COLUNAS

Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 1 de agosto de 2021

Repensando o plano vacinal

A inesperada onda pandêmica que atingiu todos os continentes acarretou drásticas mudanças no trato humano, restringindo as ações participativas e exigindo o cumprimento de protocolos de cuidados especiais. Por outro lado, acarretou sérios danos às economias e contaminou o mercado de trabalho, obrigando-o à improvisação e à criatividade, além de fazer o governo bancar um auxílio emergencial para superar as necessidades básicas dos mais vulneráveis. É tempo agora, após um ano e meio da decretação do período pandêmico, de se fazer uma avaliação e apontar as soluções mais acertadas para o enfrentamento da emergência da saúde pública e retirar muitas ideias enviesadas que pavimentaram o tão obscuro caminho trilhado no combate ao vírus. A borrasca ainda continua sua trágica missão, mas o mar deixou se ser revolto e abriu espaço para vencer o labirinto de incertezas. Não paira qualquer dúvida de que a vacina se apresentou como o único e inevitável recurso no combate à doença que assola o país, levando-se em consideração que medicamentos pesquisados para a redução da carga viral do paciente foram considerados insatisfatórios.  É bom que se diga que, em momento olímpico, os cientistas trabalharam com fôlego de corredor de maratona para, em um curto espaço de tempo, descobrir vacinas com eficácia de combate ao coronavírus e às suas variantes. Tal feito vem roborado pelas agências reguladoras que aprovaram e autorizaram algumas delas para a imunização mundial. Pode se dizer que em tempos normais, sem a pressão exercida pela humanidade, os estudos levariam em torno de 3 a 5 anos, período necessário para apresentar uma resposta compatível da ciência. Vale lembrar aqui as palavras escritas no portal da Feira Mundial de Chicago, em 1933, prestigiando os estudos científicos: "A ciência descobre, a tecnologia executa e o homem obedece." No Brasil a pandemia se alastrou com mais velocidade e provocou um elevado patamar de óbitos que no momento ultrapassa mais de meio milhão e um número mais do que expressivo de contaminados que atingiu a recuperação, muitos deles, no entanto, com sequelas profundas. É uma cifra considerável, gestada em poucos meses. Mas, com o avanço da imunização, o país já conta atualmente com 24,5% da população acima de 18 anos vacinada com as duas doses ou dose única. O número só não é mais representativo em razão da dependência de aquisição de vacinas e insumos do exterior. A Organização Mundial da Saúde, por sua vez, desde o início da pandemia, vem conclamando que as vacinas representam um bem público global, com acesso irrestrito a toda comunidade mundial. O Plano Nacional de Imunização (PNI), instituído em 1973, advindo após a lei 6.259/1975, que criou as políticas públicas voltadas à imunização contra enfermidades, contempla a imunização de crianças, adolescentes, adultos, idosos, gestantes e povos indígenas, de acordo com o Calendário Nacional de Vacinação. Tal responsabilidade é, portanto, exclusiva do Estado, obedecendo sempre os parâmetros de igualdade entre os cidadãos e a equidade na distribuição de recursos. O Brasil é considerado um país exemplar e que cumpre zelosamente pela cobertura vacinal, observando o regramento constitucional previsto no artigo 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Ora, afastada a incerteza e apontada a vacina como a única solução para o combate à Covid-19 - até a população mais despreparada recita o refrão a uma só voz - é hora de colocar fim a este périplo e repensar na possibilidade de se abrir a oportunidade para que clínicas particulares possam exercer a vacinação, não como concorrentes, mas como colaboradoras de um projeto de um enorme país. É indiscutível que a iniciativa compete ao Ministério da Saúde, assim como a legitimidade para estabelecer as regras e as prioridades, mas não se pode desprezar a colaboração de entidade particular para fechar a cobertura vacinal da população brasileira. A falta é de vacina e não de estratégia vacinal. É sabido que a demora na imunização da população faz com que novas variantes de fácil propagação venham com o vírus e se instalem com maior risco. Assim, a velocidade vacinal tem que ser maior do que a disseminação das novas cepas, principalmente se apresentarem resistência à eficácia das vacinas existentes. Nesta linha de raciocínio as vacinas importadas pelas clínicas particulares serão analisadas e, se aprovadas, receberão o registro da ANVISA para colaborar com a imunização. Assim, com mais frentes de vacinação, a adesão da população será maior com opções de várias marcas de fabricantes. Finalmente, não se pode desprezar a hipótese de iniciar em janeiro do próximo ano nova campanha de vacinação contra a Covid-19 em todos o país, exigindo, portanto, uma concentração de esforços maior do que a do presente. Em paralelo a essa proposta, não nos exatos termos de uma clínica particular de vacinação, mas no compartilhamento público-privado, há um interessante projeto-piloto na cidade de Campinas/SP em que a prefeitura local cadastrou 22 empresas do município e ofertou vacinas suficientes para que cada uma delas vacinasse seus próprios funcionários, seguindo rigorosamente a mesma regra preferencial das unidades públicas de saúde do município.1 Trata-se de uma concessão que auxiliará a gestão pública na consecução de sua tarefa e que trará certamente dividendos de saúde para a população. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 25 de julho de 2021

A justiça como equidade

A justiça, na clássica definição das Instituições de Justiniano, é a vontade constante de dar a cada um o que é seu. Vale-se, para tanto, do Direito e da instrumentalização da lei. Esta, por sua vez, justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando a um convívio social harmônico. Pode até ocorrer que a lei não seja cômoda para todos, mas é necessária a fim de que o homem possa viver em uma sociedade adequadamente ordenada. E seu papel é cada vez mais relevante, levando-se em consideração que sua missão principal é criar um controle social em busca do aprimoramento das relações sociais na construção de uma sociedade justa. Após questionar se a lei é necessária e adequada à natureza humana, Lloyd, com seu profundo raciocínio jurídico, concluiu que "a ideia de lei provou ser um dos fatores civilizadores verdadeiramente fundamentais no desenvolvimento da sociedade humana."1 Diz-se, e com muita razão, que o Direito vem da mesma linha genética da Filosofia. Nesta, o homem, pela sua sabedoria e experiência, aponta os princípios éticos e sociais que devem reger a vida em comunidade. Naquela, é a articulação de todas as condutas humanas catalogadas em um regramento tendo como base os apontamentos filosóficos. O Direito, desta forma, pela sua própria estruturação interpretativa, revela-se cada vez mais um instrumento voltado para atender às necessidades do homem. Vale-se da lei, que estabelece os parâmetros permissivos e proibitivos, porém, não se prende a ela de forma servil e sim, com a autonomia que lhe é peculiar, alça voo em busca de uma verdadeira integração entre a norma e o fato perquirido, avizinhando-se da realidade pretendida. Apesar da lei trazer uma regra mandamental e geralmente temporária, vem despojada de sentimento. Pode-se até dizer até que a lei é uma ficção, enquanto sua aplicação na medida certa depende unicamente da forma pela qual será interpretada. A equidade remonta aos tempos do Direito Romano (jus est ars boni et aequi). Aequitas carrega um significado peculiar, que abrange desde a igualdade, a imparcialidade, até mesmo a simetria no sentido de se buscar uma aplicação justa do Direito, todas afinadas com o princípio da justiça. Pode-se dizer que a equidade representa um auxílio de interpretação da lei, tendo como sinalizador a incessante busca ampliativa do texto legal. Também pode ser considerada como uma medida de complementação de uma lei, acrescentando a ela a elasticidade e a sensibilidade necessárias e condizentes com a realidade social. Nessa mesma linha a equidade pode ser vista como um ajuste ou adaptação que se faz a uma norma existente - que no seu teor original carrega um rígido conceito que refoge do próprio sentido do contexto legal - para abrandá-la e temperá-la em busca de um conteúdo que seja mais digno e coerente com os princípios gerais da justiça, conforme apregoa a doutrina da socialização do Direito. Recomenda-se, portanto, uma ponderação e um equilíbrio refletido, como salientado por Rawls: "Entendendo as coisas desse modo, podemos considerar que a justiça como equidade e a retidão como equidade fornecem uma definição ou explicação dos conceitos de justiça e de justo."2 Summum jus, summa injuria, aforismo citado na obra De officiis, de Cícero, com o sentido de que o apego às normas em sua literalidade e dogmática, com a rigorosa aplicação da lei, não se pratica justiça e sim redunda em injustiça, define com sobras o conceito de equidade. Surge assim a equidade como o justo melhor, diverso até mesmo do justo legal, visando fazer um polimento na própria lei para retirar dela a aspereza que a reveste, assim como para ampliá-la e buscar uma solução mais adequada e proporcional à razão humana. Não é aplicável somente para preencher as lacunas do Direito em razão do silêncio da lei, mas também e, principalmente, por ser um auxiliar da Hermenêutica, procura encontrar uma solução que seja mais benigna, mais tolerante, mais humana, enfim que seja compatível com o progresso, os costumes e a solidariedade que deve existir entre as pessoas. Desta forma a equidade foi acomodada no sistema interpretativo levando-se em consideração as diversas circunstâncias de pessoas e lugares, assim como a realidade política e social do país. Maximiliano, com sua perspicácia hermenêutica, já anotava: "Não se recorre à equidade senão para atenuar o rigor de um texto e o interpretar de modo compatível com o progresso e a solidariedade humana; jamais será a mesma invocada para se agir, ou decidir, contra prescrição positiva clara e prevista."3 __________ 1 Lloyd, Dennis. A ideia de lei. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 419. 2 Rawls, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisseta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 119. 3 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 142.
domingo, 18 de julho de 2021

A recusa vacinal

A autonomia da vontade da pessoa, com relevo na área da saúde, é uma conquista ainda recente, mas já incorporada como dogma na Constituição Federal e viga estrutural do atual Código de Ética Médica (Resolução CFM 2217/18). Atribui ao paciente o direito de manifestar sua aquiescência a respeito de determinado procedimento médico, quer seja cirúrgico quer terapêutico, após ter sido corretamente esclarecido a respeito. Daí que, após a exposição de uma situação clínica, de forma bem clara e precisa, com a indicação dos benefícios que poderão advir da prática da ars curandi, assim como de eventuais insucessos, em razão da liberalidade existente no Pacient Self-Determination Act (PSDA), o paciente poderá assinar o Termo de Consentimento Esclarecido. A autorização, no entanto, será dispensada em caso de risco de iminente morte, quando clama mais alto o direito à tutela da vida. A autonomia do paciente, apesar de transitar por vários procedimentos médicos, revela-se relevante no quadro atual do país, principalmente com o aumento da imunização. Percebe-se agora mais claramente a existência de três grupos vacinais: o primeiro, relacionado com aqueles que aguardam ansiosamente pela sua chamada de acordo com o cronograma estabelecido pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI); o segundo, formado por aqueles que aceitam somente as vacinas produzidas por algumas indústrias farmacêuticas; o terceiro grupo, assim definido até mesmo antes da decretação da pandemia, pelos refratários à vacinação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis, que totalizam cerca de 20 vacinas para todas as faixas etárias, disponíveis gratuitamente nas Unidades Básicas de Saúde. Os dois últimos grupos, pelas suas escolhas, justificam o presente artigo. Constata-se, nitidamente, conforme determinam o artigo 227 da Constituição Federal e a norma disposta no artigo 14 da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), no âmbito do poder familiar, que há a obrigatoriedade da vacinação de crianças e adolescentes, nos casos apontados pelas autoridades sanitárias. Tal exigência, no entanto, não alcança os adultos.    Quando se determina a obrigatoriedade vacinal compreende-se a limitação ao direito individual da autonomia da pessoa e há necessidade da existência de uma lei que represente os anseios de uma sociedade democrática e pluralística no sentido de restringir um direito individual em favor da proteção sanitária do direito à saúde de toda comunidade, inclusive daquele que se recusa à imunização. A recusa, portanto, vista sob o prisma da autonomia da vontade da pessoa, guarda consistência legal. Assim é que, no instante em que ocorre a recusa, quer seja em razão de escolha de uma vacina de determinado laboratório, quer seja pela indiferença vacinal, a pessoa demonstra, de forma inequívoca, sua autonomia de vontade expressa pelo termo de recusa ou simplesmente, por opção ou convicção, rejeita a inoculação. Alguns gestores públicos estão exigindo a assinatura do termo de recusa para justificar a adoção de algumas medidas administrativas, como, por exemplo, permitir a imunização somente após a vacinação do último adulto com 18 anos de idade. Ocorre que o Brasil sancionou a lei 13.979/20, norma excepcional caracterizada pela decretação da pandemia e que prevê, em seu texto, medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública com a finalidade de conter a contaminação ou propagação do vírus. Dentre as medidas previstas no artigo 3º da referida lei, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos. É certo que se trata de uma lei temporária com vigência determinada pela duração da pandemia (cessante ratione legis, cessat ipsa lex), mas, por ser a vigente, tem legitimidade para cuidar das situações descritas em seu corpo (tempus regit actum). Ora, vacinação é uma questão afeta diretamente à saúde pública da comunidade e a lei excepcional referida traz a sinalização de políticas públicas visando à erradicação das doenças infectocontagiosas, seguindo rigorosamente a determinação prevista no artigo 196 da Constituição Federal, que estabelece o dever de proteção e prevenção do gestor público. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, analisando as Adis 6.586, 6.587 e ARE 1.267.897, considerou válida a vacinação disposta no artigo 3º da lei 13.979/20. A Corte assim decidiu: "A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, por exigir sempre o consentimento do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas, (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente." Por outra banca, o Código Penal em seu artigo 268 explicita: Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, com aplicação da pena de detenção de um mês a um ano e multa, infração de pequeno potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal. Percebe-se, desta forma, que a recusa, por si só, não é motivo suficiente para justificar a não imunização. O ordenamento legal fala mais alto e, somente ele, estribado na justiça geral em favor da necessidade humana, faz evidenciar não só a defesa da saúde da comunidade, como também os interesses econômicos, sociais e outros necessários para o compartilhamento harmônico das atividades humanas.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), no tocante à educação superior, busca acentuar, dentre muitas outras finalidades, o desenvolvimento do espírito científico, assim como o pensamento reflexivo, visando à formação de profissional em diversas áreas de conhecimento e que estejam aptos para a inserção em setores profissionais, buscando sempre o entendimento do homem e do meio em que vive. O curso de Direito é uma área de conhecimento que carrega indisfarçável vis atractiva para os interessados porque, em uma primeira análise, propicia um estudo mais aprofundado dos direitos catalogados nas legislações e, em segunda, oferece uma vasta área de atuação para o advogado, compreendendo desde uma gama enorme de concursos públicos relacionados com a formação acadêmica específica, até o exercício profissional especializado em diversas áreas de atuação. E não se pode deixar de mencionar o exercício da docência nos cursos jurídicos como mais uma predileção recomendada e valorizada. Indiscutíveis a importância e a relevância da carreira de docente nos cursos de Direito. Não é uma opção para qualquer profissional e sim talhada tão somente para aqueles dotados da vocação para o ensino e que, desde os anos de graduação, foram construindo e revelando o talento para tanto. Daí que, como profetizava Paulo Freire, não há docência sem discência, provocando o raciocínio no sentido de que o profissional é um eterno aluno, com a responsabilidade de buscar o aperfeiçoamento de seus estudos, pois a evolução das ciências jurídicas se esboroa diante do conservadorismo pedagógico. O Exame de Ordem, avaliação a que se submetem os bacharéis em Direito para o exercício da advocacia e mesmo para alguns cargos públicos, não é condição exigida para o magistério. Mas nem por isso libera o docente da obrigatoriedade de ter conhecimento mais do que suficiente para transitar por várias áreas do saber, como a filosofia, antropologia, sociologia, psicologia, política e muitas outras relacionadas com as ciências sociais. Justamente para não engessar o pensamento do aluno e permitir que ele alce voo solo e aterrisse livremente em campo que se sente seguro, por ter tido exímio instrutor. Outra exigência, no entanto, e essa não afeita aos advogados e aos concursados em carreiras jurídicas, é a titulação dos docentes. Hoje, quase que uma obrigatoriedade, a contratação recai preferencialmente em mestres e doutores, com preparação didática indispensável e suficiente para que possam transmitir com clareza os componentes fundamentais das aquisições científicas e culturais da humanidade, que constituem o eixo central do curso de Direito. Assim, um professor com o perfil delineado pelos mais rigorosos critérios de exigência, deve dividir seu tempo entre o ensino e a pesquisa para que possa acompanhar a evolução de sua disciplina não só no seu país, como também em outros de tradição cultural recomendada. Além disso, em inseparável coautoria com os alunos, incentivar e participar das publicações dos conhecimentos científicos, culturais e técnicos, integrando as diretrizes traçadas pelo curso com a evolução da ciência jurídica, principalmente com o acompanhamento das decisões proferidas pelos tribunais superiores e as legislações que provocam transformações na realidade social. O momento atual é de transformação tecnológica sem precedentes e a sociedade necessita urgentemente de uma sinalização para desenvolver uma educação que seja mais condizente com a realidade e a necessidade presente. A pandemia - mesmo sendo caracterizada como um fato transitório e passageiro a ser vencido pelas vacinas - delineou um futuro em que o ensino jurídico deve se adaptar a uma nova realidade. Tanto é que novas habilidades impostas aos docentes fizeram ver que o ensino on line, bem conduzido e direcionado, trouxe ótimos dividendos de aprendizagem. Já não há a preocupação de repassar mais informações para os alunos, que as coleciona em excesso. A nova realidade, de acordo com o historiador Harari, é "extrair um sentido da informação, perceber a diferença entre o que é importante e o que não é, e acima de tudo combinar os muitos fragmentos de informação num amplo quadro do mundo."1  A habilidade pedagógica, por si só, apesar de ser necessária para se fazer a aproximação com o aluno, já não é vista como credencial insuperável e sim o domínio da disciplina, a segurança com que é transmitida para que o discente permaneça interessado e conectado com o curso. O professor de Direito, pelo seu caráter formador, desenvolve relevante tarefa de ensinar a pensar e provocar a reflexão crítica a respeito da vida e dos fatos que a acompanham, para que o aluno possa descortinar novas perspectivas e produzir seu próprio pensamento. Daí que não pode balizar e ter como fundamento somente o ensino teórico e sim mesclá-lo com a prática do momento, proporcionando o verdadeiro ensino criativo. ______________ 1 Harari, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução: Paulo Geiger. Sáo Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 322
domingo, 4 de julho de 2021

