COLUNAS

Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
A recente invasão das tropas russas na Ucrânia mobilizou a comunidade internacional que, além de repudiar o ato de guerra, tomou várias medidas econômicas e até mesmo de auxílio bélico para envio de aviões, navios e armas para Kiev e, ainda, imposição de sanções para minar o poderio financeiro do país invasor. É indiscutível que a guerra carrega trágicos prejuízos para o povo e para o local onde é travada, mas, como um míssil de longo alcance, atinge inúmeros outros países que há muito tempo vinham consolidando um harmonioso relacionamento junto à comunidade globalizada. Kiev, capital da Ucrânia, abriga inúmeras clínicas de infertilidade e recebe casais brasileiros que optaram pela maternidade de substituição, considerada legal no país desde 2015, (surrogacy, assim denominada em inglês), além de armazenar os embriões criopreservados dos interessados na procriação. O procedimento, no caso de maternidade de substituição, gira em torno de 39.900 a 64.900 euros, enquanto que as doadoras de óvulos recebem de 4.900 a 11.900 euros.[1] Perfeita e bem acabada a definição da Lei Portuguesa[2] a respeito da maternidade de substituição: "Entende-se por maternidade de substituição qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando-se aos poderes e deveres próprios da maternidade". A maternidade de substituição, pela lei da Ucrânia, é permitida somente para casais heterossexuais que tenham problemas médicos de infertilidade e os óvulos podem ser doados tanto por voluntários anônimos quanto por familiares dos interessados. As candidatas à maternidade devem ter cidadania ucraniana, com idade até 36 anos, desde que comprovadas a saúde física e mental. Após o nascimento - tudo seguindo rigorosamente as regras de um contrato assinado pelas partes envolvidas - a mãe que exerceu a gravidez de substituição e sem qualquer direito parental, entregará a criança aos pais biológicos, cujos nomes constarão da certidão de nascimento do recém-nascido, assim como do seu passaporte. É ainda de se observar que, após o nascimento, a criança é submetida a exame de DNA visando comprovar se os interessados que contrataram os serviços de "barriga de aluguel" são realmente os pais biológicos. Recentemente, quando foi decretada a pandemia pela Organização Mundial da Saúde, o governo ucraniano impôs a proibição de entrada no país como uma das medidas de combate ao coronavírus. Os genitores das crianças nascidas pela maternidade de substituição passaram por momentos difíceis, vez que não tinham acesso para buscar os filhos e as clínicas tiveram que se desdobrar nos cuidados exigidos pelos recém-nascidos. Tal fato reacendeu a discussão travada, principalmente na Europa, a respeito da afronta à dignidade humana da mulher que pratica verdadeiro comércio com seu corpo e passa a ser tratada como mercadoria no lucrativo comércio de "útero de aluguel". Com a guerra em andamento no território ucraniano as clínicas de infertilidade - em razão das cláusulas contratuais protetivas às mães substitutivas e aos embriões vindos de outros países e encaminhados para Kiev ou aí produzidos - vêm monitorando e procurando sempre buscar locais seguros para os embriões, como o alojamento em bunkers, e as gestantes estão sendo transferidas para cidades próximas da divisa com a Polônia. E, em último caso, cogita-se até mesmo de encaminhá-las para outros países. E, nesse caso, tem início novo imbróglio, pois poucos são os que permitem a prática da maternidade de substituição, como é o caso da Rússia, Tailândia, Índia e alguns estados dos EUA. Em caso de transferência para algum país em que não exista legislação a respeito da matéria, não será possível o cumprimento total do contrato. A mãe gestora, desta forma, no ato do nascimento, deverá registrar a criança em seu próprio nome e não terá condições de entregá-la para os pais biológicos. Talvez até, dependendo da legislação, possa se cogitar de eventual adoção da criança. O certo é que teremos mães substitutivas e biológicas itinerantes em busca de um local propício para a regularização registral da criança. Diante de tantos entraves não é de se pensar em realizar a reprodução assistida no Brasil? O procedimento é totalmente diferente. A respeito da reprodução assistida vige a Resolução 2.294/21, do Conselho Federal de Medicina, que regulamenta a matéria. As técnicas de reprodução assistida são utilizadas para auxiliar o processo de procriação, desde que exista possibilidade de sucesso e baixa probabilidade de risco grave à saúde da paciente, que não poderá ter acima de 50 anos de idade, ou do possível descendente e jamais serão utilizadas com a intenção de selecionar sexo ou outra característica biológica do futuro filho, observando que a finalidade é exclusivamente voltada para a procriação humana. Também poderão se valer das técnicas os heterossexuais, homoafetivos e transgêneros, assim como a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina. A doação de gametas não tem caráter lucrativo ou comercial e será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores, exceto na doação de gametas para parentesco de até 4º (quarto) grau, de um dos receptores. Quando se tratar de gestação de substituição, também conhecida como cessão temporária do útero, a cedente deverá ter ao menos um filho vivo e pertencer à família dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau, observando que o primeiro grau compreende pais e filhos; o segundo, avós e irmãos; o terceiro, tios e sobrinhos; e o quarto, primos. Com o nascimento da criança, o registro e a emissão da respectiva certidão de nascimento do filho havido por reprodução assistida serão lavrados de acordo com o Provimento nº 63/2017 da Corregedoria Nacional de Justiça. Percebe-se, pelo breve relato feito, que a diferença maior entre o Brasil e a Ucrânia, no tocante à reprodução assistida, reside na gratuidade da doação de gametas e da cessão temporária de útero, uma vez que a legislação brasileira considera o corpo humano e suas partes como bem extra commercium, sem qualquer perfil negocial ou lucrativo. 1 https://veja.abril.com.br/mundo/lockdown-deixa-dezenas-de-bebes-de-barriga-de-aluguel-presos-na-ucrania/ 2 Artigo 8º da lei 32, de 26 de julho de 2006, que trata da Procriação Medicamente Assistida.
domingo, 27 de fevereiro de 2022

