames preventivos - indicados reiteradamente pela Organização Mundial da Saúde - e necessários para evitar determinadas doenças graves desde o seu início. Mal terminou o Outubro Rosa, para o diagnóstico precoce de câncer na mama e do colo de útero, e já vai se despedindo o Novembro Azul para a conscientização do diagnóstico preventivo do câncer da próstata, segunda causa de mortalidade por neoplasias. Sem sombra de dúvidas a maior adesão é constatada entre as mulheres mesmo porque, com certa regularidade, frequentam ginecologistas desde a adolescência, com a realização dos exames recomendados rotineiramente. Com relação aos homens o programa, apesar de encontrar resistência inicial, já conta com uma acentuada adesão. E, pode-se dizer que, tanto para os homens como para as mulheres, se a doença for descoberta no início, há uma confortável margem de cura. O avanço desmedido da biotecnologia proporciona a realização de exames sofisticados que perscrutam lado a lado os segredos das células que circulam nos corpos humanos, silenciosas e inatingíveis e transportam um roteiro genético imutável, uma missão a ser cumprida de acordo com a programação do DNA, que estabelece todo o histórico de vida da pessoa. Os exames recomendados para verificar a saúde da próstata são a análise sanguínea do PSA e o toque retal, para homens acima de 50 anos ou os que atingiram 40, quando há histórico de câncer na família e também homens negros, que são mais propensos a desenvolver esse tipo de câncer. Tanto é que o Ministério da Saúde instituiu no âmbito do SUS a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem.1 A pesquisa elaborada pelo Instituto Lado a Lado pela Vida - grupo de referência engajado na prevenção de doenças e saúde masculina - revelou que a Campanha Novembro Azul é conhecida por 94% dos entrevistados, mas entre os homens com mais de 40 anos quase a metade não tem o hábito de ir ao urologista.2 A Constituição Federal declara em seu artigo 196 que a saúde é direito de todos e aponta o dever do Estado de patrociná-la, compreendendo não só a saúde da mulher, que conta com um arsenal mais completo de recursos, como também a do homem, norteadas pelo princípio isonômico, tanto na ação preventiva como na de recuperação. A modernização, aliada à aceleração social e ao dinamismo participativo, obrigaram o Estado a se aproximar do cidadão e a realizar práticas e políticas públicas com investimentos consideráveis na área da prevenção. O efeito da globalização fez com que o Estado se abrisse para sua comunidade interna e flexibilizasse muitas de suas funções e, dentre elas, as intervenções relacionadas com a área da saúde. Tal iniciativa demonstra que o gasto público é bem menor quando ajustado para a prevenção de doenças, principalmente aquelas consideradas graves, longas e que consomem recursos públicos vultosos. O novo arranjo dá um considerável alento ético e político para construir um alicerce sólido em favor das identidades pessoais e coletivas da comunidade. A Organização Mundial da Saúde, por sua vez, define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças. Assim, os programas de saúde no contexto coletivo são de vital importância, pois uma de suas metas é justamente promover o bem comum com a diminuição dos riscos para a saúde individual e coletiva, além do que cumpre o afirmativo constitucional da dignidade da pessoa humana. Não se pode, no entanto, obrigar o cidadão a se submeter aos exames de diagnóstico de câncer de próstata. O serviço deve ser oferecido, mas ele, no âmbito de sua autonomia da vontade - que é justamente o seu juízo de autodeterminação e decisão - é que irá decidir e se responsabilizar pela escolha feita. __________ 1 Portaria 1.944, de 27 de agosto de 2009. 2 A Voz da Serra.
domingo, 22 de novembro de 2020