A atualidade dos brocardos jurídicos

Ao leitor exigente e curioso, movido pelo interesse de pesquisar a etimologia da palavra brocardo, devo advertir que ingressará em um campo árduo e sua tentativa será fadada ao insucesso. Nenhuma raiz grega ou latina irá lhe prestar auxílio. Isto porque a origem remonta a um fato histórico ocorrido no ano de 1550. Buscardo era Bispo de Worms e, caprichosamente, organizou uma coletânea denominada Decretum Burchardi. Sua publicação teve grande aceitação nos meios culturais por oferecer preceitos gerais e aforismos pinçados da jurisprudência, além de condensar pensamentos de escritores de referência. Tamanha foi sua penetração que a obra passou a ser chamada popularmente de burcardos e, posteriormente, com a acomodação linguística, brocardos. Os brocardos jurídicos latinos, também chamados de axiomas, guardadas as proporções, correspondem aos provérbios ou ditados populares que passam por várias gerações e sempre com o mesmo significado original, demonstrando, de forma inequívoca, o acerto da sabedoria dos antigos. Os brocardos, por sua vez, apresentam uma conotação mais científica e acadêmica porque deixam transparecer uma verdade baseada na cultura dos operadores do Direito e conduzida pelos dogmas inafastáveis da ciência jurídica. Maximiliano, com a acuidade que lhe é peculiar, sentenciou: "Assim como os provérbios resumem a sabedoria popular, são os brocardos um elemento importante da tradição jurídica. Não têm força obrigatória; porém guiam, orientam o hermeneuta. Desempenham relativamente ao Direito o papel de bússola em relação ao polo: apenas indicam o rumo em que pode ser encontrado."1 O Direito brasileiro tem sua origem atrelada ao Direito Romano e, consequentemente, herdou seu vasto repertório de adágios condensados em frases curtas, linguagem precisa, pensamento lúcido e palavras que irradiam uma linguagem de perene revelação. Machado de Assis, na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, fez interessante observação com relação às parêmias latinas: "Não digo que a universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim: embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação." A incorporação dos brocados no mundo jurídico provocou um necessário diálogo do profissional com a Hermenêutica, disciplina responsável pelo estudo e sistematização do sentido e do alcance das expressões jurídicas. Não se trata de um adorno ou de repetição de velhas fórmulas e nem se apresenta como um mero biombo decorativo ou até mesmo um jogo de palavras que façam considerações a respeito das elegias de Ovídio, das odes de Horácio ou da oratória de Cícero em sua obra De Legibus, e sim de buscar as preciosidades culturais que foram legadas pela insuperável experiência dos romanos. Não se pode afirmar também que são memórias de um passado que não guardam qualquer relevância com a civilização do presente. O ponto focal, desde o nascedouro do Direito, é o homem em sua contextualização com o grupo social. Ora, por mais dinâmica que seja a evolução da humanidade, o homem guarda sempre a história do passado e busca, no labirinto da memória, reencontrar o conhecimento relevante que se traduziu em palavras condensadas e reveladoras e que já foram incorporadas definitivamente à linguagem universal do Direito. É interessante observar que um brocardo inserido em uma peça processual ou até mesmo em um texto doutrinário, por si só, na imensa dimensão de seu conteúdo, carrega um inestimável valor didático e processual e consegue atingir seus objetivos mais rapidamente do que inúmeros argumentos jurídicos. Basta ver a expressão Nemo tenetur se detegere, compreendendo o direito de não produzir provas contra si mesmo, erigido à categoria de dogma constitucional em nossa legislação. Alastrou-se pelo mundo e o direito americano a encampou na expressão privilege against self incrimination e o francês na cláusula protetiva do droit au silence. E é essa garantia de não autoincriminação que vem sendo nos dias de hoje suscitada perante o Supremo Tribunal Federal pelas pessoas convocadas para depor à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que tramita no Senado Federal, com a finalidade de apurar as ações e omissões do governo Federal no enfrentamento da Covid-19. __________ 1 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 197.
domingo, 27 de junho de 2021

Novas regras da reprodução assistida

Na medida em que a tecnologia da procriação assistida vai caminhando a passos longos - demonstrando de forma inequívoca o objetivo de solucionar sérios entraves à reprodução humana - cresce a necessidade de se estabelecer um regramento consentâneo não só com o desenvolvimento científico, mas, também, com as premissas e normas legais. Na ausência de legislação ordinária a respeito da matéria, apesar do permissivo legal previsto no artigo 226, § 7º da Constituição Federal, no sentido de propiciar recursos científicos para o planejamento familiar, consistente na indicação de métodos e técnicas de concepção aprovados cientificamente e sem qualquer risco à saúde dos participantes, conforme preceitua a lei (lei 9.263/96), o legislador ordinário não cuidou de elaborar as normas e diretrizes relacionadas com o direito de procriação. As estrategicamente introduzidas no artigo 1.597, incisos III, IV e V do Código Civil, que ensaiaram os primeiros passos na regulamentação da inseminação artificial heteróloga e a fecundação artificial homóloga, não foram suficientes. Desta forma, diante da lacuna existente, o Conselho Federal de Medicina, no uso de suas atribuições legais e legitimado, portanto, para estabelecer as normas éticas e as técnicas recomendadas para o procedimento, vem, reiteradamente, editando resoluções que se apresentam como dispositivos deontológicos a serem seguidos pelos médicos na utilização das técnicas de reprodução assistida. Resolução, como é sabido, é um ato administrativo interna corporis que tem por finalidade disciplinar matéria da competência de determinado órgão, no tocante à regulação ética e técnica, com o potencial de produzir efeitos externos. Na hierarquia legislativa situa-se, no entanto, abaixo da lei, tanto pela necessidade da composição legislativa, formada por deputados e senadores para sua elaboração, como pelo seu comando geral erga omnes. Tanto é que várias resoluções foram editadas a respeito da mesma matéria pelo Conselho Federal de Medicina, em curto lapso temporal: resolução 2013/2013; resolução 2121/2015; resolução 2168/2017 e resolução 2283/2020. Nenhuma lei, no entanto, foi elaborada. Ocorre que, em razão da evolução constante da biotecnologia, quando ainda se está vivenciando uma nova técnica e procurando se ajustar a ela para atingir resultados cada vez mais satisfatórios, outra invade o mercado e dita regras mais precisas, sempre com o intuito de buscar o aperfeiçoamento das práticas anteriores. Assim é que o Conselho Federal de Medicina editou a nova resolução 2294, em maio de 2021, que revogou as anteriores e tem como objetivo atualizar os critérios utilizados na reprodução assistida no país. Dentre as inserções feitas, algumas merecem destaques relevantes. A primeira delas, bem ponderada com a realidade, é relacionada com o anonimato entre o doador e receptor de gametas que cai por terra quando se tratar de ocorrência de doação entre parentes até o 4º grau, observando que o primeiro grau compreende pais e filhos; o segundo, avós e irmãos; o terceiro, tios e sobrinhos e o quarto, primos, desde que não incorra em consanguinidade. A segunda, com uma aparência mais radical, consistiu em limitar a oito o número de embriões a serem gerados em laboratório e disciplinar rigorosamente a transferência em obediência à idade da receptora, assim como às características cromossômicas do embrião. Diferentemente da regra anterior, mulher com 37 anos de idade poderá transferir dois embriões e, acima dessa idade, até três embriões. A redução do número de embriões a serem transferidos teve como causa a tecnologia mais apurada e o sucesso reconhecido do procedimento, com alta taxa de aproveitamento. A terceira, no caso de maternidade de substituição, a cedente temporária de útero, além de pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau, deverá ter ao menos um filho. Fica, portanto, excluída eventual parente que não tenha filho e interessada em colaborar com o projeto de gestação de substituição. Nesse caso, os interessados deverão buscar voluntária fora do âmbito familiar. O requisito agora exigido, que não estava compreendido na Resolução anterior, tende a dificultar a realização da proposta de procriação. Ora, se a intenção é favorecer e incentivar cada vez mais a procriação para os casais com problemas de infertilidade, a exigência é um plus desnecessário. Por derradeiro, causa certa estranheza a exigência contida com relação à criopreservação dos embriões. A Resolução é taxativa em afirmar que   os embriões criopreservados, compreendendo também aqueles considerados abandonados - no caso em que os responsáveis descumpriram o contrato preestabelecido e não foram localizados pela clínica - com três anos ou mais, poderão ser descartados, se essa for a vontade expressa dos pacientes, mediante autorização judicial. Apesar de o Conselho demonstrar a preocupação pela matéria e imbuído das melhores intenções, dá-se a impressão que é despicienda a exigência da autorização judicial, até mesmo pela diretriz da autonomia da vontade do paciente que norteia a Resolução em comento.   Como é sabido, há uma relação contratual linear entre os pacientes e a clínica que aplica técnicas de RA, materializada por documentos assinados, dentre eles o Termo de Consentimento Esclarecido, e que representam, de forma inequívoca, a vontade existente entre as partes no tocante à criopreservação dos embriões.  Tanto é que a Resolução é explícita em seu comando: "No momento da criopreservação, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los." Não há, pois, exigência de se invocar a tutela jurisdicional, uma vez que a manifestação expressa pelas partes, por si só, é suficiente para decidir o destino dos embriões congelados. Trata-se de um interesse de cunho pessoal, limitado aos participantes do projeto de procriação, sem qualquer participação do Judiciário como interveniente obrigatório.
O delito próprio contido na norma do artigo 123 do Código Penal, tipificado como infanticídio, tem ocorrência rara na seara do Direito, mesmo para aqueles que atuam na específica área criminal. Isto porque coloca a mãe como autora do homicídio do próprio filho recém-nascido e especifica o lapso temporal estabelecido durante o parto ou logo após. Em vista disso, o infanticídio pode ser rotulado como delito próprio e autônomo, desvinculado da espécie de homicídio privilegiado (art. 121, §1), para dar à mãe vulnerável pela influência do estado puerperal o direito a uma pena mais branda e humanizada. Cabe dizer, em palavras mais lúcidas: ao invés de colocar o estado puerperal da mãe como causa de diminuição de pena, preferiu o legislador criar um tipo penal próprio para o caso, transformando o delito de homicídio praticado pela mãe, nas condições do caput do artigo 123 do Código Penal, contra o filho, em infanticídio. Assim, esse delito exterioriza a intenção do legislador em reconhecer o estado puerperal como condição excepcionalíssima, porém, estranhamente, apenas acolhe-o nos momentos durante ou logo após o parto. E é neste ponto que reside a problemática maior. É certo que no Direito a delimitação temporal visa antecipar eventual situação fática para melhor caracterização do tipo penal, aliando o momento da execução ao correto enquadramento da norma jurídica. No entanto, tal prática, ao cumprir o que se propõe, distancia-se do escopo da Justiça, colocando o infanticídio em um verdadeiro paradoxum dilemma. Dentro do conceito desenhado pelo Código Penal vigente, admite-se que a prática do infanticídio deve ser oriunda de uma perturbação psíquica ocasionada pelo estado puerperal da mãe, de modo que diminua sua capacidade de entendimento ou de autoinibição. Do contrário, o tipo penal seria de homicídio. Desse modo, é seguro afirmar que a perturbação psíquica a que a mãe está sujeita, enquanto perdurar o estado puerperal, é razão suficiente para ver caracterizado o infanticídio, e não o homicídio. Os traços psicológicos do perfil da mãe devem transparecer a indubitável redução do seu discernimento ao provocar a morte do próprio filho. Salvo exceção no caso de não ficar demonstrada a evolução para doença mental, incapacitando-a, por completo, de entender o caráter ilícito de seu ato. Nesse caso, a inimputabilidade da acusada é medida que se impõe, sem prejuízo de vasto debate doutrinário acerca do tema. Assim, da medicina pode-se extrair que a situação pós-parto da mãe é de extrema vulnerabilidade com potencial de levar à ansiedade e à depressão profundas. São casos que, certamente, afetam o discernimento e a volição, contribuindo para um estado mental sujeito a severas perturbações psíquicas. A questão nodal não é nem processar a mãe em busca de um édito condenatório e sentir que a justiça foi feita. O problema penal ocupa a menor fatia desse imbróglio social, e deve sim levar em consideração o despreparo para a maternidade, a preocupação em ocultar a desonra própria e até mesmo o abandono por parte do companheiro e eventual consequência financeira, como a demissão do emprego. Tal cenário, aliado ao fato de que o estado puerperal da mãe pode se estender por até 40 dias após o parto1,  levanta a questão de se é justa e correta a imputabilidade daquela que comete o infanticídio semanas após ter dado à luz seu filho. A ela não se amolda o tipo penal do infanticídio, mas também pode-se dizer que sua condição psíquica não é lúcida suficiente para condená-la pelo homicídio, por exemplo. É uma questão que envolve diversas frentes e levanta o debate sobre a redação do próprio caput do artigo 123 do Código Penal. Ademais, não é nada além de sintomas da historicidade humana, uma vez que "A maneira de entender o infanticídio e de puni-lo tem variado profundamente através dos tempos"2. É verdade, pois, por exemplo, que em 1439, fora decretado pelo Concílio de Florença que a alma das crianças mortas sem batismo iria direto para o inferno, fazendo considerar o infanticídio um crime hediondo abominável, mais grave que o homicídio, punindo as mães com penas mais cruéis do que as dadas aos homicidas3. Como se vê, apesar de ser um tema pouco frequentado, exige modulação frequente por parte dos pesquisadores, legisladores e operadores do direito de um modo geral, como se vê na PLS 236/12 em tramitação atualmente no Senado Federal, que cuida da reforma do Código Penal e exclui o estado puerperal da redação para a caracterização do infanticídio, tipificando-o à parturiente somente, desde que ocorra o evento sob a "influência perturbadora" do parto. Para o bem ou para o mal, vez ou outra o tema vem à baila e merece atenção. É o debate que se propõe. __________ 1 Cf. reportagem. 2 BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p.147. 3 Cf. __________ *Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado; *Luca Zuccari Boskovitz é bacharel em Direito, mestrando no programa de Pós-Graduação em Psicologia e Saúde da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto - FAMERP.
quarta-feira, 16 de junho de 2021

A velhice é uma doença?