A proibição do cigarro eletrônico

A apreensão de cigarros eletrônicos em operações rotineiras policiais, nas rodovias federais e estaduais, assim como nas lojas convencionais do comércio, vem se intensificando e demonstrando que a circulação desta mercadoria corresponde a uma procura cada vez mais crescente, exigindo novas condutas operacionais para um combate efetivo às reiteradas condutas contra a saúde pública. A tecnologia avança de forma espetacular e vai produzindo itens que facilitam a vida do homem, fazendo com que tenha condições de desenvolver seus objetivos. O mau uso da tecnologia, no entanto, faz do homem sua própria vítima. A começar pelas drogas sintéticas produzidas por substâncias químicas psicoativas, que agem da mesma forma que as tradicionais carregando malefícios ao organismo humano. Agora, como que visando suavizar os males do tabaco, chegou a vez do cigarro eletrônico. A tecnologia, nesse caso, em vez de extirpar o vício, incentiva-o por meio de uma via substitutiva, tão nociva quanto a originária. Muitos adeptos desta modalidade alardeiam que é permitido o uso da máquina eletrônica em locais fechados, com pessoas reunidas, fora do alcance da lei 12.546/11, portanto. Seria uma forma de descaracterizar a proibição legal, pois as baforadas não carregam fumaça e sim vapor e não há queima do tabaco e alcatrão. Além do que o artifício pode ser considerado como medida alternativa no tratamento do tabagismo, possibilitando considerável diminuição do cigarro convencional. Vício interpretativo tão destoante quanto o vício do tabagismo. Deve-se buscar no nascedouro a motivação da lei antifumo. A principal nocividade do tabaco reside em conter monóxido de carbono e viciar paulatinamente, sem dose letal como outras drogas, mas que provoca dependência e a ocorrência de doenças respiratórias, cardíacas, além de abrir espaço para a ansiedade e depressão e outras doenças. O interesse que determinou a vontade da lei foi o de proteger a saúde não só do fumante, como também do tabagista passivo, que vem a ser aquele que inala fumaça dos derivados de tabaco, em ambientes fechados. É a chamada Poluição Tabagística Ambiental, assim denominada pela Organização Mundial da Saúde. Ora, a ratio legis é a de cuidar da saúde dos fumantes e não fumantes em locais fechados, independentemente ou não de qualquer solicitação. A Lei Maior determina, de forma taxativa, que a saúde é direito de todos e obrigação do Estado, que adotará as políticas de atuação, compreendendo aqui as preventivas, visando reduzir o risco de doenças e de outros agravos. A lei proibitiva do fumo, de alcance nacional em razão da lei 12.546/11, repete em seu art. 2º o preceito impeditivo da lei paulista 13.541/09, que proíbe "o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado, privado ou público". Quando o legislador faz uso da conjunção alternativa "ou" e a ela soma o pronome indefinido "qualquer", pretende, de forma inequívoca, alcançar todas as situações que carregam semelhança com aquela lançada como regra. É uma perfeita adequação de compatibilidade, sem fugir do escopo principal da lei. Por outro lado, o cigarro eletrônico - que é composto de uma bateria de lítio, um atomizador responsável pelo aquecimento e o refil que armazena a nicotina diluída em solventes - é de venda proibida no país, circunstância que dificulta ainda mais sua aquisição. A Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária disciplinou a matéria pela Resolução 46/09, que no artigo 1º traz a seguinte determinação: "Fica proibida a comercialização, a importação e propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, conhecidos como cigarros eletrônicos, e-cigarretes, e-ciggy, e-cigar, entre outros especialmente os que aleguem substituição de cigarro, cigarilha, charuto, cachimbo e similares no hábito de fumar ou objetivem alternativa no tratamento do tabagismo". Não há, portanto, qualquer liberalidade para o uso do cigarro eletrônico em recintos fechados, públicos ou privados.   Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, sócio fundador do escritório Eudes Quintino Sociedade de Advogados.    
domingo, 20 de fevereiro de 2022

A legitima defesa putativa

A notícia foi dada até com certa serenidade pela imprensa ao relatar que um sargento da marinha, ao regressar para sua casa após uma viagem, percebeu quando uma outra pessoa se aproximava de seu carro. E, ao ver que essa pessoa fez um movimento como se fosse pegar alguma coisa na mochila, efetuou contra ela três disparos, sendo que dois a atingiram e provocaram sua morte. Ocorre que a vítima era pessoa que residia no mesmo condomínio do atirador, encontrava-se desarmada e estava chegando de seu trabalho, momento em que enfiou a mão na mochila para pegar a chave do portão da residência. O militar compareceu à delegacia de polícia e justificou ter confundido a vítima com um assaltante. Tanto é que, após desfeito o erro, transportou-a até o hospital, local onde veio a falecer. A autoridade policial indiciou o militar pela prática do crime de homicídio culposo. O Ministério Público, no entanto, legitimado para promover a ação penal, pleiteou e a justiça determinou a mudança da tipificação para crime doloso, assim como a decretação da prisão preventiva. Quando o Código Penal inseriu a legítima defesa como um direito de qualquer cidadão e, principalmente, como causa de exclusão da antijuridicidade, assim o fez tendo como fundamento um conteúdo ético positivo uma vez que qualquer pessoa, quando se vê diante de uma agressão injusta, atual ou iminente, pode usar dos meios necessários para repeli-la. Se assim não fosse, o próprio Estado homologaria a injustiça. É a configuração da legítima defesa real, ou propriamente dita. No caso relatado há uma situação diferenciada que faz a ação se deslocar para o campo da legitima defesa putativa. O verbo putare em latim tem o significado de julgar, pensar, acreditar, envolvendo diretamente a representação errônea que o agente faz de uma situação objetiva. Trata-se das descriminantes putativas, previstas no art. 20 § 1º, do Código Penal, in verbis: É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. Tal determinação torna imperiosa a análise plenamente subjetiva da conduta do agente. Ainda que tarefa de imensa dificuldade e deveras trabalhosa, deve o aplicador do direito buscar atingir o centro volitivo do autor dos disparos, no sentido de aferir sua real intenção e assim determinar se houve um erro plenamente justificável (escusável) em sua conduta. Verifica-se, pois, de acordo com o artigo citado, a ocorrência das conhecidas descriminantes putativas, que nada mais são do que um erro do agente, que supõe uma situação que, se de fato existisse, tornaria sua ação lícita, escudada pela lei. Evidente, portanto, a árdua tarefa do magistrado, que precisa extrair dos elementos colhidos nos autos a clara evidência de que o agente só poderia agir da maneira como agiu. É preciso decifrar a imaginação do agente, a ponto de concluir que, de fato, qualquer pessoa na sua posição, agiria da mesma forma. Seria uma reconstituição subjetiva e contaria objetivamente com as circunstâncias que circundaram o fato, como o horário, a iluminação do local, o estado anímico, o medo, o receio do agente, a necessidade de fazer uso da arma de fogo, eventual diálogo ocorrido antes dos disparos, a presença considerada ameaçadora da vítima, com seus gestos e sentido de caminhar. E a referência para tal situação repousa na conduta do homo medius, quer dizer, se a ação praticada pelo acusado seria certamente a mesma que outra pessoa qualquer em seu lugar. O cérebro humano tem suas regras, pode criar uma sucessão de imagens visuais refletindo não uma situação real, mas sim aquela que é proveniente da percepção falsa. O certo é que o cérebro tem suas regras e cria suas imagens de acordo com a realidade que lhe é apresentada e as constrói segundo a catalogação pré-existente do objeto, levando-se em consideração uma série de fatores externos. A visão que se cria pode ser falsa no tocante à identificação de eventual arma, porém, pelo estímulo do momento e pelas circunstâncias, faz ver a existência de algo verdadeiro e que reclama uma ação imediata. O neurocientista Damásio, que há muito tempo destrincha os processos neurais envolvendo o cérebro e o corpo, salienta: Em suma, o cérebro mapeia o mundo ao redor e mapeia seu próprio funcionamento. Esses mapas são vivenciados como imagens em nossa mente, e o termo "imagem" refere-se não só às imagens do tipo visual, mas também às originadas de nossos sentidos, por exemplo, as auditivas, as viscerais, as táteis.1 Se o Direito é uma ciência interpretativa, o Direito Penal ganha ainda mais relevo quando perquire a apreciação do elemento subjetivo do agente causador de uma determinada conduta. Há necessidade de uma apreciação cum grano salis para se encontrar o elemento norteador da conduta para pinçá-lo com total segurança e avaliar toda a extensão do iter criminis. A investigação a ser feita terá como palco o resultado da ação comparada com a configuração engendrada pela pessoa. Pode se dizer que é escavar a profunda abstração da mente do agente. Qualquer deslize interpretativo pode provocar uma enorme injustiça. É tênue e muito sensível o ponto de determinação da vontade do infrator, que irá exigir uma concentração ampliada para atingir tal intento. Deste modo, cabe ao Ministério Público uma verdadeira ginástica interpretativa na formulação da denúncia e ao Judiciário alcançar a real intenção imaginária do agente, para que se possa atingir o fim previsto na lei penal. ___________________ 1 Damásio, Antonio R. E o cérebro criou o homem. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.33.
domingo, 13 de fevereiro de 2022

