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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 9 de maio de 2021

Mãe universal

Apesar de estar contida em minúscula palavra, mas dotada de maiúscula força afetiva, mãe pode ser definida pela prosa, pelo verso, pela música. Não é buscar espaço para franquear os limites da fantasia, tão próspera nesse tema, nem mesmo fazer valer sedutores apelos e sim promover um mutirão interno de agradecimento e fazer ecoar a voz sensata, mesmo desprovida de arroubos retóricos. Stabat Mater Dolorosa (de pé, a mãe dolorosa), canção de langor, com uma tristeza profunda, executada por grandes compositores de diferentes épocas, encartada em uma espiritualidade contemplativa, medita sobre o sofrimento da mãe de Jesus, quando da crucificação do Filho. A Mãe Preta, retratada por Portinari, apresenta os traços raciais de uma brasilidade inegável com a configuração de uma miscigenação típica do país. A mãe, olhos salientes e cuidadosos, abraça o filho com a mão forte, no mais puro instinto protetivo. Zana, do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, pode ser considerada a mãe mais completa da literatura brasileira. Mãe de gêmeos, como uma figura superprotetora, criou, amou e estragou os filhos, que viveram um ódio familiar insuperável. O poema Ser Mãe, de Coelho Neto, parnasiano que circulou por vários gêneros literários, como em um passe de mágica, definiu em versos o elogio maior que se faz a uma mãe: "Ser mãe é andar chorando num sorriso/ ser mãe é ter um mundo e não ter nada/ Ser mãe é padecer num paraíso." A ciência, por sua vez, não poderia deixar de lançar seus tentáculos para oferecer uma nova dimensão à maternidade. O Direito trazia uma regra praticamente imbatível em relação à qual nenhuma dúvida pairava. Diziam os romanos que maternitas certa est. E realmente estavam cobertos pela sabedoria da época, pois a mãe era sempre aquela que dava à luz um filho enquanto que a paternidade, essa sim poderia ser contestada ou considerada incerta. A evolução na área da engenharia genética e reprodução assistida experimentou tamanha ascensão que derrubou por terra convicções enraizadas por séculos. Hoje, pode se afirmar com segurança, que nem sempre a mulher que carrega o embrião em seu útero será considerada mãe quando do nascimento.  O Admirável Mundo Novo, publicado por Aldous Huxley em 1932, considerado como uma fábula futurística, foi mais além.  Eliminou a figura do pai e da mãe e introduziu a criação de bebês manipulados em laboratório, nascidos de proveta, com comportamentos preestabelecidos para ocuparem determinada casta. Tamanha foi sua ousadia que motivou cientistas a criarem e projetarem um útero artificial que vem evoluindo nos estudos mais recentes. Hoje, no entanto, sem o exagero apregoado pelo escritor inglês, tal conceito, em razão dos avanços da ciência de reprodução e da própria alteração do Código Civil, que introduziu a inseminação artificial heteróloga, derruba a premissa fincada na lei natural. A lei Civil abriu as comportas para a inseminação artificial heteróloga, que compreende a utilização de sêmen ou óvulos doados por terceiros para solucionar o problema de esterilidade do casal.  A experiência que parecia ficção, em um passe de mágica, já se faz presente nas clínicas de reprodução humana. A engenharia genética desbasta um novo caminho para solucionar satisfatoriamente o problema da infertilidade.  A nova área da procriação assistida vem se desenvolvendo a passos longos, produzindo técnicas cada vez mais aperfeiçoadas com a manipulação dos componentes genéticos dos dois sexos para se atingir o projeto parental. Assim, uma das possibilidades que se apresenta ao casal que pretende filhos e não atinge seus objetivos pela via natural, por um problema médico que impeça a gestação na doadora genética por exemplo, é a de realizar o procedimento da fertilização in vitro, com a manipulação dos materiais procriativos e a consequente transferência intrauterina dos embriões para uma cedente temporária de útero visando à gestação por substituição, vulgarmente conhecida como "barriga de aluguel". A doadora temporária de útero, assim como o doador de órgãos, assume uma dimensão transcendente da sua própria natureza, pode-se dizer que realiza uma das mais nobres ações humanitárias. A resolução 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, por sua vez, ampliou o parentesco da doadora temporária atingindo familiares de um dos parceiros em um parentesco consanguíneo até o quarto grau (mãe, irmã, tia e prima), respeitando sempre o limite de idade de 50 anos. Assim a palavra mãe, seja proferida pelos literatos, pela ciência ou por qualquer pessoa, rompe diques liberando a mais pura e sensata gratidão.
domingo, 2 de maio de 2021

O homem que vendeu a pele

O título acima (The man who sold his skin) é de uma película tunisiana indicada na categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar 2021. Relata a história de um jovem que, em razão da guerra em seu país, pretende ir para a Europa em busca de sua noiva que teve um casamento arranjado com um homem rico e com ele vive em Bruxelas. Com sérias dificuldades para financiar sua proposta, aceita ter suas costas tatuadas por um artista de referência na arte do corpo, recebendo uma recompensa em dinheiro. Foi quando percebeu que seu corpo se transformou em uma obra de arte itinerante e cobiçada, sendo exibido em muitos países. Concluiu que sua situação de refugiado, em razão da vulnerabilidade social, pesou muito na sua tomada de decisão e percebeu que não vendeu somente suas costas e sim todo seu corpo e liberdade. Passou a ser uma mercadoria, como dizia seu tatuador, com acesso mais fácil a vários países, mas com desprezo total à sua dignidade. É interessante observar que a evolução do comportamento humano faz várias imagens saltarem à frente do pensamento e, num repente, transformam uma situação imaginária em uma realidade de difícil aceitação. No limiar entre a realidade e ficção às vezes é melhor responsabilizar a mente, que começa a fabricar quimeras, do que aceitar o fato como uma situação mal concebida e concretizada. Ou ainda, fazer um download dos pensamentos que nela habitam e permitir o acesso somente daquelas situações rotineiras e compatíveis com o cotidiano. A inspiração do filme, no entanto, teve como pano de fundo o caso real de Tim Steiner, que cedeu suas costas para ser tatuada por um conceituado mestre que as transformou em verdadeira obra de arte. Um colecionador interessou-se pelo trabalho e propôs a compra do corpo. Em razão da proibição legal, ficou convencionado que Steiner passaria seis dias por ano na casa do comprador, o qual receberia a pele tatuada após sua morte para emoldurá-la e exibi-la no mercado de arte, auferindo consideráveis dividendos financeiros. Atualmente, a tatuagem rompeu as barreiras da rejeição e ocupa uma posição de destaque artístico e estético em que são projetados pequenos desenhos, escritos e até mesmo a tomada de quase todo corpo pelos mais ousados, como é o caso relatado. Não se pode negar que a juventude é a que mais procura pela técnica, mas os mais maduros também dela são apreciadores. Assim como a grafitagem é uma técnica de realizar uma intervenção urbana visando expor a arte de rua (street art), a tatuagem toma o corpo como uma expressão de arte (body art). Com relação à alteração estética realizada no corpo humano, como a que sucede com a tatuagem, o Estado não pode exercer um policiamento intensivo e nem se arvorar em coproprietário e estabelecer restrições às pessoas que, como opção, assim procederam. Biologicamente o corpo já é uma obra de arte intrincada, perfeita e ainda praticamente indecifrável, apesar do hercúleo esforço da ciência. Transformá-lo em uma obra de arte, com valor financeiro estipulado pelas mais sofisticadas galerias de artes, é retirar do homem o seu mais expressivo valor, que é a liberdade. Dá até a impressão que diante de uma ideia enviesada da natureza humana, a pessoa vai se miniaturizando para dar passagem ao inexorável. Na legislação brasileira a vida, pelo regramento constitucional, é um bem indisponível e o corpo humano é protegido pelas leis, tanto na sua garantia corporal, como psíquica. Basta ver os inúmeros dispositivos protetivos existentes a respeito. Não se cogita, desta forma, qualquer negociação pois é considerado bem extra commercium. A regra mandamental é a proibição in vita da disposição do próprio corpo. Coloca-se um fim a qualquer questionamento a respeito da propriedade absoluta do corpo, a não ser que seja em decorrência de exigência médica que, também, deverá ser previamente delineada pelo próprio Estado. Se, de um lado, há a tutela legal individualizada ao cidadão, de outro, há restrições impostas em razão dos objetivos morais e éticos decorrentes da legislação. A questão colocada em discussão exige uma séria ponderação a respeito dos limites éticos da arte realizada no corpo humano. Não se pode deixar de se encantar diante das belas figuras e imagens traçadas na pele humana e imprimir a elas um valor artístico a superar o próprio homem. E situação mais gravosa ainda é, após sua morte, retirar a pele para emoldurá-la visando à preservação da obra e sua inclusão nas futuras negociações. Na realidade a intenção é, sem parâmetros e sem escrúpulos, perpetuar a obra e não o humano que a sustentou durante a vida. A beleza de uma tela convencional, elaborada pelo processo incrível da imaginação humana, exposta em ambiente propício, deve sim ser admirada e comemorada e até mesmo conter seu valor de mercado, sem, no entanto, permitir qualquer equiparação com a tatuagem, por mais perfeita que seja a obra. Longe também de configurar a doação post mortem regulada pela lei brasileira 9.434/97, que é permitida com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo a lei que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central. Desta forma, se a pessoa, em vida deixou registrado documento no sentido de que pretende doar seus órgãos post mortem, é possível uma revisão da decisão por parte dos familiares, anulando-a por completo. Isto demonstra que a autonomia da vontade da pessoa sofre severa limitação em se colocar como eventual doador. Desta forma, pelo menos para o momento atual, é juridicamente impossível realizar a doação de tecido humano post mortem para a exploração artística no Brasil.
domingo, 25 de abril de 2021

Vacinados e não vacinados

Até há pouco tempo o desenvolvimento tecnológico produzia não só mudanças de hábitos e costumes em decorrência das novas formas de lidar com os afazeres profissionais, domésticos e do cotidiano das pessoas, como também, pelas características de agilidade e comodidade, provocava uma rápida e necessária adaptação ao novo modelo implantado. O resultado, quase sempre, era de aprovação na expectativa de aguardar a cada ano as mudanças que seriam introduzidas com novas tecnologias. Exemplo clássico é o aparelho celular que definitivamente se incorporou à comunidade mundial, sem qualquer chance de retrocesso. O aparelho faz parte da vida, acólito inseparável, um longa manus indispensável. Processo inverso ocorreu com a decretação do estado pandêmico. A humanidade, ainda atônita, viu-se obrigada a acatar as regras sanitárias protetivas impostas, dentre elas desde o mais enclausurado lockdown até a simples conduta do distanciamento social, da higienização das mãos e da utilização da máscara, tudo visando proteger a saúde individual e coletiva. Apesar das medidas apontadas - nem sempre praticadas de acordo com o rigoroso protocolo - o país já registrou mais de 4.000 mortes em um único dia. A esperança maior, em clima de total insegurança, repousa na vacina que se apresenta como o caminho mais seguro para atingir a imunização que vem sendo realizada, mesmo com acentuado atraso e com doses limitadas. Mesmo assim, paulatinamente, vai crescendo a cifra dos brasileiros, principalmente os de grupos de comorbidade e os mais idosos, na contagem dos imunizados. Tamanho é o interesse dos vacinados que acessam o aplicativo Conecte-SUS para obter o comprovante de vacinação contra a Covid-19, com o código de barra devidamente validado pelo governo Federal, e passam a usá-lo como se fosse um documento imprescindível. Talvez com a aquisição de novas vacinas importadas ou outras aqui mesmo produzidas, em curto prazo poderá ser contabilizado um número expressivo de pessoas vacinadas com as doses completas. Serão excluídos, no entanto, aqueles que por opção ou convicção não se habilitaram a receber a inoculação. A título de argumentação, seria interessante observar que o país encontra hoje sérias restrições com relação à vacinação, apesar de apresentar um ambicioso Plano Nacional de Imunização (PNI), criado em 1973, que tem como objetivos o controle e a erradicação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis, visando proporcionar melhor qualidade de vida às pessoas, com o fornecimento de cerca de 20 vacinas para todas as faixas etárias, disponíveis gratuitamente nas Unidades Básicas de Saúde. Geralmente produzem reações leves, de pouca duração e sem efeitos colaterais. Na última década, porém, vem-se notando um recrudescimento de epidemias que se encontravam controladas ao longo do tempo, em razão de não se atingir a média satisfatória de imunização, principalmente das crianças, com notável redução dos índices de cobertura, como é o caso, por exemplo, do sarampo. A pergunta que vem à tona é se o cidadão, na fruição da sua autonomia da vontade, poderá se recusar à imunização e, em assim agindo, terá restrições em sua vida comunitária? Nos Estados Unidos - até mesmo em razão da celeridade vacinal - o problema já alcançou acentuado grau de discussão porque os empresários e as lideranças de vários setores produtivos pretendem criar o documento "passaportes de vacina", como um dos caminhos para a recuperação da economia. Consiste tal documento em transformar a carteira de papel de vacinação em um sistema digital de fácil manejo para que o cidadão possa exibi-lo e ter o acesso franqueado aos locais de frequência pública. Seria, na verdade, a criação de duas castas de cidadania: uma a dos vacinados, com as regalias e os benefícios decorrentes da imunização, e a outra dos não vacinados, que seriam impedidos de frequentar os mesmos locais. Percebe-se, nitidamente, conforme determinam o artigo 227 da Constituição Federal e a norma disposta no artigo 14 da lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), no âmbito do poder familiar, que há a obrigatoriedade da vacinação de crianças e adolescentes, nos casos apontados pelas autoridades sanitárias, mas não alcança os adultos.   Cogita-se até mesmo de se inserir na legislação uma norma de apresentação obrigatória da carteira de imunização como pré-requisito para a matrícula escolar. Mas tal exigência não resiste ao crivo da constitucionalidade. A criança não pode ser prejudicada por não ter acesso à escola pela negligência dos pais. Seria duplamente penalizada. Quando se determina a obrigatoriedade vacinal compreende-se a limitação ao direito individual da autonomia da pessoa e há necessidade da existência de uma lei que represente os anseios de uma sociedade democrática e pluralística no sentido de restringir um direito individual em favor da proteção sanitária do direito à saúde de toda comunidade, inclusive daquele que se recusa à imunização. O tema é incandescente e certamente irá proporcionar calorosos debates.
domingo, 18 de abril de 2021