A Medicina vem desenvolvendo um indisfarçável esforço científico para prolongar a vida humana, revestindo-a com qualidade e conteúdo participativo. É de se observar que a vida, tanto pela diretriz da Medicina como pela do Direito - ambas mirando no modelo bioético - vem descrita como um fatiamento etário, justamente para oferecer as melhores condições de existência, desde a fase inicial até a almejada longevidade. Basta ver que a tutela protetiva tem seu marco inicial na fecundação intrauterina, seguida do nascimento, ocasião em que imediatamente incorpora a criança e o futuro jovem ao Estatuto da Criança e do Adolescente e, após ingressar na fase adulta, com a constituição de família e ativa vida laboral, atinge o marco de 60 anos, quando se alinha ao Estatuto do Idoso. A legislação brasileira, abraçando a longevidade que já se faz presente, foi além e criou a figura do super idoso, a partir de 80 anos de idade, de acordo com a lei 13.466/2017. Contrariando o preceito legal previsto no Estatuto do Idoso no sentido de que o idoso "goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade", a Organização Mundial da Saúde, na contramão de direção do alinhamento mundial, incluiu a velhice como doença na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), com o código MG2A. Salienta a OMS que se trata de uma substituição na nomenclatura, consistente em retirar o rótulo senilidade, já existente (CID10), e substitui-lo por velhice, sem a intenção de transformar esse último em doença.  A realidade, no entanto, como é sabido, é que a CID é um dispositivo de classificação de doença. Assim, para uma pessoa no Brasil que venha a falecer e tenha mais de 60 anos de idade, a causa mortis pode ser apontada como velhice, encobrindo, desta forma, o diagnóstico da doença responsável pelo óbito, como, por exemplo, as cardiológicas, neurológicas, oncológicas e muitas outras. E pior. Acarretará uma diminuição de pesquisas de doenças relacionadas com os idosos, como o Alzheimer e o mal de Parkinson. Além do que vai quebrar toda a expectativa futura da velhice. O homem, antes e acima de tudo, é um ser temporal, com início, meio e fim. Assim é que vai superando cada tempo seu, ampliando suas expectativas e apostando em um futuro com mais esperança e até mais entusiasmo, pois contará com uma rica experiência adquirida ao longo da vida e encontrará um campo propício para demonstrar seu dinamismo, sua articulação e fertilidade em descobrir iniciativas e ideias novas, enfim promovendo tudo aquilo que lhe trouxer satisfação. Desta forma, com tal desiderato, o homem deve organizar em sua fase derradeira o espaço que lhe seja mais conveniente e digno de sua condição, para se aproximar do Supremo Bem, assim referido por Aristóteles ao propor o caminho da realização e perfeição. Por outro lado, pela própria definição de saúde da Organização Mundial da Saúde, de que se trata de um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não ausência de doença ou enfermidade, o estiolamento celular, em razão da idade, por si só, não indica a ocorrência de uma doença. Além do que, vai redescobrir o preconceito em razão da idade e dar azo ao ageísmo, pois qualquer cidadão que entrar na faixa de 60 anos de idade, parâmetro biomarcador preconceituoso, mesmo que seja saudável, passa a ser considerado um doente, tanto na convivência familiar como na comunitária, não potencial, mas por ficção etária. As políticas públicas preconizadas para os idosos, com ênfase na conquista do ser humano de envelhecer com dignidade, conforme apregoa a Constituição Federal, cairão por terra, assim como os direitos fundamentais com relação à vida, à liberdade, à igualdade e ao respeito. É uma verdadeira operação de desmonte do futuro. A inclusão determinada leva a uma exclusão social. As explicações científicas não trazem justificativas convincentes de que a velhice vem a ser sinônimo de doença, principalmente no momento atual em que se vivencia o crescimento plausível da longevidade, sabendo-se que as gerações infantis de hoje ultrapassarão a faixa dos 100 anos, como resultado de inúmeras pesquisas científicas desenvolvidas com essa finalidade. Se, de um lado, procura-se ampliar a proteção de saúde para o idoso a fim de que tenha melhores condições de vida, de outro, às avessas, reprime-se tal alargamento etário, rotulando-o como um doente. Pode-se concluir, sem exagero, que a pessoa que ingressar na faixa de idoso passa, doravante, a ser portador de comorbidade, em razão da idade. Não só contraria preceitos universais de saúde, como também resvala no princípio da beneficência disciplinado na Bioética, pois todo o esforço deve ser concentrado para conferir à humanidade idosa tudo aquilo que for necessário, conveniente, adequado e ajustável à sua natureza humana, proporcionando a ela as melhores condições de uma vida saudável. É até incoerente considerá-la doente quando o sucesso da longevidade vem se alardeando e criando novas e esperançosas perspectivas de vida. Já profetizava Machado de Assis, na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, que "a velhice ridícula é, por ventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana."
domingo, 13 de junho de 2021

Feminicídio ainda em pauta

A Lei Maria da Penha (11.340/2006), atendendo chamamento constitucional contido no artigo 226 § 8º da Carta Magna, quando de sua aprovação, trouxe consigo uma proposta bem clara e bifurcada em seus objetivos: em primeiro plano proporcionar uma mudança no comportamento humano com relação às agressões perpetradas contra namoradas, companheiras e esposas, oferecendo a elas a tutela protetiva emergencial, assim como a criação de políticas públicas para ampará-las contra a violência doméstica e familiar em razão do gênero, definindo que a violência pode ser física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, conforme artigo 7º da referida lei, ou qualquer outra modalidade de violência, vez que o rol desse artigo é exemplificativo. Diferentemente das outras legislações, no caso presente, a tutela é voltada para o lar que, apesar de não carregar uma definição legislativa, vai muito além do território circunscrito à casa, residência ou moradia. É o território onde se abrigam pessoas que se consideram aparentadas, unidas por laços naturais, legais ou por afinidade, mas que têm em comum o respeito mútuo e a convivência harmônica. Não é a delimitação física, com estreitas divisórias, orientadas por números e nomes. É, sim, um espaço de convivência, amplo o suficiente para suportar o desenvolvimento natural e espiritual de seus moradores. É o templo sagrado (my home is my temple) onde serão edificados os sentimentos, a dignidade e o caráter de seus moradores que, posteriormente, poderão repassá-los à comunidade maior, que é a sociedade em que se vive. O segundo plano, de origem criminal, provocou a criação de um tipo penal, de construção recente, com pena mais exacerbada que a do homicídio, também revestido do caráter de hediondez, com a finalidade de proteger a mulher na vivência doméstica e familiar, como, também, evitar qualquer modalidade de menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A título de curiosidade, a prática de homicídio simples prevê uma pena de 6 a 20 anos de reclusão, enquanto que no feminicídio, alojado ali na forma qualificada, a pena é de 12 a 30 anos, também de reclusão, sem contar ainda com os acréscimos em razão do estado gestacional da vítima, se o fato for praticado diante de descendentes ou ascendentes, assim como em razão de descumprimento de medida protetiva. A deputada Federal Rose Modesto (PSDB-MS) apresentou à Câmara Federal (PL 1.568/2019), projeto que já foi aprovado em maio de 2021 e se encontra no Senado Federal com o sinal verde já anunciado, para que o feminicídio seja tipificado como crime autônomo e não como apêndice do crime de homicídio na forma qualificada, além da exasperação da pena mínima de reclusão que alcançaria 15 anos. Será que o agravamento da pena mínima do crime de feminicídio, por si só, acarretaria uma redução significativa dessa prática que causa repulsa inconteste na comunidade? A impressão que se tem é que o feminicida, sabedor que é do alto grau de periculosidade que reveste sua conduta, não se intimida diante da pena e sim que, conforme vem ocorrendo em escala progressiva e em muitos casos com requintes de crueldade - principalmente no período pandêmico - faz opção pelos atos de violência, não se importando com as consequências penais referentes ao seu status libertatis. A teoria inibidora em razão da imposição de pena mais gravosa - levando-se em consideração que originariamente a pena mínima era de 6 anos, posteriormente galgou para 12 anos e agora, ao que tudo indica, atingirá 15 anos - cai por terra por total falta de sustentação e de credibilidade na intimidação do agressor. O mesmo fenômeno ocorreu quando da vigência da Lei dos Crimes Hediondos (8.072/90), que surgiu como se fosse a tábua de salvação no campo penal, pois ditou normas a respeito do caráter de hediondez do crime, expondo-o como uma conduta ignóbil e repulsiva, que provoca a indignação seguida da reprovação unânime da sociedade. Em razão disso, carregou um plus legislativo diferenciado, que permitia ao Judiciário segregar provisoriamente; negar o benefício da liberdade provisória; negar o pagamento da fiança e indeferir qualquer pleito com relação à graça, anistia, indulto, assim como determinar o cumprimento da pena em regime mais rigoroso. Com o tempo e interpretações jurisprudenciais o pouco conquistado foi por demais limitado. A recente pesquisa "Visível e Invisível - A vitimização de mulheres no Brasil", realizada pelo Datafolha,1 aponta que, durante a pandemia, diminuiu o número de registros de boletins de ocorrência, mas aumentou e em muito os casos de violência com mortes de mulheres. E uma das conclusões é que, após a agressão, 43% nada fizeram e 12% procuraram uma delegacia para registrar a notitia criminis, número que não permite uma atuação mais próxima e protetiva às vítimas. Como se trata quase sempre de um relacionamento mal resolvido entre o homem e a mulher em razão do inconformismo pelo término da relação, a prática indica que novas investidas serão retomadas pelos agressores até a ocorrência da derradeira contra a vítima que não buscou qualquer proteção legal. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 6 de junho de 2021

Casa é o asilo inviolável

Um dos significados da palavra grega oikos compreende casa, em seu sentido de local de habitação de um grupo familiar. Tanto é que referido radical deu origem à palavra ecologia, com o significado de estudo relacionado com o local em que se habita. Os romanos, por seu turno, mais apegados à tradição e aos costumes, denominavam domus o local de agregação dos grupos regidos pelo pater famílias. No Brasil a palavra casa compreende domicílio, residência, imóvel ocupado por um indivíduo ou grupo familiar e, em algumas situações especiais, aproxima-se da palavra lar, como é o espírito indicativo da Lei Maria da Penha. A Constituição Brasileira apregoa taxativamente no artigo 5º, XI: "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial." O Código Penal brasileiro, em seu artigo 150, erigiu à categoria de crime a violação de domicílio: "Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências" e ampliou ainda o conceito para compreender qualquer compartimento habitado, aposento ocupado de habitação coletiva, compartimento não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade. Percebe-se claramente que a tutela da legislação brasileira está voltada integralmente para a proteção à pessoa na sua esfera de liberdade doméstica e não para a defesa do imóvel.  Assim, quando a Lei Maior rotulou a casa de asilo inviolável teve a intenção de erigi-la como um reduto intransponível, a não ser quando presentes as cláusulas permissivas de ingresso à moradia. O ministro do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, concedeu ordem de habeas corpus a um cidadão acusado pela prática do crime de tráfico de drogas, por ter sua casa invadida ilegalmente pelos policiais. O motivo determinante da ordem foi a falta de comprovação nos autos do consentimento do morador e que, pelas circunstâncias da prisão em flagrante, não foram encontrados elementos que justificassem as fundadas razões para o ingresso forçado.1 O acusado, abordado na rua por policiais, foi submetido a uma busca pessoal, porém nada em seu poder foi encontrado no momento em que se dirigia à sua residência.  Não havia nenhuma suspeita de que realizava tráfico de drogas em sua moradia, circunstância que justificaria a entrada dos agentes da lei, apesar de ter sido apreendida no interior da residência 109g de maconha. O acesso à residência do acusado não contou com a ordem judicial autorizativa ou a concedida pelo morador, mesmo tendo os policiais confirmado que receberam essa última, e muito menos se tratava de um caso de flagrans crimen. Tanto é que o ministro determinou a nulidade das provas ilícitas por derivação, com a consequente revogação da prisão preventiva que fora decretada e o trancamento da ação penal. Nossos tribunais vêm, reiteradamente, preservando o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, exigindo o cumprimento das cautelas recomendadas para o ingresso de policias sem mandado judicial às residências dos suspeitos. Assim é que, quando se tratar de denúncia anônima, aconselha-se que a autoridade policial realize as diligências necessárias e imprescindíveis, como, por exemplo, observar a movimentação atípica com entra e sai de determinada casa ou até mesmo a constatação flagrancial do comércio de drogas. E, mesmo que a investigação policial conte com a anuência do morador, que excluiria a antijuridicidade da conduta, há a obrigatoriedade de se comprovar tal fato por meio de registro em vídeo e áudio e, sempre que possível, por escrito. Tudo para impedir que seja rompida a franquia constitucional garantidora da proteção doméstica. Desta forma, de nenhuma valia a diligência policial que viole direitos fundamentais do cidadão. Muitas vezes a polícia, no afã de buscar uma eficiência punitiva, deixa de cumprir as regras básicas do Estado Democrático, oportunidade em que esbarra nas práticas já consolidadas e que fazem parte do arsenal protetivo da cidadania. __________ 1 STJ: Acusado de tráfico é solto após busca ilegal de policiais em casa.
domingo, 30 de maio de 2021

Embriões sub judice

A evolução da embriologia e da engenharia genética pode ser considerada um marco referencial na medicina reprodutiva. Muitas metas e anseios científicos que eram contemplados vagamente e até mesmo como um aparato ficcional, com o desenvolvimento de tecnologias de ponta, passaram a ocupar um espaço de concretude para a efetivação do processo de procriação. É o demonstrativo inequívoco de que a ciência é coadjuvante do homem, proporcionando a ele inúmeras alternativas para solucionar seus problemas. Mas faz-se necessária a construção de uma ponte para se buscar uma perfeita adequação entre o universo científico e a realidade social, com um olhar arguto dirigido especialmente para os princípios éticos, acompanhados da necessária acomodação legal. Fato interessante, não só sob o prisma jurídico, mas igualmente bioético, aconteceu recentemente.1 Durante seu casamento, um homem adotou dois filhos. Já septuagenário, em novo casamento, submeteu-se a um tratamento em clínica de reprodução assistida que possibilitou a fecundação de dois embriões. No ato da criopreservação o marido autorizou a utilização dos embriões no primeiro ciclo fértil subsequente da esposa. Ocorre que dois anos após o marido faleceu e os embriões não foram implantados, mas, mesmo assim, a viúva procurou a clínica para fazer o procedimento, que foi negado porque faltou a autorização marital expressa para a realização do procedimento post mortem. Diante da recusa, foi invocada pela esposa a tutela jurisdicional, que foi negada em primeiro grau. Em sede de recurso, o Tribunal de Justiça de São Paulo permitiu que ela realizasse o procedimento médico. O processo, agora, bateu às portas do Superior Tribunal de Justiça. Se a decisão for pela implantação e se vingarem os embriões, várias consequências patrimoniais e sucessórias irão aflorar em razão da expressiva herança envolvida. Apesar de a Constituição do Brasil2 estabelecer que o planejamento familiar é livre decisão do casal e que o Estado deverá proporcionar recursos científicos para o exercício desse direito para aqueles que não conseguem atingir a procriação, não há ainda legislação ordinária para estabelecer todos os pressupostos e requisitos para a reprodução assistida. Mesmo assim, o Código Civil brasileiro, em vigor a partir de 2002, em iniciativa exemplar, ensaiou os primeiros passos na regulamentação das inseminações e fecundações homóloga e heteróloga (art. 1597). Supletivamente, no entanto, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 2168/2017, estabelecendo as normas técnicas e éticas do procedimento. No item V, nº 3, é taxativa ao prescrever: "No momento da criopreservação os pacientes devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos embriões criopreservados, quer em caso de divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-lo". No caso em discussão os embriões, embora não se encontrem alojados em sua clausura natural silenciosa e sim em cilindro de nitrogênio, aguardam uma decisão judicial para saber se irão se desenvolver como spes vitae. No caso presente, a Hermenêutica pode trazer relevante auxílio interpretativo. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária dose de bom senso. É um bólido que deve ser teleguiado por técnicos que tenham conhecimento de sua potencialidade: se não for feito o ajustamento do alvo, o impacto em local não apropriado poderá ser desastroso. Levando-se em consideração a breve narrativa feita, duas soluções se apresentam. A primeira delas é relacionada diretamente com a interpretação literal ou gramatical, aquela em que se recomenda buscar nas palavras do documento a vontade que norteou os participantes do contrato. Trata-se mais de uma interpretação rígida e que fica adstrita aos termos do vernáculo, com o seu significado limitado, sem qualquer expansão. Por tal norte é de se concluir que a não utilização dos embriões no prazo convencionado, por si só, impede qualquer outra iniciativa posterior. A segunda é relacionada com a interpretação teleológica que permite ampliar o texto, dando-lhe a elasticidade suficiente para comportar um fato dentro de uma realidade visível, procurando, desta forma, extrair a finalidade que norteou a própria obrigação, tendo em vista os fins sociais e humanísticos. É, por assim dizer, contornar o biombo que esconde a verdade perquirida e ingressar no cerne do contrato, locus que desvendará a riqueza nele contida, possibilitando alcançar outras situações que não estavam nele inseridas explicitamente. E a elasticidade hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. Muita atrativa e condizente a última proposta e parece que reúne as melhores condições para ofertar uma decisão com teor mais apropriado para o deslinde do caso. É indiscutível que o marido se submeteu ao procedimento médico com a finalidade de criar os embriões para a procriação biológica que almejava. O fato de não ter sido cumprido o prazo estabelecido no pacto firmado pelo casal para a transferência dos embriões não elide a pretensão que motivou o procedimento em placas de Petri. Tanto é que o marido poderia acusar o descumprimento e propor a doação dos embriões para fins de pesquisa e terapia, conforme permite a Lei de Biossegurança, ou até mesmo o descarte embrionário, como proposto na resolução já citada do Conselho Federal de Medicina. Não o fez. Provocou, com sua inércia, a prorrogação tácita do acordo e, consequentemente, manteve viva a chama da implantação dos embriões. Resta aguardar a decisão a ser proferida pelo Tribunal. __________ 1 STJ julga implantação de embriões após morte de um do cônjuges. 2 Artigo 226 § 7º da Constituição da República Federativa do Brasil.
domingo, 23 de maio de 2021