O Caso Moïse e a consciência coletiva

A imprensa nacional noticiou e a internacional ampliou pelos quatro cantos o assassinato praticado no Brasil contra o imigrante congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, que foi agredido violentamente por cerca de 15 minutos por três pessoas que desferiram vários golpes com pedaços de madeira e um taco de beisebol, além de amarrarem suas mãos e pernas, não permitindo, desta forma, qualquer defesa e, em consequência, veio a falecer no local. A elucidação do crime foi facilitada pelas imagens das câmeras de segurança existentes no quiosque localizado na praia da Barra da Tijuca. As imagens, que causam repúdio a qualquer pessoa, são claras e nítidas em demonstrar a intenção homicida que norteou a conduta dos participantes do ato delituoso. O iter criminis foi perseguido de forma acentuada e num crescendo de revezamento de agressões entre os participantes, até atingir o desiderato final. A própria definição de crime - consistente na conduta humana voluntária e dirigida a expor a perigo ou causar dano a um bem juridicamente tutelado e previamente previsto em lei - apequena-se diante da brutalidade desmedida. Pode até ser que o fato gerador do assassinato esteja conectado a fatores raciais ou até mesmo aversão ao imigrante congolês, ou ainda à cobrança de três diárias de serviços prestados, embriaguez da vítima, mas seja lá o que for, não justificaria o ato extremo praticado com requintes de crueldade. Apesar de o Código Penal incorporar a motivação hedionda de crime, percebe-se pela violência da morte que ultrapassou os limites da hediondez e o cidadão, aquele que convive neste clima de total insegurança, doído de tantas decepções, fica cada vez mais inseguro e vê minada sua esperança de encontrar um local em que possa viver em segurança.  O tema da violência urbana se exibe, há muitos anos, como se fosse a última grife e rende dividendos inesgotáveis de notícias e comentários. Com costumeira frequência são noticiadas mortes de crianças em razão de balas perdidas, feminicídios revoltantes contra as mulheres e uma série infindável de crimes que, aparentemente, não guardam explicações lógicas, mas demonstram que, de forma acentuada, até mesmo sem qualquer justificativa aparente, a violência vai ganhando cada vez mais espaços. É frustrante ver a escalada estarrecedora de crimes de conteúdo explícito de violência continuar a crescer sem limites e a sociedade acuada, com o torniquete de sua liberdade apertado ao extremo. E o círculo do inconformismo vai por aí afora, assistindo a um verdadeiro concubinato entre a sociedade civilizada e a criminalidade, que foge cada vez mais da civilidade e já soa como ladainha rotineira. É sintomático que diante de uma situação tão enviesada as pessoas continuam em busca do insólito. Uma das facetas que se denota da prática de tão horrendo crime é a ofensa que provocou contra o sentimento coletivo das pessoas, que ocasionou, a um só tempo, a mesma repulsa. Cada um tem a sua avaliação, seu sentimento a respeito das regras que regem a harmonia social. Um homicídio sem justificativa, por si só, já é um ato sem aceitação e a sociedade traz de forma implícita um sentimento de repulsa que é ampliado pela forma barbárie que foi cometido. O francês Émile Durkheim, sociólogo e cientista político, considerado como o arquiteto da ciência social moderna, elegeu a sociedade como objeto de seus estudos e tinha como característica dar ênfase científica aos fatos sociais. Para ele um determinado sentimento comum de um grupo social pode ser designado como "consciência coletiva", representando a fusão das consciências individuais - que transcende o pensamento do indivíduo - e a opinião de cada um desemboca na realidade psíquica da sociedade, revelando, de forma explícita, o pensamento de censura do grupo. O fato criminoso comentado foi repelido por toda a sociedade que teve seu sentimento comum ferido. Daí porque o Código Penal estabelece a sanção penal correspondente à conduta, demonstrando, de forma inequívoca, que a reação do Estado está na mesma sintonia do pensamento difuso da sociedade. Essa, por sua vez, é dotada de uma espécie de termômetro que vai estabelecer as raias de uma eventual aceitabilidade de determinada ação. Quando a conduta humana exceder os parâmetros estabelecidos pelo ente coletivo, forma-se um conteúdo de irresignação popular que brada em alta voz um apelo à própria humanidade. Durkheim, a esse respeito, foi criterioso quando da construção da sua teoria  da imoralidade particular que é reprimida por meio de penas para combater a criminalidade: Evidentemente ela não pode vir senão de uma ou várias características comuns a todas as variedades criminológicas; ora, a única que satisfaz esta condição é a oposição que existe entre o crime, qualquer que seja, e certos sentimentos coletivos. É, pois esta oposição que faz o crime, em vez de derivar dele. Em outros termos, não é preciso dizer que um ato fere a consciência comum porque é criminoso, mas que é criminoso porque fere a consciência comum. Não o reprovamos porque é um crime, mas é um crime porque o reprovamos.1  _____________ 1 Durkheim, Émile. Da divisão do trabalho social. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 41.
A lei 10.261/01, também conhecida como Reforma Psiquiátrica, com vigência há mais de 20 anos, tem como objetivo principal a proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e, para tanto, redireciona o modelo assistencial em saúde mental, buscando sempre proporcionar aos pacientes um tratamento mais humanizado, igualitário, seguindo a baliza constitucional da dignidade da pessoa, principalmente sua recuperação e reinserção social. Tanto é que deixa transparecer seu espírito colaborativo e protetivo no primeiro artigo, quando proclama: "Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra." E complementa no parágrafo único do segundo artigo, inciso II, também voltado à pessoa portadora de transtorno mental: "Ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade." É neste palco que se situa a exposição do tema proposto, atrelado diretamente à internação involuntária dos usuários de drogas, principalmente daqueles que frequentam locais, ruas e praças públicas para o consumo das substâncias ilícitas. A lei sub studio adverte, antecipadamente, que a internação psiquiátrica só será permitida quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, deixando bem claro que a intenção será voltada para um ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis, dando preferência para os serviços comunitários de saúde mental. Quando, no entanto, for admitida a internação, exige, antecipadamente, a apresentação de um laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos, e estabelece as seguintes modalidades: a) voluntária, quando receber a anuência do usuário; b) involuntária, quando se dá sem o consentimento do usuário e sim a pedido de terceiro; c) compulsória, quando ocorrer determinação judicial e somente será determinada mediante decisão fundamentada. Diante das dificuldades apresentadas, o próprio legislador se convenceu da necessidade de retirar a internação compulsória de dependentes químicos. Para tanto foi sancionada a lei 13.840/19 que modifica a lei 11.343/06 e estabelece medidas para prevenção do uso indevido, atenção, reinserção social dos usuários e dependentes de drogas. Referida legislação exclui a internação compulsória judicial e permite a internação involuntária a ser providenciada e autorizada pela família ou responsável legal do dependente e, na falta