O embrião e os alimentos gravídicos

O Direito, em razão da premente necessidade social, deixou de ser um instrumento de articulação teórica relacionado com a busca de uma sustentação legal para amparar determinada pretensão e saiu a campo como um agente desbravador e inovador, com capacidade suficiente de gerenciar situações até mesmo inusitadas e que exigem uma pronta definição. Para atingir suas metas e franquear o acesso aos seus diversos eixos de um lado conta com a própria dinamização da sociedade que vai adquirindo e assimilando novas posturas e, de outro, com a colaboração indispensável da ciência, principalmente aquela relacionada com pesquisas e técnicas aprovadas como apropriadas para os seres humanos. Com tal roupagem o Direito desbrava novos campos e incorpora muitas conquistas aparentemente inatingíveis e que gravitam em torno do homem, tais como as questões relacionadas com a criança, o adolescente, o idoso, a pessoa com deficiência e muitas outras. Um tema que frequentemente suscita interesse é aquele voltado para o embrião e, especificamente, o direito a ele conferido de pleitear o já reconhecido direito aos alimentos gravídicos. No Brasil ainda tramita desde 2007 o Estatuto do Nascituro, que certamente provocará intensos debates envolvendo desde a concepção, do início da vida humana, dos direitos reprodutivos da mulher, como também as variações a respeito do procedimento da reprodução humana. Nossa legislação, sem o auxílio da engenharia genética, possibilitava o ajuizamento da ação de alimentos somente com o nascimento com vida. O avanço na área da reprodução humana, regulamentada hoje pela resolução 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, foi tão acentuado que, num repente, a fecundação intraútero, que até então era o critério norteador do início da spes vitae, desloca-se para a manipulação humana extracorpórea com a consequente formação de embriões. Assim credenciado, o embrião fecundado intraútero, em razão de sua vulnerabilidade, conta com a tutela protetiva do princípio da dignidade da pessoa humana, dogma constitucional inafastável e irretocável que, pela melhor hermenêutica, encarta a mais lata interpretação possível, embora não seja ele ainda considerado como pessoa humana. Mas, o Código Civil, em seu artigo 2º, é taxativo em afirmar: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Tanto é que o legislador pátrio, visando cobrir a lacuna legislativa, elaborou a lei 11.804/2008 com o propósito de atingir a concessão de alimentos devidos ao nascituro. A esse respeito até o Estatuto da Criança e do Adolescente, na sua linha de tutela específica, acrescenta ainda o direito de proteção à vida e à saúde, proporcionando um nascimento sadio e harmonioso à criança e em condições dignas de existência. A lei que trata dos alimentos gravídicos confere o direito à mulher gestante, não casada e que também não viva em união estável, de receber alimentos, desde a concepção até o parto. Para tanto, deverá ingressar com o pedido judicial em desfavor do futuro pai. O juiz decidirá, no âmbito de uma cognição sumária, com base nos indícios de paternidade, a obrigação alimentar do pretenso pai, que poderá contestar, mas em restrito núcleo cognitivo também. Os alimentos fixados permanecerão até o nascimento com vida, quando serão convertidos em pensão alimentícia e, a partir deste marco, poderão ser revistos por uma das partes. Apesar de a lei referir-se a alimentos gravídicos, o termo mais adequado com a realidade legislativa seria "alimentos ao nascituro", que compreendem as despesas relacionadas com a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames, internações, parto e medicamentos indispensáveis, além de outras que o juiz considerar pertinentes. Apesar de ser a gestante a legitimada para invocar a tutela jurisdicional, a proteção jurídica é voltada para o embrião, que além de carregar a linha genética da família, compreendendo as características físicas e eventuais doenças, representa uma nova individualidade, com identidade sui generis norteada pela capacidade jurídica do nascituro.
A Polícia Civil do Rio de Janeiro realiza uma ampla investigação para encontrar a causa da morte do menino Henry Borel Medeiros, com quatro anos de idade, ocorrida no dia 8 de março, no interior do apartamento em que vivia com a mãe e o padrasto. Segundo a apuração preliminar o garoto passou o dia com o pai, que o entregou à mãe no início da noite. Durante a madrugada a mãe ouviu um barulho e foi até o quarto do filho, quando o encontrou caído no chão, gélido, sem qualquer reação. Imediatamente foi encaminhado ao hospital, submetido à manobra de reanimação, mas não respondeu. O laudo do Instituto Médico Legal realizado logo após aponta múltiplas lesões, com hemorragia interna e laceração hepática provocadas por uma ação contundente, circunstâncias que determinaram a apuração mais detalhada dos fatos. Ainda no curso da investigação policial foram decretadas, temporariamente pelo prazo de 30 dias, as prisões da mãe e do padrasto. Isto porque, segundo a motivação que determinou a medida coercitiva, o casal portava-se de forma inconveniente para o bom andamento da instrução criminal, além de ameaçar e combinar versões com as testemunhas e, principalmente, a conclusão pericial no sentido de que o padrasto agrediu anteriormente a criança produzindo nela as lesões descritas no exame de corpo de delito, com pleno conhecimento da mãe. A população brasileira permanece estarrecida com a notícia divulgada e ansiosamente aguarda o desenrolar das investigações para que seja esclarecida a morte da criança, principalmente diante das condições relatadas pelo laudo pericial. A Polícia instaurou a persecução policial de forma cautelosa e criteriosa, ouvindo inicialmente todas as pessoas ligadas direta ou indiretamente à criança, com a preocupação de aplicar os mais recentes métodos de inteligência policial aliados à tecnologia altamente especializada da polícia científica. Já foi o tempo em que a perícia em local do crime, ao avistar mancha que seria proveniente de sangue humano, deitava sobre ela água oxigenada. Se borbulhasse, era sangue, provavelmente. Segundo o dicionário Houaiss, o termo perícia tem sua origem no latim (peritia), podendo ser entendido como o "conhecimento adquirido pelo uso, pela experiência"1. É interessante observar a origem etimológica do termo perícia. Periculum em latim significa experiente, pessoa com muita habilidade e destreza, que passou por riscos e perigos. Daí que forma também a palavra pirata, que é justamente aquela pessoa que passou pelos perigos de todos os mares e conseguiu atravessá-los com segurança, demonstrando, de forma inequívoca, seu conhecimento e experiência da natureza e da vida. Assim, enquanto a investigação policial tramita pela senda ditada pelo artigo 6º do estatuto processual penal na busca de provas orais, também se desdobra em busca da realização de provas técnicas, chamadas periciais que, no dizer de França, "têm por finalidade o esclarecimento de um fato de interesse da Justiça. Ou como um ato pelo qual a autoridade procura conhecer, por meios técnicos e científicos, a existência ou não de certos acontecimentos capazes de interferir na decisão de uma questão judiciária ligada à vida ou saúde do homem ou que com ele tenha relação".2 O trabalho pericial, com esse novo enfoque, assume vital importância nos crimes de difícil elucidação, aqueles em que a investigação policial, por si só, não consegue atingir seu propósito. Por isso que, ocorrendo um crime dessa natureza, o primeiro a ter acesso ao local e às circunstâncias que o envolveram, é o perito. Mas nem sempre é possível, o que exige um hercúleo esforço para recuperar o local original. Seu trabalho é silencioso, imparcial, isento, espancando qualquer conclusão precipitada e intuitiva. Afinal, a prova não tem como finalidade comprometer alguém, pois dependendo de seu resultado, o próprio suspeito é beneficiado. Juntando-se a todas as provas consideradas pertinentes, os laudos periciais formam um conjunto de convicção mais apropriado e viável para o deslinde do fato perquirido. São os olhos ocultos, ausentes do local do crime, que a tudo veem; são os ouvidos que captam as vozes dos vestígios, que revelam a verdade velada. É afundar num trabalho altamente científico para encontrar a caixa preta onde estão armazenadas todas as informações necessárias para a leitura correta dos fatos. __________ 1 Houaiss, Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2.011, p. 2188. 2 França, Genival Veloso. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A, 2001, p. 10.
domingo, 4 de abril de 2021

Recado de Páscoa

O momento pandêmico que paira sobre a humanidade, com incidência maior no Brasil, em razão do cada vez mais crescente número de pessoas mortas em decorrência da Covid-19 - uma verdadeira catástrofe humanitária - proporciona insatisfação e insegurança para todos. O homem deixou sua lagoa paradisíaca para enfrentar a aridez angustiante de um deserto, pois teve seus planos e projetos truncados por um obstáculo ainda intransponível. Tanto é que o vírus conta com a contribuição e combinação de várias outras doenças e comorbidades para a sua disseminação, provocadas pelas vulnerabilidades existentes no país. Além do que, apesar de todos os esforços da comunidade científica e da aplicação das medidas sanitárias protetivas, o vírus vem se desenvolvendo e produzindo sequenciais variantes. Muitas indagações cabem neste buraco negro impenetrável e a única esperança que move a humanidade é a vacina, ainda escassa. Neste contexto da tragédia humana, o Ever Given, mega porta-contêineres, retrato pujante da mais apurada tecnologia, ficou encalhado no Canal de Suez. Bloqueou, em consequência, a passagem de centenas de navios que usavam a importante rota comercial. Várias tentativas de resgate utilizando técnicas aprimoradas foram infrutíferas. Ocorre que o sol e a lua se alinharam e produziram uma esplendorosa lua cheia, como há muito tempo não se via. A lua, além de refletir seus raios sobre o mar irredutível, proporcionou a maré mais cheia e ambicionada dos últimos tempos, que foi suficiente para fazer flutuar o navio de 220 mil toneladas. Quando tudo caminhava para um triste final com prováveis consequências de desabastecimento mundial, a própria natureza, a mando divino, encontrou a solução mais simples e conveniente para a humanidade. Que a Páscoa, nos moldes da liturgia cristã, no seu exato sentido de renascimento, possa inundar a humanidade com suas bênçãos, indicar e abrir os caminhos mais salutares e remover todos os obstáculos para que cada pessoa possa sentir e ver o mundo pelos olhos do coração. Et resurrexit.
Uma paciente procura por médico em plantão hospitalar e solicita a ele a prescrição dos medicamentos cloroquina e azitromicina, demonstrando total desinteresse em fazer o teste da Covid-19, assim como do exame eletrocardiograma solicitado pelo profissional da saúde, mas ponderou que assinaria o termo de consentimento caso seu pleito fosse atendido. Ainda durante o atendimento o médico convocou cinco outros colegas e ponderou à paciente que não se sentia confortável em prescrever os medicamentos, tanto em razão da ausência da comprovação científica da eficácia dos fármacos como também pela falta dos sintomas da doença e eventual uso poderia acarretar efeitos colaterais com sérios danos à saúde. A paciente, não conformada, ameaçou registrar boletim de ocorrência a respeito da negativa, assim como de ingressar com ação contra o médico, além de expressar em sua página no Facebook seu inconformismo com a recusa apresentada. Na realidade foi o médico que invocou a tutela jurisdicional por dano moral e logrou êxito. A autonomia da vontade do paciente, vista sob o relacionamento linear com o médico, constitui hoje a pedra angular do Código de Ética Médica, como previsto na resolução 2217/2018. Tanto é que é vedado ao médico "deixar de obter o consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte", conforme dispõe o artigo 22 do referido Código Deontológico. Mas para que o paciente ou seu representante legal possa dar o consentimento, faz-se necessário que as informações e esclarecimentos sejam passados de forma clara e precisa no linguajar do leigo e não do profissional, para que não paire qualquer dúvida a respeito da proposta do procedimento, sem olvidar ainda que o paciente é detentor do direito de fazer as perguntas que julgar convenientes. De forma bem didática, Dantas e Coltri explicam: "Por adequação entende-se a prestação das informações sobre o quadro do paciente, quais são as opções de procedimento, quais as consequências de cada um dos procedimentos, possíveis benefícios dos procedimentos e, principalmente, quais os riscos envolvidos em cada um dos procedimentos. Ainda o paciente deve ser informado sobre as consequências e os riscos inerentes a não adoção de procedimentos".1 Tal constatação faz ver que o Código acatou o pensamento mundial que rege a matéria e estabeleceu um verdadeiro e ativo canal de comunicação entre o médico e o paciente. A indagação reiterada constantemente procura saber até onde alcança a autonomia da vontade do paciente. É notório que o médico seja dotado de conhecimento especializado sobre determinada área e sua palavra é de vital importância para o enfrentamento da moléstia apresentada. Pode, às vezes, no entanto, não coincidir com a opinião do paciente, que opta por um determinado procedimento, em razão da liberalidade existente no "Pacient Self-Determination Act" (PSDA). Vale a pena observar que a capacidade de consentir estabelecida no Direito Civil pátrio teve origem no Direito Médico. Miranda, com sua perspicácia doutrinária insuperável, faz ver: "A noção advém do Direito Médico de diferentes países para marcar a linha de limite entre as intervenções médicas praticadas em vista de um ato de autodeterminação do paciente e aquelas praticadas com a assistência ou mediante representação do legalmente responsável pelo paciente. Seu objeto específico é o processo de tomada de decisões sobre os cuidados para com a saúde, globalmente considerados, abrangendo, portanto, não apenas os casos de autorização para participar de pesquisas na área da saúde, mas quaisquer atos de lícita disposição do próprio corpo".2 O Conselho Federal de Medicina, que por sua vez procura integrar seus conhecimentos científicos e tecnológicos a serviço do paciente, não recomendou taxativamente o uso dos medicamentos solicitados pela paciente, mas deixou a critério do médico a indicação, desde que seja tomada em decisão compartilhada com o paciente. Trata-se de um ato em que o médico divide a responsabilidade com o paciente e ambos assumem a mesma empreitada na ars curandi. O médico pode sim prescrevê-los, porém deve informar ao paciente que o medicamento não goza de eficácia científica comprovada e também a respeito dos efeitos colaterais eventuais, que podem trazer malefícios. Tudo materializado no termo de consentimento informado, peça indispensável para retratar uma decisão conjugada. A Associação Médica Brasileira (AMB), por sua vez, em recentíssimo documento editado pelo Comitê Extraordinário de Monitoramento Covid-19, em seu item 7, visando orientar os pacientes a respeito de condutas médicas, proclamou: "Reafirmamos que, infelizmente, medicações como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da COVID-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida".3 A autonomia da vontade do paciente não pode, portanto, ultrapassar as barreiras éticas e morais do profissional da saúde. Tal hipótese afigura-se como uma causa de limitação da autonomia da vontade do médico quando o interesse do paciente, mesmo que legítimo, não pode obrigar o profissional da saúde. Trata-se até mesmo de uma justificativa de objeção de consciência. O médico pode se recusar a cumprir determinado preceito legal alegando um imperativo proibitivo de sua consciência, contrariando, desta forma, a volição do paciente. O próprio Código de Ética Médica, no Capítulo que trata dos Direitos dos Médicos, em seu item IX, assim se expressa: "Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência". __________ 1 Dantas, Eduardo; Coltri, Marcos Vinicius Coltri. Comentários ao Código de ética Médica: Resolução CFM nº1931/2009. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2010, p.106. 2 Miranda, Pontes. Tratado de Direito Privado. Introdução: pessoas físicas e jurídicas, atualizado por Judith Martins-Costa... [et al.] Editora Revista dos Tribunais, 2012 (coleção tratado de direito privado: parte geral; 1) p.251.  3 Circular 02/21 da Associação Médica Brasileira.
domingo, 21 de março de 2021

O fura-fila da vacina

O Senado Federal aprovou projeto de lei de autoria do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN) que, dentre outras medidas, prevê a punição de um a três anos de detenção para quem não obedecer à fila de prioridade estabelecida pelo poder público para receber a vacina contra a Covid-19. É interessante e didático para qualquer cidadão observar o nascedouro de uma lei. Os romanos já diziam que a lei surge de um fato que aflora de forma espontânea no seio da sociedade e é submetido informalmente ao crivo de aceitabilidade ou não do grupo. Daí o brocardo: Ubi societas, ibi jus. A partir do nascimento de uma sociedade a função social do Direito deve se fazer presente com seu instrumento de trabalho, que é a lei. Os padrões morais que vigem em determinado agrupamento humano determinam o índice de aprovação ou reprovação de uma conduta. Assim a lei será construída tanto para recomendar aquilo que reverte em benefícios da sociedade, como para rejeitar a conduta que merece censura por ter infringido o padrão normal. Em ambas as hipóteses ela será detentora do caráter cogente. Basta recordar a trajetória e a aceitação popular da lei antifumo, de obediência inquestionável. O texto do projeto de lei assim está redigido: "Infringir, de qualquer modo, a ordem de prioridade da vacinação estabelecida pelo poder público, durante situação de emergência em saúde pública de importância nacional, a fim de antecipar sua vacinação ou a de outrem". Também prevê o aumento da pena de um terço até a metade se o agente, conhecedor que era da irregularidade, for a autoridade ou funcionário público que contribuiu com a conduta criminosa de outra pessoa. Percebe-se claramente que o clamor popular bradou em alta voz a sua repulsa pela conduta daqueles que quebraram a regra preferencial de imunização estabelecida pelo governo, exigindo, em contrapartida, a edição de um tipo penal próprio e específico para restabelecer a ordem. A lei 13.979/2020, apesar de ser excepcional e temporária, vez que sua vigência está delimitada ao tempo de decretação de situação de emergência, estabeleceu medidas coercitivas para proteção da coletividade, as quais poderão ser adotadas para o enfrentamento de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia decretada pelo coronavírus. O Ministério da Saúde, por sua vez, elaborou o Plano de Operacionalização da Vacina Contra a Covid-19, nos moldes do bem sucedido Programa Nacional de Imunização (PNI), levando-se em consideração a preferência inicial pela garantia do funcionamento dos serviços e a saúde dos mais idosos e grupos de risco. Muitos casos foram denunciados a respeito de pessoas que, sem qualquer motivo justificado, desrespeitaram a ordem de chamada e receberam a vacina antecipadamente. Houve a deslavada prática tanto pelo próprio agente, como também pela sua participação em antecipar a vacinação de outrem. Trata-se, sem dúvida, da quebra do princípio da igualdade previamente estabelecido em que o indivíduo, movido por egoísmo primitivo, distorceu a seu favor a ordem proclamada. Lloyd foi incisivo em afirmar com relação ao princípio da igualdade: "O que esse princípio formal realmente significa é que os iguais serão tratados como iguais, pelo que, quem for classificado como pertencente à mesma categoria, para um determinado fim, será tratado de modo idêntico".1 Consequentemente, quem não pertencer ao mesmo grupo, será considerado pessoa estranha, invasora. Se vingar a proposta legislativa, a conduta que era considerada reprovada moralmente ganha contorno de crime. E aqui cabe uma explicação: aqueles que praticaram a conduta no passado não poderão ser punidos em razão do princípio da anterioridade da lei penal, que se aplica aos fatos somente após sua vigência. Por outro lado - e tal possibilidade foi aventada muitas vezes - se a conduta de antecipar a vacinação for praticada por agente público possibilita, em tese, concluir pela prática de ato definido na Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92), com visível afronta aos princípios da moralidade e impessoalidade. É certo que referida lei exige muita cautela na investigação da vontade do agente para aferir a conduta dolosa. É necessário, portanto, que se faça uma pesquisa apropriada para encontrar pelo menos má-fé ou qualquer outro comportamento revelador de conduta incompatível e desonesta. Chega-se à inevitável conclusão de que a lei se faz necessária. É o único instrumento disponível para a concretização das metas programadas pelo Estado para que o cidadão possa realizar sua proposta de vida em harmonia com o grupo social. __________ 1 Lloyd, Dennis. A ideia de lei. Tradução Álvaro Cabral - São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 142.
domingo, 14 de março de 2021

De quem é o leito de UTI?