O Reconhecimento fotográfico no penal

A persecução penal realizada na fase da investigação policial visa buscar todas as provas relacionadas, direta ou indiretamente, com o delito praticado, colocando-se em relevo o esclarecimento da autoria assim como da materialidade. Chega-se à autoria, às vezes pela própria confissão do suspeito, outras pelas testemunhas e outras ainda por meio de indícios e circunstâncias que guardem credibilidade e que possam apontar com relativa segurança o responsável pela prática de um crime. A polícia judiciária, responsável por tal tarefa, não encontrando de imediato a autoria do ilícito, pode lançar mão de outros meios. Quando, por exemplo, pairar suspeita contra determinada pessoa, poderá realizar a prova chamada de reconhecimento pessoal, obedecendo, rigorosamente, o disposto no artigo 226 do Código de Processo Penal. Conforme determinação legal, por ser formalidade indispensável, a pessoa que vai ser reconhecida deverá perfilar ao lado de outras com aspectos físicos e fisionômicos com alguma semelhança. Tal procedimento deve ser observado com o máximo rigor, pois é até comum os tribunais julgarem pela imprestabilidade da prova colhida por não ter sido observada a regra básica. E, sem qualquer dúvida, é uma tarefa difícil para a autoridade policial conseguir arrebanhar outras pessoas com perfis semelhantes à que vai ser reconhecida. Tal prova necessita, além das providências apontadas, ser compartilhada por outras para sustentar uma possível condenação. O reconhecimento fotográfico, no entanto, além de não ser previsto na legislação processual, apresenta-se como uma prova alternativa, de caráter precário e inonimada e que, por si só, não merece a credibilidade exigida no juízo criminal que, diante da dúvida, milita em favor do réu  (in dubio pro reo). Não se exclui a utilização de fotografia na investigação criminal, que poderá servir de base para a busca da autoria, mas não tem o condão de, isoladamente, alicerçar um decreto condenatório. É prova por demais efêmera. Tamanha é a preocupação com esta matéria que o Superior Tribunal de Justiça, em processo que teve como Relator o ministro Rogério Schietti Cruz, assim decidiu: "O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa."1 Tal acórdão também exigiu categoricamente a observância da regra imposta pelo artigo 226 do estatuto processual no sentido de que, quando for prova por reconhecimento fotográfico, em primeiro lugar a autoridade policial deve fazer uma prévia descrição da pessoa a ser reconhecida exibindo àquele que vai reconhecer as fotos existentes e que guardem semelhança com o suspeito e não pinçar uma das fotos e apresentá-la de pronto para o reconhecimento. É sabido que a mente humana guarda lembranças por um determinado período de tempo em razão da sua capacidade de armazenamento de informações. A própria psicologia do testemunho faz ver que a pessoa que foi vítima ou que tenha presenciado um determinado crime, quando ouvida ou chamada para proceder a um reconhecimento, dependendo do lapso temporal fluído e também das circunstâncias no momento do evento, apresentará dificuldade para apontar com segurança o agente responsável pelo crime e pode, como sói acontecer, apontar um outro com algumas características do verdadeiro criminoso. Se já é difícil para a vítima e testemunha, mesmo que tenham presenciado a prática de um delito, reconhecer o autor, imagine-se fazer tal reconhecimento por fotografia, que geralmente apresenta somente o busto, sem qualquer movimento, sem qualquer expressão, além da duvidosa qualidade da foto arquivada. E, mesmo assim, se for positivo o reconhecimento, deverá ser roborado por outras provas idôneas e obedecer rigorosamente ao due process of law. O processo penal, desta forma, é uma complexidade de atos atrelados a uma rigidez concreta que será valorada por uma lei abstrata com aplicação geral e imparcial. Justamente por isso deve enveredar por caminhos seguros para que possa dar o necessário equilíbrio na relação processual, protegendo, de um lado, a sociedade e, do outro, o acusado de eventual injustiça. Eventual condenação criminal vista sob o prisma garantista, diferentemente da prova indiciária que sustenta a denúncia ministerial, deve oferecer uma prova inconcussa a respeito da autoria do delito. A verdade processual deve brotar de uma atividade cognitiva judicial que rastreou todo o material probatório apresentado para construir o convencimento lógico e coerente da jurisdição. A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, amparada pela melhor hermenêutica, pode representar o fato gerador de uma nova interpretação no Processo Penal, colocando uma derradeira pá de cal a respeito do tema. ____________ 1- HC 598.886- (2020/01 79.682-3).
domingo, 15 de novembro de 2020

Vacinas em crianças e adolescentes

O universo nunca aguardou com tanta ansiedade a descoberta de uma vacina para combater a pandemia provocada pelo coronavírus. Se, de um lado, os cientistas apressam suas pesquisas e alardeiam o desconhecimento acerca do invasor, de outro a população sente-se conduzida para a travessia de um campo minado, em total insegurança, pois sequer findou a primeira onda avassaladora, teve início a segunda com sinais mais agressivos. A insegurança se torna mais angustiante com relação ao imunizante porque, apesar dos testes em humanos, não se sabe se terá potencial suficiente para exterminar radicalmente o mal que aflige a humanidade. Alguns países tiveram que retomar os protocolos de segurança impostos pela Organização Mundial de Saúde e, desta vez, ao que tudo indica, com mais rigor e restrição. Observa-se, por outro lado, que há as vacinas já testadas durante muitos anos e que se incorporaram à vida do brasileiro, pelos bons resultados alcançados. O Plano Nacional de Imunizações (PNI) lançou recentemente o programa de vacinação contra a Poliomielite e Multivacinação 2020, compreendendo todas as vacinas preconizadas no calendário vacinal das crianças e adolescentes, com a intenção de impedir a transmissão de doenças imunoprevisíveis.1 A poliomielite, conhecida também como paralisia infantil, é considerada doença contagiosa pela transmissão de pessoa a pessoa e acarreta sequelas gravíssimas, principalmente motoras pela infecção da medula e cérebro, sem qualquer chance de cura. Ocorre que, em razão da baixa adesão vacinal - notadamente contra a poliomielite no estado de São Paulo que atingiu apenas 39,6% das crianças - a campanha foi prorrogada até o dia 13 de novembro.2 Talvez o movimento antivacinal, que vem prosperando a cada ano, tenha desestimulado os pais a levarem seus filhos para a recomendada imunização, apesar da previsão imposta no § 1º do artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente de ser obrigatória a vacinação dos menores de idade nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. O grupo contrário à vacinação não encontra qualquer amparo científico que tenha sido comprovado e muito menos a adesão da Organização Mundial da Saúde, que já se manifestou reiteradas vezes a respeito da eficácia das vacinas e que considera o movimento como uma das ameaças mundiais à saúde. É certo que a pessoa maior, capaz, pelo princípio bioético da autonomia da vontade do paciente, é dotada de liberdade para praticar ou não determinado ato. Não se discute aqui, no entanto, a vacinação de pessoa adulta, que será decidida pelo tema já judicializado perante o Supremo Tribunal Federal, ainda sem agendamento de data ainda para a discussão. Os pais ou responsáveis legais são legitimados para representarem os filhos menores e adolescentes, mas devem nortear suas condutas  pelo estatuto menorista, que determina que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar  "com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária." Diante de tantos deveres, não podem os pais se quedarem inertes visando eximirem-se da responsabilidade da vacinação dos filhos menores. Isto porque, em razão da longa experiência e constante aperfeiçoamento dos imunizantes, que desenvolveram proteção aos organismos humanos contra infecções, atingiu-se com sucesso a erradicação de várias doenças evitáveis e que acarretaram muitos danos e mortes à humanidade, dentre elas, por exemplo, o sarampo, a poliomielite e a difteria. Tais doenças, pelo que se observa em razão da hesitação vacinal, vêm prosperando e fazendo um número infindável de vítimas, além de se impulsionarem como agentes propagadores de outras ainda desconhecidas. A vacina, pode se dizer, é o resultado de longos trabalhos e estudos obedecendo rigorosamente às normas e protocolos científicos internacionais. Daí que, para atingir a desejada segurança e a eficácia comprovada, submete-se a várias fases, compreendendo o estudo laboratorial inicial, testes em animais e humanos, com o acompanhamento dos órgãos de controle (Sistema CEP/CONEP) e, finalmente, cumpridas todas as exigências, seu registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Tudo também de acordo com princípio bioético da beneficência, pelo qual se busca o resultado mais satisfatório com a exclusão de qualquer dano à pessoa, nos exatos termos do primum non nocere ou do malum non facere. A não vacinação, desta forma,  priva a criança e o adolescente de receberem a proteção necessária contra as doenças evitáveis e os coloca em um grupo de risco maior ainda do que sua vulnerabilidade original, além de impedir a matrícula em escola pública e de ingressar em programas sociais relacionados com as políticas públicas do governo. Os pais, que foram vacinados, poderiam conferir a mesma chance aos filhos. A imunização deve ser feita não em razão do caráter cogente, mas sim pelos múltiplos benefícios já comprovados à saúde dos infantes. ____________  1- Informe Técnico Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite e Multivacinação para Atualização da Caderneta de Vacinação da Criança e do Adolescente   2- Campanha de multivacinação e poliomielite é prorrogada até 13 de novembro em SP 
domingo, 8 de novembro de 2020