de ambos, o pleito poderá ser feito por servidor na área da saúde, assistência social ou de órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), pelo prazo máximo de 90 dias, considerado suficiente para a desintoxicação, a ser cumprido em unidades de saúde e hospitais gerais, sempre com o aval de um médico. Faz-se aqui uma explicação necessária a respeito da internação involuntária e a compulsória. Na primeira delas a tomada de decisão não é do paciente, mas seu direito deve ser resguardado. Tanto é que a lei 10.216/01 determina a obrigatoriedade da comunicação ao Ministério Público por meio do Termo de Comunicação de Internação Involuntária (Portaria GM 2391/02) para que o representante do Parquet, em razão de sua missão institucional, exerça a função fiscalizadora dos direitos dos pacientes internados nesta condição. A internação compulsória, por sua vez, terá ocorrência apenas na condição de existência de delito e consequente inimputabilidade observada após tramitação de processo em separado, conforme acentua a Portaria nº 8/2019, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no parágrafo único do artigo 18. Da mesma forma a internação provisória prevista no artigo 319, VII da Lei de Execuções Penais (LEP), muitas vezes utilizadas para a internação de usuários de álcool e outras drogas ou pessoa com transtornos mentais, só pode ter sustentabilidade legal em caso de existência de crime praticado com violência ou com grave ameaça. Cai por terra, desta forma, o decreto-lei 891/38 que previa internações compulsórias de usuários de álcool e drogas, pois não foi recepcionado pela Constituição Federal da República de 1988, não podendo ser considerado vigente quando da promulgação da lei 10.216/01. Cabe aqui uma cunha comparativa com a obra "O Alienista", de Machado de Assis, em que o médico dr. Bacamarte construiu um manicômio na pequena Itaguaí para cuidar dos pacientes com problemas mentais. O autor, com a sagacidade que lhe é peculiar, elaborou uma perfeita crítica social, além de tecer uma considerável e coerente análise psicológica dos personagens, principalmente do médico responsável pelo hospital, que seguia rigorosamente seus rigorismos científicos. Com o passar do tempo, 75% da população acabou internada. Na realidade a proposta e preocupação da lei é abrir espaços para atingir cada vez mais metas relacionadas com políticas públicas para solucionar um problema sério e preocupante, que é o da saúde mental dos dependentes químicos. É inquestionável o direito da pessoa de se manifestar a respeito de determinada decisão que lhe aprouver, desde que seja capaz, com plenas condições de discernimento. Não preenchida a condição de autogoverno e autodeterminação, como é o caso geralmente do dependente em drogas, a representação passa para os familiares e, na falta, para terceiros juridicamente legitimados. O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 4º, II, em acréscimo determinado pela lei 13.146/15, considera relativamente incapaz os viciados em tóxico para praticar determinados atos ou à maneira de os exercer. É sabido, por outro lado, que há vozes que bradam contrariamente e defendem que a internação só poderá ocorrer com a concordância expressa do paciente ou de seus representantes legais e não por outra medida coativa, circunstância que retira totalmente sua autonomia. Mas, por outro lado, há de se atentar que o dependente gera um perigo para si mesmo, assim como para o grupo social que frequenta. O que não se concebe é o fato ocorrido há tempos atrás na cidade de São Paulo, que compreendeu a decretação generalizada da internação compulsória feita a critério do órgão municipal, sem a elaboração do laudo psiquiátrico circunstanciado individualizado, não só para garantia do direito do paciente como também para a segurança do serviço médico, respeitando os parâmetros da autonomia do enfermo ou de seu representante legal, visando à tutela da dignidade da pessoa humana. A vulnerabilidade do dependente é manifesta e sem qualquer compreensão e discernimento a respeito de seu quadro clínico, pode colocar em risco sua própria saúde. A volição humana compreende a autodeterminação do paciente em confabular e autorizar o profissional da saúde a realizar determinada conduta médica escolhida dentro do seu critério de conveniência. Seria, em outras palavras, o médico pedir permissão para a prática da conduta interventiva. A aquiescência vem materializada no documento devidamente assinado pelo interessado ou seu representante legal, que é o termo de consentimento informado. Quer dizer, o destinatário do serviço de saúde, de forma consciente, autoriza a realização da prática médica, com a liberdade inerente em sua autonomia, sem qualquer coação, e sabedor que é dos riscos advindos do procedimento. Antes a atenção médica residia na obrigatoriedade de o profissional da saúde cuidar do bem-estar da pessoa, dentro da visão paternalista e absolutista da medicina. A decisão era unicamente do profissional da saúde a respeito do tratamento a ser indicado. Agora, com a nova determinação contida no Código de Ética Médica, terá o paciente como coautor. É repetitivo e até mesmo incoerente falar que, após a edição da Lei de Drogas (lei 13.146/06), foi constatado um aumento desproporcional do número das cracolândias nos grandes municípios e das microcracolândias nos pequenos. É uma invasão que vai se tornando rotineira e um espaço que vai fazendo parte da paisagem urbanística, manchando-a. Nem se faz necessário tecer comentários a respeito dos refúgios existentes nas grandes cidades para criar os locais coletivos de consumo de drogas e a convivência com aqueles que trabalham ou se locomovem pelas cracolândias, assistindo às cenas de degradação da pessoa humana. Apesar de todo esforço policial e até mesmo dos órgãos de saúde, até o presente nenhuma medida realmente eficaz foi levada a efeito, a não ser algumas paliativas e provisórias, lideradas por ONGs imbuídas de boa vontade. De nada adianta despejar dependentes moradores de rua de suas calçadas que, na sequência, após circularem por outras praças, retornam para o habitat natural. A aplicação de medidas policiais e até mesmo as judiciais em casos de grupos de consumo é totalmente ineficaz. A força policial não é instituição adequada para lidar com usuários, muitos deles sem a mínima condição de discernimento, por se apresentarem corroídos pelas drogas.  Sendo dependentes, o rigor da lei é mínimo e não avança mais do que a advertência feita pelo juiz sobre os efeitos das drogas, a prestação de serviços à comunidade e eventual aplicação de medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.1 A questão, realmente, é tormentosa. Apesar de coexistirem várias figuras delituosas, como é o caso de comércio de drogas, furtos, roubos, crimes contra a liberdade sexual, apreensões de armas de pesados calibres e tantas outras, a questão fulcral é ligada diretamente à proteção da saúde humana, com a prevalência do princípio da dignidade da pessoa, conforme apregoado constitucionalmente. O pensamento popular caminha na mesma direção daquele preconizado pela lei em comento, no sentido de tentar recuperar a vida daqueles que foram envolvidos pelo vício. Ao que tudo indica, se nada for feito, hoje eles não exercem e no futuro não exercerão qualquer profissão ou atividade que lhes possa garantir o sustento e terão, certamente, que abraçar a carreira do crime para saciar o vício. Busca-se, então, a intervenção de parentes e autoridades relacionadas com a saúde para evitar o mal maior tanto ao usuário de