Após um ano da decretação da pandemia, quando a previsão era de arrefecimento da propagação do vírus - de acordo com a projeção da comunidade científica -, qual não foi a surpresa geral em constatar que o Brasil, assim como outros países, encontra-se sob a vigência de decretos de lockdowns contínuos. O coronavírus foi incorporando variadas cepas, infectando um número maior de pessoas e provocando expressivos óbitos. Já não há mais predileção para as pessoas integrantes do chamado grupo de risco, como inicialmente proclamado pela Organização Mundial da Saúde. Agora, diante da indesejável mutação do vírus, todos são iguais. Os hospitais públicos e privados colapsados. Os leitos de UTIs destinados aos pacientes em situação grave, todos tomados. Os caminhões frigoríficos e contêineres voltaram a se posicionar diante das redes hospitalares para receber os cadáveres. Verdadeira sensação de impotência dos profissionais de saúde e frustação da comunidade. Nesse clima, um hospital de referência no Rio Grande do Sul criou uma comissão multidisciplinar para decidir, dentre os pacientes que aguardam vagas nas unidades de terapia intensiva, quais serão escolhidos para a intubação com os equipamentos necessários, já escassos em razão da superlotação. Tal providência foi adotada para que a decisão não recaia sobre os ombros de um médico apenas e sim da comissão que decidirá também a respeito da retirada da intubação.1 E a pergunta que se faz é: a quem pertence o leito de UTI? Não se pode de forma alguma lançar mão de uma decisão salomônica e selecionar um paciente sem antes estabelecer critérios técnicos, levando-se em consideração o princípio da igualdade. Principalmente neste momento, quando o coronavírus derrubou as diferenças sociais, econômicas e das faixas etárias estabelecidas entre os concorrentes ao leito. Quer dizer, a vulnerabilidade se espraiou de tal forma que o mais novo concorre em igualdade de condições com o mais idoso, assim como o mais rico com o pobre. Um critério norteador seria a adoção do princípio da diferença, formulado por John Rawls, professor de filosofia política da Universidade de Harvard. Por ser uma comissão multidisciplinar a escolher o paciente, o critério não ficará adstrito à área da saúde somente. Além do que se deve levar em consideração que a decisão necessita ser imediata em razão da exiguidade do tempo para as providências médicas. O filósofo propõe, diante do dilema ético, que a escolha seja realizada de acordo com um julgamento hipotético da sociedade, buscando uma igualdade niveladora para encontrar uma solução equânime. Ora, pessoas iguais devem receber benefícios iguais, sem qualquer distinção ou favorecimento.  Assim, como uma medida justa dentre os iguais, o que atender mais de perto o critério da continuidade da vida. Na realidade, vai ser apontado o desigual entre os iguais, na medida em que se busca encontrar um paciente que tenha condições de suportar o tratamento mais adequado e, principalmente, com a maior chance de sucesso. É de se observar, pela regra sugerida e que pode guiar melhor a escolha, que os pacientes que aguardam vaga na UTI encontram-se pareados por um igualitarismo cego e o critério diferenciador entre eles deve ser o resultado encontrado nas observações feitas pela comissão multidisciplinar, que tomará conhecimento da comorbidade e vulnerabilidade de cada um e decidirá por aquele que realmente necessita de cuidados mais intensivos, com maior chance de recuperação. Mas pode ocorrer a quebra desta paridade entre os pacientes quando o representante legal de um deles acionar o órgão jurisdicional pleiteando uma tutela provisória de emergência em caráter antecipatório para que seja feita sua transferência  para o leito pretendido. Se a justiça acatar o pleito e deferir a tutela, o paciente, que juntamente com vários outros aguardava sua vez para ser promovido à UTI, com toda certeza estará sendo beneficiado em detrimento dos demais concorrentes. A decisão judicial, embora construída com base em suporte probatório robusto, esbarra na angustiante realidade hospitalar e, prevalecendo, estará promovendo o privilégio a uma pessoa, em detrimento das demais portadoras de idêntico grau de risco. O direito à saúde é igualitário para a formação do bem-estar social e cabe ao Estado, de forma obrigatória na sua função de provedor, aparelhar as condições materiais para que o paciente possa receber o atendimento a que faz jus. Se um deles, na mesma relação linear de igualdade, se antecipa e consegue sua pretensão em avançar para o leito de UTI, fica evidenciado o individualismo, em razão da própria omissão estatal. __________ 1 Hospital de referência no RS cria grupo para decidir quem usará ventilador.
domingo, 7 de março de 2021

A vulnerabilidade na pandemia

A palavra vulnerável foi paulatinamente introduzida na legislação brasileira em razão de sua ampla conceituação e abrangente configuração, alcançando cada vez mais espaços nas relações humanas. Pode-se atribuir tal conquista ao princípio da dignidade da pessoa, erigido como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito na Constituição Federal. Habermas já enfatizava que a "Constituição põe em vigor precisamente os direitos que os cidadãos precisam admitir mutuamente se quiserem regular sua convivência com os meios do direito positivo".1 As leis editadas após a Constituição Federal de 1988 carregam um comprometimento diferenciado, não só na sua estrutura legislativa como também nas tutelas anunciadas. As proteções são as mais variadas dentro da esfera dos direitos fundamentais, como à vida, à saúde, à cidadania, à segurança, educação, cultura, moradia, alimentação, esporte, lazer, trabalho, liberdade, dignidade e acesso à justiça, independentemente de classe social, de origem, raça, orientação sexual, cultura, renda, idade, religião ou qualquer outra forma de discriminação, além do que, num só artigo, a Lei Maior resume a isonomia que deve prevalecer no Estado Democrático. Vulnerável, termo de origem latina, vulnerabilis, em sua origem vem a significar a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização, feridas sangrentas com sérios riscos de infecção. Houaiss2, por sua vez, assim define: "que pode ser fisicamente ferido; sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido". Demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por circunstâncias especiais É verdadeira a premissa de que toda pessoa é vulnerável, daí a existência da própria lei para realizar a tutela necessária. A proteção legal passa a ser a lente pela qual possa ser visualizado aquele que se apresenta como o mais frágil, necessitando de cuidados especiais. Pode-se dizer genericamente que todo indivíduo tem sua vulnerabilidade intrínseca, originária, criada pela sua própria insegurança ou pelos conflitos sociais geradores de tantos problemas que afetam a mente, em razão da evolução natural das pessoas. Além dessa, outras pessoas são afetadas por vulnerabilidades circunstanciais, abrangendo pobreza, doenças crônicas e endêmicas, pandemia, falta de acesso à educação, alijamento dos mais comezinhos direitos de cidadania e outras situações que as tornam susceptíveis a sofrer danos. As diversas causas de estresses, de fobias, de depressões são enfermidades produzidas pela sociedade moderna e, na medida em que vão sendo contidas pelos homens, outras assumem as posturas de novas agressões comportamentais. Com a decretação da pandemia, o governo Federal editou a lei 13.979/20, que estabeleceu as medidas direcionadas a todas as pessoas para o enfrentamento da emergência decorrente do coronavírus. A Organização Mundial da Saúde, por sua vez, traz também as orientações para o combate e insere no rol protetivo, dentre outras, as pessoas idosas e as com comorbidades. Ocorre que a população toda do país, pelo quadro atual, pode ser considerada em estado de vulnerabilidade. O agravamento da saúde ganhou proporções incontroláveis de combate à pandemia. Pode-se dizer que não é vulnerável somente aquele considerado doente, pobre, sem habitação digna, sem emprego, sem alimentação condizente, mas todas as pessoas. Os mais novos, que eram tidos como resistentes ao vírus, experimentaram um número representativo de internações e até mesmo de óbitos. As redes públicas e privadas em todas as regiões do país vão se colapsando pela superpopulação, sendo que em alguns casos são feitas transferências de pacientes de um Estado para outro. Novas medidas restritivas à população serão impostas trazendo sérias consequências econômicas, com a necessidade urgente de implantar mais uma série do auxílio emergencial. As duas vacinas disponíveis são distribuídas de forma lenta e em pequenas doses regionais, insuficientes para dar a pronta e imediata imunização para impedir o avanço da pandemia, além do que a mutação do vírus aumenta e em muito o número de infectados, podendo até mesmo colocar em risco a eficácia vacinal. Com a crise instalada na saúde as doenças pré-existentes foram agravadas e paralisados os tratamentos no combate à hipertensão, diabetes, obesidade, doenças cardiovasculares, respiratórias, raras, cânceres e transplantes, dentre outras.  As estruturas hospitalares e as equipes médicas estavam voltadas para o combate à pandemia da Covid-19, deixando um caminho aberto para a passagem do vírus. Até mesmo o distanciamento social tornou-se um óbice para que as pessoas pudessem visitar seus médicos e, consequentemente, ficaram expostas às doenças. Assim, diante de tal quadro, pode-se dizer que toda a população do país se encontra em estado de vulnerabilidade. __________ 1 Habermas, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Traduzido por Denilson Luís |Werle. São Paulo: Editora Unesp, 2018, p.341. 2 Houaiss, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetivo Ltda, 2001, verbete vulnerável.
Um ladrão ganhou o interior de uma escola pública em São Paulo e subtraiu para si três televisores, um computador e uma panela de pressão. Antes de deixar o local, no entanto, destacou uma folha de caderno de algum aluno e, caprichosamente, deixou sua justificativa, com os dizeres: "Me desculpe mesmo, de coração, por fazer isso, não tive escolha, foi precisão". Arrematou lançando sua assinatura como "desesperado" e já no final da folha pediu misericórdia a Deus.1 A leitura atenta do bilhete deixado revela a impressão de que a pessoa não queria praticar a subtração, embora tivesse pleno conhecimento de que sua conduta não era socialmente recomendada. Porém, em razão de se encontrar carente de recursos e em situação financeira comprometedora, outra alternativa não lhe restou a não ser levar consigo os bens referidos e transformá-los em dinheiro. Tanto é que no pouco tempo em que se dedicou a justificar o ato recriminado e confessado no bilhete, deu-se por condenado e buscou sua remissão ao pedir clemência a Deus. E pior. Praticou um furto contra uma instituição pública de ensino de bairro sabendo que os bens subtraídos iriam fazer falta para os alunos no dia seguinte. Pode até ser que o leigo, na rápida leitura da notícia policial, venha a sensibilizar-se com a escusa apresentada. Principalmente pelas palavras aparentemente sinceras contidas no bilhete de arrependimento. Poderá até pensar que o fim justifica os meios e que o ser humano merece crédito e, quem sabe, futuramente, venha a recompor o prejuízo causado à escola pública. Sua justificativa, no entanto, não encontra amparo legal, por mais que se queira explicar a conduta. É até louvável saber que o furtador recriminou a própria ação. Mas juridicamente - a não ser pela relevância de compor o quadro probatório - a breve confissão escrita de próprio punho e acompanhada de arrependimento não lhe socorre. Não há que se falar em estado de necessidade ou, segundo o linguajar do agente, em estado de "precisão" como causa elidente da responsabilidade penal. Estado de necessidade é a ação direcionada contra um perigo atual e inevitável, não provocado pela pessoa, porém, para salvar um bem jurídico próprio ou de terceiro, venha a lesar o interesse de outrem. Exemplo clássico é do saudoso professor Damásio E. de Jesus quando se refere aos danos materiais produzidos em propriedade alheia para extinguir um incêndio e salvar pessoas que se encontravam em perigo. Também não se enquadra na questão a eventual dificuldade financeira pois é totalmente incompatível alegar a pobreza ou a baixa remuneração para justificar a prática de um crime. Nesta linha de pensamento, todas as subtrações seriam satisfatoriamente justificadas pela excludente. Apesar de o arrependimento estar expresso no bilhete, esteve ausente na conduta do furtador. O arrependimento eficaz previsto na lei penal não se baseia em palavras e sim no exato momento em que a ação está se desenvolvendo. Se o agente, logo após a consumação do furto, mas antes da intervenção da autoridade policial, repõe as rei furtivae ao local de onde as subtraiu, configura-se o arrependimento eficaz, também chamado na doutrina de tentativa perfeita. O que não aconteceu no fato relatado. A desistência voluntária, assim como o arrependimento eficaz, é uma manifestação de vontade contrária por parte do agente, interrompendo o iter criminis e colocando um ponto final no seu propósito delinquencial. Ocorre a desistência quando o agente, de forma voluntária e espontânea, podendo continuar na empreitada delituosa para atingir a consumação, dela desiste por sua própria decisão. É uma proposta que brota instantaneamente e deixa transparecer, de forma inequívoca, que o furtador desistiu de realizar seu projeto ilícito. O que também não ocorreu no caso comentado. Poder-se-ia aventar - e para tanto ampliar demasiadamente o espírito da lei - a justificativa do furto famélico. Tal excludente também não coaduna com a ação do furtador que se limitou a subtrair computadores e uma panela de pressão, sem levar gêneros alimentícios para a imediata satisfação da necessidade de saciar a fome própria ou de seus familiares. Outra solução derradeira seria até mesmo cogitar da aplicação do arrependimento posterior, regra contida no artigo 16 do Código Penal, para efeitos de redução da pena de um a dois terços. Neste caso se exige que o crime não tenha sido praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, circunstâncias presentes na conduta do furtador, além da necessidade da efetiva reparação do dano ou da restituição dos bens até o oferecimento da denúncia, por ato voluntário do agente. Feitas tais ponderações, a conclusão mais adequada do ponto de vista legal, isento de qualquer consideração pessoal, é que o gatuno praticou sim, de forma consciente e sem qualquer justificativa, o crime de furto. A valoração da conduta humana deve ser feita de uma forma criteriosa levando-se em consideração não só os argumentos de arrependimento e desistência do infrator, que no caso não foram plausíveis, mas, também, a sua resolução determinada para a prática do ilícito, com a plena consciência de estar agindo contra legem. Fato revelador de tal desiderato é que, até o presente, apesar de todas as diligências policiais realizadas, o autor do furto não foi encontrado. Se verdadeiras suas palavras escritas, deveria se apresentar e entregar as coisas subtraídas para receber, pelo menos, o benefício da redução da pena. __________ 1 Ladrão furta escola pública e deixa bilhete com pedido de desculpas. 
domingo, 21 de fevereiro de 2021

Princípio da Precaução e a Anvisa

A Medida Provisória 1003/20 aprovada pelo Senado Federal - que depende da decisão do presidente da República em vetar ou não - concede à ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) o prazo de cinco dias para autorizar o uso emergencial para importação, distribuição e uso de qualquer vacina no Brasil contra a Covid-19, que tenha sido aprovada por outras agências internacionais. A lei 14.006/20, que alterou a lei 13.979/20, já estabelecia o prazo de 72 horas para a agência autorizar de forma excepcional a distribuição de medicamentos e insumos, desde que aprovados pelas autoridades sanitárias dos Estados Unidos, Japão, China e União Europeia. Pela nova proposta foram incluídas as agências do Canadá, Reino Unido, Coreia do Sul, Rússia e Argentina. O mesmo diploma legal possibilitou a aprovação de autorização temporária de uso emergencial desde que as vacinas fossem recomendadas pela Covax Facility, que se resume em um consórcio homologado pela Organização Mundial da Saúde com a finalidade de ampliar a busca internacional de vacinas, submetendo-as a uma rigorosa avaliação e dispensando o difícil acordo entre o governo e a indústria de fármacos para aquisição dos imunizantes. A situação do Brasil, que ainda se encontra no início da tarefa vacinal, dependendo somente das vacinas produzidas pela Coronavac e AstraZeneca, em quantitativos insuficientes e imprevisíveis de continuidade, necessita, urgentemente, buscar novas opções para atingir a pretendida imunidade coletiva. Aliás, a estratégia mais recomendável no momento seria a imunização de um maior número de pessoas antes que novas cepas recrudesçam e ganhem cada vez mais espaços, obrigando, consequentemente, a realização de novos estudos científicos para combatê-las. Diante de tal impossibilidade, a proposta contida na Medida Provisória representa a esperança de se conseguir, em prazo mais condizente com a realidade brasileira, novas frentes para se buscar vacinas aprovadas por outras agências reguladoras. Mas a reflexão exige um aprofundamento necessário levando-se em consideração que outros países estabelecem critérios diferenciados da avaliação feita pela Anvisa. O artigo 5º da referida Medida Provisória diz textualmente: "A ANVISA concederá autorização temporária de uso emergencial para a importação, a distribuição e o uso de qualquer vacina contra a Covid-19 pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, em até 5 (cinco) dias após a submissão do pedido...". Na melhor interpretação é de se concluir que a agência brasileira não fará qualquer avaliação a respeito da fabricação, da qualidade dos insumos e dos métodos utilizados, enfim sem qualquer análise técnica e específica das vacinas na investigação da segurança, qualidade e eficácia.  Além do que, pelo teor imperativo do núcleo verbal contido no texto, o trabalho da agência será meramente homologatório, vez que "concederá". É indiscutível que o prazo de cinco dias é totalmente inadequado para apreciação de mérito de qualquer vacina, e a agência brasileira, diante da exiguidade temporal, na situação proposta pela legislação, irá funcionar exclusivamente como um órgão interveniente para fins homologatórios. Mesmo em se tratando de uma autorização emergencial em que o Brasil se encontra com dificuldades de contratar novas vacinas, poderia ser dilatado um pouco mais o prazo estipulado para que o órgão possa emitir uma avaliação de segurança para a população. A lei 9.782/99 criou a Anvisa e lhe atribuiu independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes, autonomia financeira e, em seu extenso rol de competência, conferiu a incumbência de regulamentar, controlar e fiscalizar produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública como é o caso dos medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias. Assim a Amvisa, quando atua com relação à avaliação das vacinas, tem como rota segura a obrigação de observar dois princípios básicos atrelados à Bioética. O primeiro deles é o da precaução, representado pelo cuidado necessário para evitar condutas arriscadas e não recomendadas que venham provocar riscos e danos. Determinada vacina que, aparentemente, deixa transparecer um sinal satisfatório para o homem, com o passar do tempo, por mais paradoxal que possa parecer, poderá aflorar algum mal até então encoberto. A ciência deve ser sim estimulada e privilegiada e o resultado científico perquirido, proveniente de uma dose exacerbada de bom senso, sem perder a censura correta da ciência, expressará a proteção conferida ao ser humano. Se determinado medicamento apresentar algum risco previsto e não corresponder a um determinado grau de segurança, será rejeitado. Daí que deve a agência estabelecer de forma clara e sistemática o embasamento científico que seja mais adequado e aconselhável para a população. O princípio da beneficência vem acolitar o primeiro. O ser humano deve figurar sempre como o destinatário do estudo científico, sem experimentar qualquer dano. É a regra do malum non facere ou primum non nocere. Em outras palavras, seria envidar todos os esforços para maximizar os resultados que trouxeram significativos dividendos à saúde e minimizar os possíveis efeitos nefastos com impactos negativos à saúde. Todo este iter deve vir acompanhado de passos sincronizados, que tragam suporte de benefício não só para a pessoa, como também para a comunidade. A Anvisa, conforme proposto na novel legislação, não pode ser considerada, portanto, uma instância meramente burocrática, homologatória e sim a guardiã para estabelecer os parâmetros éticos e recomendáveis de uma vacina. Afinal a saúde humana é prioridade inafastável e orbita no âmbito da responsabilidade pública.
domingo, 14 de fevereiro de 2021