Direito ao silêncio

De quando em quando a ocorrência de um fato de grande repercussão no Brasil traz à baila um instituto jurídico devidamente assentado e estabilizado, mas que aguça a curiosidade popular que, com sua costumeira medida de justiça, não se conforma com o regramento estabelecido. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada pelo Senado Federal para apurar eventual omissão do Governo Federal durante o período pandêmico, além de investigar as verbas públicas encaminhadas aos governadores dos Estados e prefeitos, deparou-se com uma decisão determinada pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, que concedeu ordem de habeas corpus ao ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello para que possa valer-se do direito de manter-se silente durante sua oitiva, vez que não é obrigado a produzir provas contra si mesmo. A decisão colidiu com o inconformismo popular que já tem como jurisprudência remansosa consagrada pela sabedoria do cidadão, no sentido de que quem for indagado a respeito de ter praticado uma determinada conduta considerada ilícita e nada responder a respeito para justificá-la, concorda com a imputação. É a regra do quem cala, consente. Uma vez que não se defendeu e teve oportunidade para tanto, o silêncio passa a ser incriminador. O julgamento popular é instantâneo, produz coisa julgada e se torna rapidamente imutável, sem qualquer chance de reversão. Ao leigo passa a impressão de que a postura de indiferença, de antipatia e de arrogância daquele que está sendo inquirido e se cala, representa um deboche às autoridades encarregadas da arguição e já proporciona um julgamento antecipado. Diante de tal cena, a população brasileira, aquela que não conhece a técnica jurídica, vê dinamitar e implodir os conceitos tão arduamente construídos pela crença popular e, no exercício de sua indignação, conclui, de forma frustrada, que o direito individual deve prevalecer sobre o coletivo, mais uma vez desprestigiado. A verdade que se extrai do pensamento jurídico penal bate de frente com o adágio popular, pois o Direito é fruto de um sistema jurídico devidamente regulamentado e assentado em princípios e regras que vão se aperfeiçoando com o passar do tempo, sempre visando atender de forma justa e correta os reclamos sociais. Cai por terra, da mesma forma, justificadamente, a sabedoria popular que proclama ser a voz do povo a voz de Deus. O direito ao silêncio não é uma prática exclusiva da Comissão Parlamentar de Inquérito e sim faz parte da legislação processual penal, podendo ser utilizado por qualquer pessoa que se encontra respondendo a um processo criminal. É um instrumento de tutela conferido constitucionalmente para que o acusado possa se recusar a responder às perguntas que venham incriminá-lo. Cinge-se na esfera protetiva da ampla defesa, corolário inseparável dos direitos da personalidade, assim denominado por Pontes de Miranda. Não compreende somente a zona de intimidade do infrator, mas, também, o alargamento das fronteiras defensivas, não permitindo, desta forma, que produza provas contra si mesmo, quando for convidado a testemunhar o próprio opróbrio, como diz Tomás de Aquino. Narra o texto evangélico que Cristo, em razão de sua missão, lançou mão do direito ao silêncio quando interrogado perante Pilatos. Várias perguntas feitas pelo príncipe dos sacerdotes e pela turba ficaram sem respostas.1 A Carta Constitucional, desta forma, estende os braços e alcança o princípio da presunção da inocência, que guarda estreita vinculação com a regra do nemo tenetur se detegere (ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo), direito assegurado nas constituições democráticas, conforme se constata da norte-americana no instituto do privilege against self-incrimination (privilégio da não autoincriminação). O exercício desse direito não pode ser visto como uma penalização, um suplício, um antídoto da liberdade consagrada. Tanto é verdade que o juiz, antes de iniciar o interrogatório do acusado, irá adverti-lo a respeito do seu direito de não responder às perguntas que lhe forem formuladas, assim como o seu silêncio não será interpretado em prejuízo de sua defesa e nem importará em confissão, segundo a regra estabelecida no artigo 186 do Código de Processo Penal. No caso citado, na realidade - uma vez que a Comissão Parlamentar de Inquérito é detentora de poderes próprios das autoridades judiciárias - nem haveria necessidade de pleitear a tutela jurisdicional, pois trata-se de direito que pode ser invocado pela pessoa no exato momento de sua arguição. Todo este arsenal protetivo ao acusado é resultante do próprio sistema acusatório brasileiro. Incumbe ao Estado - por meio de seus agentes persecutórios quando se tratar de ação pública incondicionada e ao particular no âmbito da ação privada - demonstrar a prática de um ilícito pelos meios probatórios admissíveis nas regras jurídicas e não coagir o eventual infrator a consentir na realização de provas espúrias, prostrando-o diante de sua própria cidadania. É o aniquilamento de direitos obtidos com muito custo pela população brasileira. É a reserva que assegura ao cidadão o direito de não realizar provas contra si mesmo. __________ 1 Evangelho São Mateus, 27.13,14.
domingo, 16 de maio de 2021

Neurodireitos à vista

O dinamismo social progride em razão de vários fatores. Um deles é embalado pela ciência, em razão da introdução de novas tecnologias que provocam uma readequação necessária na comunidade humana. As transformações abrangem controvérsias morais e outras infiltradas há muitos anos e exigem, em consequência, novos arranjos jurídicos para cultivar o bem-estar comum, já que o Direito se apresenta como um tecido de mobilidade social. Tanto é que na sua evolução muitas vezes teve que passar ao largo de tradições, divorciar-se de preceitos religiosos, romper com as descriminações, tudo para abrir espaços para uma sociedade mais pluralista, produzindo um discurso público equilibrado e inspirador no melhor modelo para o bene vivere. Pois bem. As novas tecnologias, no primeiro avanço, começaram a devassar o interior do homem com o intuito de produzir resultados benéficos para a saúde, nos parâmetros do malum non facere e conseguiram resultados ainda não satisfatórios por completo, como, por exemplo, conhecer as causas das doenças como Alzheimer, Parkinson e tantas outras. A esse respeito, os americanos lançaram o projeto conhecido como Brain Research, que ainda se encontra em desenvolvimento. Já na segunda etapa as pesquisas mais avançadas miram o monitoramento da atividade encefálica, visando aumentá-la, diminui-la ou até modificá-la com o mapeamento do córtex cerebral. Aquilo que parecia uma distante ficção científica revelada pelo filme Matrix torna-se realidade. O protagonista é dotado de um conhecimento imediato a respeito de diversas habilidades, graças à instalação de um software no seu cérebro com inúmeros programas focando realidades diferentes e, principalmente, fazendo-o incorporar o novo comportamento. Pretende a nova tecnologia fazer uma conexão entre o cérebro e o computador e, por tal caminho, possibilitar a transmissão do pensamento, memórias, sentimentos, emoções e decisões, com a consequente manipulação por terceira pessoa ou até mesmo pelo Estado, podendo mesmo chegar à comercialização dos dados consultados. Bem advertiu o grande criminalista Costa Jr. nos idos de 1960, em sua consagrada obra: "O crédito que toda humanidade abre à ciência ainda é ilimitado e prenhe de esperanças, mas já não se admite que o ingresso de nossa civilização na era da cibernética total possa operar-se à margem da reflexão crítica".1 Ora, a mente, além de ser a última fronteira do ser humano, é um verdadeiro laboratório e produz inúmeras informações valiosas que podem ser rastreadas e manipuladas indevidamente, com consequente prejuízo à integridade mental do seu titular. Tais dados pertencem ao patrimônio mental da pessoa e, pela regra convencional, somente ela terá o permitido acesso. E pode até acontecer que a própria pessoa não consiga acesso às informações armazenadas, mas a tecnologia especializada terá sucesso e romperá com o obstáculo impeditivo. O premiado neurocientista brasileiro Nicolelis, com a competência que lhe é peculiar, assim se manifestou: "Definir a verdadeira unidade funcional do cérebro é um empenho solene. Afinal, essa busca visa identificar exatamente que tipo de matéria orgânica decide, em nosso nome, onde o corpo de cada um começa e termina, o que realmente significa sentir-se um ser humano, quais são as origens de nossas crenças arraigadas e como nossos filhos, e os filhos dos nossos filhos, um dia lembrarão de nosso legado de vida".2 O Senado Federal do Chile aprovou por unanimidade a proposta de inclusão dos neurodireitos ou os direitos do cérebro em sua Constituição Federal - com fulcro nos princípios da dignidade da pessoa humana e da autodeterminação - e deve ser o primeiro país do mundo a exercer tutela a respeito da matéria3. A intenção é preservar a integridade física e mental do indivíduo para que ninguém, nem mesmo o Estado, possa - por meio da tecnologia - aumentar, diminuir ou perturbar a integridade individual, sem o consentimento do seu titular. A neurotecnologia se avizinha de forma acentuada e traz consigo todo arsenal tecnológico de ponta. A ciência merece expandir e criar uma nova realidade para a humanidade que, por sua vez, merece receber a tutela protetiva necessária, com restrita obediência aos limites éticos, bioéticos e jurídicos. __________ 1 Costa Jr., Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: revista dos Tribunais, 1970, p.14. 2 Nicolelis, Miguel. Muito além do nosso eu: a nova neurociência que une cérebros e máquinas - e como ela pode mudar nossas vidas; tradução do autor: Revisão Giselda Laporta Nicolelis. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 42. 3 Disponível aqui.
domingo, 9 de maio de 2021

Mãe universal

Apesar de estar contida em minúscula palavra, mas dotada de maiúscula força afetiva, mãe pode ser definida pela prosa, pelo verso, pela música. Não é buscar espaço para franquear os limites da fantasia, tão próspera nesse tema, nem mesmo fazer valer sedutores apelos e sim promover um mutirão interno de agradecimento e fazer ecoar a voz sensata, mesmo desprovida de arroubos retóricos. Stabat Mater Dolorosa (de pé, a mãe dolorosa), canção de langor, com uma tristeza profunda, executada por grandes compositores de diferentes épocas, encartada em uma espiritualidade contemplativa, medita sobre o sofrimento da mãe de Jesus, quando da crucificação do Filho. A Mãe Preta, retratada por Portinari, apresenta os traços raciais de uma brasilidade inegável com a configuração de uma miscigenação típica do país. A mãe, olhos salientes e cuidadosos, abraça o filho com a mão forte, no mais puro instinto protetivo. Zana, do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, pode ser considerada a mãe mais completa da literatura brasileira. Mãe de gêmeos, como uma figura superprotetora, criou, amou e estragou os filhos, que viveram um ódio familiar insuperável. O poema Ser Mãe, de Coelho Neto, parnasiano que circulou por vários gêneros literários, como em um passe de mágica, definiu em versos o elogio maior que se faz a uma mãe: "Ser mãe é andar chorando num sorriso/ ser mãe é ter um mundo e não ter nada/ Ser mãe é padecer num paraíso." A ciência, por sua vez, não poderia deixar de lançar seus tentáculos para oferecer uma nova dimensão à maternidade. O Direito trazia uma regra praticamente imbatível em relação à qual nenhuma dúvida pairava. Diziam os romanos que maternitas certa est. E realmente estavam cobertos pela sabedoria da época, pois a mãe era sempre aquela que dava à luz um filho enquanto que a paternidade, essa sim poderia ser contestada ou considerada incerta. A evolução na área da engenharia genética e reprodução assistida experimentou tamanha ascensão que derrubou por terra convicções enraizadas por séculos. Hoje, pode se afirmar com segurança, que nem sempre a mulher que carrega o embrião em seu útero será considerada mãe quando do nascimento.  O Admirável Mundo Novo, publicado por Aldous Huxley em 1932, considerado como uma fábula futurística, foi mais além.  Eliminou a figura do pai e da mãe e introduziu a criação de bebês manipulados em laboratório, nascidos de proveta, com comportamentos preestabelecidos para ocuparem determinada casta. Tamanha foi sua ousadia que motivou cientistas a criarem e projetarem um útero artificial que vem evoluindo nos estudos mais recentes. Hoje, no entanto, sem o exagero apregoado pelo escritor inglês, tal conceito, em razão dos avanços da ciência de reprodução e da própria alteração do Código Civil, que introduziu a inseminação artificial heteróloga, derruba a premissa fincada na lei natural. A lei Civil abriu as comportas para a inseminação artificial heteróloga, que compreende a utilização de sêmen ou óvulos doados por terceiros para solucionar o problema de esterilidade do casal.  A experiência que parecia ficção, em um passe de mágica, já se faz presente nas clínicas de reprodução humana. A engenharia genética desbasta um novo caminho para solucionar satisfatoriamente o problema da infertilidade.  A nova área da procriação assistida vem se desenvolvendo a passos longos, produzindo técnicas cada vez mais aperfeiçoadas com a manipulação dos componentes genéticos dos dois sexos para se atingir o projeto parental. Assim, uma das possibilidades que se apresenta ao casal que pretende filhos e não atinge seus objetivos pela via natural, por um problema médico que impeça a gestação na doadora genética por exemplo, é a de realizar o procedimento da fertilização in vitro, com a manipulação dos materiais procriativos e a consequente transferência intrauterina dos embriões para uma cedente temporária de útero visando à gestação por substituição, vulgarmente conhecida como "barriga de aluguel". A doadora temporária de útero, assim como o doador de órgãos, assume uma dimensão transcendente da sua própria natureza, pode-se dizer que realiza uma das mais nobres ações humanitárias. A resolução 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, por sua vez, ampliou o parentesco da doadora temporária atingindo familiares de um dos parceiros em um parentesco consanguíneo até o quarto grau (mãe, irmã, tia e prima), respeitando sempre o limite de idade de 50 anos. Assim a palavra mãe, seja proferida pelos literatos, pela ciência ou por qualquer pessoa, rompe diques liberando a mais pura e sensata gratidão.
domingo, 2 de maio de 2021

O homem que vendeu a pele

O título acima (The man who sold his skin) é de uma película tunisiana indicada na categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar 2021. Relata a história de um jovem que, em razão da guerra em seu país, pretende ir para a Europa em busca de sua noiva que teve um casamento arranjado com um homem rico e com ele vive em Bruxelas. Com sérias dificuldades para financiar sua proposta, aceita ter suas costas tatuadas por um artista de referência na arte do corpo, recebendo uma recompensa em dinheiro. Foi quando percebeu que seu corpo se transformou em uma obra de arte itinerante e cobiçada, sendo exibido em muitos países. Concluiu que sua situação de refugiado, em razão da vulnerabilidade social, pesou muito na sua tomada de decisão e percebeu que não vendeu somente suas costas e sim todo seu corpo e liberdade. Passou a ser uma mercadoria, como dizia seu tatuador, com acesso mais fácil a vários países, mas com desprezo total à sua dignidade. É interessante observar que a evolução do comportamento humano faz várias imagens saltarem à frente do pensamento e, num repente, transformam uma situação imaginária em uma realidade de difícil aceitação. No limiar entre a realidade e ficção às vezes é melhor responsabilizar a mente, que começa a fabricar quimeras, do que aceitar o fato como uma situação mal concebida e concretizada. Ou ainda, fazer um download dos pensamentos que nela habitam e permitir o acesso somente daquelas situações rotineiras e compatíveis com o cotidiano. A inspiração do filme, no entanto, teve como pano de fundo o caso real de Tim Steiner, que cedeu suas costas para ser tatuada por um conceituado mestre que as transformou em verdadeira obra de arte. Um colecionador interessou-se pelo trabalho e propôs a compra do corpo. Em razão da proibição legal, ficou convencionado que Steiner passaria seis dias por ano na casa do comprador, o qual receberia a pele tatuada após sua morte para emoldurá-la e exibi-la no mercado de arte, auferindo consideráveis dividendos financeiros. Atualmente, a tatuagem rompeu as barreiras da rejeição e ocupa uma posição de destaque artístico e estético em que são projetados pequenos desenhos, escritos e até mesmo a tomada de quase todo corpo pelos mais ousados, como é o caso relatado. Não se pode negar que a juventude é a que mais procura pela técnica, mas os mais maduros também dela são apreciadores. Assim como a grafitagem é uma técnica de realizar uma intervenção urbana visando expor a arte de rua (street art), a tatuagem toma o corpo como uma expressão de arte (body art). Com relação à alteração estética realizada no corpo humano, como a que sucede com a tatuagem, o Estado não pode exercer um policiamento intensivo e nem se arvorar em coproprietário e estabelecer restrições às pessoas que, como opção, assim procederam. Biologicamente o corpo já é uma obra de arte intrincada, perfeita e ainda praticamente indecifrável, apesar do hercúleo esforço da ciência. Transformá-lo em uma obra de arte, com valor financeiro estipulado pelas mais sofisticadas galerias de artes, é retirar do homem o seu mais expressivo valor, que é a liberdade. Dá até a impressão que diante de uma ideia enviesada da natureza humana, a pessoa vai se miniaturizando para dar passagem ao inexorável. Na legislação brasileira a vida, pelo regramento constitucional, é um bem indisponível e o corpo humano é protegido pelas leis, tanto na sua garantia corporal, como psíquica. Basta ver os inúmeros dispositivos protetivos existentes a respeito. Não se cogita, desta forma, qualquer negociação pois é considerado bem extra commercium. A regra mandamental é a proibição in vita da disposição do próprio corpo. Coloca-se um fim a qualquer questionamento a respeito da propriedade absoluta do corpo, a não ser que seja em decorrência de exigência médica que, também, deverá ser previamente delineada pelo próprio Estado. Se, de um lado, há a tutela legal individualizada ao cidadão, de outro, há restrições impostas em razão dos objetivos morais e éticos decorrentes da legislação. A questão colocada em discussão exige uma séria ponderação a respeito dos limites éticos da arte realizada no corpo humano. Não se pode deixar de se encantar diante das belas figuras e imagens traçadas na pele humana e imprimir a elas um valor artístico a superar o próprio homem. E situação mais gravosa ainda é, após sua morte, retirar a pele para emoldurá-la visando à preservação da obra e sua inclusão nas futuras negociações. Na realidade a intenção é, sem parâmetros e sem escrúpulos, perpetuar a obra e não o humano que a sustentou durante a vida. A beleza de uma tela convencional, elaborada pelo processo incrível da imaginação humana, exposta em ambiente propício, deve sim ser admirada e comemorada e até mesmo conter seu valor de mercado, sem, no entanto, permitir qualquer equiparação com a tatuagem, por mais perfeita que seja a obra. Longe também de configurar a doação post mortem regulada pela lei brasileira 9.434/97, que é permitida com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo a lei que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central. Desta forma, se a pessoa, em vida deixou registrado documento no sentido de que pretende doar seus órgãos post mortem, é possível uma revisão da decisão por parte dos familiares, anulando-a por completo. Isto demonstra que a autonomia da vontade da pessoa sofre severa limitação em se colocar como eventual doador. Desta forma, pelo menos para o momento atual, é juridicamente impossível realizar a doação de tecido humano post mortem para a exploração artística no Brasil.
domingo, 25 de abril de 2021