drogas como também às pessoas que com ele convivem na sociedade, com total repúdio ao laissez-faire, laissez passer. O mais salutar é o deslocamento da questão para a área da saúde pública, com políticas eficientes direcionadas aos usuários que se iniciam na prática e aos que já foram dominados pelo vício, com a intenção de recuperá-los. Daí que a decretação da internação involuntária é o único instrumento capaz de responder aos reclamos sociais e à própria proteção dos usuários, para que tenham, pelo menos, a chance da tão almejada recuperação. Sabe-se que que é uma tarefa árdua, mas que, se levada adiante com seriedade e comprometimento, é um fator indicativo de um bom resultado. Diante de tal permissivo de internação involuntária é de se concluir pela boa medida das pessoas legitimadas tomarem as medidas coativas para a preservação da vida, de acordo com as balizas estabelecidas pela Constituição Federal, já que o detentor da cidadania não se encontra mentalmente apto para o exercício de seus direitos e necessita da aplicação de medidas protetivas específicas. Qualquer outra solução que contrarie o interesse maior prevalente, que é o da saúde, do viver, não tem o condão de inverter o pensamento determinado pela lei maior. É a junção, a uma só vez, da prevalência do bem individual e coletivo. A internação involuntária de usuários de drogas que vivem nas ruas, apesar de ser considerada um recolhimento forçado, apresenta-se como medida extrema, porém necessária e oportuna para proporcionar um acolhimento humanizado e individualizado com projetos terapêuticos que sejam eficazes para a melhoria da saúde do paciente, acompanhada de boa escolarização e qualificação profissional, visando à mais adequada reinserção social. 1 Lei 11.343, de 23/8/06, artigo 28.
A premissa de que todos os seres humanos merecem idêntica atenção e proteção do Estado é verdadeira e se constitui no paradigma constitucional que erigiu a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Assim, sem qualquer exceção, toda pessoa merece tratamento isonômico em razão da sua própria cidadania e quando se deparar com situações aparentemente intransponíveis, a lei vem reafirmar a proclamação constitucional. O Presidente da República sancionou a lei 14.289/22, que torna obrigatória a preservação do sigilo sobre a condição da pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV), das hepatites crônicas (HBV e HCV), da pessoa com hanseníase e com tuberculose, nos casos que estabelece e altera a lei 6.259, de 30 de outubro de 1975. O deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), relator do PL 7658/14, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), foi inciso ao afirmar quando da análise do texto: "No Brasil, há cerca de 1 milhão de pessoas que vivem com HIV. Nós temos cerca de 73 mil novos casos por ano de tuberculose e 28 mil novos casos por ano de hanseníase. São pessoas que esperam ansiosas que o fato de ser diagnosticado não signifique a exposição dessa situação, que não comprometa sua situação de trabalho, que não prejudique o trabalho dos profissionais de saúde".1 A novatio legis trata da obrigatoriedade da preservação do sigilo das pessoas atingidas pelas doenças relacionadas, impedindo, de forma taxativa, tanto por parte dos agentes públicos como privados, a identificação dos doentes no âmbito dos serviços de saúde, dos estabelecimentos de ensino, nos locais de trabalho, na administração pública, na segurança pública, nos processos judiciais e na mídia escrita e audiovisual. Trata-se de uma norma abrangente, que tutela diretamente a intimidade das pessoas que se encontram infectadas pelas doenças mencionadas, com o objetivo de impedir qualquer manifestação discriminatória. A privacidade parece ser a mais ampla proteção, o limite da esfera protetiva, já que se mostra como uma margem que o indivíduo dispõe para filtrar o que deseja tornar público a todos. Isto é, a pessoa detém um conjunto de informações, imagens, vídeos, atitudes suas que somente a ela cabe decidir se as demais pessoas podem delas tomar conhecimento. Uma vez veiculadas, sem a permissão do titular, tem-se a violação da privacidade. A intimidade, na concepção jurídica, trata-se de um campo discreto frequentado unicamente pelo interessado. É o espaço em que vai encontrar consigo mesmo, sem qualquer acesso à curiosidade privada. Neste espaço pode ser o rei, o bedel e o juiz, conforme o cancioneiro popular, e desfilar tudo que é mais precioso para si, desde a sua crença religiosa até os segredos mais recônditos, sem qualquer risco de invasões arbitrárias e, principalmente, de se chegar ao conhecimento público porque não há qualquer registro materializado. Não há exposição para o mundo exterior. E vai além. Mesmo na era da mais célere informática, da tecnologia mais apurada, não se permite qualquer invasão no espaço reservado exclusivamente ao titular para retirar as informações que são de seu uso exclusivo. É de se observar que, com relação à matéria e, especificamente à condição daquele infectado pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV), outras providências legislativas protetivas já foram editadas. A lei 9.313/96 confere aos portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) o direito de receber gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária durante o período de tratamento. A lei 12.984/14 define o crime e tipifica a conduta de discriminar portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes de Aids. A lei 11.199/02, do Estado de São Paulo, da mesma forma, veda qualquer forma de discriminação aos portadores do vírus HIV ou às pessoas com Aids. Já com relação à pessoa com hanseníase, o Brasil será o primeiro país do mundo a ofertar teste rápido para diagnóstico da doença a ser ofertado pelo SUS, em comemoração ao evento Janeiro Roxo, considerado o mês de combate à doença que, em 2021, registrou expressivo número de casos novos.2 O sigilo, no entanto, não é absoluto e poderá ser quebrado nos casos previstos em lei por justa causa ou por autorização expressa da pessoa acometida da doença e, se for criança ou adolescente, seu representante legal irá dar a anuência mediante assinatura do termo de consentimento informado, com observância às exigências contidas no art. 11 da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD). Nos casos de doença de notificação compulsória, a nova lei altera a redação originária contida no artigo 10 da lei 6.259/75 e determina que a notificação nos casos de agravos à saúde será revestida de caráter sigiloso, o que deverá ser rigorosamente observado pelos profissionais que fizerem a notificação, pelas autoridades sanitárias que a receberem e por todos os trabalhadores e servidores que tenham contato com a notificação. Em caso, porém, de descumprimento, o agente público ou particular estará sujeito às sanções previstas no art. 52 da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, além das sanções administrativas cabíveis e a obrigação de indenizar a vítima por danos materiais e morais. Se a divulgação do sigilo for dolosa, com a nítida intenção que causar dano e ofensa à vítima, serão aplicadas em dobro as penas pecuniárias ou de suspensão de atividades previstas no art. 52 da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, assim como as indenizações pelos danos morais causados. _____________ 1 "Câmara aprova sigilo sobre condição de pessoa com HIV e hepatites". Disponível aqui. 2 "Com mais de 15 mil novos casos de hanseníase em 2021, Brasil terá primeiro teste rápido no SUS."
domingo, 23 de janeiro de 2022