A Cannabis na rota do uso medicinal

A Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas, acatando também a recomendação da Organização Mundial da Saúde, aprovou a reclassificação da cannabis sativa da listagem de narcóticos considerados impróprios e perigosos para o homem e abriu espaço para sua utilização médica, exclusivamente.1 Alguns temas, rotineiramente, como bumerangues, frequentam a imprensa nacional e internacional, justamente por reunirem opiniões conflitantes, como é o caso da canabis sativa. Quando um órgão de referência como a ONU emite uma recomendação, lança mais combustível para debates no sentido de se aprovar a liberação da maconha para uso medicinal. É até interessante observar que uma planta que carrega um componente sem qualquer efeito alucinógeno - mas até então considerava-se que produzia efeitos malignos para a saúde humana - consegue trazer um razoável ganho de saúde, conforme reiteradamente vêm indicando as pesquisas científicas. Pelos estudos disponíveis o Canabidiol (CBD) pode ser isolado de forma segura em laboratório e não produz nenhum prejuízo ou dano à cognição humana. No Brasil, a lei 11.343/06 (Lei de Drogas), que define os crimes relacionados com o tráfico de drogas e outros crimes afins, além de instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad - também prescreve medidas para prevenção e uso indevido, juntamente com a reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Há, no entanto, um permissivo legal no parágrafo único do artigo 2º, que permite à União "autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas." Também no Brasil, há um bom tempo, a liberação do princípio ativo do canabidiol  (CBD) e do tetra-hidrocanabidiol  (THC), componentes da cannabis sativa, batem às portas dos tribunais assim como da ANVISA, responsável que é pela aprovação dos produtos submetidos à vigilância sanitária. Muitos países, principalmente aqueles que desenvolvem linhas de pesquisa nesta área, liberaram o uso medicinal da maconha, mormente na redução das crises convulsivas, com razoável margem de segurança e boa tolerabilidade, sem relatos de efeitos alucinógenos ou psicóticos. O presidente da Argentina, há pouco tempo, regulamentou uma lei de 2017 e legalizou o plantio e cultivo da maconha medicinal, e também permitiu às farmácias vender aos interessados óleos e cremes feitos a partir da planta, desde que o interessado se cadastre em um programa vinculado ao Ministério da Saúde. É de se levar em conta que as pesquisas envolvendo o princípio ativo THC da cannabis sativa vêm conseguindo bons resultados em busca de novas e melhores alternativas para o homem. Apesar do pouco ganho inicial, que faz parte do estudo, abrirão novos espaços, com descobertas que irão ultrapassar os limites fincados pelo conhecimento humano e tudo indica que trarão novos dividendos favoráveis à saúde. Há reiteradas evidências científicas que contam até mesmo com o beneplácito da Organização Mundial da Saúde, que concluiu pelo benefício da canabis e canabinoides para os pacientes com epilepsia, esclerose múltipla, demência, depressão e outros males. Nesta linha de raciocínio a própria ANVISA já autorizou e registrou o medicamento Mevatyl, à base de cannabis, indicado para o tratamento de adultos com espasmos relacionados à esclerose múltipla. Pelo mesmo caminho, enfrentando igual entrave legal, surgem as pesquisas relacionadas com as chamadas "drogas psicodélicas", tais como LSD, MDMA e outras. Apesar de terem sido recriminadas durante várias décadas, apresentam-se atualmente como objeto de estudos científicos que já atingiram consideráveis avanços para o tratamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que afeta considerável número de brasileiros. Os estudos ainda estão sendo realizados com a intenção de atingir um número cada vez mais representativo de pacientes, assim como, paralelamente, de promover a formação e capacitação de profissionais habilitados em psicoterapia assistida por psicodélicos. Recentemente, uma associação em São Paulo, composta por pacientes que fazem tratamento à base de derivados da cânabis, ingressou com um pedido de habeas corpus coletivo, juntando aos autos laudos médicos que comprovam a necessidade da utilização da planta, pleito que foi julgado procedente.2 A fundamentação legal foi lastreada na comprovação da utilização das substâncias extraídas da maconha para tratamentos contra epilepsia, dores crônicas, autismo e doença de Parkinson, além da efetiva proteção aos direitos à vida e à saúde, englobados na esfera da dignidade da pessoa humana. Com tal aparato judicial os associados não poderão ser presos em flagrante delito no cultivo da referida planta. A ciência, pelas suas regras investigativas e protocolos de pesquisas, em vários estudos científicos rigorosamente sérios e recomendados, não só apontou os benefícios como também recomendou a continuidade de estudos com a cannabis, por ficar evidenciado o benefício para o paciente. O princípio da beneficência da Bioética visa justamente envidar o melhor esforço possível para buscar soluções que sejam adequadas, convenientes e proporcionais para o paciente, conferindo a ele um considerável ganho à sua saúde, com o mínimo risco possível. Quer dizer, extremar os possíveis benefícios e minimizar eventuais danos. Desta forma, abrindo-se uma linha de pesquisa que tenha já atingido um patamar de segurança e tolerabilidade, recomenda-se que sejam exploradas todas as possibilidades de se buscar um resultado que seja compatível com os objetivos propostos. É bom que se reforce que a utilização medicinal de uma droga com relevante potencial terapêutico não equivale à sua legalização. __________ 1 ONU retira maconha de lista de drogas mais perigosas; Brasil vota contra. 2 Justiça dá aval para plantação de maconha por associação com habeas corpus coletivo.
domingo, 7 de fevereiro de 2021

Reprodução não assistida

A procriação medicamente assistida, em evolução constante e cada vez mais aperfeiçoada, vem superando vários desafios e marcando notáveis progressos na resolução dos problemas relacionados com a reprodução humana. O desenvolvimento acelerado das técnicas de reprodução assistida é tamanho que nem mesmo a legislação ordinária emite normas a respeito, com exceção do permissivo existente no artigo 1.597, incisos III, IV e V, do Código Civil. Daí que o vácuo existente é preenchido pelas resoluções do Conselho Federal de Medicina que estabelecem as normas éticas para a utilização das técnicas existentes, conforme se depreende da resolução  2.168/2017, do referido Conselho. As técnicas existentes somente poderão ser utilizadas desde que exista a probabilidade de sucesso no procedimento, sem qualquer risco para a paciente e, principalmente, sem qualquer intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica, exceto quando for para evitar doenças no futuro descendente. O protocolo médico exige que os pacientes assinem o termo de consentimento esclarecido, demonstrando total concordância após a discussão bilateral entre as partes envolvidas. As perspectivas de sucesso foram se alastrando e provocaram um verdadeiro alargamento de acesso à gestação compreendendo agora as pessoas solteiras, pessoas em relacionamentos homoafetivos e a gestação compartilhada na união estável feminina. Para tanto foi editado o provimento 63/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, que regulamentou o assento de nascimento de filho havido por técnicas de reprodução assistida. No Brasil é expressiva a demanda para tratamento de infertilidade oferecido pelo SUS, que disponibiliza o serviço em poucos centros de saúde, obrigando os interessados a aguardarem longo período para o atendimento. Tal direito vem expressamente disposto no artigo 226, § 7º da Constituição Federal, que incumbe ao Estado propiciar recursos científicos para o cidadão atingir a procriação, como é o caso da reprodução assistida. Ocorre, no entanto, que, em razão do alto custo operacional do procedimento médico, muitas pessoas desavisadas passaram a adotar os aconselhamentos das redes sociais para a realização da chamada inseminação artificial caseira, que consiste em buscar um doador de esperma, que não é anônimo e, em alguns casos, cobra determinada importância pela venda do sêmen. Faz-se a retirada do material que será coletado em um recipiente esterilizado ou até mesmo no preservativo e, em seguida, com o auxílio de uma seringa ou aplicador, realiza a inseminação na cavidade vaginal da mulher, que deverá estar no seu período fértil. Na realidade é um procedimento bem singelo, desprovido de qualquer técnica mais apurada, mas que poderá causar futuramente um imbróglio genético de difícil deslinde. Tal prática é mais costumeira na união homoafetiva feminina, mas tem cabimento também nas demais situações. Por ser um procedimento paralelo, sem se ater às normas técnicas que regulamentam a matéria, muitos inconvenientes são apontados. No contato com o doador, por exemplo, será assinado um documento de isenção de qualquer responsabilidade futura dele com relação ao filho que for gerado, cláusula que, juridicamente, não irá produzir qualquer efeito em razão do princípio da paternidade responsável, pois, a qualquer tempo, poderá ser intentada ação de investigação de paternidade em seu desfavor, que contará com a conclusão do imbatível exame de DNA. Também o doador não é submetido a exames específicos, com a finalidade de pesquisar eventuais doenças genéticas ou não, que possam ser transmitidas à mulher ou à prole (HIV, HTLV-I/II, Hepatite e outros), como sói acontecer na reprodução medicamente assistida. O procedimento contraria frontalmente o disposto na lei 9.434/97, que proíbe qualquer comércio relacionado com o sangue, esperma e óvulo, considerados bens extra commercium. O doador já é useiro e vezeiro em ceder seu sêmen e não há qualquer controle com relação às inseminações que vingaram, uma vez que seu nome não irá figurar no assento de nascimento da criança, contrariando o direito do infante de conhecer sua identidade genética e história biológica. Pode ocorrer que o responsável pelo sêmen tenha uma imensa prole na cidade onde reside e seus filhos, desconhecendo a filiação paterna, venham a se casar entre si. O Jornal Folha de São Paulo, em excelente trabalho, trouxe uma reportagem em que um doador de esperma tinha quase 200 filhos na Holanda e que uma clínica de esperma da Dinamarca envia material genético para mais de cem países.1 Nos casos de união homoafetiva feminina, a contrário do que recomenda a gestação compartilhada, o registro da criança será feito somente em nome da mulher que deu à luz, cabendo à companheira invocar a tutela jurisdicional para pleitear a adoção unilateral. A questão abordada representa um nó de extrema complexidade para a concretização do projeto parental, pois foge de todo e qualquer protocolo médico recomendado. Não deve ser apreciada unicamente pelo lado pessoal, para satisfazer uma determinada pretensão, mas deve ser avaliada diante da difusa dimensão pública e também da defesa inconteste dos direitos à saúde da genitora e do nascituro na constituição de uma nova forma de familiaridade. __________ 1 Doador de esperma serial tem quase 200 filhos e acende alerta na Holanda.
domingo, 31 de janeiro de 2021

Justiça consensual e adequada

Um homem foi flagrado pela câmera da central de monitoramento da Guarda Municipal de São José do Rio Preto abandonando oito gatos em um terreno bem próximo à cidade, sendo que um deles foi por ele atropelado quando manobrava o veículo para deixar o local. Foi preso em flagrante delito pela prática do crime de maus tratos aos animais.1 Referido ilícito, previsto no artigo 32 da lei 9.605/98, teve sua pena recentemente majorada pela lei 14.064/20 para aqueles que praticarem abuso, maus tratos, ferimentos ou mutilação em cães e gatos, fixando a reprimenda de 2 a 5 anos de detenção, além de multa ou proibição da guarda. O Ministério Público, representado pelo promotor de justiça José Heitor dos Santos, com competência e experiência mais do que comprovada na lide forense, em razão da mudança introduzida pela lei 13.964/19 (Lei Anticrime) no artigo 28-A do Código de Processo Penal, propôs ao investigado o acordo de não persecução penal uma vez que ele confessou a prática de crime cometido sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima é inferior a quatro anos. Diante do permissivo legal, o promotor de justiça abriu mão da postulação persecutória penal e apresentou uma proposta de cunho eminentemente educativo e pedagógico para que o investigado, durante 18 meses, dedicasse 8 horas por semana para prestar auxílio em um projeto existente na cidade, voltado para cuidados e proteção dos animais, que foi prontamente aceita pelo autor da infração e encaminhada para a homologação judicial. Quando se noticia algo a respeito de um crime, a cultura popular é voltada para a decretação da prisão, assim como o cumprimento da pena em regime fechado. A tradição da prisão, talvez com raiz nas Ordenações do Reino de Portugal, revela que se alguém pratica um crime que lesa sobremaneira a comunidade deve, obrigatoriamente, ser levado à prisão, sem chances de usufruir o direito à liberdade após um determinado período de cumprimento da pena. O pensamento popular circula na faixa da reprovação imediata do ato ilícito, buscando, em primeiro plano, retomar a segurança e, em segundo, reafirmar o exemplo punitivo da segregação. Voz do povo, voz de Deus, mas não a do legislador pátrio. A Constituição Federal brasileira deixa explicitado que a regra é a liberdade, assim como a regra é a inocência, ambas inseridas nos princípios gerais que balizam a interpretação penal. O homem, pela sua própria natureza, é livre para praticar todos os atos que não encontram restrições impostas pelo Estado ou que esbarrem em direitos assegurados a outro cidadão. A liberdade, então, de aparência absoluta, passa a ser relativa e finca sua bandeira nas bases ditadas pelo Estado Democrático de Direito e na Justiça Social. Assim, com a prevalência da lei, cabe a todos o exercício da correta fiscalização de sua aplicação e, acima de tudo, o cumprimento espontâneo de suas determinações. Caso contrário, de forma cogente, o Estado se incumbirá de tal tarefa. Muitas das propostas legislativas que tramitam atualmente, inclusive a que norteia o anteprojeto do Código Penal, pretendem fazer uma revisão das penas privativas de liberdade. A prisão - de acordo com a metodologia e filosofia da comissão encarregada de ofertar mudanças para o futuro Código Penal - somente será reservada para os delitos praticados com emprego de violência física ou ameaça ou outros crimes considerados graves. Nos demais casos, a opção seria a reparação do dano e aplicação de penas alternativas com mais rigor. A nova mentalidade tem como base e sustentação o comprometimento do infrator com a sociedade que lesou. De um lado, ele reconhece o seu desvio de conduta, mas irá repará-lo com a prestação de serviço equivalente ao mal praticado ou será privado temporariamente de alguns direitos, limitação de final de semana ou receberá uma pena pecuniária e, de outro, participando ativamente da comunidade onde delinquiu, encontrará uma via mais rápida para a ressocialização. A pena detentiva, por sua vez, pode ser considerada inútil pois não atinge as medidas necessárias para a verdadeira construção da justiça social. A proposta feita pelo representante do Ministério Público carrega exatamente o espírito atual que norteia o Direito Penal. A conduta ilícita do indiciado foi reconhecida em sua confissão, sendo, portanto, desnecessário instaurar um processo para ouvir testemunhas a respeito da autoria - que vem roborada também pelas câmeras que captaram sua imagem - e resta somente a realização de um pacto entre Estado e indiciado para estabelecer as condições de cumprimento de uma penalidade alternativa, mas que, certamente, cumprirá os objetivos. Seria, desta forma, a construção de uma integração social para evitar a fragmentação carcerária que vai se proliferando cada vez mais, graças ao consenso estabelecido na concessão estatal e na convicção do infrator. O Papa Francisco, falando a respeito da conveniência social e o consenso, assim se manifestou: O fato de certas normas serem indispensáveis para a própria vida social é um indício externo de como elas são algo intrinsicamente bom.2  ____________ 1 Clique aqui  2 Carte Encíclica do Papa Francisco. Fratelli Tutti - Sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Editora Paulus, 2020, p. 111.
domingo, 24 de janeiro de 2021