A palavra da mulher no estupro

É muito difícil e até mesmo, se assim prosperar a pretensão, uma ousadia tecer comentários jurídicos a respeito de um fato perquirido por um processo criminal em que as informações que chegam ao público foram registradas unicamente pela imprensa. Não que não sejam idôneas, mas falta o olho clínico profissional para captar as circunstâncias determinantes de uma decisão. Mas o certo é que o processo em que figurou a influenciadora digital catarinense Mariana Ferrer como vítima do crime de estupro de vulnerável, culminou com a absolvição do acusado e o registro lamentável do advogado que, coram judice, proferiu impertinentes e desnecessárias ofensas a ela. A proposta do presente artigo prende-se à análise jurídica a respeito da palavra da vítima nos crimes contra a dignidade sexual. A liberdade sexual, após o rompimento de muitos entraves morais e legais, é hoje considerada um direito inalienável à pessoa, integrando o casulo protetivo da dignidade humana, consagrado constitucionalmente. Assim, a liberdade sexual apresenta-se como uma conquista do homem e da mulher para escolherem o parceiro que for do seu afeto e agrado. Neste terreno prevalece a reciprocidade. Se, por ventura, ocorrer a incidência de grave ameaça ou violência para o ato sexual, incompatíveis com o propósito, rompe a linha de confiança e torna-se insuportável qualquer convivência. É o verdadeiro estupro. No caso discutido, a imputação feita pelo Ministério Público em sua denúncia inicial, é da prática do ilícito de estupro de vulnerável. O tipo penal compreende a prática de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos (homem ou mulher), com pessoa que, por deficiência mental ou enfermidade, não tem o necessário discernimento para a prática do ato ou que, por qualquer outra causa, não puder oferecer resistência, que é o caso do processo noticiado. A expressão "qualquer outra causa", contida no artigo 217-A, § 1º, do Código Penal, como se percebe, é indeterminada. A conjunção alternativa "ou", por minúscula que seja, amplia o alcance do texto legal e envolve até mesmo o noticiado estado etílico alegado pela vítima. Vulnerável, termo de origem latina, vulnerabilis, em sua origem vem a significar a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização. Na concepção jurídica, no entanto, a lente do legislador voltou seu foco para a perspectiva do fraco, aquele que, visto dos mais diferenciados matizes, não reúne condições iguais à do cidadão comum, tendo como fonte de referência a figura do homo medius. O fator ebriedade, como no caso relatado, já é um determinante para demonstrar que a pessoa necessita de uma proteção diferenciada, vez que ausente sua volição. Sem essa garantia, cai por terra a igualdade apregoada na lei maior. Feitas tais necessárias considerações, a palavra da vítima é de vital importância para esclarecer o crime de estupro que, cometido sem a presença de testemunhas (solus cum sola in solitudinem), busca na versão da ofendida o único caminho informativo e, como tal, núcleo de todo trabalho policial e judicial. Paralelamente, outros indícios, que são os fatos que circundam a conduta principal, serão coletados para formarem um conteúdo probatório que seja coerente e guarde veracidade com a versão apresentada. Tanto é que a vítima do processo em questão, sentindo-se abusada sexualmente, compareceu perante a delegacia de polícia e apresentou sua versão a respeito dos fatos, escancarando sua intimidade sexual, oportunidade em que foi submetida a exames de corpo de delito e alcoolemia. Em juízo foi novamente exposta e reiterou sua versão inicial. Ficou demonstrada a conjunção carnal com a ruptura himenal recente, além da presença de sangue dela e esperma do acusado nas suas vestes, porém o exame de ebriedade não restou positivo, fato que direcionou a sentença para decretar a absolvição, fazendo cair por terra o estado de vulnerabilidade. O quadro relatado pela vítima guarda credibilidade e coerência com as demais provas coletadas, com exceção do exame de alcoolemia realizado durante um período de 24 horas, tempo provável de se perder o demonstrativo da ebriedade e que serviu de sustentação para a expedição do édito absolutório, em razão da não comprovação da alteração do estado anímico da ofendida. Daí, diante da dúvida existente, o magistrado optou pela improcedência da ação, acolhendo, inclusive, o parecer do Ministério Público. Não há nenhuma distorção jurídica, apesar de que uma sentença condenatória, pelas provas noticiadas pela imprensa, teria também suporte probatório até mais robusto. A palavra da mulher, nestas circunstâncias, não teve a sustentação necessária para fazer vingar a pretensão deduzida na denúncia ministerial. Apesar de toda a insistência probatória, não conseguiu reverter uma prova pericial que permaneceu isolada e serviu de sustentação probatória. Lastimável, no entanto, foi a peroração feita pelo advogado durante o julgamento, tecendo comentários indecorosos a respeito da inidoneidade da vítima, aliás totalmente inadequados e fora de todo o contexto probatório, com a intenção de desprestigiá-la perante a justiça. A vítima procurava justiça e, num repente, na inversão processual desmedida, torna-se ré e outra defesa não teve a não ser suplicar piedosamente para que seus direitos fossem respeitados. O episódio lembra bem a frase dita pelo advogado Christian Malesherbes, quando defendia Luís XVI: vim aqui para procurar a Justiça e nada mais encontro do que acusadores (Je cherche ici des juges , je n ' y trouve que des accusateurs).
domingo, 1 de novembro de 2020