O DNA e o homicídio da menina Beatriz

A imprensa vem noticiando de forma reiterada o assassinato ocorrido no ano de 2015 da menor Beatriz Motta, quando contava com sete anos de idade, na cidade de Petrolina, Pernambuco. A menor recebeu vários golpes de faca desferidos pelo assassino quando se encontrava em uma festa de formatura de um colégio da cidade, local em que seu corpo foi encontrado.1 A investigação policial, aquela que se vale de pessoas para reconstituir a prática de um delito, ao longo de seis anos, não logrou êxito em descobrir a autoria do crime que tanto abalou a família da menor, assim como a comunidade brasileira. Recentemente, pela insistência dos pais da criança que fizeram uma caminhada de 700 quilômetros até a cidade de Recife solicitando um posicionamento da autoridade de segurança, foi providenciado o exame do material genético, agora devidamente apurado, encontrado na faca utilizada pelo homicida e depositado no Instituto de Genética Forense do Estado. No cruzamento feito pelo programa pericial, foi apontado como autor do crime Marcelo da Silva. Diante disso, novo material foi coletado do suspeito, que se encontra preso pela prática de outro crime, e a autoria foi confirmada também na segunda prova. Percebe-se claramente que, em razão do avanço da tecnologia, a pesquisa policial e também a judicial se valem de novos instrumentos para desvendar crimes que jamais seriam esclarecidos pela prática comum e rotineira de investigação e muito menos pelo rigoroso sistema probatório penal, que exige sempre a presença humana como fator primordial e de credibilidade na confirmação dos fatos perquiridos. O exame de DNA forense ganhou tanta projeção que a justiça assenta nele sua decisão, sem fiar-se em outras provas antes consideradas relevantes para o deslinde da questão. Não só na justiça, como também na vida das pessoas. Hoje é possível fazer a leitura do DNA, mesmo que não seja completa, mas que garimpe informações importantes para que o interessado conheça seu código genético e, principalmente, para evitar a ocorrência de doenças de que tenha predisposição genética. Nesta linha de pensamento, no sentido de se encontrar uma resposta que corresponda corretamente à verdade criminal, o Código de Processo Penal, com vigência a partir de 1941, apesar de ter abandonado o sistema da certeza legal das provas e rotulá-las como relativas, recebe com bons olhos os novos dispositivos introduzidos pela mais avançada tecnologia. Pode-se dizer que, tanto no juízo cível como no criminal, o demonstrativo probatório correspondente ao material genético apresenta-se como uma prova inconcussa e até mesmo inquestionável com relação à margem de certeza. Para o Direito, que é uma ciência que com muito custo acata periodicamente algumas alterações em sua estrutura probatória, principalmente aquelas que rompem os moldes convencionais, fica mais do que evidenciado que uma prova embasada em tecnologia de ponta apresenta uma nova realidade para o mundo jurídico resolver com mais exatidão as lides de sua competência, construindo novos arranjos para acompanhar as ferramentas tecnológicas. Nesta linha de raciocínio, a inovação científica vai assumindo cada vez mais as tarefas dos humanos e muitas vezes até mesmo substituindo-os com perfeição nas mais intrincadas investigações. Basta ter uma digital, uma gota de sangue, uma imagem que, quase que instantaneamente, será apresentada a pessoa com quem está relacionada. A tarefa, que parecia difícil para a investigação tradicional, torna-se corriqueira quando a máquina substitui com sobras o mais experiente profissional e apresenta a resposta solicitada. O poeta Virgílio tinha razão quando afirmava que os tempos mudam e nós mudamos com o tempo. As últimas notícias dão conta de que o suspeito acabou por confessar o crime e que o praticou porque a menina ficou desesperada ao encontrá-lo no colégio e, para silenciá-la, aplicou-lhe vários golpes com a faca que portava. É certo que a justificativa do crime não convence tanto pela futilidade como pelo desrespeito à vida humana. Tal tarefa, no entanto, cabe à investigação policial fazer a apuração, ouvindo as pessoas que se encontravam no local e retirando todas as informações necessárias para fechar o quebra-cabeça investigativo. É a parte humana que entra em ação para completar a constatação científica. O exame de DNA não revela a motivação e sim a identificação do homicida. 1 Caso Beatriz: homem apontado como assassino diz que atacou menina após ela gritar. Disponível aqui.  
A partir do primeiro dia de janeiro do corrente ano, a Organização Mundial da Saúde editou a nova Classificação Internacional de Doenças (International Classification of Diseases), em sua 11ª revisão, que traz 55 mil códigos únicos para classificação das doenças e causas de mortes. Contrariando o esboço divulgado anteriormente, optou por não classificar a velhice como doença, acatando a discordância dos países membros. Desta forma, pela nova padronização universal das doenças, a velhice passará a figurar como possível fator associado à causa de uma morte e não mais como a causa principal registrada no diagnóstico médico. A impressão primeira foi a de que a Organização Mundial da Saúde abandonara o alinhamento mundial com tal nomenclatura e que poderia provocar, na mudança referida, o preconceito em razão da idade e incentivar a prática do ageísmo. Basta ver que, no caso do Brasil, o cidadão que atingisse o parâmetro biomarcador de 60 anos de idade seria considerado idoso pela lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e, mesmo que fosse saudável, levaria a pecha de um doente. Além do que a alteração pretendida colide frontalmente com a conceituação de saúde emitida pela OMS, no sentido de que a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não ausência de doença ou enfermidade. Assim, o estiolamento celular, em razão da idade, por si só, não indica a ocorrência de uma doença. Nem mesmo as explicações científicas trazem justificativas convincentes de que a velhice vem a ser sinônimo de doença, principalmente no momento atual em que se vivencia o crescimento plausível da longevidade, sabendo-se que as gerações infantis de hoje ultrapassarão a faixa dos 100 anos, como indicam os resultados de inúmeras pesquisas científicas desenvolvidas com essa finalidade. Se, de um lado, procura-se ampliar a proteção de saúde para o idoso a fim de que tenha melhores condições de vida, de outro, às avessas, reprime-se tal alargamento etário, rotulando-o como um doente. Pode-se concluir, sem exagero, que a pessoa que ingressasse na faixa de idoso passaria, pela pretendida alteração no Código Internacional de Doenças (CID), a ser portadora de comorbidade, em razão da idade. É até incoerente considerá-la doente quando o sucesso da longevidade vem se alardeando e criando novas e esperançosas perspectivas de vida. Outro fator que militou em favor e que proporcionou a mudança de rota da Organização Mundial da Saúde reside no fato de especificar corretamente o diagnóstico das doenças que frequentam as pessoas idosas, como Mal de Parkinson, Alzheimer, doenças cardiovasculares, oncológicas, neurológicas, dentre outras, passando a enfeixá-las na genérica definição de velhice. Tal omissão, por si só, encobrindo o fato gerador da morte, cria dificuldades para a realização de novas pesquisas e até mesmo diminui o alcance das políticas públicas específicas. Além do que vai quebrar toda a expectativa futura da velhice. O homem, antes e acima de tudo, é um ser temporal, com início, meio e fim, e não um marco definido pelo idadismo. Assim é que vai superando cada tempo seu, ampliando suas expectativas e apostando em um futuro com mais esperança e até mais entusiasmo - pois contará com uma rica experiência adquirida ao longo da vida e encontrará um campo propício para demonstrar seu dinamismo, sua articulação e fertilidade em descobrir iniciativas e ideias novas - enfim promovendo tudo aquilo que lhe trouxer satisfação. O fatiamento etário da pessoa é regulado não só pela realidade biológica, mas também pela própria normatização social que estabelece a fase da criança, do adolescente, da maturidade e do envelhecimento e, em cada uma delas, cria tutelas específicas e necessárias para os diversos estágios etários. Nesta progressão o idoso será aquele que irá reunir a maior carga protetiva, pois passou por todas as anteriores e ambiciona ainda uma longevidade com qualidade de vida. E a legislação brasileira, cônscia da longevidade, que já não é mais uma ambição remota e sim uma realidade incontestável, cuidou da proteção diferenciada aos idosos com mais de 80 anos de idade, conferindo-lhes prioridade especial com relação aos mais idosos, conforme determina a lei 13.466/2017. Não é justo que agora, com toda experiência adquirida, com os cuidados voltados para a manutenção da sua saúde, muitas vezes ainda dando continuidade à vida laboral, seja rotulado de doente em razão da velhice, que nada mais é do que uma fase natural da vida humana. A nova codificação das doenças divulgada pela Organização Mundial da Saúde, desta forma, com relação ao tema discutido, refletiu a realidade que movimenta a humanidade e, mais precisamente, no pensamento de Stepke e Drumond: "Talvez a percepção mais generalizada seja a de considerar a senectude uma enfermidade possível de ser derrotada. Ou, ao menos, uma enfermidade cujas consequências podem, parcialmente, ser atenuadas. De modo que, se se aceitasse esta proposição, se poderia esperar uma provecta idade, talvez plenamente queixosa, mas vigiada e ajudada pela racionalidade técnica".1 __________ 1 Stepke, Fernando Lolas; Drumond, José Geraldo de Freitas. Fundamentos de uma antropologia bioética: o apropriado, o bom e o justo. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2007, p. 122.
sábado, 1 de janeiro de 2022