A decisão da ciência é lei

O Brasil aguardou ansiosamente a decisão da Anvisa a respeito da avaliação científica para o uso emergencial das vacinas Coronavac do Instituto Butantan, em parceria com a empresa chinesa Sinovac, e da Fiocruz, em parceria com a farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford. Após algumas ressalvas impostas, a agência, em votação pública, emitiu parecer favorável à utilização dos imunizantes, decisão que, pelo menos temporariamente, tranquilizou a população brasileira, que já se distanciava dos 51 países que saíram à frente na campanha de vacinação em massa. A decisão, desta forma, guardadas as proporções, pode ser considerada como a promulgação de uma lei há muito tempo aguardada e que veio para solucionar sérios problemas relacionados com a saúde da população. É uma espécie de alforria e alivia o cidadão de todas as classes. Vai além a decisão administrativa. Foi incisiva e, para tanto contou com a unanimidade dos pareceristas, que concluíram que a ciência deve prevalecer de forma soberana quando chamada para diagnosticar doenças e apresentar um plano de combate com embasamento científico. Foi dramático o embate inicial entre a ciência e os gestores públicos brasileiros. Estes preocupavam-se com o retorno da normalização da vida laboral e financeira - que merece a devida atenção sem qualquer dúvida - mas sem olvidar que cada vez mais as pessoas, sem atender ao protocolo de segurança recomendado, vinham se aglomerando nos transportes coletivos, ruas das cidades e até mesmo em festas proibidas, desprezando o perigo que rondava suas vidas. A ciência, por sua vez, limitou-se a recomendar medidas protetivas individuais e coletivas que pudessem minimizar a crise que se instalava na saúde pública e outro pensamento não teve a não ser aconselhar uma conduta adequada e protetiva para o bem-estar da coletividade, seguindo as determinações emanadas das autoridades sanitárias com a intenção de abrigar as boas práticas científicas comprovadas e idôneas para afastar a vulnerabilidade social. No caso da pandemia do coronavírus, por exemplo, ficou mais do que evidenciada a ausência de alternativas terapêuticas, circunstância que obrigou os cientistas a se unirem para encontrarem uma resposta unicamente vacinal, em razão até da exiguidade do tempo. O tratamento precoce então recomendado como proposta de cura, a exemplo da cloroquina e hidrocloroquina, ambas sem qualquer recomendação científica, como o vírus, contaminou a boa-fé popular e colaborou com o aumento de número de infectados e mortos. É de se atentar que o Ministério da Saúde chegou a indicar, quando se tratasse de tratamento medicamentoso precoce, a utilização da cloroquina e da hidroxicloroquina, reconhecidas como uso compassivo nos casos graves de pacientes hospitalizados. Ocorre que estudos recentes e atualizados, principalmente pela publicação feita na revista científica Lancet1, demonstraram que o uso das referidas drogas estava provocando um número maior de arritmia e mortes, retirando, portanto, qualquer benefício ao paciente. Daí que a Organização Mundial da Saúde suspendeu os estudos que vinham sendo realizados com as drogas. O Conselho Federal de Medicina, que por sua vez procura integrar seus conhecimentos científicos e tecnológicos a serviço do paciente, não recomendou o uso delas, mas deixou a critério do médico a indicação, desde que seja tomada em decisão compartilhada com o paciente. Trata-se de um ato em que o médico divide a responsabilidade com o paciente e ambos assumem a mesma empreitada na ars curandi. Pode, às vezes, não coincidir com a opinião do paciente, que opta por um determinado procedimento, em razão da liberalidade existente no Pacient Self-Determination Act. O médico pode sim prescrevê-las, porém deve informar ao paciente que o medicamento não goza de eficácia científica comprovada e também a respeito dos efeitos colaterais eventuais, que podem trazer malefícios. Tudo materializado no termo de consentimento informado, peça indispensável para retratar uma decisão conjugada. Vencida esta fase resta agora apostar unicamente nas vacinas que foram provisoriamente autorizadas e em outras que virão, até mesmo tardiamente, todas frutos dos estudos científicos desenvolvidos em favor da humanidade.  A ciência é como uma lei: quem dela se afasta caminha pela rota do reprovável e leva de roldão as esperanças de muitas vidas. __________ 1 Por que cientistas tiveram que se retratar por estudo que negava efeito da cloroquina contra o coronavírus.
domingo, 17 de janeiro de 2021

As clínicas particulares e as vacinas

A humanidade não só acompanhou como também torceu pelo bom desempenho das instituições que pesquisaram vacinas para combater o coronavírus e neste início de ano - ao que tudo indica promissor para a saúde - suspirou com alívio quando as agências reguladoras foram aprovando e autorizando a utilização de algumas delas para a imunização mundial. A corrida pela aquisição da vacina teve início bem antes de findar a terceira fase dos estudos científicos e muitos países conseguiram a preferência junto aos laboratórios, assinando contratos de reserva de aquisição do imunizante. Assim foi feito por eles e a vacinação já se faz presente na ordem do dia. No Brasil a ANVISA recebeu dois pedidos de uso emergencial, sendo um deles do Instituto Butantan em parceria com a empresa chinesa Sinovac e o outro feito pela Fiocruz em parceria com a farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford. A agência solicitou, cumprindo rigorosamente o protocolo estabelecido, a juntada de documentos faltantes e complementares e marcou para o dia 17 de janeiro a reunião da diretoria para decidir a respeito da autorização para os dois imunizantes. Apesar de se tratar de uma corrida contra o vírus, que vai provocando cada vez mais mortes, todo o cuidado é necessário para garantir a segurança e eficácia das vacinas que serão utilizadas pela população. Entre tantas dúvidas e incertezas a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVac) anunciou que está negociando cerca de 5 milhões de doses da vacina indiana Covaxin contra a Covid-19, também sem pedido de uso emergencial ou registro junto à ANVISA.1 Em recente reunião anual, a Organização Mundial da Saúde - responsável pela decretação da pandemia do coronavírus - conclamou a todos os membros, em caso de descoberta de uma vacina, que ela seja considerada um bem público global, com acesso irrestrito a toda comunidade mundial.2 Neste diapasão pode-se considerar a vacina como sendo res communis omnium - expressão tão largamente utilizada no Direito Romano -, dando a entender o pertencimento coletivo de tudo aquilo que a natureza proporciona, como também a criação pelo homem de algo que beneficia a humanidade, observando que, conforme preceitua a Constituição Federal, no artigo 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. O Plano Nacional de Imunização (PNI), instituído em 1973, advindo após a lei 6.259/1975, que criou as políticas públicas voltadas à imunização contra enfermidades, contempla a vacinação de crianças, adolescentes, adultos, idosos, gestantes e povos indígenas, de acordo com o Calendário Nacional de Vacinação. O Brasil sancionou a lei 13.979/20, norma excepcional caracterizada pela decretação da pandemia e que prevê, em seu texto, medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública com a finalidade de conter a contaminação ou propagação do vírus. Dentre as medidas previstas no artigo 3º da referida lei, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos. Pode-se concluir, sem muito esforço interpretativo, que cabe ao Estado a responsabilidade de assumir a iniciativa de inocular a população gratuitamente, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Plano Nacional de Imunização, obedecendo os parâmetros da igualdade entre os cidadãos e a equidade na distribuição dos recursos. Ocorre que, diante da escassez dos recursos, pela ausência de uma vacina e pela falta de agulhas e seringas, além dos dois estágios da vacinação, não destoando dos princípios acima enunciados, na própria igualdade reina uma desigualdade intrínseca que a diferencia e é voltada justamente para as pessoas que compõem os grupos de maior risco e vulnerabilidade como, por exemplo, profissionais da saúde, da segurança, crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, pessoas com comorbidade e outras que exigem escolhas prioritárias para receber a inoculação necessária. É interessante observar que o Brasil é considerado um país exemplar e que cumpre zelosamente pela cobertura vacinal, embora nos últimos três anos não tenha atingido a meta almejada em suas campanhas em razão provavelmente de movimento antivacinal, que vem prosperando a cada ano e não encontra qualquer amparo científico de malefício comprovado e muito menos a adesão da Organização Mundial da Saúde. Pois bem. É justamente neste espaço que as clínicas particulares de vacinação esboçaram a pretensão de realizar conjuntamente a cobertura vacinal. Um ponto deve ser considerado e não admite qualquer negociação: a legitimidade para estabelecer as regras e obrigatoriedade de imunização é exclusiva do Estado. Daí que as clínicas não são concorrentes e nem exercem funções substitutivas, aliás, como ocorre no cotidiano vacinal que abre espaço para as duas frentes. O que não se admite - e fere frontalmente os princípios fundamentais da cidadania - é a iniciativa privada antecipar-se à ação estatal, frustrar as prioridades consensuais adotadas e atender preferencialmente o público que tiver condições de arcar com o custo da vacina, demonstrando, desta forma, uma quebra ao princípio da diferenciação positiva. Se o próprio Estado concorda com a ação subsidiária e adesiva das clínicas particulares, e se houver autorização da ANVISA para importação e homologação do registro, não há como obstar que os particulares desenvolvam paralelamente seu comércio, desde que obedecida a ordem preferencial estatal. Em tempo de pandemia em que a vacina se apresenta como o único recurso para combater o vírus e o Estado ainda está desenhando sua estratégia de pronta atuação, nada mais justo do que aceitar a colaboração de terceira entidade para fazer o quanto antes a cobertura total de vacinação do povo brasileiro. Trata-se de um verdadeiro estado de necessidade. __________ 1 Procura de vacinas por clínicas privadas causa temor de prejuízos à rede pública. 2 Em reunião da OMS, países defendem vacina contra covid-19 para todos.
A vacinação que está prestes a ser iniciada no Brasil ocupa quase a totalidade dos noticiários da imprensa. Nunca se aguardou com tamanha expectativa o anúncio de uma vacina que tenha potencial suficiente e qualidade comprovada para combater o coronavírus. Todos os projetos para o ano que se inicia ficam aguardando a tão esperada imunização para que a vida possa retomar o seu curso normal. Visando regulamentar as medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas, insumos, bens e serviços de logística, tecnologia da informação e comunicação, comunicação social e publicitária e treinamentos destinados à vacinação contra a covid-19 e sobre o Plano Nacional de Operacionalização de Vacinação contra a covid-19, o presidente da República editou a Medida Provisória 1026/21. Trata-se de documento necessário para atender às necessidades momentâneas que sejam relacionadas, direta ou indiretamente, com a cobertura vacinal da população brasileira. Porém, no clima pandêmico em que se encontra, muitas vezes insegura e sem as informações necessárias, chama a atenção e de certa forma causa preocupação o disposto no artigo 16, § 3º, que dispõe textualmente: O profissional de saúde que administrar a vacina autorizada pela Anvisa para uso emergencial e temporário deverá informar ao paciente ou ao seu representante legal: I - que o produto ainda não tem registro na Anvisa e que teve o uso excepcionalmente autorizado pela Agência; e II - os potenciais riscos e benefícios do produto. É certo que somente após a Constituição Federal de 1988, começou a fortalecer a ideia de que a pesquisa em saúde é imprescindível para o país estabelecer políticas públicas e estratégias para melhorar a saúde da população, apelo que reiteradamente vem sendo proclamado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Após breve consolidação regulamentar na área de pesquisa envolvendo seres humanos, o Conselho Nacional de Saúde, incorporando os pilares bioéticos traçados e reconhecidos na resolução 196/1996, aprovou a resolução 466, de 12 de dezembro de 2012, como sendo um trabalho de inevitável revisão da anterior, acrescentando mais dados e exigências, visando ao aprimoramento ético e à adequação com as descobertas científicas promovidas pela biotecnociência e biotecnologia. Assim é que, com uma roupagem diferenciada e com metodologia apropriada, a resolução referida, com ênfase necessária, traça diretrizes a respeito: a) dos aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos; b) do processo de consentimento livre e esclarecido; c) dos riscos e benefícios envolvendo seres humanos; d) do protocolo de pesquisa; e) do sistema CEP/CONEP e suas atribuições e competências para análise ética dos protocolos e a emissão de pareceres devidamente motivados; f) da responsabilidade do pesquisador responsável. Nesta linha de raciocínio, quando a agência reguladora recebe a documentação para expedir autorização de uso de emergência ou até mesmo para proceder ao registro do medicamento, o iter científico do estudo já foi realizado em todas as suas fases, inclusive naquela que envolve a participação do colaborador voluntário, que já foi informado a respeito dos eventuais riscos e benefícios. Ora, seria cautela desmedida, completamente desnecessária, informar ao paciente ou ao seu representante legal, no ato vacinal, que o produto não possui registro na Anvisa e que seu uso foi autorizado de forma excepcional, além de adverti-lo a respeito dos potenciais riscos e benefícios. Isto porque a agência responsável, quando da análise do produto para autorizá-lo provisoriamente, observou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ofertado pelo participante de pesquisa, que é um colaborador abnegado, sem qualquer remuneração e que preza o progresso da ciência e tecnologia, com a finalidade específica de buscar benefícios atuais e potenciais para a humanidade. Neste ponto reside a grande diferença entre o colaborador da pesquisa e o paciente na sua relação linear com o médico. Na pesquisa ocorre uma relação triangular - participante, pesquisador e Estado - um verdadeiro actum trium personarum, compreendendo aqui a intervenção adesiva e obrigatória do Estado que, pelos seus agentes de atuação no Sistema CEP/CONEP, serão corresponsáveis por garantir a proteção dos participantes da pesquisa com os melhores padrões éticos. Não se trata de paciente e sim de voluntário que assume relevante postura em se oferecer para colaborar com a pesquisa. Desta forma, ainda que seja concedida a autorização pela Anvisa, a título precário, provisório ou excepcional, o produto já traz a garantia necessária para a utilização em humanos. O próprio texto legal foi incisivo em usar o termo "paciente", deixando a entender que se trata de um produto devidamente autorizado pela agência responsável. Qualquer interpretação em contrário colidirá com a confiabilidade do órgão homologador. De nenhuma valia, portanto, a advertência proclamada na Medida Provisória, a não ser para afastar ainda mais as pessoas da inoculação necessária.
domingo, 3 de janeiro de 2021

Efeitos legais e jurídicos da pandemia

O ano de 2020, que iniciou com os melhores auspícios para a recuperação da economia brasileira, num repente transformou-se totalmente atípico para a saúde do povo brasileiro. A decretação da pandemia pela Organização Mundial da Saúde - na realidade uma verdadeira sindemia - encontrou a rede pública de saúde sucateada e abandonada em leito de UTI aguardando o provável estertor. Tanto é que, de forma apressada e com a urgência necessária, as autoridades responsáveis injetaram vários recursos para ampliação de instituições de saúde, construções de hospitais de campanhas e tendas hospitalares para atendimento dos pacientes infectados pela Covid-19, em casos de média e alta complexidades. A mesma providência foi tomada com relação à aquisição de insumos e aparelhos necessários. Paralelamente, como providência legal, o Brasil proclamou a Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) e sancionou a lei 13.979/2020, lei excepcional caracterizada pelas circunstâncias específicas que determinaram sua edição, que prevê medidas de enfrentamento da emergência da saúde pública, com a finalidade de evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus. Dentre as medidas previstas no artigo 3º para o enfrentamento, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos. No campo científico, com o incessante avanço da pandemia provocada pela Covid-19, muitos países se lançaram numa verdadeira competição em busca da descoberta de medicamentos e até mesmo da imunização total por meio da vacina. Percebe-se que é um trabalho de grande fôlego e, até o presente, a comunidade científica, após vários estudos clínicos que completaram a terceira fase, ofertou vacinas que receberam a homologação das agências credenciadas para autorizar a imunização em massa. Todas as normas relacionadas com a experimentação em seres humanos no Brasil são de competência do Ministério da Saúde que, pelo Conselho Nacional de Saúde, expediu a resolução 466/2012, estabelecendo, de forma disciplinada, as regras de proteção, garantia e demais tutelas aos participantes voluntários. O participante de pesquisa voltada para os seres humanos é detentor de um dos pilares estabelecidos na Constituição Federal, que é a dignidade da pessoa humana. O Judiciário, por sua vez, em razão do princípio da inafastabilidade da apreciação judicial previsto no artigo 5º, XXXV, da Lei Maior, passa a ser o catalisador das pretensões relacionadas com o direito à saúde dos cidadãos e o responsável para dirimir os conflitos existentes entre eles e os representantes públicos das três esferas. O Judiciário, ao contrário do gestor público, apreciará a questão levando-se em consideração o preceito constitucional da dignidade humana em sua modalidade mais ampla, um dos alicerces da Carta Magna. Assim, na visível colidência de interesses, irá atender aquele que patrocina a vida humana em todas as suas nuances, sempre entregando uma decisão que seja adequada e protetiva para o bem-estar coletivo, retirando-o do estágio de vulnerabilidade e seguindo as recomendações científicas comprovadas e idôneas. Conforme foi noticiado pela imprensa, em razão de imensas filas, o representante legal do paciente que se encontra internado aguardando vaga em UTI, aciona o órgão jurisdicional pleiteando tutela provisória de emergência em caráter antecipatório para que seja feita a transferência do paciente para o leito pretendido. Se a justiça acatar o pleito e deferir a tutela, o paciente que, juntamente com vários outros aguardava sua vez para ser promovido à UTI, com toda certeza está sendo beneficiado em detrimento dos demais concorrentes que aguardam o cumprimento do protocolo estabelecido pelos médicos. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal foi chamado para decidir a respeito da obrigatoriedade ou não da vacinação. Foi incisivo em declarar que a vacina contra a Covid-19 deve ser compulsória, não no sentido de imunização coercitiva, forçada e sim compreendendo medidas indiretas e oblíquas ao cidadão que se mantiver irredutível em sua autonomia. Quando se determina a obrigatoriedade vacinal compreende-se - e é necessário que assim seja - a limitação ao direito individual da autonomia da pessoa em favor do bem-estar e da saúde dos demais. A voz da maioria é absoluta. O ordenamento legal e, somente ele, estribado na justiça geral em favor da necessidade humana, faz evidenciar não só a defesa da saúde da comunidade, como também os interesses econômicos, sociais e outros necessários para o compartilhamento harmônico das atividades humanas. Em uma sociedade democrática e pluralística é totalmente admissível a restrição de um direito individual em favor da assistência sanitária que visa à proteção do direito à saúde de toda a comunidade, inclusive daquele que se recusa à imunização.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Natal de esperança