O legado de Fleming

Desde a decretação da pandemia pela Organização Mundial de Saúde - abrindo um enorme ponto de interrogação para a saúde mundial -, cientistas das mais expressivas referências e até aqueles que agem movidos pelo espírito colaborativo debruçaram-se sobre as pedras de Petri para pesquisar uma vacina que tenha segurança e eficácia no combate ao coronavírus, de forma definitiva. Apesar de algumas delas já se encontrarem na fase final dos estudos envolvendo a colaboração de participantes, o certo é que, até o momento, a Covid-19 apresenta inúmeros buracos negros e, apesar de todos os esforços científicos realizados, muitas indagações ainda continuam sem respostas. É até compreensível e o relato científico dá conta de que uma vacina demanda um lapso temporal de anos para atingir sua eficácia, vez que o tempo irá se encarregar de aperfeiçoá-la. No caso da Covid-19 pretende-se colocar a vacina para inoculação num prazo inferior a um ano. É um desafio e tanto a ser enfrentado. Tem gente que é predestinada e já nasce com o dom da visão voltada para os tempos futuros. Alexander Fleming nasceu na Escócia, em 1881, e desde criança aguçou seu poder de observação, assim como o interesse em buscar o princípio fundamental de qualquer coisa, mas não desprezava também um jogo de bridge para ganhar algum dinheiro dos seus colegas do curso de medicina. Pretendia escolher a especialidade de cirurgia, mas o destino o predestinou para o Serviço de Inoculações do Saint Mary Hospital da Inglaterra. Mesmo trabalhando como pesquisador em ambiente precário, com recurso material mínimo, vislumbrava que o cientista tinha que buscar a exatidão após passar inúmeras vezes pela repetição da mesma experiência até atingir um resultado que fosse satisfatório. Com tal denodo e profundo conhecedor da bacteriologia, descobriu um fungo que continha uma substância antibacteriana e suas propriedades antibióticas, a que deu o nome de penicilina. Mudou a história da medicina. Tamanho seu comprometimento com a ciência que, em uma de suas experiências, colocou em risco sua própria vida quando se autoinoculou da vacina anticorpos, de cuja eficácia alguns cientistas duvidaram, conforme foi descrito pelo Saint Mary's Hospital Gazette: "Fleming precisava de uma confirmação experimental à sua teoria. Não podendo, nem querendo, servir-se para isso de um doente, fez a si próprio de cobaia e deu a si mesmo uma injeção intravenosa de vacina estafilocócica. Foi um ato de coragem"1. Tal ato introduziu uma nova modalidade de pesquisa, que não envolve o pesquisador e sua equipe e sim voluntários que se dispõem a colaborar com a ciência, colocando em risco sua própria vida. Alguns países, como a Inglaterra por exemplo, para abreviar todo o iter obrigatório das pesquisas, compreendendo testes iniciais em laboratório, a utilização da droga em animais e, finalmente, a aplicação em voluntários humanos, optaram por provocar a infecção do vírus no colaborador da pesquisa, no processo conhecido como Human Challenge Trial, consistente em aplicar o imunizante que será testado e, na sequência, provocar a infecção no colaborador da pesquisa. Em vez de vacinar as pessoas para saber sua eficácia, os cientistas irão infectar um número mais reduzido de voluntários, que serão monitorados em ambiente que possibilite o acompanhamento com segurança. Neste caso específico - que causa estranheza ao homem comum vez que se trata de um humano saudável que pode contrair o vírus e em razão dele vir a óbito - há sim necessidade que certas cautelas sejam tomadas e proporcionem a segurança do participante. Não se trata aqui de pessoas que pretendem dar cabo à própria vida e sim que aceitam uma contaminação voluntária com a intenção de, com elevado senso de solidariedade, participar de um estudo que busca o bem maior, comum e universal e pode reverter em benefício para a humanidade. O Estado tem a obrigação de participar da pesquisa como interveniente obrigatório necessário, pois se de um lado há o princípio da autonomia da vontade do paciente, de outro transita o da dignidade e indisponibilidade da vida humana. Há que se estabelecer a tutela proporcional, sopesando os dois bens em conflito. A razão é mais relevante e aqui o Estado tem a obrigação de se manifestar e jamais manter-se neutro diante da autonomia individual que, em tese, apresenta uma escolha incorreta feita pelo cidadão na esfera de sua independência ética. Se a vida humana e este grande latifúndio corporal pertencem ao homem, cabe ao Estado conferir ao titular destes direitos a tutela adequada e proporcional. A comunidade científica mundial não vê com bons olhos tal iniciativa e coloca algumas restrições à autoinfecção do próprio paciente, pois não vingando a vacina inoculada, não há outro tratamento confiável e graves serão os riscos à vida do participante, que já foi contaminado pelo vírus. Tanto é que dele se exige a assinatura de um termo de consentimento em que fique retratada sua inequívoca vontade de participar do estudo, mesmo sabedor dos riscos existentes no percurso da pesquisa. A mobilização geral provocada pelo Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1945 fez com que o mundo científico despertasse para as pesquisas, vislumbrando, desta forma, que o médico do futuro seria um imunizador.  __________ 1 Os homens que mudaram a humanidade. Alexander Fleming. Rio de Janeiro: Editora Três, 1975, p. 63.
domingo, 25 de outubro de 2020

Pandemia ou sindemia?