Ano novo: sem vírus, sem cepas

É até difícil, no centro de um torvelinho que gira em torno de várias ondas da pandemia, buscar condições para emergir e encontrar a incontida esperança que há um bom tempo se aninha no coração de cada pessoa como prisioneira de uma pena já vencida. Num repente passamos a frequentar uma humanidade diferenciada, atordoada por tantos vírus e que prega somente o dicionário de sobrevivência, muitas vezes com o acréscimo de vários auxílios emergenciais, até mesmo o indesejado da solidão. É certo que não podemos dar as costas à esperança e nem mesmo é oportuno resgatar as recordações de momentos felizes que vivemos em um passado tão recente. É sim chegada a oportunidade de recarregar a alma e criar uma nova linha de montagem para nosso corpo, assim como blindá-lo contra a contaminação das mais variadas cepas dos invisíveis vírus. Percebemos que a humanidade chegou ao fim de uma era e pisamos no alvorecer de outra, ainda desconhecida. A esperança - muitas vezes erroneamente confundida com a utopia que se desmancha como um castelo de areia - mais uma vez passa a ser a perspectiva da humanidade, que desfila as melhores intenções para a construção do futuro homem, amadurecido pela vida e em busca de alçar voos mais altos, sem se descuidar dos passos iniciais. É momento de renascimento, em que cada um vai se fundir no seu próprio eu para retomar o curso da vida. Assim, ao mesmo tempo em que combatemos os moinhos de vento que vão se apresentando, vamos desfilando votos que povoam nossa imaginação: que no próximo ano possamos ter um olhar panorâmico - sem desprezar o olhar para dentro de nós mesmos - com olhos grandes e sonhadores mirando para o infinito em busca do ponto de equilíbrio para envolver as pessoas na contextualização necessária da construção de uma nova identidade, com ênfase no conceito de pertencimento. Que a tecnologia - nossa acólita já considerada inseparável - continue seu processo de aperfeiçoamento para que possamos fazer o download dos melhores pensamentos que habitam nossas mentes para copiar e colar, principalmente, os sentimentos de generosidade e altruísmo, afastando a tão lastimada polarização linear, que limita cada vez mais a pessoa dentro de seu labirinto. O verdadeiro homo digitas é aquele que, apesar de não deixar suas pegadas na areia, aceita ser monitorado para corrigir seus passos em busca da verdade. Que possamos atingir a sabedoria depurada pelo tempo com uma linguagem de revelação, sem estandardizar critérios ou normas para compreender melhor o novo enredo da vida. Cada um possa fortalecer com sua elevada estima o grupo a que pertence e executar o papel que lhe cabe nesta aventura chamada vida humana. Não teremos mais mão única para circular e sim vários caminhos que projetarão os melhores propósitos de uma civilização mais inclusiva. Vindica te tibi, assim proclamava Sêneca, no sentido de exortar o homem a reivindicar a propriedade do seu ser, com alcance muito além da limitada selfie, compreendendo o desejo de viver em paz consigo e com as demais pessoas. Nesta cruzada que se inicia cada um seja um poeta a engarrafar suas nuvens depositando nelas votos de moderação, temperança, serenidade e, de braços abertos e corações contritos, possa apreciar o verde dos campos com todas as suas tonalidades, o azul contemplativo do céu, o rio que dá curso às suas águas caudalosas, o brotar das flores no embalo do canto dos pássaros.                     Ou, se impossível o poema, sejamos como uma borboleta, na crônica de Ivan Ângelo: "Como borboletas: passam, enfeitam o instante com algumas cores, voejam e partem. Se deixam alguma coisa, é um sorriso na alma do visitado." Ou, ainda, na prosa machadiana, que os novos ventos tragam bons augúrios.  Acrescento: sem vírus, sem cepas.
domingo, 19 de dezembro de 2021