Vacinados e não vacinados

Até há pouco tempo o desenvolvimento tecnológico produzia não só mudanças de hábitos e costumes em decorrência das novas formas de lidar com os afazeres profissionais, domésticos e do cotidiano das pessoas, como também, pelas características de agilidade e comodidade, provocava uma rápida e necessária adaptação ao novo modelo implantado. O resultado, quase sempre, era de aprovação na expectativa de aguardar a cada ano as mudanças que seriam introduzidas com novas tecnologias. Exemplo clássico é o aparelho celular que definitivamente se incorporou à comunidade mundial, sem qualquer chance de retrocesso. O aparelho faz parte da vida, acólito inseparável, um longa manus indispensável. Processo inverso ocorreu com a decretação do estado pandêmico. A humanidade, ainda atônita, viu-se obrigada a acatar as regras sanitárias protetivas impostas, dentre elas desde o mais enclausurado lockdown até a simples conduta do distanciamento social, da higienização das mãos e da utilização da máscara, tudo visando proteger a saúde individual e coletiva. Apesar das medidas apontadas - nem sempre praticadas de acordo com o rigoroso protocolo - o país já registrou mais de 4.000 mortes em um único dia. A esperança maior, em clima de total insegurança, repousa na vacina que se apresenta como o caminho mais seguro para atingir a imunização que vem sendo realizada, mesmo com acentuado atraso e com doses limitadas. Mesmo assim, paulatinamente, vai crescendo a cifra dos brasileiros, principalmente os de grupos de comorbidade e os mais idosos, na contagem dos imunizados. Tamanho é o interesse dos vacinados que acessam o aplicativo Conecte-SUS para obter o comprovante de vacinação contra a Covid-19, com o código de barra devidamente validado pelo governo Federal, e passam a usá-lo como se fosse um documento imprescindível. Talvez com a aquisição de novas vacinas importadas ou outras aqui mesmo produzidas, em curto prazo poderá ser contabilizado um número expressivo de pessoas vacinadas com as doses completas. Serão excluídos, no entanto, aqueles que por opção ou convicção não se habilitaram a receber a inoculação. A título de argumentação, seria interessante observar que o país encontra hoje sérias restrições com relação à vacinação, apesar de apresentar um ambicioso Plano Nacional de Imunização (PNI), criado em 1973, que tem como objetivos o controle e a erradicação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis, visando proporcionar melhor qualidade de vida às pessoas, com o fornecimento de cerca de 20 vacinas para todas as faixas etárias, disponíveis gratuitamente nas Unidades Básicas de Saúde. Geralmente produzem reações leves, de pouca duração e sem efeitos colaterais. Na última década, porém, vem-se notando um recrudescimento de epidemias que se encontravam controladas ao longo do tempo, em razão de não se atingir a média satisfatória de imunização, principalmente das crianças, com notável redução dos índices de cobertura, como é o caso, por exemplo, do sarampo. A pergunta que vem à tona é se o cidadão, na fruição da sua autonomia da vontade, poderá se recusar à imunização e, em assim agindo, terá restrições em sua vida comunitária? Nos Estados Unidos - até mesmo em razão da celeridade vacinal - o problema já alcançou acentuado grau de discussão porque os empresários e as lideranças de vários setores produtivos pretendem criar o documento "passaportes de vacina", como um dos caminhos para a recuperação da economia. Consiste tal documento em transformar a carteira de papel de vacinação em um sistema digital de fácil manejo para que o cidadão possa exibi-lo e ter o acesso franqueado aos locais de frequência pública. Seria, na verdade, a criação de duas castas de cidadania: uma a dos vacinados, com as regalias e os benefícios decorrentes da imunização, e a outra dos não vacinados, que seriam impedidos de frequentar os mesmos locais. Percebe-se, nitidamente, conforme determinam o artigo 227 da Constituição Federal e a norma disposta no artigo 14 da lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), no âmbito do poder familiar, que há a obrigatoriedade da vacinação de crianças e adolescentes, nos casos apontados pelas autoridades sanitárias, mas não alcança os adultos.   Cogita-se até mesmo de se inserir na legislação uma norma de apresentação obrigatória da carteira de imunização como pré-requisito para a matrícula escolar. Mas tal exigência não resiste ao crivo da constitucionalidade. A criança não pode ser prejudicada por não ter acesso à escola pela negligência dos pais. Seria duplamente penalizada. Quando se determina a obrigatoriedade vacinal compreende-se a limitação ao direito individual da autonomia da pessoa e há necessidade da existência de uma lei que represente os anseios de uma sociedade democrática e pluralística no sentido de restringir um direito individual em favor da proteção sanitária do direito à saúde de toda comunidade, inclusive daquele que se recusa à imunização. O tema é incandescente e certamente irá proporcionar calorosos debates.
domingo, 18 de abril de 2021

O embrião e os alimentos gravídicos

O Direito, em razão da premente necessidade social, deixou de ser um instrumento de articulação teórica relacionado com a busca de uma sustentação legal para amparar determinada pretensão e saiu a campo como um agente desbravador e inovador, com capacidade suficiente de gerenciar situações até mesmo inusitadas e que exigem uma pronta definição. Para atingir suas metas e franquear o acesso aos seus diversos eixos de um lado conta com a própria dinamização da sociedade que vai adquirindo e assimilando novas posturas e, de outro, com a colaboração indispensável da ciência, principalmente aquela relacionada com pesquisas e técnicas aprovadas como apropriadas para os seres humanos. Com tal roupagem o Direito desbrava novos campos e incorpora muitas conquistas aparentemente inatingíveis e que gravitam em torno do homem, tais como as questões relacionadas com a criança, o adolescente, o idoso, a pessoa com deficiência e muitas outras. Um tema que frequentemente suscita interesse é aquele voltado para o embrião e, especificamente, o direito a ele conferido de pleitear o já reconhecido direito aos alimentos gravídicos. No Brasil ainda tramita desde 2007 o Estatuto do Nascituro, que certamente provocará intensos debates envolvendo desde a concepção, do início da vida humana, dos direitos reprodutivos da mulher, como também as variações a respeito do procedimento da reprodução humana. Nossa legislação, sem o auxílio da engenharia genética, possibilitava o ajuizamento da ação de alimentos somente com o nascimento com vida. O avanço na área da reprodução humana, regulamentada hoje pela resolução 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, foi tão acentuado que, num repente, a fecundação intraútero, que até então era o critério norteador do início da spes vitae, desloca-se para a manipulação humana extracorpórea com a consequente formação de embriões. Assim credenciado, o embrião fecundado intraútero, em razão de sua vulnerabilidade, conta com a tutela protetiva do princípio da dignidade da pessoa humana, dogma constitucional inafastável e irretocável que, pela melhor hermenêutica, encarta a mais lata interpretação possível, embora não seja ele ainda considerado como pessoa humana. Mas, o Código Civil, em seu artigo 2º, é taxativo em afirmar: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Tanto é que o legislador pátrio, visando cobrir a lacuna legislativa, elaborou a lei 11.804/2008 com o propósito de atingir a concessão de alimentos devidos ao nascituro. A esse respeito até o Estatuto da Criança e do Adolescente, na sua linha de tutela específica, acrescenta ainda o direito de proteção à vida e à saúde, proporcionando um nascimento sadio e harmonioso à criança e em condições dignas de existência. A lei que trata dos alimentos gravídicos confere o direito à mulher gestante, não casada e que também não viva em união estável, de receber alimentos, desde a concepção até o parto. Para tanto, deverá ingressar com o pedido judicial em desfavor do futuro pai. O juiz decidirá, no âmbito de uma cognição sumária, com base nos indícios de paternidade, a obrigação alimentar do pretenso pai, que poderá contestar, mas em restrito núcleo cognitivo também. Os alimentos fixados permanecerão até o nascimento com vida, quando serão convertidos em pensão alimentícia e, a partir deste marco, poderão ser revistos por uma das partes. Apesar de a lei referir-se a alimentos gravídicos, o termo mais adequado com a realidade legislativa seria "alimentos ao nascituro", que compreendem as despesas relacionadas com a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames, internações, parto e medicamentos indispensáveis, além de outras que o juiz considerar pertinentes. Apesar de ser a gestante a legitimada para invocar a tutela jurisdicional, a proteção jurídica é voltada para o embrião, que além de carregar a linha genética da família, compreendendo as características físicas e eventuais doenças, representa uma nova individualidade, com identidade sui generis norteada pela capacidade jurídica do nascituro.
A Polícia Civil do Rio de Janeiro realiza uma ampla investigação para encontrar a causa da morte do menino Henry Borel Medeiros, com quatro anos de idade, ocorrida no dia 8 de março, no interior do apartamento em que vivia com a mãe e o padrasto. Segundo a apuração preliminar o garoto passou o dia com o pai, que o entregou à mãe no início da noite. Durante a madrugada a mãe ouviu um barulho e foi até o quarto do filho, quando o encontrou caído no chão, gélido, sem qualquer reação. Imediatamente foi encaminhado ao hospital, submetido à manobra de reanimação, mas não respondeu. O laudo do Instituto Médico Legal realizado logo após aponta múltiplas lesões, com hemorragia interna e laceração hepática provocadas por uma ação contundente, circunstâncias que determinaram a apuração mais detalhada dos fatos. Ainda no curso da investigação policial foram decretadas, temporariamente pelo prazo de 30 dias, as prisões da mãe e do padrasto. Isto porque, segundo a motivação que determinou a medida coercitiva, o casal portava-se de forma inconveniente para o bom andamento da instrução criminal, além de ameaçar e combinar versões com as testemunhas e, principalmente, a conclusão pericial no sentido de que o padrasto agrediu anteriormente a criança produzindo nela as lesões descritas no exame de corpo de delito, com pleno conhecimento da mãe. A população brasileira permanece estarrecida com a notícia divulgada e ansiosamente aguarda o desenrolar das investigações para que seja esclarecida a morte da criança, principalmente diante das condições relatadas pelo laudo pericial. A Polícia instaurou a persecução policial de forma cautelosa e criteriosa, ouvindo inicialmente todas as pessoas ligadas direta ou indiretamente à criança, com a preocupação de aplicar os mais recentes métodos de inteligência policial aliados à tecnologia altamente especializada da polícia científica. Já foi o tempo em que a perícia em local do crime, ao avistar mancha que seria proveniente de sangue humano, deitava sobre ela água oxigenada. Se borbulhasse, era sangue, provavelmente. Segundo o dicionário Houaiss, o termo perícia tem sua origem no latim (peritia), podendo ser entendido como o "conhecimento adquirido pelo uso, pela experiência"1. É interessante observar a origem etimológica do termo perícia. Periculum em latim significa experiente, pessoa com muita habilidade e destreza, que passou por riscos e perigos. Daí que forma também a palavra pirata, que é justamente aquela pessoa que passou pelos perigos de todos os mares e conseguiu atravessá-los com segurança, demonstrando, de forma inequívoca, seu conhecimento e experiência da natureza e da vida. Assim, enquanto a investigação policial tramita pela senda ditada pelo artigo 6º do estatuto processual penal na busca de provas orais, também se desdobra em busca da realização de provas técnicas, chamadas periciais que, no dizer de França, "têm por finalidade o esclarecimento de um fato de interesse da Justiça. Ou como um ato pelo qual a autoridade procura conhecer, por meios técnicos e científicos, a existência ou não de certos acontecimentos capazes de interferir na decisão de uma questão judiciária ligada à vida ou saúde do homem ou que com ele tenha relação".2 O trabalho pericial, com esse novo enfoque, assume vital importância nos crimes de difícil elucidação, aqueles em que a investigação policial, por si só, não consegue atingir seu propósito. Por isso que, ocorrendo um crime dessa natureza, o primeiro a ter acesso ao local e às circunstâncias que o envolveram, é o perito. Mas nem sempre é possível, o que exige um hercúleo esforço para recuperar o local original. Seu trabalho é silencioso, imparcial, isento, espancando qualquer conclusão precipitada e intuitiva. Afinal, a prova não tem como finalidade comprometer alguém, pois dependendo de seu resultado, o próprio suspeito é beneficiado. Juntando-se a todas as provas consideradas pertinentes, os laudos periciais formam um conjunto de convicção mais apropriado e viável para o deslinde do fato perquirido. São os olhos ocultos, ausentes do local do crime, que a tudo veem; são os ouvidos que captam as vozes dos vestígios, que revelam a verdade velada. É afundar num trabalho altamente científico para encontrar a caixa preta onde estão armazenadas todas as informações necessárias para a leitura correta dos fatos. __________ 1 Houaiss, Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2.011, p. 2188. 2 França, Genival Veloso. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A, 2001, p. 10.
domingo, 4 de abril de 2021

Recado de Páscoa

O momento pandêmico que paira sobre a humanidade, com incidência maior no Brasil, em razão do cada vez mais crescente número de pessoas mortas em decorrência da Covid-19 - uma verdadeira catástrofe humanitária - proporciona insatisfação e insegurança para todos. O homem deixou sua lagoa paradisíaca para enfrentar a aridez angustiante de um deserto, pois teve seus planos e projetos truncados por um obstáculo ainda intransponível. Tanto é que o vírus conta com a contribuição e combinação de várias outras doenças e comorbidades para a sua disseminação, provocadas pelas vulnerabilidades existentes no país. Além do que, apesar de todos os esforços da comunidade científica e da aplicação das medidas sanitárias protetivas, o vírus vem se desenvolvendo e produzindo sequenciais variantes. Muitas indagações cabem neste buraco negro impenetrável e a única esperança que move a humanidade é a vacina, ainda escassa. Neste contexto da tragédia humana, o Ever Given, mega porta-contêineres, retrato pujante da mais apurada tecnologia, ficou encalhado no Canal de Suez. Bloqueou, em consequência, a passagem de centenas de navios que usavam a importante rota comercial. Várias tentativas de resgate utilizando técnicas aprimoradas foram infrutíferas. Ocorre que o sol e a lua se alinharam e produziram uma esplendorosa lua cheia, como há muito tempo não se via. A lua, além de refletir seus raios sobre o mar irredutível, proporcionou a maré mais cheia e ambicionada dos últimos tempos, que foi suficiente para fazer flutuar o navio de 220 mil toneladas. Quando tudo caminhava para um triste final com prováveis consequências de desabastecimento mundial, a própria natureza, a mando divino, encontrou a solução mais simples e conveniente para a humanidade. Que a Páscoa, nos moldes da liturgia cristã, no seu exato sentido de renascimento, possa inundar a humanidade com suas bênçãos, indicar e abrir os caminhos mais salutares e remover todos os obstáculos para que cada pessoa possa sentir e ver o mundo pelos olhos do coração. Et resurrexit.
Uma paciente procura por médico em plantão hospitalar e solicita a ele a prescrição dos medicamentos cloroquina e azitromicina, demonstrando total desinteresse em fazer o teste da Covid-19, assim como do exame eletrocardiograma solicitado pelo profissional da saúde, mas ponderou que assinaria o termo de consentimento caso seu pleito fosse atendido. Ainda durante o atendimento o médico convocou cinco outros colegas e ponderou à paciente que não se sentia confortável em prescrever os medicamentos, tanto em razão da ausência da comprovação científica da eficácia dos fármacos como também pela falta dos sintomas da doença e eventual uso poderia acarretar efeitos colaterais com sérios danos à saúde. A paciente, não conformada, ameaçou registrar boletim de ocorrência a respeito da negativa, assim como de ingressar com ação contra o médico, além de expressar em sua página no Facebook seu inconformismo com a recusa apresentada. Na realidade foi o médico que invocou a tutela jurisdicional por dano moral e logrou êxito. A autonomia da vontade do paciente, vista sob o relacionamento linear com o médico, constitui hoje a pedra angular do Código de Ética Médica, como previsto na resolução 2217/2018. Tanto é que é vedado ao médico "deixar de obter o consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte", conforme dispõe o artigo 22 do referido Código Deontológico. Mas para que o paciente ou seu representante legal possa dar o consentimento, faz-se necessário que as informações e esclarecimentos sejam passados de forma clara e precisa no linguajar do leigo e não do profissional, para que não paire qualquer dúvida a respeito da proposta do procedimento, sem olvidar ainda que o paciente é detentor do direito de fazer as perguntas que julgar convenientes. De forma bem didática, Dantas e Coltri explicam: "Por adequação entende-se a prestação das informações sobre o quadro do paciente, quais são as opções de procedimento, quais as consequências de cada um dos procedimentos, possíveis benefícios dos procedimentos e, principalmente, quais os riscos envolvidos em cada um dos procedimentos. Ainda o paciente deve ser informado sobre as consequências e os riscos inerentes a não adoção de procedimentos".1 Tal constatação faz ver que o Código acatou o pensamento mundial que rege a matéria e estabeleceu um verdadeiro e ativo canal de comunicação entre o médico e o paciente. A indagação reiterada constantemente procura saber até onde alcança a autonomia da vontade do paciente. É notório que o médico seja dotado de conhecimento especializado sobre determinada área e sua palavra é de vital importância para o enfrentamento da moléstia apresentada. Pode, às vezes, no entanto, não coincidir com a opinião do paciente, que opta por um determinado procedimento, em razão da liberalidade existente no "Pacient Self-Determination Act" (PSDA). Vale a pena observar que a capacidade de consentir estabelecida no Direito Civil pátrio teve origem no Direito Médico. Miranda, com sua perspicácia doutrinária insuperável, faz ver: "A noção advém do Direito Médico de diferentes países para marcar a linha de limite entre as intervenções médicas praticadas em vista de um ato de autodeterminação do paciente e aquelas praticadas com a assistência ou mediante representação do legalmente responsável pelo paciente. Seu objeto específico é o processo de tomada de decisões sobre os cuidados para com a saúde, globalmente considerados, abrangendo, portanto, não apenas os casos de autorização para participar de pesquisas na área da saúde, mas quaisquer atos de lícita disposição do próprio corpo".2 O Conselho Federal de Medicina, que por sua vez procura integrar seus conhecimentos científicos e tecnológicos a serviço do paciente, não recomendou taxativamente o uso dos medicamentos solicitados pela paciente, mas deixou a critério do médico a indicação, desde que seja tomada em decisão compartilhada com o paciente. Trata-se de um ato em que o médico divide a responsabilidade com o paciente e ambos assumem a mesma empreitada na ars curandi. O médico pode sim prescrevê-los, porém deve informar ao paciente que o medicamento não goza de eficácia científica comprovada e também a respeito dos efeitos colaterais eventuais, que podem trazer malefícios. Tudo materializado no termo de consentimento informado, peça indispensável para retratar uma decisão conjugada. A Associação Médica Brasileira (AMB), por sua vez, em recentíssimo documento editado pelo Comitê Extraordinário de Monitoramento Covid-19, em seu item 7, visando orientar os pacientes a respeito de condutas médicas, proclamou: "Reafirmamos que, infelizmente, medicações como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da COVID-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida".3 A autonomia da vontade do paciente não pode, portanto, ultrapassar as barreiras éticas e morais do profissional da saúde. Tal hipótese afigura-se como uma causa de limitação da autonomia da vontade do médico quando o interesse do paciente, mesmo que legítimo, não pode obrigar o profissional da saúde. Trata-se até mesmo de uma justificativa de objeção de consciência. O médico pode se recusar a cumprir determinado preceito legal alegando um imperativo proibitivo de sua consciência, contrariando, desta forma, a volição do paciente. O próprio Código de Ética Médica, no Capítulo que trata dos Direitos dos Médicos, em seu item IX, assim se expressa: "Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência". __________ 1 Dantas, Eduardo; Coltri, Marcos Vinicius Coltri. Comentários ao Código de ética Médica: Resolução CFM nº1931/2009. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2010, p.106. 2 Miranda, Pontes. Tratado de Direito Privado. Introdução: pessoas físicas e jurídicas, atualizado por Judith Martins-Costa... [et al.] Editora Revista dos Tribunais, 2012 (coleção tratado de direito privado: parte geral; 1) p.251.  3 Circular 02/21 da Associação Médica Brasileira.
domingo, 21 de março de 2021