O vocábulo pandemia, poucas vezes empregado anteriormente, mas que carrega o universo em sua estruturação etimológica, é hoje parte integrante da rotineira comunicação mundial. De origem grega, com o significado de ação envolvendo todo o povo a respeito de um acontecimento relevante e que tenha condições de atingir toda a população de uma nação, foi inicialmente empregado por Platão. Posteriormente, a palavra assumiu outra dimensão e teve seu alcance ampliado pela medicina que a direcionou a uma doença que poderia ultrapassar os limites de um país e atingir outros, enquanto que para o povo de uma mesma nação permaneceu o vocábulo epidemia, que á a difusão interna de doença em determinado período. Pandemia, desta forma, é a disseminação mundial de uma nova doença que se espalha por dois ou mais continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa. O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, quando instado a se manifestar a respeito da disseminação do coronavírus, assim se posicionou: "Pandemia não é uma palavra para ser usada de maneira leviana ou descuidada. É uma palavra que, se mal utilizada, pode causar medo irracional ou aceitação injustificada de que a luta acabou, levando a sofrimento e morte desnecessários"1. Vários estudos liderados por instituições científicas de referência estão sendo realizados com a finalidade precípua de conhecer detalhadamente o vírus e o certo é que, até agora, a covid-19 apresenta inúmeros buracos negros e muitas indagações ainda continuam sem respostas. Tanto é que a única esperança que move a humanidade é a vacina, levando-se em consideração que medicamentos pesquisados para a redução da carga viral do paciente foram insatisfatórios. Recentemente, em artigo publicado na revista científica The Lancet, o seu redator-chefe Richard Horton pinçou com capricho o vocábulo "sindemia", cunhado na literatura médica por Merrill Singer, formado pela junção de sinergia e pandemia e o incluiu em um texto com o significado de que quando duas ou mais doenças se interagem de tal forma podem causar danos maiores que a soma dessas doenças. Seria o mesmo princípio aplicado ao todo que, quando somado, torna-se maior do que a soma das partes que o compõem. Sindemia, em definição mais abrangente, seria o agravamento da saúde de populações não só em razão do mesmo fato gerador dominante, mas principalmente pelo seu entrelaçamento com fatores sociais e biológicos desfavoráveis, que produzem maior vulnerabilidade e desigualdade socioeconômica. Nesta linha de raciocínio pode-se concluir que sindemia representa o coronavírus como o fato gerador, mas, isoladamente, não carrega ele o condão de provocar tantos danos à saúde humana. Age na combinação de várias outras doenças e comorbidades, que geralmente são desencadeadas pela desigualdade social e,  em razão da ausência de políticas públicas efetivas, tornam-se concausas pré-existentes e caminham pela mesma linha preferencial do vírus, como, por exemplo, a pobreza,  a falta de habitação, alimentação, emprego, meio ambiente deteriorado e outras. Com a chegada do coronavírus as doenças pré-existentes foram agravadas e paralisados os tratamentos no combate à hipertensão, diabetes, obesidade, doenças cardiovasculares, respiratórias, raras, cânceres e transplantes, dentre outras.  As estruturas hospitalares e equipes médicas estavam voltadas para o combate à pandemia da covid-19, deixando um caminho aberto para a passagem do vírus. Até mesmo o distanciamento social tornou-se um óbice para que as pessoas pudessem visitar seus médicos e, consequentemente, ficaram expostas às doenças. A sindemia, sob esta ótica, nada mais é do que uma pandemia lato sensu, compreendendo outros fatores que colaboram com a propagação e disseminação do mal que aflige a humanidade. E qualquer análise que seja feita com relação ao recrudescimento do vírus vai indicar que a sua letalidade está diretamente relacionada a outras circunstâncias que giram em torno do fato gerador. Eliminadas tais circunstâncias, o vírus será extirpado definitivamente. Trata-se, na realidade, de uma opinião isolada, mas que tem campo para ganhar corpo e bem reflete a situação atual de combate ao coronavírus. Muitos países, até os considerados de primeiro mundo, por terem se afastado dos protocolos de segurança recomendados, permitiram o avanço do vírus e retornam à situação anterior, até mesmo com o reinício do isolamento com a decretação do lockdown. O autor do referido artigo, em tom crítico, desalojou a atual pandemia e a substituiu pela sindemia, fazendo a seguinte advertência: "Não importa quão eficaz seja um tratamento ou quão protetora seja uma vacina, a busca por uma solução puramente biomédica contra a covid-19, vai falhar. A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter profundas disparidades sociais, nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente protegidas da covid-19"2. É uma situação que exige ampla reflexão da sociedade, principalmente no tocante às políticas públicas de atendimento às necessidades primordiais do cidadão. __________ 1 O que é uma pandemia. 2 'Covid-19 não é pandemia, mas sindemia': o que essa perspectiva científica muda no tratamento.