O Natal está chegando, o novo ano se aproximando e a Covid-19, intrusa e inconveniente, permanece ainda no palco mundial provocando uma verdadeira existência caótica. Neste momento, como que incorporando a humanidade e por ela falando com sua implícita autorização, lanço o olhar para fora e vejo o mundo paralisado, como se uma engrenagem houvesse se soltado. Olho para dentro e dou de cara com um mundo estranho e conturbado, calibrado por sentimentos detonados por mensagens sem parâmetros por parte da mídia e do meu estreito mundo de comunicação. Ninguém entende nada. Verdadeira Torre de Babel. Diante desta quase paranóica sensação de viver sem saber como viver uma vida enviesada e sem soluções aparentes, eu me instalo definitivamente como posseiro do meu interior e passo a quixotear comigo mesmo. É como um morrer fora do tempo e sair flutuando nas pesadas nuvens que cobrem o nebuloso céu. A única certeza é que a humanidade foi aturdida pelas tocaias e ciladas de um insipiente e indesejado vírus. Perdido nos porões das minhas memórias, nem sei por onde começar a faxina, mas tenho consciência que nada pode ser jogado por baixo do tapete. É hora de devassar meu interior, fazer a leitura intimista, vasculhar todos os pontos, retirar o pó que grassa sobre os pesados móveis, onde estão guardadas as lembranças, as desejadas e as indesejadas, e pinçar, no mais fundo, os invasores que lá habitam sem autorização, num verdadeiro processo de despejo coletivo. Como se fosse uma lavagem da alma, na mesma intenção que move as baianas nas escadarias. Assim consigo expurgar os fantasmas que, como ébrios, deambulam com insistência pelas minhas estreitas veredas, criando um verdadeiro labirinto de dúvidas e incertezas. Vou, também, ajustar os ponteiros do meu emocional e racional. Estabelecer regras fixas para dividir o terreno de cada um, sem invasão. Apesar de os dois habitarem o mesmo espaço, terão tarefas distintas. O emocional passará por uma reforma integral cujos cacos disformes serão encaminhados para restauração. Uma nova estrutura será edificada tendo como suporte uma sensibilidade que floresça sem provocação artificial, como foi direcionada pelo mundo digitalizado. O racional continuará sua tarefa, menos ridículo e mais sábio, calibrado pela precisão do pensamento ponderado e inteligente. Afinal, sou um homem emprestado para o mundo, mas me pertenço. Feita a limpeza necessária nos desvãos de minhas memórias, vou emergir dos escombros, explorar meus sonhos, não como castelos utópicos que o passado sepultou, mas sim como promessas fertilizadas pela esperança, ajustar minhas balizas corretamente apontadas para a verdadeira mudança. O tempo que passou serviu de aprendizado e daqui para a frente cabe a mim fazer as podas de algumas distorções, sem transformar o mundo num clipe triste de uma crônica do coronavírus. Apesar de constatar que os anos correram rapidamente, tenho tempo suficiente para procurar ver as boas coisas que a vida oferece com mais vagar. Vou colocar no meu espírito a tonalidade própria da minha mudança, temperando-a com moderação, harmonia e amor neste novo formato que se avizinha. São estas as propostas que ofereço para a humanidade.  Apesar de calcadas no mesmo lampejo epifânico que orientou Clarice Lispector, guardam a verdadeira mensagem de que a vida é bela e merece ser exaurida intensamente. Afinal, somos merecedores de um Natal com paz e harmonia e um novo ano com a infindável esperança de um próspero amanhã. Basta ter fé e acreditar.
domingo, 20 de dezembro de 2020

Perseguição obsessiva

As relações humanas, ao longo do tempo, sofrem profundas alterações na medida em que as pessoas vão imprimindo em suas condutas ações que contrariam o bem-estar comum e até a mesmo a segurança alheia. A inevitável transformação social, principalmente aquela provocada pelas redes sociais e outros meios de comunicação, amplia-se rapidamente e a legislação existente, apropriada para uma outra época, não suporta carregar em seu tipo penal a mudança produzida e que necessita urgentemente da tutela penal. Nesta linha de pensamento, a contravenção penal disposta no artigo 65 do decreto-lei 3.688/41, que trata da perturbação da tranquilidade, dispõe taxativamente: "Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou motivo reprovável", apesar da abrangência do tipo, não suporta o acréscimo que lhe sobrecarrega em razão das novas necessidades advindas da vida moderna e que exigem uma pronta providência do legislador penal. Até mesmo o artigo 147 do Código Penal, que assim se expressa: "Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave", também não reúne elementos constitutivos de uma nova conduta que ultrapassa os limites de uma mera ameaça e vem revestida com outras circunstâncias comprometedoras.  A Câmara dos Deputados, diante da lacuna legislativa, aprovou recentemente (10/12/20), a proposta que estabelece a criação do crime de perseguição obsessiva, com a pena de até quatro anos de prisão. Vários países já introduziram em suas legislações o crime em inglês denominado "stacking", com o significado de perseguir, vigiar, monitorar, espiar, enfim manter o controle de uma determinada pessoa, seja a distância ou próxima.  Sua incidência ocorre geralmente tanto no final de um relacionamento amoroso mal sucedido ou até mesmo em decorrência das ações habituais do dia a dia.1 Assim ficou redigido o texto do projeto de lei 1.369/2019, de autoria da senadora Leila Barros, para tipificar o crime de perseguição obsessiva, com a inclusão do artigo 147-A ao Código Penal: "Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade". Percebe-se, claramente, pela leitura do texto legal sua atualidade em enfrentar várias situações até então não compartilhadas pela legislação contravencional que se pretende revogar. Fica evidenciado, portanto, que a aceleração da mudança social vem se desenvolvendo em velocidade excessiva e exige uma norma compatível com a segurança daqueles que figuram como vítima do novo ilícito. É comum a pessoa - tanto faz homem ou mulher como vítima - procurar uma delegacia de polícia e relatar que vem sendo reiteradamente perseguida, assediada e até mesmo ameaçada em sua integridade física ou psicológica por alguém com quem tivera um relacionamento amoroso ou até mesmo uma situação diversa, sem qualquer aproximação afetiva, tendo como intuito a sua desestabilização, seu apavoramento, enviando recados, fazendo chamadas no celular, insinuações nos grupos sociais, mensagens via grupos sociais e não receber da autoridade a devida providência em razão da carência legislativa. Pela proposta que foi aprovada na Câmara dos Deputados e será agora encaminhada ao Senado Federal, o objetivo do texto é proteger e amparar a pessoa que se encontra ameaçada em sua integridade física e psicológica que também representa uma verdadeira enfermidade e, em consequência, sofre restrições em sua capacidade de locomoção com invasão de sua esfera de privacidade e liberdade. A intenção, portanto, o elemento subjetivo do agente na novatio legis, é fazer com que a vítima se sinta perseguida, atormentada, ameaçada física e psiquicamente, por qualquer meio, transformando sua vida em um inferno existencial, impingindo sérios danos à sua intimidade e restringindo sua liberdade, como é sempre relatado por aqueles que sofrem perseguição obsessiva. Tais circunstâncias faltantes foram reunidas na nova proposta e preenchem uma lastimável lacuna corroída pelo tempo. É importante ressaltar que a persecução penal só poderá ser intentada se a vítima, ou seu representante legal, oferecer a condição específica do direito de ação, consubstanciada na representação, ato pela qual autoriza a autoridade policial a dar início à investigação e ao Ministério Público o oferecimento da peça delatória pública.  Como muito bem observou o sempre arguto e criterioso Luiz Flávio Gomes: "Tal previsão é salutar, haja vista caber ao destinatário da violência a ponderação sobre os custos pessoais a serem enfrentados pelo processamento da demanda, uma vez que, em regra, o agente provocador é pessoa de convívio próximo da vítima."2 Também é de se consignar que a pena é aumentada de metade se o crime é praticado contra criança, adolescente ou idoso; contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 do Código Penal; mediante concurso de duas ou mais pessoas ou com o emprego de arma. Referido arsenal legislativo, contando com a aprovação do Senado Federal, com certeza trará a proteção legal consentânea com a necessidade da sociedade atual. __________ 1 Câmara aprova criminalização da perseguição obsessiva ou stalking. 2 "stalking" (perseguição obsessiva)
domingo, 13 de dezembro de 2020

O Direito Penal na era da tecnologia

Pelo que narram os estudiosos, até o final do século passado o tempo foi se escoando dentro de um padrão de normalidade, com poucas mudanças radicais a respeito da vida e do comportamento do homem. Principalmente no Direito, que é uma ciência que caminha pari passu com o desenvolvimento social. A lei, responsável pela elaboração do equilíbrio das relações, nem sempre antecede o fato. Aguarda-o a ganhar corpo para, em sequência, conhecendo seus meandros, elaborar a norma que seja adequada. O início do século XXI, no entanto, trouxe uma acelerada transformação que foi rompendo estruturas arcaicas e já carcomidas temporalmente. Veja, a título de exemplo: O Código Penal foi editado em 1940 e nele várias mudanças foram introduzidas, assim como novas práticas delituosas foram inseridas e outras, ultrapassadas e em desacordo com o pensamento atual, excluídas. O Código de Processo Penal, por sua vez, com vigência a partir de 1941, também providenciou suas adaptações para atender às necessidades de uma entrega de prestação jurisdicional mais célere e menos complicada. Ambos os estatutos, rapidamente, tiveram que sair da inércia que frequentavam em razão da indisfarçável interação com as tecnologias de última geração. Nesta linha de raciocínio é interessante observar que a lei processual penal - para expedição de um édito condenatório - é exigente com relação à autoria e materialidade do delito, estruturas básicas e fundamentais da função persecutória judicial. Assim, a autoria de um crime deve ser demonstrada de forma inequívoca, preferencialmente, por testemunhas presenciais, quando possível. Tanto é que no Direito Romano vigia a regra testis unus, testis nullus, no sentido de que o depoimento de uma só pessoa não era suficiente para condenar, exigindo-se a confirmação por outra testemunha.  O legislador do século passado satisfazia-se com o reconhecimento feito por uma testemunha (de visu) ou até mesmo pelo reconhecimento pessoal previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, que é uma recomendação e não uma exigência. Pois bem. As câmeras de segurança instaladas em locais estratégicos nas vias públicas e nos interiores de estabelecimentos frequentados por razoável número de pessoas, com seus olhos eletrônicos, clicam a imagem que interessa e, quando possível, no mesmo instante, já ostentam a qualificação do infrator. É uma delação muito mais perfeita e sem qualquer margem de erro, como às vezes acontece com a humana. Não há que se falar em invasão à privacidade da pessoa investigada porque a captação de imagens em local essencialmente público visa também à proteção e segurança dos frequentadores. Não deixa de ser uma tecnologia interessante para o combate preventivo e até mesmo repressivo da criminalidade, tanto aquela praticada de forma sorrateira, como o caso de um punguista na subtração de um pertence do pedestre, como na modalidade organizada, envolvendo várias pessoas na empreitada criminosa de um assalto a banco. São os meios técnicos que vão gradativamente substituindo as provas humanas, expondo as imagens e muitas vezes o som do ilícito, possibilitando uma interpretação perfeita, com base exclusivamente nos fatos reais, sem qualquer interferência narrativa do homem. O olho humano é substituído pela lente da câmara. Assim como o radar instalado na cidade e rodovia, substituto perfeito da fiscalização humana. Como o detector de metal, no controle de acesso a determinados lugares. Com a obrigatoriedade do uso de máscara de segurança em razão da pandemia, cogita-se a respeito de uma determinada limitação dos instrumentos óticos de vigilância eletrônica, por terem acesso parcial ao rosto do investigado. Tanto é assim que os infratores sempre tiveram uma preferência de cobrir total ou parcialmente o rosto durante a empreitada criminosa, mesmo antes da pandemia. A própria tecnologia, no entanto, veio a se superar, eliminando a dificuldade apresentada. A Secretaria de Segurança Pública da Bahia, em local monitorado por câmeras para garantir a segurança de muitos frequentadores, ajustou a tecnologia de reconhecimento facial, que equipara traços dos rostos com as imagens disponíveis nos bancos de pessoas com ordens de prisões, mesmo com a utilização de máscaras, de tal forma que obtém 94% de similaridade, indicativo relevante para a função de segurança.1 De acordo com a evolução cada vez mais acentuada da tecnologia, as audiências atuais realizadas com o auxílio da ferramenta de videoconferência em "sala virtual", também abrigarão dispositivos eletrônicos que irão figurar como testemunhas dos fatos perquiridos. A Justiça, desta forma, pode continuar com os olhos vendados porque a tecnologia irá proporcionar as melhores provas obtidas, dispensando-se os depoimentos das falíveis testemunhas. __________ 1 Clique aqui.
domingo, 6 de dezembro de 2020

A diversidade étnico-racial nas vacinas

Inegavelmente agora é a hora e a vez da ciência que, com toda a experiência acumulada, reúne as melhores condições para ditar e aconselhar as normas de segurança para a manutenção da vida de cada cidadão, principalmente quando a humanidade se encontra diante de um inevitável e, até o presente, invencível inimigo que já exterminou incontáveis vidas humanas. No presente e angustiante processo pandêmico as recomendações constantes nos protocolos de segurança sanitária, já conhecidos de todos, não surtiram os resultados desejados, pois enquanto para os outros países tem início a segunda onda de ataques do coronavírus, no Brasil, em razão de sua imensidão territorial, a primeira continua a reverberar e a aumentar os índices que até então se encontravam sob aparente controle. A pesquisa em torno do ser humano é de vital importância, a qualquer tempo. São inúmeros pesquisadores que trabalham em equipe e se dedicam exclusivamente a encontrar soluções não só para as doenças habituais, mas também aquelas consideradas raras e as que surgem em razão de uma epidemia ou pandemia. Por isso que as pesquisas peregrinam 24 horas pelo mundo coletando informações consideradas consistentes por um grupo de cientistas e, em seguida, serão utilizadas por outro, tudo para vencer o difícil terreno do desconhecido e trazer uma solução que seja permanente e saudável para a humanidade. Daí que a ciência, entre seus erros e acertos, demora muitos anos para andar poucos metros. As vacinas, neste roteiro, desde seu nascedouro até a comprovação de sua eficácia e segurança, carecem de alguns anos para o seu aperfeiçoamento. Tanto é que, no caso presente, aquelas que se encontram na terceira fase, que é a da inoculação em humanos, já começaram a colher resultados satisfatórios nos ensaios preliminares, atingindo até 90% de eficácia, sem qualquer efeito adverso reportado e com excelente margem de tolerância. Tamanha pressa - plenamente justificável pela exiguidade temporal - faz com que as vacinas tenham como único e emergencial objetivo a produção voltada contra a Covid-19, exclusivamente, sem qualquer relato de benefício estendido a outras doenças. E, por este caminho, várias notícias indesejáveis passaram a trilhar. Eclodiu a informação de que as vacinas para a Covid-19 têm potencial suficiente para alterar o DNA das pessoas inoculadas, provocando mutações genéticas graves e que podem ser passadas para as próximas gerações. Tal informação, apesar de cientificamente refutada, fermentou o número de pessoas contrárias à vacinação e, com certeza, irá elevar o rol de seus seguidores. Nem se pode cogitar da obrigatoriedade ou não vacinal porque a questão foi judicializada perante o Supremo tribunal Federal, que em breve irá proferir sua decisão. Por outro lado, já com sedimentação científica mais ponderada e consistente, não basta somente a busca pela eficácia e segurança das vacinas, os ensaios clínicos devem envolver também a diversidade étnico-racial, que vem sendo desprezada em razão da urgência da cobertura vacinal pretendida. Uma vacina que é testada nos Estados Unidos, por exemplo, pode ter uma boa resposta imunológica à população americana, mas sem produzir os mesmos dividendos para a brasileira. Isto porque cada nação carrega sua genética e epigenética próprias, formadas com a participação de vários grupos étnicos. A cobertura vacinal, com tais diferenças, não é homogênea e nem irá cumprir a imunização proposta, pois pode ocorrer que certos grupos não sejam atingidos. É sabido que a população brasileira não é proveniente de uma única origem. Pelo contrário. Pela sua formação histórica, é fruto de uma miscigenação exacerbada. Aqui encontramos desde os povos indígenas, africanos, portugueses, italianos, espanhóis, alemães, americanos e outros imigrantes europeus, asiáticos e orientais, formando uma integração genética e cultural. Uma verdadeira Torre de Babel genética. Tanto é que, recentemente, foi lançado no Brasil o projeto "DNA do Brasil", que consiste na leitura do genoma da população  com a finalidade de garimpar informações importantes para o reconhecimento do código genético do povo e, a partir desse marco,  estabelecer políticas públicas para a prevenção das doenças com predisposição genética localizada. O conhecimento do genoma da população, desta forma, torna-se indispensável para os pesquisadores que irão produzir o imunizante para o país. Basta ver a prova desta assertiva nas vacinas ainda em estudos mais avançados. A Universidade de Oxford (Reino Unido), que desenvolve em parceria com a AstraZeneca, na avaliação dos grupos étnicos-sociais, na fase combinada 2/3, apontou que 95% dos participantes (524 de 552) eram brancos e um negro entre os 5% restantes, além de 3,4% asiáticos, 072% miscigenados e outras minorias, incluindo 0,72 de hispânicos, indianos e irlandeses.1 A Coronavac, desenvolvida pela chinesa Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan, do Brasil, em seus estudos ½ na China, não publicou a diversidade étnica dos participantes.2 A vacina Sputinik V, desenvolvida pelo Instituto Gamaleia, da Rússia, na fase combinada ½, revelou que 100% dos participantes eram brancos.3 Segundo os princípios da Bioética, dá-se por atendido o que recomenda a justiça distributiva ou da isonomia, mas não satisfaz plenamente a exigência da beneficência. Percebe-se que, sem visualizar qualquer bola de cristal, mas pela urgência da fabricação das vacinas, alguns detalhes referentes à diversidade étnico-racial não foram cumpridos rigorosamente e podem até fazer com que a vacina seja segura, porém com a eficácia reduzida. __________ 1 Testes de vacinas contra Covid-19 têm que ter diversidade étnico-racial para representar mundo real. 2 Testes de vacinas contra Covid-19 têm que ter diversidade étnico-racial para representar mundo real. 3 Testes de vacinas contra Covid-19 têm que ter diversidade étnico-racial para representar mundo real.  
domingo, 29 de novembro de 2020

