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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 11 de outubro de 2020

A decifração do genoma do idoso

Ainda sem a necessária revisão por pares para a publicação em revista científica, mas com os dados coletados disponíveis ao público, cientistas da USP, liderados pela geneticista Mayana Zats, concluíram relevante pesquisa realizada durante 10 anos a respeito do sequenciamento genético de 1.171 idosos - com a faixa etária média de 71 anos - para entender o envelhecimento saudável e desenvolver técnicas mais precisas na medicina, possibilitando o diagnóstico de várias doenças, dentre elas as consideradas raras. Representa, sem dúvida, além do demonstrativo de competência e comprometimento de nossos pesquisadores, um avanço considerável para a medicina, que terá um campo mais abrangente para diagnósticos das doenças mais comuns, canalizando-as para o acesso à medicina de precisão. A repercussão maior da pesquisa foi a identificação de dois milhões de variantes genéticas não descritas em bancos genômicos internacionais, que reúnem 76 milhões1. "O patrimônio genético, como o próprio nome diz, é a somatória das conquistas do homem, no plano físico, psíquico e cultural, que o acompanha através de seus registros biológicos, faz parte de sua história e evolução e, como tal, merece a proteção legal. É o relato e o retrato da raça humana, desde o homem de Neandertal. Passa a ser objeto de tutela pessoal e estatal e qualquer ofensa a ele é desrespeito à própria humanidade. A proteção desloca-se da individualidade do ser humano já formado, com personalidade própria, para aquele que ainda vem a ser, com personalidade jurídica"2. A decifração do Código Genético é uma das maiores conquistas da humanidade. Conhecer a função que cada gene exerce no interior do DNA significa ler a informação genética e descobrir o código da vida. O homem, no entanto, não é apenas resultado do mapeamento genético, mas também dotado de potencialidade genética que, em sintonia com o meio onde vive, poderá diferenciá-lo dos demais, formando uma unidade exclusiva. Daí que a ciência se inclina atualmente em desvendar os genes responsáveis por determinadas moléstias que angustiam a humanidade, com a intenção de alterar o código genético e buscar sua erradicação definitiva. O homem passa a ser o epicentro das atenções do próprio homem e não mais sua cobaia ou seu lobo. Não caminhará cegamente para transformar o corpo humano em linha de montagem e sim de buscar os mecanismos valiosos para lhe dar sustentação de saúde, bem-estar, equilíbrio e felicidade. Faz lembrar o inesquecível Pitigrilli, quando profetizava que tanto a medicina como o direito têm necessidade de montanhas de vítimas para progredir uns poucos metros3. O objetivo da pesquisa é conhecer os fatores genéticos do idoso brasileiro para compreender as doenças mais prevalentes e atuar preventivamente, formando uma verdadeira arquitetura do genoma pátrio onde serão encontrados indicadores clínicos que detectarão os prováveis grupos de risco e as recomendadas ações que devem ser tomadas para combatê-los. A leitura do DNA, desta forma, irá oferecer condições para garimpar informações importantes para que seja feito o reconhecimento do código genético da população idosa e, a partir desse marco,  fazer a prevenção contra as doenças com predisposição genética localizada. A ciência da Bioética recebe com os braços abertos tamanha iniciativa científica que irá trazer inúmeros dividendos de saúde para a população idosa, além de traduzir com ênfase a realização da dignidade da pessoa humana, apregoada constitucionalmente. Na ponderação da ciência da vida, fulcrada no princípio da beneficência, toda ação humana, invasiva ou não, e que tenha por objetivo elevar a potencialidade do bene facere, será considerada oportuna, necessária e conveniente, observando que o estudo proposto transcende e em muito as pesquisas tradicionais. É a era de se buscar nas células mais recônditas do ser humano a realidade e os segredos da vida. __________ 1 Cientistas da USP concluem maior análise de material genético de idosos da América Latina. 2 Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia. 3 Pitigrilli, O Homem que inventou o amor.
domingo, 4 de outubro de 2020