O fura-fila da vacina

O Senado Federal aprovou projeto de lei de autoria do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN) que, dentre outras medidas, prevê a punição de um a três anos de detenção para quem não obedecer à fila de prioridade estabelecida pelo poder público para receber a vacina contra a Covid-19. É interessante e didático para qualquer cidadão observar o nascedouro de uma lei. Os romanos já diziam que a lei surge de um fato que aflora de forma espontânea no seio da sociedade e é submetido informalmente ao crivo de aceitabilidade ou não do grupo. Daí o brocardo: Ubi societas, ibi jus. A partir do nascimento de uma sociedade a função social do Direito deve se fazer presente com seu instrumento de trabalho, que é a lei. Os padrões morais que vigem em determinado agrupamento humano determinam o índice de aprovação ou reprovação de uma conduta. Assim a lei será construída tanto para recomendar aquilo que reverte em benefícios da sociedade, como para rejeitar a conduta que merece censura por ter infringido o padrão normal. Em ambas as hipóteses ela será detentora do caráter cogente. Basta recordar a trajetória e a aceitação popular da lei antifumo, de obediência inquestionável. O texto do projeto de lei assim está redigido: "Infringir, de qualquer modo, a ordem de prioridade da vacinação estabelecida pelo poder público, durante situação de emergência em saúde pública de importância nacional, a fim de antecipar sua vacinação ou a de outrem". Também prevê o aumento da pena de um terço até a metade se o agente, conhecedor que era da irregularidade, for a autoridade ou funcionário público que contribuiu com a conduta criminosa de outra pessoa. Percebe-se claramente que o clamor popular bradou em alta voz a sua repulsa pela conduta daqueles que quebraram a regra preferencial de imunização estabelecida pelo governo, exigindo, em contrapartida, a edição de um tipo penal próprio e específico para restabelecer a ordem. A lei 13.979/2020, apesar de ser excepcional e temporária, vez que sua vigência está delimitada ao tempo de decretação de situação de emergência, estabeleceu medidas coercitivas para proteção da coletividade, as quais poderão ser adotadas para o enfrentamento de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia decretada pelo coronavírus. O Ministério da Saúde, por sua vez, elaborou o Plano de Operacionalização da Vacina Contra a Covid-19, nos moldes do bem sucedido Programa Nacional de Imunização (PNI), levando-se em consideração a preferência inicial pela garantia do funcionamento dos serviços e a saúde dos mais idosos e grupos de risco. Muitos casos foram denunciados a respeito de pessoas que, sem qualquer motivo justificado, desrespeitaram a ordem de chamada e receberam a vacina antecipadamente. Houve a deslavada prática tanto pelo próprio agente, como também pela sua participação em antecipar a vacinação de outrem. Trata-se, sem dúvida, da quebra do princípio da igualdade previamente estabelecido em que o indivíduo, movido por egoísmo primitivo, distorceu a seu favor a ordem proclamada. Lloyd foi incisivo em afirmar com relação ao princípio da igualdade: "O que esse princípio formal realmente significa é que os iguais serão tratados como iguais, pelo que, quem for classificado como pertencente à mesma categoria, para um determinado fim, será tratado de modo idêntico".1 Consequentemente, quem não pertencer ao mesmo grupo, será considerado pessoa estranha, invasora. Se vingar a proposta legislativa, a conduta que era considerada reprovada moralmente ganha contorno de crime. E aqui cabe uma explicação: aqueles que praticaram a conduta no passado não poderão ser punidos em razão do princípio da anterioridade da lei penal, que se aplica aos fatos somente após sua vigência. Por outro lado - e tal possibilidade foi aventada muitas vezes - se a conduta de antecipar a vacinação for praticada por agente público possibilita, em tese, concluir pela prática de ato definido na Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92), com visível afronta aos princípios da moralidade e impessoalidade. É certo que referida lei exige muita cautela na investigação da vontade do agente para aferir a conduta dolosa. É necessário, portanto, que se faça uma pesquisa apropriada para encontrar pelo menos má-fé ou qualquer outro comportamento revelador de conduta incompatível e desonesta. Chega-se à inevitável conclusão de que a lei se faz necessária. É o único instrumento disponível para a concretização das metas programadas pelo Estado para que o cidadão possa realizar sua proposta de vida em harmonia com o grupo social. __________ 1 Lloyd, Dennis. A ideia de lei. Tradução Álvaro Cabral - São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 142.
domingo, 14 de março de 2021

De quem é o leito de UTI?

Após um ano da decretação da pandemia, quando a previsão era de arrefecimento da propagação do vírus - de acordo com a projeção da comunidade científica -, qual não foi a surpresa geral em constatar que o Brasil, assim como outros países, encontra-se sob a vigência de decretos de lockdowns contínuos. O coronavírus foi incorporando variadas cepas, infectando um número maior de pessoas e provocando expressivos óbitos. Já não há mais predileção para as pessoas integrantes do chamado grupo de risco, como inicialmente proclamado pela Organização Mundial da Saúde. Agora, diante da indesejável mutação do vírus, todos são iguais. Os hospitais públicos e privados colapsados. Os leitos de UTIs destinados aos pacientes em situação grave, todos tomados. Os caminhões frigoríficos e contêineres voltaram a se posicionar diante das redes hospitalares para receber os cadáveres. Verdadeira sensação de impotência dos profissionais de saúde e frustação da comunidade. Nesse clima, um hospital de referência no Rio Grande do Sul criou uma comissão multidisciplinar para decidir, dentre os pacientes que aguardam vagas nas unidades de terapia intensiva, quais serão escolhidos para a intubação com os equipamentos necessários, já escassos em razão da superlotação. Tal providência foi adotada para que a decisão não recaia sobre os ombros de um médico apenas e sim da comissão que decidirá também a respeito da retirada da intubação.1 E a pergunta que se faz é: a quem pertence o leito de UTI? Não se pode de forma alguma lançar mão de uma decisão salomônica e selecionar um paciente sem antes estabelecer critérios técnicos, levando-se em consideração o princípio da igualdade. Principalmente neste momento, quando o coronavírus derrubou as diferenças sociais, econômicas e das faixas etárias estabelecidas entre os concorrentes ao leito. Quer dizer, a vulnerabilidade se espraiou de tal forma que o mais novo concorre em igualdade de condições com o mais idoso, assim como o mais rico com o pobre. Um critério norteador seria a adoção do princípio da diferença, formulado por John Rawls, professor de filosofia política da Universidade de Harvard. Por ser uma comissão multidisciplinar a escolher o paciente, o critério não ficará adstrito à área da saúde somente. Além do que se deve levar em consideração que a decisão necessita ser imediata em razão da exiguidade do tempo para as providências médicas. O filósofo propõe, diante do dilema ético, que a escolha seja realizada de acordo com um julgamento hipotético da sociedade, buscando uma igualdade niveladora para encontrar uma solução equânime. Ora, pessoas iguais devem receber benefícios iguais, sem qualquer distinção ou favorecimento.  Assim, como uma medida justa dentre os iguais, o que atender mais de perto o critério da continuidade da vida. Na realidade, vai ser apontado o desigual entre os iguais, na medida em que se busca encontrar um paciente que tenha condições de suportar o tratamento mais adequado e, principalmente, com a maior chance de sucesso. É de se observar, pela regra sugerida e que pode guiar melhor a escolha, que os pacientes que aguardam vaga na UTI encontram-se pareados por um igualitarismo cego e o critério diferenciador entre eles deve ser o resultado encontrado nas observações feitas pela comissão multidisciplinar, que tomará conhecimento da comorbidade e vulnerabilidade de cada um e decidirá por aquele que realmente necessita de cuidados mais intensivos, com maior chance de recuperação. Mas pode ocorrer a quebra desta paridade entre os pacientes quando o representante legal de um deles acionar o órgão jurisdicional pleiteando uma tutela provisória de emergência em caráter antecipatório para que seja feita sua transferência  para o leito pretendido. Se a justiça acatar o pleito e deferir a tutela, o paciente, que juntamente com vários outros aguardava sua vez para ser promovido à UTI, com toda certeza estará sendo beneficiado em detrimento dos demais concorrentes. A decisão judicial, embora construída com base em suporte probatório robusto, esbarra na angustiante realidade hospitalar e, prevalecendo, estará promovendo o privilégio a uma pessoa, em detrimento das demais portadoras de idêntico grau de risco. O direito à saúde é igualitário para a formação do bem-estar social e cabe ao Estado, de forma obrigatória na sua função de provedor, aparelhar as condições materiais para que o paciente possa receber o atendimento a que faz jus. Se um deles, na mesma relação linear de igualdade, se antecipa e consegue sua pretensão em avançar para o leito de UTI, fica evidenciado o individualismo, em razão da própria omissão estatal. __________ 1 Hospital de referência no RS cria grupo para decidir quem usará ventilador.
domingo, 7 de março de 2021

A vulnerabilidade na pandemia

A palavra vulnerável foi paulatinamente introduzida na legislação brasileira em razão de sua ampla conceituação e abrangente configuração, alcançando cada vez mais espaços nas relações humanas. Pode-se atribuir tal conquista ao princípio da dignidade da pessoa, erigido como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito na Constituição Federal. Habermas já enfatizava que a "Constituição põe em vigor precisamente os direitos que os cidadãos precisam admitir mutuamente se quiserem regular sua convivência com os meios do direito positivo".1 As leis editadas após a Constituição Federal de 1988 carregam um comprometimento diferenciado, não só na sua estrutura legislativa como também nas tutelas anunciadas. As proteções são as mais variadas dentro da esfera dos direitos fundamentais, como à vida, à saúde, à cidadania, à segurança, educação, cultura, moradia, alimentação, esporte, lazer, trabalho, liberdade, dignidade e acesso à justiça, independentemente de classe social, de origem, raça, orientação sexual, cultura, renda, idade, religião ou qualquer outra forma de discriminação, além do que, num só artigo, a Lei Maior resume a isonomia que deve prevalecer no Estado Democrático. Vulnerável, termo de origem latina, vulnerabilis, em sua origem vem a significar a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização, feridas sangrentas com sérios riscos de infecção. Houaiss2, por sua vez, assim define: "que pode ser fisicamente ferido; sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido". Demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por circunstâncias especiais É verdadeira a premissa de que toda pessoa é vulnerável, daí a existência da própria lei para realizar a tutela necessária. A proteção legal passa a ser a lente pela qual possa ser visualizado aquele que se apresenta como o mais frágil, necessitando de cuidados especiais. Pode-se dizer genericamente que todo indivíduo tem sua vulnerabilidade intrínseca, originária, criada pela sua própria insegurança ou pelos conflitos sociais geradores de tantos problemas que afetam a mente, em razão da evolução natural das pessoas. Além dessa, outras pessoas são afetadas por vulnerabilidades circunstanciais, abrangendo pobreza, doenças crônicas e endêmicas, pandemia, falta de acesso à educação, alijamento dos mais comezinhos direitos de cidadania e outras situações que as tornam susceptíveis a sofrer danos. As diversas causas de estresses, de fobias, de depressões são enfermidades produzidas pela sociedade moderna e, na medida em que vão sendo contidas pelos homens, outras assumem as posturas de novas agressões comportamentais. Com a decretação da pandemia, o governo Federal editou a lei 13.979/20, que estabeleceu as medidas direcionadas a todas as pessoas para o enfrentamento da emergência decorrente do coronavírus. A Organização Mundial da Saúde, por sua vez, traz também as orientações para o combate e insere no rol protetivo, dentre outras, as pessoas idosas e as com comorbidades. Ocorre que a população toda do país, pelo quadro atual, pode ser considerada em estado de vulnerabilidade. O agravamento da saúde ganhou proporções incontroláveis de combate à pandemia. Pode-se dizer que não é vulnerável somente aquele considerado doente, pobre, sem habitação digna, sem emprego, sem alimentação condizente, mas todas as pessoas. Os mais novos, que eram tidos como resistentes ao vírus, experimentaram um número representativo de internações e até mesmo de óbitos. As redes públicas e privadas em todas as regiões do país vão se colapsando pela superpopulação, sendo que em alguns casos são feitas transferências de pacientes de um Estado para outro. Novas medidas restritivas à população serão impostas trazendo sérias consequências econômicas, com a necessidade urgente de implantar mais uma série do auxílio emergencial. As duas vacinas disponíveis são distribuídas de forma lenta e em pequenas doses regionais, insuficientes para dar a pronta e imediata imunização para impedir o avanço da pandemia, além do que a mutação do vírus aumenta e em muito o número de infectados, podendo até mesmo colocar em risco a eficácia vacinal. Com a crise instalada na saúde as doenças pré-existentes foram agravadas e paralisados os tratamentos no combate à hipertensão, diabetes, obesidade, doenças cardiovasculares, respiratórias, raras, cânceres e transplantes, dentre outras.  As estruturas hospitalares e as equipes médicas estavam voltadas para o combate à pandemia da Covid-19, deixando um caminho aberto para a passagem do vírus. Até mesmo o distanciamento social tornou-se um óbice para que as pessoas pudessem visitar seus médicos e, consequentemente, ficaram expostas às doenças. Assim, diante de tal quadro, pode-se dizer que toda a população do país se encontra em estado de vulnerabilidade. __________ 1 Habermas, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Traduzido por Denilson Luís |Werle. São Paulo: Editora Unesp, 2018, p.341. 2 Houaiss, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetivo Ltda, 2001, verbete vulnerável.
Um ladrão ganhou o interior de uma escola pública em São Paulo e subtraiu para si três televisores, um computador e uma panela de pressão. Antes de deixar o local, no entanto, destacou uma folha de caderno de algum aluno e, caprichosamente, deixou sua justificativa, com os dizeres: "Me desculpe mesmo, de coração, por fazer isso, não tive escolha, foi precisão". Arrematou lançando sua assinatura como "desesperado" e já no final da folha pediu misericórdia a Deus.1 A leitura atenta do bilhete deixado revela a impressão de que a pessoa não queria praticar a subtração, embora tivesse pleno conhecimento de que sua conduta não era socialmente recomendada. Porém, em razão de se encontrar carente de recursos e em situação financeira comprometedora, outra alternativa não lhe restou a não ser levar consigo os bens referidos e transformá-los em dinheiro. Tanto é que no pouco tempo em que se dedicou a justificar o ato recriminado e confessado no bilhete, deu-se por condenado e buscou sua remissão ao pedir clemência a Deus. E pior. Praticou um furto contra uma instituição pública de ensino de bairro sabendo que os bens subtraídos iriam fazer falta para os alunos no dia seguinte. Pode até ser que o leigo, na rápida leitura da notícia policial, venha a sensibilizar-se com a escusa apresentada. Principalmente pelas palavras aparentemente sinceras contidas no bilhete de arrependimento. Poderá até pensar que o fim justifica os meios e que o ser humano merece crédito e, quem sabe, futuramente, venha a recompor o prejuízo causado à escola pública. Sua justificativa, no entanto, não encontra amparo legal, por mais que se queira explicar a conduta. É até louvável saber que o furtador recriminou a própria ação. Mas juridicamente - a não ser pela relevância de compor o quadro probatório - a breve confissão escrita de próprio punho e acompanhada de arrependimento não lhe socorre. Não há que se falar em estado de necessidade ou, segundo o linguajar do agente, em estado de "precisão" como causa elidente da responsabilidade penal. Estado de necessidade é a ação direcionada contra um perigo atual e inevitável, não provocado pela pessoa, porém, para salvar um bem jurídico próprio ou de terceiro, venha a lesar o interesse de outrem. Exemplo clássico é do saudoso professor Damásio E. de Jesus quando se refere aos danos materiais produzidos em propriedade alheia para extinguir um incêndio e salvar pessoas que se encontravam em perigo. Também não se enquadra na questão a eventual dificuldade financeira pois é totalmente incompatível alegar a pobreza ou a baixa remuneração para justificar a prática de um crime. Nesta linha de pensamento, todas as subtrações seriam satisfatoriamente justificadas pela excludente. Apesar de o arrependimento estar expresso no bilhete, esteve ausente na conduta do furtador. O arrependimento eficaz previsto na lei penal não se baseia em palavras e sim no exato momento em que a ação está se desenvolvendo. Se o agente, logo após a consumação do furto, mas antes da intervenção da autoridade policial, repõe as rei furtivae ao local de onde as subtraiu, configura-se o arrependimento eficaz, também chamado na doutrina de tentativa perfeita. O que não aconteceu no fato relatado. A desistência voluntária, assim como o arrependimento eficaz, é uma manifestação de vontade contrária por parte do agente, interrompendo o iter criminis e colocando um ponto final no seu propósito delinquencial. Ocorre a desistência quando o agente, de forma voluntária e espontânea, podendo continuar na empreitada delituosa para atingir a consumação, dela desiste por sua própria decisão. É uma proposta que brota instantaneamente e deixa transparecer, de forma inequívoca, que o furtador desistiu de realizar seu projeto ilícito. O que também não ocorreu no caso comentado. Poder-se-ia aventar - e para tanto ampliar demasiadamente o espírito da lei - a justificativa do furto famélico. Tal excludente também não coaduna com a ação do furtador que se limitou a subtrair computadores e uma panela de pressão, sem levar gêneros alimentícios para a imediata satisfação da necessidade de saciar a fome própria ou de seus familiares. Outra solução derradeira seria até mesmo cogitar da aplicação do arrependimento posterior, regra contida no artigo 16 do Código Penal, para efeitos de redução da pena de um a dois terços. Neste caso se exige que o crime não tenha sido praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, circunstâncias presentes na conduta do furtador, além da necessidade da efetiva reparação do dano ou da restituição dos bens até o oferecimento da denúncia, por ato voluntário do agente. Feitas tais ponderações, a conclusão mais adequada do ponto de vista legal, isento de qualquer consideração pessoal, é que o gatuno praticou sim, de forma consciente e sem qualquer justificativa, o crime de furto. A valoração da conduta humana deve ser feita de uma forma criteriosa levando-se em consideração não só os argumentos de arrependimento e desistência do infrator, que no caso não foram plausíveis, mas, também, a sua resolução determinada para a prática do ilícito, com a plena consciência de estar agindo contra legem. Fato revelador de tal desiderato é que, até o presente, apesar de todas as diligências policiais realizadas, o autor do furto não foi encontrado. Se verdadeiras suas palavras escritas, deveria se apresentar e entregar as coisas subtraídas para receber, pelo menos, o benefício da redução da pena. __________ 1 Ladrão furta escola pública e deixa bilhete com pedido de desculpas. 
domingo, 21 de fevereiro de 2021