Apesar de ser a prisão em flagrante delito a mais recomendável - por oferecer de pronto a autoria e a materialidade necessárias para o início da persecução penal fazendo prevalecer a certeza visual do cometimento do crime na prisão de constatação -, a prisão preventiva, pela sua própria caracterização processual, que representa uma prévia análise laboratorial seguida de uma fundamentação convincente e obrigatória, surge como sendo a predileta da legislação brasileira. Tanto é que referida prisão vai exigir um debruçar engenhoso e cauteloso para fazer incidir os requisitos de necessidade e conveniência da decretação da segregação provisória. Pode-se dizer que se trata de uma prisão que irá patrocinar não só os requisitos explícitos de sua decretação, mas, também, os princípios constitucionais garantidores da pessoa cuja liberdade foi cerceada. Basta ver que as novas exigências consubstanciadas na lei 13.964/2019, que alteraram os artigos 282, § 2 e 4º e 311 do Código de Processo Penal, visando atingir um processo penal puramente acusatório, não permitem mais a intervenção isolada do magistrado para a decretação ex officio da prisão preventiva, muito menos a conversão da prisão flagrancial em preventiva, necessitando, para tanto, da representação formal da autoridade policial ou de pleito expresso feito pelo Ministério Público, conforme decidiu recentemente a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal1. Retorna-se, desta forma, a tão apregoada formatação do processo penal democrático, consubstanciada no brocardo: Ne procedat judex ex officio. O recente episódio da decisão proferida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, que concedeu ordem de soltura ao traficante André de Oliveira Macedo, conhecido por André do Rap, causou grande consternação no meio jurídico, verdadeira colidência de entendimentos, principalmente com a revogação da ordem por parte de decisão do ministro Luiz Fux, presidente da corte maior. Sem falar ainda do alardeamento popular, nitidamente contrário à concessão do benefício, uma vez que o acusado já registrava condenações na justiça que somavam 25 anos. A já referida lei, que teve seu nascedouro no pacote anticrime, trouxe em seu bojo, de forma até sorrateira, vez que não fazia parte do texto original, e assim passou a existir após emenda ao artigo 316 do CPP apresentada pelo deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG): "Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal". Impôs, portanto, a obrigatoriedade da manifestação do juiz que decretou a medida de justificar a cada 90 dias a continuidade ou não da restrição. E foi com base na ausência de justificação que foi proferida a decisão do ministro Marco Aurélio de Mello, por entender que ficou evidenciada a coação em razão da ilegalidade da prisão. Muito já se escreveu e debateu a respeito do tema. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal realizou reunião do colegiado para firmar entendimento a respeito do prazo de 90 dias para a revisão das prisões preventivas e a maioria respaldou a decisão do presidente da corte. Mas a questão que trago à baila é relacionada à Hermenêutica. Está mais do que evidenciado que a decisão concessiva da liberdade pelo ministro teve como base a interpretação literal da lei, sem fazer qualquer abordagem com relação ao seu conteúdo. Centrou-se nas exatas palavras do texto legislativo e por essa senda enveredou seu pensamento. Mas a lei, apesar de representar um dispositivo que visa normatizar determinada situação, conferindo-lhe a segurança jurídica recomendável, quando vista de soslaio, pode provocar injustiça. O intérprete, segundo a melhor orientação hermenêutica, deve olhar para a lei não só na fachada da sua exteriorização, mas também buscar por trás do biombo que a esconde, os meandros reveladores da sua real intenção. Apelar pela literalidade da lei, focando unicamente em suas palavras, será um reducionismo interpretativo e que fatalmente irá colidir com valores maiores compreendidos no entorno desta mesma lei. Os romanos, com a sabedoria peculiar na época de Cícero, já proclamavam que summum jus, summa injuria, no sentido de que quanto mais o intérprete for apegado às fórmulas estreitas da lei mais encontrará um direito sem modulação, assim a suma justiça que se busca se transforma em suma injustiça. A decisão estribada unicamente no aspecto gramatical da lei afasta-se dos padrões publicamente reconhecidos. Prejudica e em muito a busca e a pesquisa necessárias para perquirir a ratio essendi da norma, da sua adequação e aplicabilidade e, pior,  inclina-se contra os interesses já repudiados pelo grupo maior da comunidade, que foi injustamente preterido quando o ministro abrigou a pretensão de um pequeno e diminuto grupo de pessoas que se encontravam reclusas,  na mesma vala jurídica. O desfecho, como era esperado, não iria definir literalmente um resultado considerado justo e proporcional aos princípios da justiça. O caso em tela merecia a incidência da interpretação teleológica que incentiva o intérprete a buscar o verdadeiro significado da lei e encontrar o seu alcance, levando-se em consideração as regras salutares do Direito e a prevalência do bem comum. "A palavra, já advertia Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias ideias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples apreciação literal do texto"2. __________ 1 Disponível aqui.   2 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 29.  
domingo, 11 de outubro de 2020