Especismo é crime

Muitos são os movimentos organizados por associações, instituições - a maioria delas de iniciativa particular - para influenciar a leitura e direcionar o olhar da opinião pública para a defesa dos animais, considerados seres indefesos e muitas vezes vítimas de violência por parte dos homens. Vários intentos foram alcançados. A começar pelo Plenário do Senado Federal que aprovou o PL 27/2018, visando criar o regime jurídico sui generis de sujeitos de direitos despersonalizados para os animais que, até então, pela legislação vigente nos crimes ambientais (lei 9.605/ 1998), recebiam a consideração civil de bens móveis e eram considerados coisas1. Doravante os animais serão alçados à categoria de seres sencientes, dotados de emoção e sentimento. Nem todos os animais, no entanto, foram abrangidos pela proposta protetiva. São excluídos os destinados à produção agropecuária, os utilizados nas pesquisas científicas e os que participam das manifestações culturais integrantes do patrimônio cultural brasileiro, como a vaquejada. Tramita pela Câmara de Constituição e Justiça do Senado Federal o PLS 542/18 que, valorizando o espaço afetivo entre animais de estimação e seus donos, pretende regular a guarda compartilhada entre o casal após a dissolução do casamento ou da união estável. Tal lacuna se faz necessária e deve ser preenchida porque os tribunais estão sendo instados a decidir a respeito dos conflitos entre as pessoas envolvidas no relacionamento e o animal de estimação. Especismo, termo de pouco uso, porém com um significado abrangente e atual, vem à tona com uma nova conquista legislativa e pode ser definido como uma modalidade de discriminação em que uma determinada espécie - no caso a humana - considera-se superior e se julga no direito de escravizar, maltratar e até matar animais, considerados inferiores e desprovidos de volição. D'Agostino, referindo-se aos animalistas, construiu interessante definição: "Os humanos em outras palavras, teriam indevidamente santificado a própria espécie, maximizando o valor daquilo que parece distingui-la dos demais animais ( o uso da razão) e minimizando, ao contrário, o "valor da vida" que é justamente comum a todas as formas viventes e impõe que os homens sejam submetidos a uma consideração que os avalie junto, e não acima, dos demais animais"2. A discriminação especista, pela sua rejeição natural em querer preservar o primado da espécie humana, provocou a aprovação pelo Senado Federal do PL 1095/2019, de autoria do deputado Federal Fred Costa (Patriotas/MG), que altera a Lei de Crimes Ambientais (lei 9.605/1998), sancionada agora pelo presidente da República. Consiste a proposta em acrescentar um dispositivo ao artigo 32 da lei ambiental referida para incriminar severamente a prática de abuso, maus-tratos, ferimentos ou mutilação a cães e gatos, com a aplicação da pena de reclusão de 2 a 5 anos, multa e proibição de guarda de animal. Isto porque, além de outros argumentos, aumentou e em muito o número de violência aos animais. Só no período pandêmico, compreendido entre os meses de janeiro a julho de 2020, a violência atingiu mais de 81,5% em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com os dados fornecidos pela Delegacia Eletrônica de Proteção Animal do Estado de São Paulo (Depa). Esta iniciativa legislativa não carrega somente uma visão conteudista de várias discussões travadas a respeito das novas configurações alcançadas pelos animais, mas vem arraigada também no âmbito de uma perspectiva jurídica que lhe confere inabalável consistência, que é a convivência harmônica em um relacionamento objetivo na cadeia da vida, regida pelo próprio código humano. Quando se fala em dignidade da pessoa humana, neste princípio está contido também o respeito aos animais. É interessante observar que a vontade da lei, fugindo do seu caráter isonômico, restringiu sua aplicação somente aos cães e gatos, justamente por serem os que permanecem mais tempo e mais próximos se encontram dos homens. Presume-se que há uma convivência já assentada, que sela o respeito e afasta qualquer discriminação, desaconselhando, desta forma, eventual ato de violência contra o animal de estimação. Diz-se de estimação porque integra o círculo de intimidade de convivência com o homem, numa autêntica demonstração de companheirismo e afeto. A lei anterior previa uma pena de 3 meses a um ano de detenção e a conduta era considerada de pequeno potencial ofensivo, tramitando pelo Juizado Especial Criminal, geralmente revertida em penas alternativas. Na novatio legis a pena prevista para a prática delituosa é de 2 a 5 anos de reclusão e multa. É igual à imposta pelo crime de realização de clonagem humana, previsto no artigo 26 da lei 11.105/2005, de gravidade inquestionável. __________ 1 Senado aprova projeto que cria natureza jurídica para os animais. Fonte: Agência Senado. 2 D'Agostino, Francesco. Bioética segundo o enfoque da filosofia do direito. Tradução de Luisa Raboline- Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2006, p. 246.
domingo, 27 de setembro de 2020