Campanhas públicas de saúde

Interessantes as maciças campanhas lançadas para chamar a atenção de um maior número de pessoas da comunidade a respeito da realização de exames preventivos - indicados reiteradamente pela Organização Mundial da Saúde - e necessários para evitar determinadas doenças graves desde o seu início. Mal terminou o Outubro Rosa, para o diagnóstico precoce de câncer na mama e do colo de útero, e já vai se despedindo o Novembro Azul para a conscientização do diagnóstico preventivo do câncer da próstata, segunda causa de mortalidade por neoplasias. Sem sombra de dúvidas a maior adesão é constatada entre as mulheres mesmo porque, com certa regularidade, frequentam ginecologistas desde a adolescência, com a realização dos exames recomendados rotineiramente. Com relação aos homens o programa, apesar de encontrar resistência inicial, já conta com uma acentuada adesão. E, pode-se dizer que, tanto para os homens como para as mulheres, se a doença for descoberta no início, há uma confortável margem de cura. O avanço desmedido da biotecnologia proporciona a realização de exames sofisticados que perscrutam lado a lado os segredos das células que circulam nos corpos humanos, silenciosas e inatingíveis e transportam um roteiro genético imutável, uma missão a ser cumprida de acordo com a programação do DNA, que estabelece todo o histórico de vida da pessoa. Os exames recomendados para verificar a saúde da próstata são a análise sanguínea do PSA e o toque retal, para homens acima de 50 anos ou os que atingiram 40, quando há histórico de câncer na família e também homens negros, que são mais propensos a desenvolver esse tipo de câncer. Tanto é que o Ministério da Saúde instituiu no âmbito do SUS a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem.1 A pesquisa elaborada pelo Instituto Lado a Lado pela Vida - grupo de referência engajado na prevenção de doenças e saúde masculina - revelou que a Campanha Novembro Azul é conhecida por 94% dos entrevistados, mas entre os homens com mais de 40 anos quase a metade não tem o hábito de ir ao urologista.2 A Constituição Federal declara em seu artigo 196 que a saúde é direito de todos e aponta o dever do Estado de patrociná-la, compreendendo não só a saúde da mulher, que conta com um arsenal mais completo de recursos, como também a do homem, norteadas pelo princípio isonômico, tanto na ação preventiva como na de recuperação. A modernização, aliada à aceleração social e ao dinamismo participativo, obrigaram o Estado a se aproximar do cidadão e a realizar práticas e políticas públicas com investimentos consideráveis na área da prevenção. O efeito da globalização fez com que o Estado se abrisse para sua comunidade interna e flexibilizasse muitas de suas funções e, dentre elas, as intervenções relacionadas com a área da saúde. Tal iniciativa demonstra que o gasto público é bem menor quando ajustado para a prevenção de doenças, principalmente aquelas consideradas graves, longas e que consomem recursos públicos vultosos. O novo arranjo dá um considerável alento ético e político para construir um alicerce sólido em favor das identidades pessoais e coletivas da comunidade. A Organização Mundial da Saúde, por sua vez, define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças. Assim, os programas de saúde no contexto coletivo são de vital importância, pois uma de suas metas é justamente promover o bem comum com a diminuição dos riscos para a saúde individual e coletiva, além do que cumpre o afirmativo constitucional da dignidade da pessoa humana. Não se pode, no entanto, obrigar o cidadão a se submeter aos exames de diagnóstico de câncer de próstata. O serviço deve ser oferecido, mas ele, no âmbito de sua autonomia da vontade - que é justamente o seu juízo de autodeterminação e decisão - é que irá decidir e se responsabilizar pela escolha feita. __________ 1 Portaria 1.944, de 27 de agosto de 2009. 2 A Voz da Serra.
domingo, 22 de novembro de 2020

O Reconhecimento fotográfico no penal

A persecução penal realizada na fase da investigação policial visa buscar todas as provas relacionadas, direta ou indiretamente, com o delito praticado, colocando-se em relevo o esclarecimento da autoria assim como da materialidade. Chega-se à autoria, às vezes pela própria confissão do suspeito, outras pelas testemunhas e outras ainda por meio de indícios e circunstâncias que guardem credibilidade e que possam apontar com relativa segurança o responsável pela prática de um crime. A polícia judiciária, responsável por tal tarefa, não encontrando de imediato a autoria do ilícito, pode lançar mão de outros meios. Quando, por exemplo, pairar suspeita contra determinada pessoa, poderá realizar a prova chamada de reconhecimento pessoal, obedecendo, rigorosamente, o disposto no artigo 226 do Código de Processo Penal. Conforme determinação legal, por ser formalidade indispensável, a pessoa que vai ser reconhecida deverá perfilar ao lado de outras com aspectos físicos e fisionômicos com alguma semelhança. Tal procedimento deve ser observado com o máximo rigor, pois é até comum os tribunais julgarem pela imprestabilidade da prova colhida por não ter sido observada a regra básica. E, sem qualquer dúvida, é uma tarefa difícil para a autoridade policial conseguir arrebanhar outras pessoas com perfis semelhantes à que vai ser reconhecida. Tal prova necessita, além das providências apontadas, ser compartilhada por outras para sustentar uma possível condenação. O reconhecimento fotográfico, no entanto, além de não ser previsto na legislação processual, apresenta-se como uma prova alternativa, de caráter precário e inonimada e que, por si só, não merece a credibilidade exigida no juízo criminal que, diante da dúvida, milita em favor do réu  (in dubio pro reo). Não se exclui a utilização de fotografia na investigação criminal, que poderá servir de base para a busca da autoria, mas não tem o condão de, isoladamente, alicerçar um decreto condenatório. É prova por demais efêmera. Tamanha é a preocupação com esta matéria que o Superior Tribunal de Justiça, em processo que teve como Relator o ministro Rogério Schietti Cruz, assim decidiu: "O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa."1 Tal acórdão também exigiu categoricamente a observância da regra imposta pelo artigo 226 do estatuto processual no sentido de que, quando for prova por reconhecimento fotográfico, em primeiro lugar a autoridade policial deve fazer uma prévia descrição da pessoa a ser reconhecida exibindo àquele que vai reconhecer as fotos existentes e que guardem semelhança com o suspeito e não pinçar uma das fotos e apresentá-la de pronto para o reconhecimento. É sabido que a mente humana guarda lembranças por um determinado período de tempo em razão da sua capacidade de armazenamento de informações. A própria psicologia do testemunho faz ver que a pessoa que foi vítima ou que tenha presenciado um determinado crime, quando ouvida ou chamada para proceder a um reconhecimento, dependendo do lapso temporal fluído e também das circunstâncias no momento do evento, apresentará dificuldade para apontar com segurança o agente responsável pelo crime e pode, como sói acontecer, apontar um outro com algumas características do verdadeiro criminoso. Se já é difícil para a vítima e testemunha, mesmo que tenham presenciado a prática de um delito, reconhecer o autor, imagine-se fazer tal reconhecimento por fotografia, que geralmente apresenta somente o busto, sem qualquer movimento, sem qualquer expressão, além da duvidosa qualidade da foto arquivada. E, mesmo assim, se for positivo o reconhecimento, deverá ser roborado por outras provas idôneas e obedecer rigorosamente ao due process of law. O processo penal, desta forma, é uma complexidade de atos atrelados a uma rigidez concreta que será valorada por uma lei abstrata com aplicação geral e imparcial. Justamente por isso deve enveredar por caminhos seguros para que possa dar o necessário equilíbrio na relação processual, protegendo, de um lado, a sociedade e, do outro, o acusado de eventual injustiça. Eventual condenação criminal vista sob o prisma garantista, diferentemente da prova indiciária que sustenta a denúncia ministerial, deve oferecer uma prova inconcussa a respeito da autoria do delito. A verdade processual deve brotar de uma atividade cognitiva judicial que rastreou todo o material probatório apresentado para construir o convencimento lógico e coerente da jurisdição. A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, amparada pela melhor hermenêutica, pode representar o fato gerador de uma nova interpretação no Processo Penal, colocando uma derradeira pá de cal a respeito do tema. ____________ 1- HC 598.886- (2020/01 79.682-3).
domingo, 15 de novembro de 2020

Vacinas em crianças e adolescentes

O universo nunca aguardou com tanta ansiedade a descoberta de uma vacina para combater a pandemia provocada pelo coronavírus. Se, de um lado, os cientistas apressam suas pesquisas e alardeiam o desconhecimento acerca do invasor, de outro a população sente-se conduzida para a travessia de um campo minado, em total insegurança, pois sequer findou a primeira onda avassaladora, teve início a segunda com sinais mais agressivos. A insegurança se torna mais angustiante com relação ao imunizante porque, apesar dos testes em humanos, não se sabe se terá potencial suficiente para exterminar radicalmente o mal que aflige a humanidade. Alguns países tiveram que retomar os protocolos de segurança impostos pela Organização Mundial de Saúde e, desta vez, ao que tudo indica, com mais rigor e restrição. Observa-se, por outro lado, que há as vacinas já testadas durante muitos anos e que se incorporaram à vida do brasileiro, pelos bons resultados alcançados. O Plano Nacional de Imunizações (PNI) lançou recentemente o programa de vacinação contra a Poliomielite e Multivacinação 2020, compreendendo todas as vacinas preconizadas no calendário vacinal das crianças e adolescentes, com a intenção de impedir a transmissão de doenças imunoprevisíveis.1 A poliomielite, conhecida também como paralisia infantil, é considerada doença contagiosa pela transmissão de pessoa a pessoa e acarreta sequelas gravíssimas, principalmente motoras pela infecção da medula e cérebro, sem qualquer chance de cura. Ocorre que, em razão da baixa adesão vacinal - notadamente contra a poliomielite no estado de São Paulo que atingiu apenas 39,6% das crianças - a campanha foi prorrogada até o dia 13 de novembro.2 Talvez o movimento antivacinal, que vem prosperando a cada ano, tenha desestimulado os pais a levarem seus filhos para a recomendada imunização, apesar da previsão imposta no § 1º do artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente de ser obrigatória a vacinação dos menores de idade nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. O grupo contrário à vacinação não encontra qualquer amparo científico que tenha sido comprovado e muito menos a adesão da Organização Mundial da Saúde, que já se manifestou reiteradas vezes a respeito da eficácia das vacinas e que considera o movimento como uma das ameaças mundiais à saúde. É certo que a pessoa maior, capaz, pelo princípio bioético da autonomia da vontade do paciente, é dotada de liberdade para praticar ou não determinado ato. Não se discute aqui, no entanto, a vacinação de pessoa adulta, que será decidida pelo tema já judicializado perante o Supremo Tribunal Federal, ainda sem agendamento de data ainda para a discussão. Os pais ou responsáveis legais são legitimados para representarem os filhos menores e adolescentes, mas devem nortear suas condutas  pelo estatuto menorista, que determina que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar  "com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária." Diante de tantos deveres, não podem os pais se quedarem inertes visando eximirem-se da responsabilidade da vacinação dos filhos menores. Isto porque, em razão da longa experiência e constante aperfeiçoamento dos imunizantes, que desenvolveram proteção aos organismos humanos contra infecções, atingiu-se com sucesso a erradicação de várias doenças evitáveis e que acarretaram muitos danos e mortes à humanidade, dentre elas, por exemplo, o sarampo, a poliomielite e a difteria. Tais doenças, pelo que se observa em razão da hesitação vacinal, vêm prosperando e fazendo um número infindável de vítimas, além de se impulsionarem como agentes propagadores de outras ainda desconhecidas. A vacina, pode se dizer, é o resultado de longos trabalhos e estudos obedecendo rigorosamente às normas e protocolos científicos internacionais. Daí que, para atingir a desejada segurança e a eficácia comprovada, submete-se a várias fases, compreendendo o estudo laboratorial inicial, testes em animais e humanos, com o acompanhamento dos órgãos de controle (Sistema CEP/CONEP) e, finalmente, cumpridas todas as exigências, seu registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Tudo também de acordo com princípio bioético da beneficência, pelo qual se busca o resultado mais satisfatório com a exclusão de qualquer dano à pessoa, nos exatos termos do primum non nocere ou do malum non facere. A não vacinação, desta forma,  priva a criança e o adolescente de receberem a proteção necessária contra as doenças evitáveis e os coloca em um grupo de risco maior ainda do que sua vulnerabilidade original, além de impedir a matrícula em escola pública e de ingressar em programas sociais relacionados com as políticas públicas do governo. Os pais, que foram vacinados, poderiam conferir a mesma chance aos filhos. A imunização deve ser feita não em razão do caráter cogente, mas sim pelos múltiplos benefícios já comprovados à saúde dos infantes. ____________  1- Informe Técnico Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite e Multivacinação para Atualização da Caderneta de Vacinação da Criança e do Adolescente   2- Campanha de multivacinação e poliomielite é prorrogada até 13 de novembro em SP 
domingo, 8 de novembro de 2020

A palavra da mulher no estupro

É muito difícil e até mesmo, se assim prosperar a pretensão, uma ousadia tecer comentários jurídicos a respeito de um fato perquirido por um processo criminal em que as informações que chegam ao público foram registradas unicamente pela imprensa. Não que não sejam idôneas, mas falta o olho clínico profissional para captar as circunstâncias determinantes de uma decisão. Mas o certo é que o processo em que figurou a influenciadora digital catarinense Mariana Ferrer como vítima do crime de estupro de vulnerável, culminou com a absolvição do acusado e o registro lamentável do advogado que, coram judice, proferiu impertinentes e desnecessárias ofensas a ela. A proposta do presente artigo prende-se à análise jurídica a respeito da palavra da vítima nos crimes contra a dignidade sexual. A liberdade sexual, após o rompimento de muitos entraves morais e legais, é hoje considerada um direito inalienável à pessoa, integrando o casulo protetivo da dignidade humana, consagrado constitucionalmente. Assim, a liberdade sexual apresenta-se como uma conquista do homem e da mulher para escolherem o parceiro que for do seu afeto e agrado. Neste terreno prevalece a reciprocidade. Se, por ventura, ocorrer a incidência de grave ameaça ou violência para o ato sexual, incompatíveis com o propósito, rompe a linha de confiança e torna-se insuportável qualquer convivência. É o verdadeiro estupro. No caso discutido, a imputação feita pelo Ministério Público em sua denúncia inicial, é da prática do ilícito de estupro de vulnerável. O tipo penal compreende a prática de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos (homem ou mulher), com pessoa que, por deficiência mental ou enfermidade, não tem o necessário discernimento para a prática do ato ou que, por qualquer outra causa, não puder oferecer resistência, que é o caso do processo noticiado. A expressão "qualquer outra causa", contida no artigo 217-A, § 1º, do Código Penal, como se percebe, é indeterminada. A conjunção alternativa "ou", por minúscula que seja, amplia o alcance do texto legal e envolve até mesmo o noticiado estado etílico alegado pela vítima. Vulnerável, termo de origem latina, vulnerabilis, em sua origem vem a significar a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização. Na concepção jurídica, no entanto, a lente do legislador voltou seu foco para a perspectiva do fraco, aquele que, visto dos mais diferenciados matizes, não reúne condições iguais à do cidadão comum, tendo como fonte de referência a figura do homo medius. O fator ebriedade, como no caso relatado, já é um determinante para demonstrar que a pessoa necessita de uma proteção diferenciada, vez que ausente sua volição. Sem essa garantia, cai por terra a igualdade apregoada na lei maior. Feitas tais necessárias considerações, a palavra da vítima é de vital importância para esclarecer o crime de estupro que, cometido sem a presença de testemunhas (solus cum sola in solitudinem), busca na versão da ofendida o único caminho informativo e, como tal, núcleo de todo trabalho policial e judicial. Paralelamente, outros indícios, que são os fatos que circundam a conduta principal, serão coletados para formarem um conteúdo probatório que seja coerente e guarde veracidade com a versão apresentada. Tanto é que a vítima do processo em questão, sentindo-se abusada sexualmente, compareceu perante a delegacia de polícia e apresentou sua versão a respeito dos fatos, escancarando sua intimidade sexual, oportunidade em que foi submetida a exames de corpo de delito e alcoolemia. Em juízo foi novamente exposta e reiterou sua versão inicial. Ficou demonstrada a conjunção carnal com a ruptura himenal recente, além da presença de sangue dela e esperma do acusado nas suas vestes, porém o exame de ebriedade não restou positivo, fato que direcionou a sentença para decretar a absolvição, fazendo cair por terra o estado de vulnerabilidade. O quadro relatado pela vítima guarda credibilidade e coerência com as demais provas coletadas, com exceção do exame de alcoolemia realizado durante um período de 24 horas, tempo provável de se perder o demonstrativo da ebriedade e que serviu de sustentação para a expedição do édito absolutório, em razão da não comprovação da alteração do estado anímico da ofendida. Daí, diante da dúvida existente, o magistrado optou pela improcedência da ação, acolhendo, inclusive, o parecer do Ministério Público. Não há nenhuma distorção jurídica, apesar de que uma sentença condenatória, pelas provas noticiadas pela imprensa, teria também suporte probatório até mais robusto. A palavra da mulher, nestas circunstâncias, não teve a sustentação necessária para fazer vingar a pretensão deduzida na denúncia ministerial. Apesar de toda a insistência probatória, não conseguiu reverter uma prova pericial que permaneceu isolada e serviu de sustentação probatória. Lastimável, no entanto, foi a peroração feita pelo advogado durante o julgamento, tecendo comentários indecorosos a respeito da inidoneidade da vítima, aliás totalmente inadequados e fora de todo o contexto probatório, com a intenção de desprestigiá-la perante a justiça. A vítima procurava justiça e, num repente, na inversão processual desmedida, torna-se ré e outra defesa não teve a não ser suplicar piedosamente para que seus direitos fossem respeitados. O episódio lembra bem a frase dita pelo advogado Christian Malesherbes, quando defendia Luís XVI: vim aqui para procurar a Justiça e nada mais encontro do que acusadores (Je cherche ici des juges , je n ' y trouve que des accusateurs).
domingo, 1 de novembro de 2020