A decifração do genoma do idoso

Ainda sem a necessária revisão por pares para a publicação em revista científica, mas com os dados coletados disponíveis ao público, cientistas da USP, liderados pela geneticista Mayana Zats, concluíram relevante pesquisa realizada durante 10 anos a respeito do sequenciamento genético de 1.171 idosos - com a faixa etária média de 71 anos - para entender o envelhecimento saudável e desenvolver técnicas mais precisas na medicina, possibilitando o diagnóstico de várias doenças, dentre elas as consideradas raras. Representa, sem dúvida, além do demonstrativo de competência e comprometimento de nossos pesquisadores, um avanço considerável para a medicina, que terá um campo mais abrangente para diagnósticos das doenças mais comuns, canalizando-as para o acesso à medicina de precisão. A repercussão maior da pesquisa foi a identificação de dois milhões de variantes genéticas não descritas em bancos genômicos internacionais, que reúnem 76 milhões1. "O patrimônio genético, como o próprio nome diz, é a somatória das conquistas do homem, no plano físico, psíquico e cultural, que o acompanha através de seus registros biológicos, faz parte de sua história e evolução e, como tal, merece a proteção legal. É o relato e o retrato da raça humana, desde o homem de Neandertal. Passa a ser objeto de tutela pessoal e estatal e qualquer ofensa a ele é desrespeito à própria humanidade. A proteção desloca-se da individualidade do ser humano já formado, com personalidade própria, para aquele que ainda vem a ser, com personalidade jurídica"2. A decifração do Código Genético é uma das maiores conquistas da humanidade. Conhecer a função que cada gene exerce no interior do DNA significa ler a informação genética e descobrir o código da vida. O homem, no entanto, não é apenas resultado do mapeamento genético, mas também dotado de potencialidade genética que, em sintonia com o meio onde vive, poderá diferenciá-lo dos demais, formando uma unidade exclusiva. Daí que a ciência se inclina atualmente em desvendar os genes responsáveis por determinadas moléstias que angustiam a humanidade, com a intenção de alterar o código genético e buscar sua erradicação definitiva. O homem passa a ser o epicentro das atenções do próprio homem e não mais sua cobaia ou seu lobo. Não caminhará cegamente para transformar o corpo humano em linha de montagem e sim de buscar os mecanismos valiosos para lhe dar sustentação de saúde, bem-estar, equilíbrio e felicidade. Faz lembrar o inesquecível Pitigrilli, quando profetizava que tanto a medicina como o direito têm necessidade de montanhas de vítimas para progredir uns poucos metros3. O objetivo da pesquisa é conhecer os fatores genéticos do idoso brasileiro para compreender as doenças mais prevalentes e atuar preventivamente, formando uma verdadeira arquitetura do genoma pátrio onde serão encontrados indicadores clínicos que detectarão os prováveis grupos de risco e as recomendadas ações que devem ser tomadas para combatê-los. A leitura do DNA, desta forma, irá oferecer condições para garimpar informações importantes para que seja feito o reconhecimento do código genético da população idosa e, a partir desse marco,  fazer a prevenção contra as doenças com predisposição genética localizada. A ciência da Bioética recebe com os braços abertos tamanha iniciativa científica que irá trazer inúmeros dividendos de saúde para a população idosa, além de traduzir com ênfase a realização da dignidade da pessoa humana, apregoada constitucionalmente. Na ponderação da ciência da vida, fulcrada no princípio da beneficência, toda ação humana, invasiva ou não, e que tenha por objetivo elevar a potencialidade do bene facere, será considerada oportuna, necessária e conveniente, observando que o estudo proposto transcende e em muito as pesquisas tradicionais. É a era de se buscar nas células mais recônditas do ser humano a realidade e os segredos da vida. __________ 1 Cientistas da USP concluem maior análise de material genético de idosos da América Latina. 2 Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia. 3 Pitigrilli, O Homem que inventou o amor.
domingo, 4 de outubro de 2020

Especismo é crime

Muitos são os movimentos organizados por associações, instituições - a maioria delas de iniciativa particular - para influenciar a leitura e direcionar o olhar da opinião pública para a defesa dos animais, considerados seres indefesos e muitas vezes vítimas de violência por parte dos homens. Vários intentos foram alcançados. A começar pelo Plenário do Senado Federal que aprovou o PL 27/2018, visando criar o regime jurídico sui generis de sujeitos de direitos despersonalizados para os animais que, até então, pela legislação vigente nos crimes ambientais (lei 9.605/ 1998), recebiam a consideração civil de bens móveis e eram considerados coisas1. Doravante os animais serão alçados à categoria de seres sencientes, dotados de emoção e sentimento. Nem todos os animais, no entanto, foram abrangidos pela proposta protetiva. São excluídos os destinados à produção agropecuária, os utilizados nas pesquisas científicas e os que participam das manifestações culturais integrantes do patrimônio cultural brasileiro, como a vaquejada. Tramita pela Câmara de Constituição e Justiça do Senado Federal o PLS 542/18 que, valorizando o espaço afetivo entre animais de estimação e seus donos, pretende regular a guarda compartilhada entre o casal após a dissolução do casamento ou da união estável. Tal lacuna se faz necessária e deve ser preenchida porque os tribunais estão sendo instados a decidir a respeito dos conflitos entre as pessoas envolvidas no relacionamento e o animal de estimação. Especismo, termo de pouco uso, porém com um significado abrangente e atual, vem à tona com uma nova conquista legislativa e pode ser definido como uma modalidade de discriminação em que uma determinada espécie - no caso a humana - considera-se superior e se julga no direito de escravizar, maltratar e até matar animais, considerados inferiores e desprovidos de volição. D'Agostino, referindo-se aos animalistas, construiu interessante definição: "Os humanos em outras palavras, teriam indevidamente santificado a própria espécie, maximizando o valor daquilo que parece distingui-la dos demais animais ( o uso da razão) e minimizando, ao contrário, o "valor da vida" que é justamente comum a todas as formas viventes e impõe que os homens sejam submetidos a uma consideração que os avalie junto, e não acima, dos demais animais"2. A discriminação especista, pela sua rejeição natural em querer preservar o primado da espécie humana, provocou a aprovação pelo Senado Federal do PL 1095/2019, de autoria do deputado Federal Fred Costa (Patriotas/MG), que altera a Lei de Crimes Ambientais (lei 9.605/1998), sancionada agora pelo presidente da República. Consiste a proposta em acrescentar um dispositivo ao artigo 32 da lei ambiental referida para incriminar severamente a prática de abuso, maus-tratos, ferimentos ou mutilação a cães e gatos, com a aplicação da pena de reclusão de 2 a 5 anos, multa e proibição de guarda de animal. Isto porque, além de outros argumentos, aumentou e em muito o número de violência aos animais. Só no período pandêmico, compreendido entre os meses de janeiro a julho de 2020, a violência atingiu mais de 81,5% em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com os dados fornecidos pela Delegacia Eletrônica de Proteção Animal do Estado de São Paulo (Depa). Esta iniciativa legislativa não carrega somente uma visão conteudista de várias discussões travadas a respeito das novas configurações alcançadas pelos animais, mas vem arraigada também no âmbito de uma perspectiva jurídica que lhe confere inabalável consistência, que é a convivência harmônica em um relacionamento objetivo na cadeia da vida, regida pelo próprio código humano. Quando se fala em dignidade da pessoa humana, neste princípio está contido também o respeito aos animais. É interessante observar que a vontade da lei, fugindo do seu caráter isonômico, restringiu sua aplicação somente aos cães e gatos, justamente por serem os que permanecem mais tempo e mais próximos se encontram dos homens. Presume-se que há uma convivência já assentada, que sela o respeito e afasta qualquer discriminação, desaconselhando, desta forma, eventual ato de violência contra o animal de estimação. Diz-se de estimação porque integra o círculo de intimidade de convivência com o homem, numa autêntica demonstração de companheirismo e afeto. A lei anterior previa uma pena de 3 meses a um ano de detenção e a conduta era considerada de pequeno potencial ofensivo, tramitando pelo Juizado Especial Criminal, geralmente revertida em penas alternativas. Na novatio legis a pena prevista para a prática delituosa é de 2 a 5 anos de reclusão e multa. É igual à imposta pelo crime de realização de clonagem humana, previsto no artigo 26 da lei 11.105/2005, de gravidade inquestionável. __________ 1 Senado aprova projeto que cria natureza jurídica para os animais. Fonte: Agência Senado. 2 D'Agostino, Francesco. Bioética segundo o enfoque da filosofia do direito. Tradução de Luisa Raboline- Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2006, p. 246.
domingo, 27 de setembro de 2020