Princípio da Precaução e a Anvisa

A Medida Provisória 1003/20 aprovada pelo Senado Federal - que depende da decisão do presidente da República em vetar ou não - concede à ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) o prazo de cinco dias para autorizar o uso emergencial para importação, distribuição e uso de qualquer vacina no Brasil contra a Covid-19, que tenha sido aprovada por outras agências internacionais. A lei 14.006/20, que alterou a lei 13.979/20, já estabelecia o prazo de 72 horas para a agência autorizar de forma excepcional a distribuição de medicamentos e insumos, desde que aprovados pelas autoridades sanitárias dos Estados Unidos, Japão, China e União Europeia. Pela nova proposta foram incluídas as agências do Canadá, Reino Unido, Coreia do Sul, Rússia e Argentina. O mesmo diploma legal possibilitou a aprovação de autorização temporária de uso emergencial desde que as vacinas fossem recomendadas pela Covax Facility, que se resume em um consórcio homologado pela Organização Mundial da Saúde com a finalidade de ampliar a busca internacional de vacinas, submetendo-as a uma rigorosa avaliação e dispensando o difícil acordo entre o governo e a indústria de fármacos para aquisição dos imunizantes. A situação do Brasil, que ainda se encontra no início da tarefa vacinal, dependendo somente das vacinas produzidas pela Coronavac e AstraZeneca, em quantitativos insuficientes e imprevisíveis de continuidade, necessita, urgentemente, buscar novas opções para atingir a pretendida imunidade coletiva. Aliás, a estratégia mais recomendável no momento seria a imunização de um maior número de pessoas antes que novas cepas recrudesçam e ganhem cada vez mais espaços, obrigando, consequentemente, a realização de novos estudos científicos para combatê-las. Diante de tal impossibilidade, a proposta contida na Medida Provisória representa a esperança de se conseguir, em prazo mais condizente com a realidade brasileira, novas frentes para se buscar vacinas aprovadas por outras agências reguladoras. Mas a reflexão exige um aprofundamento necessário levando-se em consideração que outros países estabelecem critérios diferenciados da avaliação feita pela Anvisa. O artigo 5º da referida Medida Provisória diz textualmente: "A ANVISA concederá autorização temporária de uso emergencial para a importação, a distribuição e o uso de qualquer vacina contra a Covid-19 pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, em até 5 (cinco) dias após a submissão do pedido...". Na melhor interpretação é de se concluir que a agência brasileira não fará qualquer avaliação a respeito da fabricação, da qualidade dos insumos e dos métodos utilizados, enfim sem qualquer análise técnica e específica das vacinas na investigação da segurança, qualidade e eficácia.  Além do que, pelo teor imperativo do núcleo verbal contido no texto, o trabalho da agência será meramente homologatório, vez que "concederá". É indiscutível que o prazo de cinco dias é totalmente inadequado para apreciação de mérito de qualquer vacina, e a agência brasileira, diante da exiguidade temporal, na situação proposta pela legislação, irá funcionar exclusivamente como um órgão interveniente para fins homologatórios. Mesmo em se tratando de uma autorização emergencial em que o Brasil se encontra com dificuldades de contratar novas vacinas, poderia ser dilatado um pouco mais o prazo estipulado para que o órgão possa emitir uma avaliação de segurança para a população. A lei 9.782/99 criou a Anvisa e lhe atribuiu independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes, autonomia financeira e, em seu extenso rol de competência, conferiu a incumbência de regulamentar, controlar e fiscalizar produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública como é o caso dos medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias. Assim a Amvisa, quando atua com relação à avaliação das vacinas, tem como rota segura a obrigação de observar dois princípios básicos atrelados à Bioética. O primeiro deles é o da precaução, representado pelo cuidado necessário para evitar condutas arriscadas e não recomendadas que venham provocar riscos e danos. Determinada vacina que, aparentemente, deixa transparecer um sinal satisfatório para o homem, com o passar do tempo, por mais paradoxal que possa parecer, poderá aflorar algum mal até então encoberto. A ciência deve ser sim estimulada e privilegiada e o resultado científico perquirido, proveniente de uma dose exacerbada de bom senso, sem perder a censura correta da ciência, expressará a proteção conferida ao ser humano. Se determinado medicamento apresentar algum risco previsto e não corresponder a um determinado grau de segurança, será rejeitado. Daí que deve a agência estabelecer de forma clara e sistemática o embasamento científico que seja mais adequado e aconselhável para a população. O princípio da beneficência vem acolitar o primeiro. O ser humano deve figurar sempre como o destinatário do estudo científico, sem experimentar qualquer dano. É a regra do malum non facere ou primum non nocere. Em outras palavras, seria envidar todos os esforços para maximizar os resultados que trouxeram significativos dividendos à saúde e minimizar os possíveis efeitos nefastos com impactos negativos à saúde. Todo este iter deve vir acompanhado de passos sincronizados, que tragam suporte de benefício não só para a pessoa, como também para a comunidade. A Anvisa, conforme proposto na novel legislação, não pode ser considerada, portanto, uma instância meramente burocrática, homologatória e sim a guardiã para estabelecer os parâmetros éticos e recomendáveis de uma vacina. Afinal a saúde humana é prioridade inafastável e orbita no âmbito da responsabilidade pública.
domingo, 14 de fevereiro de 2021

A Cannabis na rota do uso medicinal

A Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas, acatando também a recomendação da Organização Mundial da Saúde, aprovou a reclassificação da cannabis sativa da listagem de narcóticos considerados impróprios e perigosos para o homem e abriu espaço para sua utilização médica, exclusivamente.1 Alguns temas, rotineiramente, como bumerangues, frequentam a imprensa nacional e internacional, justamente por reunirem opiniões conflitantes, como é o caso da canabis sativa. Quando um órgão de referência como a ONU emite uma recomendação, lança mais combustível para debates no sentido de se aprovar a liberação da maconha para uso medicinal. É até interessante observar que uma planta que carrega um componente sem qualquer efeito alucinógeno - mas até então considerava-se que produzia efeitos malignos para a saúde humana - consegue trazer um razoável ganho de saúde, conforme reiteradamente vêm indicando as pesquisas científicas. Pelos estudos disponíveis o Canabidiol (CBD) pode ser isolado de forma segura em laboratório e não produz nenhum prejuízo ou dano à cognição humana. No Brasil, a lei 11.343/06 (Lei de Drogas), que define os crimes relacionados com o tráfico de drogas e outros crimes afins, além de instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad - também prescreve medidas para prevenção e uso indevido, juntamente com a reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Há, no entanto, um permissivo legal no parágrafo único do artigo 2º, que permite à União "autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas." Também no Brasil, há um bom tempo, a liberação do princípio ativo do canabidiol  (CBD) e do tetra-hidrocanabidiol  (THC), componentes da cannabis sativa, batem às portas dos tribunais assim como da ANVISA, responsável que é pela aprovação dos produtos submetidos à vigilância sanitária. Muitos países, principalmente aqueles que desenvolvem linhas de pesquisa nesta área, liberaram o uso medicinal da maconha, mormente na redução das crises convulsivas, com razoável margem de segurança e boa tolerabilidade, sem relatos de efeitos alucinógenos ou psicóticos. O presidente da Argentina, há pouco tempo, regulamentou uma lei de 2017 e legalizou o plantio e cultivo da maconha medicinal, e também permitiu às farmácias vender aos interessados óleos e cremes feitos a partir da planta, desde que o interessado se cadastre em um programa vinculado ao Ministério da Saúde. É de se levar em conta que as pesquisas envolvendo o princípio ativo THC da cannabis sativa vêm conseguindo bons resultados em busca de novas e melhores alternativas para o homem. Apesar do pouco ganho inicial, que faz parte do estudo, abrirão novos espaços, com descobertas que irão ultrapassar os limites fincados pelo conhecimento humano e tudo indica que trarão novos dividendos favoráveis à saúde. Há reiteradas evidências científicas que contam até mesmo com o beneplácito da Organização Mundial da Saúde, que concluiu pelo benefício da canabis e canabinoides para os pacientes com epilepsia, esclerose múltipla, demência, depressão e outros males. Nesta linha de raciocínio a própria ANVISA já autorizou e registrou o medicamento Mevatyl, à base de cannabis, indicado para o tratamento de adultos com espasmos relacionados à esclerose múltipla. Pelo mesmo caminho, enfrentando igual entrave legal, surgem as pesquisas relacionadas com as chamadas "drogas psicodélicas", tais como LSD, MDMA e outras. Apesar de terem sido recriminadas durante várias décadas, apresentam-se atualmente como objeto de estudos científicos que já atingiram consideráveis avanços para o tratamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que afeta considerável número de brasileiros. Os estudos ainda estão sendo realizados com a intenção de atingir um número cada vez mais representativo de pacientes, assim como, paralelamente, de promover a formação e capacitação de profissionais habilitados em psicoterapia assistida por psicodélicos. Recentemente, uma associação em São Paulo, composta por pacientes que fazem tratamento à base de derivados da cânabis, ingressou com um pedido de habeas corpus coletivo, juntando aos autos laudos médicos que comprovam a necessidade da utilização da planta, pleito que foi julgado procedente.2 A fundamentação legal foi lastreada na comprovação da utilização das substâncias extraídas da maconha para tratamentos contra epilepsia, dores crônicas, autismo e doença de Parkinson, além da efetiva proteção aos direitos à vida e à saúde, englobados na esfera da dignidade da pessoa humana. Com tal aparato judicial os associados não poderão ser presos em flagrante delito no cultivo da referida planta. A ciência, pelas suas regras investigativas e protocolos de pesquisas, em vários estudos científicos rigorosamente sérios e recomendados, não só apontou os benefícios como também recomendou a continuidade de estudos com a cannabis, por ficar evidenciado o benefício para o paciente. O princípio da beneficência da Bioética visa justamente envidar o melhor esforço possível para buscar soluções que sejam adequadas, convenientes e proporcionais para o paciente, conferindo a ele um considerável ganho à sua saúde, com o mínimo risco possível. Quer dizer, extremar os possíveis benefícios e minimizar eventuais danos. Desta forma, abrindo-se uma linha de pesquisa que tenha já atingido um patamar de segurança e tolerabilidade, recomenda-se que sejam exploradas todas as possibilidades de se buscar um resultado que seja compatível com os objetivos propostos. É bom que se reforce que a utilização medicinal de uma droga com relevante potencial terapêutico não equivale à sua legalização. __________ 1 ONU retira maconha de lista de drogas mais perigosas; Brasil vota contra. 2 Justiça dá aval para plantação de maconha por associação com habeas corpus coletivo.
domingo, 7 de fevereiro de 2021