O legado de Fleming

Desde a decretação da pandemia pela Organização Mundial de Saúde - abrindo um enorme ponto de interrogação para a saúde mundial -, cientistas das mais expressivas referências e até aqueles que agem movidos pelo espírito colaborativo debruçaram-se sobre as pedras de Petri para pesquisar uma vacina que tenha segurança e eficácia no combate ao coronavírus, de forma definitiva. Apesar de algumas delas já se encontrarem na fase final dos estudos envolvendo a colaboração de participantes, o certo é que, até o momento, a Covid-19 apresenta inúmeros buracos negros e, apesar de todos os esforços científicos realizados, muitas indagações ainda continuam sem respostas. É até compreensível e o relato científico dá conta de que uma vacina demanda um lapso temporal de anos para atingir sua eficácia, vez que o tempo irá se encarregar de aperfeiçoá-la. No caso da Covid-19 pretende-se colocar a vacina para inoculação num prazo inferior a um ano. É um desafio e tanto a ser enfrentado. Tem gente que é predestinada e já nasce com o dom da visão voltada para os tempos futuros. Alexander Fleming nasceu na Escócia, em 1881, e desde criança aguçou seu poder de observação, assim como o interesse em buscar o princípio fundamental de qualquer coisa, mas não desprezava também um jogo de bridge para ganhar algum dinheiro dos seus colegas do curso de medicina. Pretendia escolher a especialidade de cirurgia, mas o destino o predestinou para o Serviço de Inoculações do Saint Mary Hospital da Inglaterra. Mesmo trabalhando como pesquisador em ambiente precário, com recurso material mínimo, vislumbrava que o cientista tinha que buscar a exatidão após passar inúmeras vezes pela repetição da mesma experiência até atingir um resultado que fosse satisfatório. Com tal denodo e profundo conhecedor da bacteriologia, descobriu um fungo que continha uma substância antibacteriana e suas propriedades antibióticas, a que deu o nome de penicilina. Mudou a história da medicina. Tamanho seu comprometimento com a ciência que, em uma de suas experiências, colocou em risco sua própria vida quando se autoinoculou da vacina anticorpos, de cuja eficácia alguns cientistas duvidaram, conforme foi descrito pelo Saint Mary's Hospital Gazette: "Fleming precisava de uma confirmação experimental à sua teoria. Não podendo, nem querendo, servir-se para isso de um doente, fez a si próprio de cobaia e deu a si mesmo uma injeção intravenosa de vacina estafilocócica. Foi um ato de coragem"1. Tal ato introduziu uma nova modalidade de pesquisa, que não envolve o pesquisador e sua equipe e sim voluntários que se dispõem a colaborar com a ciência, colocando em risco sua própria vida. Alguns países, como a Inglaterra por exemplo, para abreviar todo o iter obrigatório das pesquisas, compreendendo testes iniciais em laboratório, a utilização da droga em animais e, finalmente, a aplicação em voluntários humanos, optaram por provocar a infecção do vírus no colaborador da pesquisa, no processo conhecido como Human Challenge Trial, consistente em aplicar o imunizante que será testado e, na sequência, provocar a infecção no colaborador da pesquisa. Em vez de vacinar as pessoas para saber sua eficácia, os cientistas irão infectar um número mais reduzido de voluntários, que serão monitorados em ambiente que possibilite o acompanhamento com segurança. Neste caso específico - que causa estranheza ao homem comum vez que se trata de um humano saudável que pode contrair o vírus e em razão dele vir a óbito - há sim necessidade que certas cautelas sejam tomadas e proporcionem a segurança do participante. Não se trata aqui de pessoas que pretendem dar cabo à própria vida e sim que aceitam uma contaminação voluntária com a intenção de, com elevado senso de solidariedade, participar de um estudo que busca o bem maior, comum e universal e pode reverter em benefício para a humanidade. O Estado tem a obrigação de participar da pesquisa como interveniente obrigatório necessário, pois se de um lado há o princípio da autonomia da vontade do paciente, de outro transita o da dignidade e indisponibilidade da vida humana. Há que se estabelecer a tutela proporcional, sopesando os dois bens em conflito. A razão é mais relevante e aqui o Estado tem a obrigação de se manifestar e jamais manter-se neutro diante da autonomia individual que, em tese, apresenta uma escolha incorreta feita pelo cidadão na esfera de sua independência ética. Se a vida humana e este grande latifúndio corporal pertencem ao homem, cabe ao Estado conferir ao titular destes direitos a tutela adequada e proporcional. A comunidade científica mundial não vê com bons olhos tal iniciativa e coloca algumas restrições à autoinfecção do próprio paciente, pois não vingando a vacina inoculada, não há outro tratamento confiável e graves serão os riscos à vida do participante, que já foi contaminado pelo vírus. Tanto é que dele se exige a assinatura de um termo de consentimento em que fique retratada sua inequívoca vontade de participar do estudo, mesmo sabedor dos riscos existentes no percurso da pesquisa. A mobilização geral provocada pelo Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1945 fez com que o mundo científico despertasse para as pesquisas, vislumbrando, desta forma, que o médico do futuro seria um imunizador.  __________ 1 Os homens que mudaram a humanidade. Alexander Fleming. Rio de Janeiro: Editora Três, 1975, p. 63.
domingo, 25 de outubro de 2020

Pandemia ou sindemia?

O vocábulo pandemia, poucas vezes empregado anteriormente, mas que carrega o universo em sua estruturação etimológica, é hoje parte integrante da rotineira comunicação mundial. De origem grega, com o significado de ação envolvendo todo o povo a respeito de um acontecimento relevante e que tenha condições de atingir toda a população de uma nação, foi inicialmente empregado por Platão. Posteriormente, a palavra assumiu outra dimensão e teve seu alcance ampliado pela medicina que a direcionou a uma doença que poderia ultrapassar os limites de um país e atingir outros, enquanto que para o povo de uma mesma nação permaneceu o vocábulo epidemia, que á a difusão interna de doença em determinado período. Pandemia, desta forma, é a disseminação mundial de uma nova doença que se espalha por dois ou mais continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa. O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, quando instado a se manifestar a respeito da disseminação do coronavírus, assim se posicionou: "Pandemia não é uma palavra para ser usada de maneira leviana ou descuidada. É uma palavra que, se mal utilizada, pode causar medo irracional ou aceitação injustificada de que a luta acabou, levando a sofrimento e morte desnecessários"1. Vários estudos liderados por instituições científicas de referência estão sendo realizados com a finalidade precípua de conhecer detalhadamente o vírus e o certo é que, até agora, a covid-19 apresenta inúmeros buracos negros e muitas indagações ainda continuam sem respostas. Tanto é que a única esperança que move a humanidade é a vacina, levando-se em consideração que medicamentos pesquisados para a redução da carga viral do paciente foram insatisfatórios. Recentemente, em artigo publicado na revista científica The Lancet, o seu redator-chefe Richard Horton pinçou com capricho o vocábulo "sindemia", cunhado na literatura médica por Merrill Singer, formado pela junção de sinergia e pandemia e o incluiu em um texto com o significado de que quando duas ou mais doenças se interagem de tal forma podem causar danos maiores que a soma dessas doenças. Seria o mesmo princípio aplicado ao todo que, quando somado, torna-se maior do que a soma das partes que o compõem. Sindemia, em definição mais abrangente, seria o agravamento da saúde de populações não só em razão do mesmo fato gerador dominante, mas principalmente pelo seu entrelaçamento com fatores sociais e biológicos desfavoráveis, que produzem maior vulnerabilidade e desigualdade socioeconômica. Nesta linha de raciocínio pode-se concluir que sindemia representa o coronavírus como o fato gerador, mas, isoladamente, não carrega ele o condão de provocar tantos danos à saúde humana. Age na combinação de várias outras doenças e comorbidades, que geralmente são desencadeadas pela desigualdade social e,  em razão da ausência de políticas públicas efetivas, tornam-se concausas pré-existentes e caminham pela mesma linha preferencial do vírus, como, por exemplo, a pobreza,  a falta de habitação, alimentação, emprego, meio ambiente deteriorado e outras. Com a chegada do coronavírus as doenças pré-existentes foram agravadas e paralisados os tratamentos no combate à hipertensão, diabetes, obesidade, doenças cardiovasculares, respiratórias, raras, cânceres e transplantes, dentre outras.  As estruturas hospitalares e equipes médicas estavam voltadas para o combate à pandemia da covid-19, deixando um caminho aberto para a passagem do vírus. Até mesmo o distanciamento social tornou-se um óbice para que as pessoas pudessem visitar seus médicos e, consequentemente, ficaram expostas às doenças. A sindemia, sob esta ótica, nada mais é do que uma pandemia lato sensu, compreendendo outros fatores que colaboram com a propagação e disseminação do mal que aflige a humanidade. E qualquer análise que seja feita com relação ao recrudescimento do vírus vai indicar que a sua letalidade está diretamente relacionada a outras circunstâncias que giram em torno do fato gerador. Eliminadas tais circunstâncias, o vírus será extirpado definitivamente. Trata-se, na realidade, de uma opinião isolada, mas que tem campo para ganhar corpo e bem reflete a situação atual de combate ao coronavírus. Muitos países, até os considerados de primeiro mundo, por terem se afastado dos protocolos de segurança recomendados, permitiram o avanço do vírus e retornam à situação anterior, até mesmo com o reinício do isolamento com a decretação do lockdown. O autor do referido artigo, em tom crítico, desalojou a atual pandemia e a substituiu pela sindemia, fazendo a seguinte advertência: "Não importa quão eficaz seja um tratamento ou quão protetora seja uma vacina, a busca por uma solução puramente biomédica contra a covid-19, vai falhar. A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter profundas disparidades sociais, nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente protegidas da covid-19"2. É uma situação que exige ampla reflexão da sociedade, principalmente no tocante às políticas públicas de atendimento às necessidades primordiais do cidadão. __________ 1 O que é uma pandemia. 2 'Covid-19 não é pandemia, mas sindemia': o que essa perspectiva científica muda no tratamento.
Apesar de ser a prisão em flagrante delito a mais recomendável - por oferecer de pronto a autoria e a materialidade necessárias para o início da persecução penal fazendo prevalecer a certeza visual do cometimento do crime na prisão de constatação -, a prisão preventiva, pela sua própria caracterização processual, que representa uma prévia análise laboratorial seguida de uma fundamentação convincente e obrigatória, surge como sendo a predileta da legislação brasileira. Tanto é que referida prisão vai exigir um debruçar engenhoso e cauteloso para fazer incidir os requisitos de necessidade e conveniência da decretação da segregação provisória. Pode-se dizer que se trata de uma prisão que irá patrocinar não só os requisitos explícitos de sua decretação, mas, também, os princípios constitucionais garantidores da pessoa cuja liberdade foi cerceada. Basta ver que as novas exigências consubstanciadas na lei 13.964/2019, que alteraram os artigos 282, § 2 e 4º e 311 do Código de Processo Penal, visando atingir um processo penal puramente acusatório, não permitem mais a intervenção isolada do magistrado para a decretação ex officio da prisão preventiva, muito menos a conversão da prisão flagrancial em preventiva, necessitando, para tanto, da representação formal da autoridade policial ou de pleito expresso feito pelo Ministério Público, conforme decidiu recentemente a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal1. Retorna-se, desta forma, a tão apregoada formatação do processo penal democrático, consubstanciada no brocardo: Ne procedat judex ex officio. O recente episódio da decisão proferida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, que concedeu ordem de soltura ao traficante André de Oliveira Macedo, conhecido por André do Rap, causou grande consternação no meio jurídico, verdadeira colidência de entendimentos, principalmente com a revogação da ordem por parte de decisão do ministro Luiz Fux, presidente da corte maior. Sem falar ainda do alardeamento popular, nitidamente contrário à concessão do benefício, uma vez que o acusado já registrava condenações na justiça que somavam 25 anos. A já referida lei, que teve seu nascedouro no pacote anticrime, trouxe em seu bojo, de forma até sorrateira, vez que não fazia parte do texto original, e assim passou a existir após emenda ao artigo 316 do CPP apresentada pelo deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG): "Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal". Impôs, portanto, a obrigatoriedade da manifestação do juiz que decretou a medida de justificar a cada 90 dias a continuidade ou não da restrição. E foi com base na ausência de justificação que foi proferida a decisão do ministro Marco Aurélio de Mello, por entender que ficou evidenciada a coação em razão da ilegalidade da prisão. Muito já se escreveu e debateu a respeito do tema. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal realizou reunião do colegiado para firmar entendimento a respeito do prazo de 90 dias para a revisão das prisões preventivas e a maioria respaldou a decisão do presidente da corte. Mas a questão que trago à baila é relacionada à Hermenêutica. Está mais do que evidenciado que a decisão concessiva da liberdade pelo ministro teve como base a interpretação literal da lei, sem fazer qualquer abordagem com relação ao seu conteúdo. Centrou-se nas exatas palavras do texto legislativo e por essa senda enveredou seu pensamento. Mas a lei, apesar de representar um dispositivo que visa normatizar determinada situação, conferindo-lhe a segurança jurídica recomendável, quando vista de soslaio, pode provocar injustiça. O intérprete, segundo a melhor orientação hermenêutica, deve olhar para a lei não só na fachada da sua exteriorização, mas também buscar por trás do biombo que a esconde, os meandros reveladores da sua real intenção. Apelar pela literalidade da lei, focando unicamente em suas palavras, será um reducionismo interpretativo e que fatalmente irá colidir com valores maiores compreendidos no entorno desta mesma lei. Os romanos, com a sabedoria peculiar na época de Cícero, já proclamavam que summum jus, summa injuria, no sentido de que quanto mais o intérprete for apegado às fórmulas estreitas da lei mais encontrará um direito sem modulação, assim a suma justiça que se busca se transforma em suma injustiça. A decisão estribada unicamente no aspecto gramatical da lei afasta-se dos padrões publicamente reconhecidos. Prejudica e em muito a busca e a pesquisa necessárias para perquirir a ratio essendi da norma, da sua adequação e aplicabilidade e, pior,  inclina-se contra os interesses já repudiados pelo grupo maior da comunidade, que foi injustamente preterido quando o ministro abrigou a pretensão de um pequeno e diminuto grupo de pessoas que se encontravam reclusas,  na mesma vala jurídica. O desfecho, como era esperado, não iria definir literalmente um resultado considerado justo e proporcional aos princípios da justiça. O caso em tela merecia a incidência da interpretação teleológica que incentiva o intérprete a buscar o verdadeiro significado da lei e encontrar o seu alcance, levando-se em consideração as regras salutares do Direito e a prevalência do bem comum. "A palavra, já advertia Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias ideias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples apreciação literal do texto"2. __________ 1 Disponível aqui.   2 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 29.