A pandemia e os transplantes

A lei 9.434, que regula a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante in vita e post mortem, foi editada em 1997 e, até o presente, com algumas alterações necessárias, vem cumprindo satisfatoriamente sua função preconizada pelo permissivo constitucional disposto no artigo 199 § 4º. A projeção levada a efeito na Carta Magna ganhou corpo e em pouco tempo o serviço de transplantação no Brasil foi atingindo índices cada vez mais auspiciosos, inserindo o país na lista dos que mais realizam transplantes no mundo. O corpo humano, um latifúndio de riqueza incontestável, pela legislação vigente, passou a ser considerado repositório de órgãos e a medicina, por sua vez, consegue realizar a substituição com considerável margem de sucesso, proporcionando ao homem, desta feita, o equacionamento de seu problema de saúde com a desejável qualidade de vida. A doação, em sua essência, pode-se dizer que é um ato que transcende a dignidade humana e, aliada à apurada tecnologia, possibilita a junção de aparelhos a órgãos e tecidos humanos, como, por exemplo, coração artificial, marcapasso, etc., atrelados ao corpo humano por circuitos eletrônicos. Ocorre que a decretação da pandemia pelo coronavírus - causadora de inúmeros percalços em praticamente todas as áreas de atuação do ser humano - afetou drasticamente os altos índices atingidos de transplantes, reduzindo-os a um patamar de muita preocupação. A título de exemplo, familiares consultados após a decretação da morte encefálica não demonstravam interesse na doação de órgãos do parente tendo em vista a recomendação do sepultamento com a necessária urgência, além da inevitável diminuição de leitos nos hospitais para acolher os transplantados. No dia 27 de setembro é comemorado o Dia Nacional de Doação de Órgãos e várias entidades e instituições ligadas ao tema mobilizam-se para retomar a campanha de conscientização da comunidade para aderir à mais solidária das ações humanas. Vejamos, então, algumas peculiaridades da doação. A regra é a proibição in vita da disposição do próprio corpo, conforme se deduz do caput do artigo 13 do Código Civil, nos casos em que provocar diminuição permanente da integridade física ou contrariar os bons costumes. O parágrafo único do referido artigo, no entanto, quebra tal norma quando se tratar de transplante realizado de acordo com a lei 9.434/1997. Diante de tal configuração qualquer pessoa capaz, em vida,  poderá consentir na doação, ou seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo) ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consanguíneos até o quarto grau, ou qualquer outra pessoa, mas dependendo nesse caso de autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. Sempre a título gratuito, em razão do disposto no artigo 199 § 4.º da Constituição Federal e do artigo 1º da lei especial de transplantes. A doação de órgãos post mortem, por seu turno, só poderá ser realizada com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo a lei que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central. Quando se tratar, no entanto, de relacionamento homossexual, o companheiro ou a companheira estará legitimado a autorizar a doação, observando as mesmas regras estabelecidas para companheiros heterossexuais1. Se, por um lado, há a abertura para favorecer a doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, transformando o doador em vida como agente definidor, há também limitações impostas a essa faculdade. Assim, se em vida a pessoa pretendeu firmar documentos público ou privado antecipando sua vontade em doar seus órgãos post mortem, nenhuma validade terá tal manifestação de vontade, pois a legitimidade para tanto se desloca para os parentes e cônjuge. Tal circunstância, por si só, demonstra severa limitação ao princípio da autonomia da vontade da pessoa. Frente a tal exigência, a campanha do Ministério da Saúde visa alcançar a comunicação, a conversa e o diálogo entre os familiares, fontes inequívocas e reveladoras da vontade de doar, facilitando a decisão por parte das pessoas legitimadas a autorizar a doação post mortem. __________ 1 Doação de órgãos por companheiro homossexual.