A pandemia e os transplantes

A lei 9.434, que regula a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante in vita e post mortem, foi editada em 1997 e, até o presente, com algumas alterações necessárias, vem cumprindo satisfatoriamente sua função preconizada pelo permissivo constitucional disposto no artigo 199 § 4º. A projeção levada a efeito na Carta Magna ganhou corpo e em pouco tempo o serviço de transplantação no Brasil foi atingindo índices cada vez mais auspiciosos, inserindo o país na lista dos que mais realizam transplantes no mundo. O corpo humano, um latifúndio de riqueza incontestável, pela legislação vigente, passou a ser considerado repositório de órgãos e a medicina, por sua vez, consegue realizar a substituição com considerável margem de sucesso, proporcionando ao homem, desta feita, o equacionamento de seu problema de saúde com a desejável qualidade de vida. A doação, em sua essência, pode-se dizer que é um ato que transcende a dignidade humana e, aliada à apurada tecnologia, possibilita a junção de aparelhos a órgãos e tecidos humanos, como, por exemplo, coração artificial, marcapasso, etc., atrelados ao corpo humano por circuitos eletrônicos. Ocorre que a decretação da pandemia pelo coronavírus - causadora de inúmeros percalços em praticamente todas as áreas de atuação do ser humano - afetou drasticamente os altos índices atingidos de transplantes, reduzindo-os a um patamar de muita preocupação. A título de exemplo, familiares consultados após a decretação da morte encefálica não demonstravam interesse na doação de órgãos do parente tendo em vista a recomendação do sepultamento com a necessária urgência, além da inevitável diminuição de leitos nos hospitais para acolher os transplantados. No dia 27 de setembro é comemorado o Dia Nacional de Doação de Órgãos e várias entidades e instituições ligadas ao tema mobilizam-se para retomar a campanha de conscientização da comunidade para aderir à mais solidária das ações humanas. Vejamos, então, algumas peculiaridades da doação. A regra é a proibição in vita da disposição do próprio corpo, conforme se deduz do caput do artigo 13 do Código Civil, nos casos em que provocar diminuição permanente da integridade física ou contrariar os bons costumes. O parágrafo único do referido artigo, no entanto, quebra tal norma quando se tratar de transplante realizado de acordo com a lei 9.434/1997. Diante de tal configuração qualquer pessoa capaz, em vida,  poderá consentir na doação, ou seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo) ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consanguíneos até o quarto grau, ou qualquer outra pessoa, mas dependendo nesse caso de autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. Sempre a título gratuito, em razão do disposto no artigo 199 § 4.º da Constituição Federal e do artigo 1º da lei especial de transplantes. A doação de órgãos post mortem, por seu turno, só poderá ser realizada com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo a lei que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central. Quando se tratar, no entanto, de relacionamento homossexual, o companheiro ou a companheira estará legitimado a autorizar a doação, observando as mesmas regras estabelecidas para companheiros heterossexuais1. Se, por um lado, há a abertura para favorecer a doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, transformando o doador em vida como agente definidor, há também limitações impostas a essa faculdade. Assim, se em vida a pessoa pretendeu firmar documentos público ou privado antecipando sua vontade em doar seus órgãos post mortem, nenhuma validade terá tal manifestação de vontade, pois a legitimidade para tanto se desloca para os parentes e cônjuge. Tal circunstância, por si só, demonstra severa limitação ao princípio da autonomia da vontade da pessoa. Frente a tal exigência, a campanha do Ministério da Saúde visa alcançar a comunicação, a conversa e o diálogo entre os familiares, fontes inequívocas e reveladoras da vontade de doar, facilitando a decisão por parte das pessoas legitimadas a autorizar a doação post mortem. __________ 1 Doação de órgãos por companheiro homossexual.