Reprodução não assistida

A procriação medicamente assistida, em evolução constante e cada vez mais aperfeiçoada, vem superando vários desafios e marcando notáveis progressos na resolução dos problemas relacionados com a reprodução humana. O desenvolvimento acelerado das técnicas de reprodução assistida é tamanho que nem mesmo a legislação ordinária emite normas a respeito, com exceção do permissivo existente no artigo 1.597, incisos III, IV e V, do Código Civil. Daí que o vácuo existente é preenchido pelas resoluções do Conselho Federal de Medicina que estabelecem as normas éticas para a utilização das técnicas existentes, conforme se depreende da resolução  2.168/2017, do referido Conselho. As técnicas existentes somente poderão ser utilizadas desde que exista a probabilidade de sucesso no procedimento, sem qualquer risco para a paciente e, principalmente, sem qualquer intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica, exceto quando for para evitar doenças no futuro descendente. O protocolo médico exige que os pacientes assinem o termo de consentimento esclarecido, demonstrando total concordância após a discussão bilateral entre as partes envolvidas. As perspectivas de sucesso foram se alastrando e provocaram um verdadeiro alargamento de acesso à gestação compreendendo agora as pessoas solteiras, pessoas em relacionamentos homoafetivos e a gestação compartilhada na união estável feminina. Para tanto foi editado o provimento 63/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, que regulamentou o assento de nascimento de filho havido por técnicas de reprodução assistida. No Brasil é expressiva a demanda para tratamento de infertilidade oferecido pelo SUS, que disponibiliza o serviço em poucos centros de saúde, obrigando os interessados a aguardarem longo período para o atendimento. Tal direito vem expressamente disposto no artigo 226, § 7º da Constituição Federal, que incumbe ao Estado propiciar recursos científicos para o cidadão atingir a procriação, como é o caso da reprodução assistida. Ocorre, no entanto, que, em razão do alto custo operacional do procedimento médico, muitas pessoas desavisadas passaram a adotar os aconselhamentos das redes sociais para a realização da chamada inseminação artificial caseira, que consiste em buscar um doador de esperma, que não é anônimo e, em alguns casos, cobra determinada importância pela venda do sêmen. Faz-se a retirada do material que será coletado em um recipiente esterilizado ou até mesmo no preservativo e, em seguida, com o auxílio de uma seringa ou aplicador, realiza a inseminação na cavidade vaginal da mulher, que deverá estar no seu período fértil. Na realidade é um procedimento bem singelo, desprovido de qualquer técnica mais apurada, mas que poderá causar futuramente um imbróglio genético de difícil deslinde. Tal prática é mais costumeira na união homoafetiva feminina, mas tem cabimento também nas demais situações. Por ser um procedimento paralelo, sem se ater às normas técnicas que regulamentam a matéria, muitos inconvenientes são apontados. No contato com o doador, por exemplo, será assinado um documento de isenção de qualquer responsabilidade futura dele com relação ao filho que for gerado, cláusula que, juridicamente, não irá produzir qualquer efeito em razão do princípio da paternidade responsável, pois, a qualquer tempo, poderá ser intentada ação de investigação de paternidade em seu desfavor, que contará com a conclusão do imbatível exame de DNA. Também o doador não é submetido a exames específicos, com a finalidade de pesquisar eventuais doenças genéticas ou não, que possam ser transmitidas à mulher ou à prole (HIV, HTLV-I/II, Hepatite e outros), como sói acontecer na reprodução medicamente assistida. O procedimento contraria frontalmente o disposto na lei 9.434/97, que proíbe qualquer comércio relacionado com o sangue, esperma e óvulo, considerados bens extra commercium. O doador já é useiro e vezeiro em ceder seu sêmen e não há qualquer controle com relação às inseminações que vingaram, uma vez que seu nome não irá figurar no assento de nascimento da criança, contrariando o direito do infante de conhecer sua identidade genética e história biológica. Pode ocorrer que o responsável pelo sêmen tenha uma imensa prole na cidade onde reside e seus filhos, desconhecendo a filiação paterna, venham a se casar entre si. O Jornal Folha de São Paulo, em excelente trabalho, trouxe uma reportagem em que um doador de esperma tinha quase 200 filhos na Holanda e que uma clínica de esperma da Dinamarca envia material genético para mais de cem países.1 Nos casos de união homoafetiva feminina, a contrário do que recomenda a gestação compartilhada, o registro da criança será feito somente em nome da mulher que deu à luz, cabendo à companheira invocar a tutela jurisdicional para pleitear a adoção unilateral. A questão abordada representa um nó de extrema complexidade para a concretização do projeto parental, pois foge de todo e qualquer protocolo médico recomendado. Não deve ser apreciada unicamente pelo lado pessoal, para satisfazer uma determinada pretensão, mas deve ser avaliada diante da difusa dimensão pública e também da defesa inconteste dos direitos à saúde da genitora e do nascituro na constituição de uma nova forma de familiaridade. __________ 1 Doador de esperma serial tem quase 200 filhos e acende alerta na Holanda.
domingo, 31 de janeiro de 2021

Justiça consensual e adequada

Um homem foi flagrado pela câmera da central de monitoramento da Guarda Municipal de São José do Rio Preto abandonando oito gatos em um terreno bem próximo à cidade, sendo que um deles foi por ele atropelado quando manobrava o veículo para deixar o local. Foi preso em flagrante delito pela prática do crime de maus tratos aos animais.1 Referido ilícito, previsto no artigo 32 da lei 9.605/98, teve sua pena recentemente majorada pela lei 14.064/20 para aqueles que praticarem abuso, maus tratos, ferimentos ou mutilação em cães e gatos, fixando a reprimenda de 2 a 5 anos de detenção, além de multa ou proibição da guarda. O Ministério Público, representado pelo promotor de justiça José Heitor dos Santos, com competência e experiência mais do que comprovada na lide forense, em razão da mudança introduzida pela lei 13.964/19 (Lei Anticrime) no artigo 28-A do Código de Processo Penal, propôs ao investigado o acordo de não persecução penal uma vez que ele confessou a prática de crime cometido sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima é inferior a quatro anos. Diante do permissivo legal, o promotor de justiça abriu mão da postulação persecutória penal e apresentou uma proposta de cunho eminentemente educativo e pedagógico para que o investigado, durante 18 meses, dedicasse 8 horas por semana para prestar auxílio em um projeto existente na cidade, voltado para cuidados e proteção dos animais, que foi prontamente aceita pelo autor da infração e encaminhada para a homologação judicial. Quando se noticia algo a respeito de um crime, a cultura popular é voltada para a decretação da prisão, assim como o cumprimento da pena em regime fechado. A tradição da prisão, talvez com raiz nas Ordenações do Reino de Portugal, revela que se alguém pratica um crime que lesa sobremaneira a comunidade deve, obrigatoriamente, ser levado à prisão, sem chances de usufruir o direito à liberdade após um determinado período de cumprimento da pena. O pensamento popular circula na faixa da reprovação imediata do ato ilícito, buscando, em primeiro plano, retomar a segurança e, em segundo, reafirmar o exemplo punitivo da segregação. Voz do povo, voz de Deus, mas não a do legislador pátrio. A Constituição Federal brasileira deixa explicitado que a regra é a liberdade, assim como a regra é a inocência, ambas inseridas nos princípios gerais que balizam a interpretação penal. O homem, pela sua própria natureza, é livre para praticar todos os atos que não encontram restrições impostas pelo Estado ou que esbarrem em direitos assegurados a outro cidadão. A liberdade, então, de aparência absoluta, passa a ser relativa e finca sua bandeira nas bases ditadas pelo Estado Democrático de Direito e na Justiça Social. Assim, com a prevalência da lei, cabe a todos o exercício da correta fiscalização de sua aplicação e, acima de tudo, o cumprimento espontâneo de suas determinações. Caso contrário, de forma cogente, o Estado se incumbirá de tal tarefa. Muitas das propostas legislativas que tramitam atualmente, inclusive a que norteia o anteprojeto do Código Penal, pretendem fazer uma revisão das penas privativas de liberdade. A prisão - de acordo com a metodologia e filosofia da comissão encarregada de ofertar mudanças para o futuro Código Penal - somente será reservada para os delitos praticados com emprego de violência física ou ameaça ou outros crimes considerados graves. Nos demais casos, a opção seria a reparação do dano e aplicação de penas alternativas com mais rigor. A nova mentalidade tem como base e sustentação o comprometimento do infrator com a sociedade que lesou. De um lado, ele reconhece o seu desvio de conduta, mas irá repará-lo com a prestação de serviço equivalente ao mal praticado ou será privado temporariamente de alguns direitos, limitação de final de semana ou receberá uma pena pecuniária e, de outro, participando ativamente da comunidade onde delinquiu, encontrará uma via mais rápida para a ressocialização. A pena detentiva, por sua vez, pode ser considerada inútil pois não atinge as medidas necessárias para a verdadeira construção da justiça social. A proposta feita pelo representante do Ministério Público carrega exatamente o espírito atual que norteia o Direito Penal. A conduta ilícita do indiciado foi reconhecida em sua confissão, sendo, portanto, desnecessário instaurar um processo para ouvir testemunhas a respeito da autoria - que vem roborada também pelas câmeras que captaram sua imagem - e resta somente a realização de um pacto entre Estado e indiciado para estabelecer as condições de cumprimento de uma penalidade alternativa, mas que, certamente, cumprirá os objetivos. Seria, desta forma, a construção de uma integração social para evitar a fragmentação carcerária que vai se proliferando cada vez mais, graças ao consenso estabelecido na concessão estatal e na convicção do infrator. O Papa Francisco, falando a respeito da conveniência social e o consenso, assim se manifestou: O fato de certas normas serem indispensáveis para a própria vida social é um indício externo de como elas são algo intrinsicamente bom.2  ____________ 1 Clique aqui  2 Carte Encíclica do Papa Francisco. Fratelli Tutti - Sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Editora Paulus, 2020, p. 111.
domingo, 24 de janeiro de 2021

A decisão da ciência é lei

O Brasil aguardou ansiosamente a decisão da Anvisa a respeito da avaliação científica para o uso emergencial das vacinas Coronavac do Instituto Butantan, em parceria com a empresa chinesa Sinovac, e da Fiocruz, em parceria com a farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford. Após algumas ressalvas impostas, a agência, em votação pública, emitiu parecer favorável à utilização dos imunizantes, decisão que, pelo menos temporariamente, tranquilizou a população brasileira, que já se distanciava dos 51 países que saíram à frente na campanha de vacinação em massa. A decisão, desta forma, guardadas as proporções, pode ser considerada como a promulgação de uma lei há muito tempo aguardada e que veio para solucionar sérios problemas relacionados com a saúde da população. É uma espécie de alforria e alivia o cidadão de todas as classes. Vai além a decisão administrativa. Foi incisiva e, para tanto contou com a unanimidade dos pareceristas, que concluíram que a ciência deve prevalecer de forma soberana quando chamada para diagnosticar doenças e apresentar um plano de combate com embasamento científico. Foi dramático o embate inicial entre a ciência e os gestores públicos brasileiros. Estes preocupavam-se com o retorno da normalização da vida laboral e financeira - que merece a devida atenção sem qualquer dúvida - mas sem olvidar que cada vez mais as pessoas, sem atender ao protocolo de segurança recomendado, vinham se aglomerando nos transportes coletivos, ruas das cidades e até mesmo em festas proibidas, desprezando o perigo que rondava suas vidas. A ciência, por sua vez, limitou-se a recomendar medidas protetivas individuais e coletivas que pudessem minimizar a crise que se instalava na saúde pública e outro pensamento não teve a não ser aconselhar uma conduta adequada e protetiva para o bem-estar da coletividade, seguindo as determinações emanadas das autoridades sanitárias com a intenção de abrigar as boas práticas científicas comprovadas e idôneas para afastar a vulnerabilidade social. No caso da pandemia do coronavírus, por exemplo, ficou mais do que evidenciada a ausência de alternativas terapêuticas, circunstância que obrigou os cientistas a se unirem para encontrarem uma resposta unicamente vacinal, em razão até da exiguidade do tempo. O tratamento precoce então recomendado como proposta de cura, a exemplo da cloroquina e hidrocloroquina, ambas sem qualquer recomendação científica, como o vírus, contaminou a boa-fé popular e colaborou com o aumento de número de infectados e mortos. É de se atentar que o Ministério da Saúde chegou a indicar, quando se tratasse de tratamento medicamentoso precoce, a utilização da cloroquina e da hidroxicloroquina, reconhecidas como uso compassivo nos casos graves de pacientes hospitalizados. Ocorre que estudos recentes e atualizados, principalmente pela publicação feita na revista científica Lancet1, demonstraram que o uso das referidas drogas estava provocando um número maior de arritmia e mortes, retirando, portanto, qualquer benefício ao paciente. Daí que a Organização Mundial da Saúde suspendeu os estudos que vinham sendo realizados com as drogas. O Conselho Federal de Medicina, que por sua vez procura integrar seus conhecimentos científicos e tecnológicos a serviço do paciente, não recomendou o uso delas, mas deixou a critério do médico a indicação, desde que seja tomada em decisão compartilhada com o paciente. Trata-se de um ato em que o médico divide a responsabilidade com o paciente e ambos assumem a mesma empreitada na ars curandi. Pode, às vezes, não coincidir com a opinião do paciente, que opta por um determinado procedimento, em razão da liberalidade existente no Pacient Self-Determination Act. O médico pode sim prescrevê-las, porém deve informar ao paciente que o medicamento não goza de eficácia científica comprovada e também a respeito dos efeitos colaterais eventuais, que podem trazer malefícios. Tudo materializado no termo de consentimento informado, peça indispensável para retratar uma decisão conjugada. Vencida esta fase resta agora apostar unicamente nas vacinas que foram provisoriamente autorizadas e em outras que virão, até mesmo tardiamente, todas frutos dos estudos científicos desenvolvidos em favor da humanidade.  A ciência é como uma lei: quem dela se afasta caminha pela rota do reprovável e leva de roldão as esperanças de muitas vidas. __________ 1 Por que cientistas tiveram que se retratar por estudo que negava efeito da cloroquina contra o coronavírus.
domingo, 17 de janeiro de 2021

As clínicas particulares e as vacinas

A humanidade não só acompanhou como também torceu pelo bom desempenho das instituições que pesquisaram vacinas para combater o coronavírus e neste início de ano - ao que tudo indica promissor para a saúde - suspirou com alívio quando as agências reguladoras foram aprovando e autorizando a utilização de algumas delas para a imunização mundial. A corrida pela aquisição da vacina teve início bem antes de findar a terceira fase dos estudos científicos e muitos países conseguiram a preferência junto aos laboratórios, assinando contratos de reserva de aquisição do imunizante. Assim foi feito por eles e a vacinação já se faz presente na ordem do dia. No Brasil a ANVISA recebeu dois pedidos de uso emergencial, sendo um deles do Instituto Butantan em parceria com a empresa chinesa Sinovac e o outro feito pela Fiocruz em parceria com a farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford. A agência solicitou, cumprindo rigorosamente o protocolo estabelecido, a juntada de documentos faltantes e complementares e marcou para o dia 17 de janeiro a reunião da diretoria para decidir a respeito da autorização para os dois imunizantes. Apesar de se tratar de uma corrida contra o vírus, que vai provocando cada vez mais mortes, todo o cuidado é necessário para garantir a segurança e eficácia das vacinas que serão utilizadas pela população. Entre tantas dúvidas e incertezas a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVac) anunciou que está negociando cerca de 5 milhões de doses da vacina indiana Covaxin contra a Covid-19, também sem pedido de uso emergencial ou registro junto à ANVISA.1 Em recente reunião anual, a Organização Mundial da Saúde - responsável pela decretação da pandemia do coronavírus - conclamou a todos os membros, em caso de descoberta de uma vacina, que ela seja considerada um bem público global, com acesso irrestrito a toda comunidade mundial.2 Neste diapasão pode-se considerar a vacina como sendo res communis omnium - expressão tão largamente utilizada no Direito Romano -, dando a entender o pertencimento coletivo de tudo aquilo que a natureza proporciona, como também a criação pelo homem de algo que beneficia a humanidade, observando que, conforme preceitua a Constituição Federal, no artigo 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. O Plano Nacional de Imunização (PNI), instituído em 1973, advindo após a lei 6.259/1975, que criou as políticas públicas voltadas à imunização contra enfermidades, contempla a vacinação de crianças, adolescentes, adultos, idosos, gestantes e povos indígenas, de acordo com o Calendário Nacional de Vacinação. O Brasil sancionou a lei 13.979/20, norma excepcional caracterizada pela decretação da pandemia e que prevê, em seu texto, medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública com a finalidade de conter a contaminação ou propagação do vírus. Dentre as medidas previstas no artigo 3º da referida lei, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos. Pode-se concluir, sem muito esforço interpretativo, que cabe ao Estado a responsabilidade de assumir a iniciativa de inocular a população gratuitamente, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Plano Nacional de Imunização, obedecendo os parâmetros da igualdade entre os cidadãos e a equidade na distribuição dos recursos. Ocorre que, diante da escassez dos recursos, pela ausência de uma vacina e pela falta de agulhas e seringas, além dos dois estágios da vacinação, não destoando dos princípios acima enunciados, na própria igualdade reina uma desigualdade intrínseca que a diferencia e é voltada justamente para as pessoas que compõem os grupos de maior risco e vulnerabilidade como, por exemplo, profissionais da saúde, da segurança, crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, pessoas com comorbidade e outras que exigem escolhas prioritárias para receber a inoculação necessária. É interessante observar que o Brasil é considerado um país exemplar e que cumpre zelosamente pela cobertura vacinal, embora nos últimos três anos não tenha atingido a meta almejada em suas campanhas em razão provavelmente de movimento antivacinal, que vem prosperando a cada ano e não encontra qualquer amparo científico de malefício comprovado e muito menos a adesão da Organização Mundial da Saúde. Pois bem. É justamente neste espaço que as clínicas particulares de vacinação esboçaram a pretensão de realizar conjuntamente a cobertura vacinal. Um ponto deve ser considerado e não admite qualquer negociação: a legitimidade para estabelecer as regras e obrigatoriedade de imunização é exclusiva do Estado. Daí que as clínicas não são concorrentes e nem exercem funções substitutivas, aliás, como ocorre no cotidiano vacinal que abre espaço para as duas frentes. O que não se admite - e fere frontalmente os princípios fundamentais da cidadania - é a iniciativa privada antecipar-se à ação estatal, frustrar as prioridades consensuais adotadas e atender preferencialmente o público que tiver condições de arcar com o custo da vacina, demonstrando, desta forma, uma quebra ao princípio da diferenciação positiva. Se o próprio Estado concorda com a ação subsidiária e adesiva das clínicas particulares, e se houver autorização da ANVISA para importação e homologação do registro, não há como obstar que os particulares desenvolvam paralelamente seu comércio, desde que obedecida a ordem preferencial estatal. Em tempo de pandemia em que a vacina se apresenta como o único recurso para combater o vírus e o Estado ainda está desenhando sua estratégia de pronta atuação, nada mais justo do que aceitar a colaboração de terceira entidade para fazer o quanto antes a cobertura total de vacinação do povo brasileiro. Trata-se de um verdadeiro estado de necessidade. __________ 1 Procura de vacinas por clínicas privadas causa temor de prejuízos à rede pública. 2 Em reunião da OMS, países defendem vacina contra covid-19 para todos.