Lei Mariana Ferrer

Desde a compilação das leis feita pelo imperador romano Justiano (Corpus Juris Civilis), percebe-se com relevo a presença do brocardo ex facto oritur ius, no sentido de que o fato faz nascer uma lei garantidora de um direito a determinada pessoa. Tanto é verdade que a vida em sociedade vai exercendo um crivo de viabilidade de condutas expurgando as não recomendadas, que serão catalogadas posteriormente como impróprias. No Brasil é comum um fato com repercussão nacional envolvendo violência - em suas mais variadas formas contra mulheres - ser a fonte geradora de uma lei que tomará emprestado o nome da personagem para identificá-la. Assim ocorreu, dentre outras, com a Lei Maria da Penha (lei 11.340/06), Lei Carolina Dieckmann (lei 12.737/12) e Lei Joana Maranhão (lei 12.650/12). E agora com a Lei Mariana Ferrer, sancionada recentemente com o 14.245/21, que altera dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e testemunhas, além estabelecer uma causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo. O projeto da referida lei é da deputada federal Lídice da Matta (PSB-BA) e teve como suporte a audiência realizada no processo em que figurou como vítima de estupro a influenciadora digital Mariana Ferrer que, durante a instrução processual, teve sua intimidade exposta pelo defensor do acusado. É fato que a mulher, nos crimes contra a dignidade sexual em que figura como vítima, quando ainda na fase investigativa perante a autoridade policial, vai ofertar sua versão a respeito dos fatos, além de se submeter a exame de corpo de delito, quando for o caso. Posteriormente, coram judice, na presença dos atores processuais, repete novamente a mesma versão, dando espaço para a revitimização, com a desagradável sensação de relatar novamente todos o enredo criminoso e ver sua intimidade invadida. Na audiência sob o crivo do contraditório, tanto o promotor de justiça como o advogado, ambos com a intenção de elucidar o fato perquirido, poderão formular perguntas diretamente à vítima ou à testemunha, desde que guardem conexão com o caso sub judice. E a nova lei é bem clara em não se permitir qualquer outra referência à vida pessoal da depoente e nem mesmo a utilização de material que seja divorciado do processo e que possa trazer qualquer tipo de constrangimento. Não há restrição ou prejuízo ao exercício da ampla defesa assegurada constitucionalmente.  A intenção é a de preservar e oferecer proteção à dignidade da mulher depoente que, na realidade, é uma colaboradora na busca da justiça, e não o foco da discussão a respeito de sua intimidade. Tanto é que a novatio legis, até mesmo em termos pedagógicos, impõe a todas as partes do processo e demais sujeitos processuais presentes ao ato, a obrigação de zelar pela integridade física e psicológica da vítima ou da testemunha, principalmente em ações que apuram crimes contra a dignidade sexual, proibindo, taxativamente, a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objetos da persecução penal, assim como a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da depoente.  Cabe ao juiz do processo o poder disciplinar para garantir o cumprimento das medidas de proteção. Não se concebe a construção de uma imagem da vítima criando uma falsa projeção de sua personalidade por meios processualmente inadequados. A pretensão levada à jurisdição deve se ater somente com relação aos fatos relatados na inicial, uma vez que delimitarão os limites cognitivos do processo. A jurisprudência é uníssona em abraçar a versão ofertada pela vítima em crimes contra a dignidade sexual, recebendo-a com credibilidade quando encontrar ressonância com as demais provas coletadas no processo. Isto porque crimes desta natureza não contam com provas testemunhais e sim são praticados solus cum sola, daí a relevância da palavra da ofendida. De nenhuma valia a utilização de circunstâncias alheias e totalmente distantes do fato perquirido dificultando e até mesmo criando verdadeiros labirintos para a busca da verdade e que venham a desmerecer e macular a intimidade da mulher depoente.      
domingo, 12 de dezembro de 2021

As pesquisas científicas no Brasil

O avanço e a evolução da sociedade, dos costumes, do incessante desenvolvimento das pesquisas em seres humanos, do início ao fim da vida, como a clonagem de seres humanos, as terapias gênicas, os métodos de reprodução humana assistida, a engenharia genética, a maternidade substitutiva, a eugenia, a eutanásia, a distanásia, a ortotanásia, a escolha do tempo para nascer e morrer, a utilização das células-tronco embrionárias, o transplante de órgãos e tecidos humanos, a inteligência artificial e muitos outros avanços científicos aqui não enumerados, abriram um leque imenso para a realização de pesquisas visando atingir cada vez mais um resultado que traga dividendos de saúde para a humanidade. Com a decretação da pandemia pela Organização Mundial da Saúde, as pesquisas no Brasil e no mundo tomaram outro direcionamento, qual seja, voltaram-se para a incessante busca de medicamentos ou vacinas que fossem eficazes para conter a desproporcional contaminação da comunidade, seguida de um exagerado número de óbitos. E o caminho encontrado, pelo menos satisfatório até o momento presente, foi a proteção vacinal para atingir a necessária imunização. E, para tanto, os pesquisadores debruçaram-se em inúmeros estudos visando encontrar uma vacina mais aprimorada e que seja eficaz para o combate completo do vírus e de suas mutações. O que se desenvolve atualmente no Brasil em termos de pesquisa - e é interessante a comunidade conhecer - é projeto de pesquisa com acompanhamento pelas instâncias institucionais denominadas CEPs (Comitês de Ética em Pesquisa) e CONEP (Conselho Nacional de Ética em Pesquisa), ligadas ao Conselho Nacional de Saúde, responsáveis pela condução ética e técnica, assim como pela total proteção do colaborador da pesquisa. Os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) apresentam-se como órgãos colegiados interdisciplinares e independentes, de relevância pública, de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir com o desenvolvimento da pesquisa dentro dos padrões éticos. Os CEPs procuram agregar os mais diferentes segmentos da comunidade, recrutando médicos, psicólogos, juristas, religiosos, bioeticistas, cientistas, pessoas que exerçam lideranças na comunidade, pacientes e quaisquer outros que tenham condições de fazer uma leitura ética atrelada à participação do ser humano em pesquisas. A autonomia do órgão vem registrada não só pela manifestação isolada de um membro seu, mas também pela decisão colegiada, definidora do pensamento ético e conveniente para determinada proposta de pesquisa. O voto individualizado, mesmo que seja vencido, com o devido registro em ata, é o demonstrativo da liberdade de definir em nome alheio. O crivo de admissibilidade de um determinado projeto passa, em primeiro lugar, pela apreciação individual, onde se confronta com a ética pessoal do relator e, em segundo, abrange uma apreciação mais globalizada, procura atingir uma decisão que corresponda à vontade popular e que traga benefícios satisfatórios para o bem-estar social. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), por sua vez,  é um órgão colegiado, multidisciplinar, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, tem como tarefa principal considerar o indivíduo sempre em primeiro plano, examinar os aspectos éticos de pesquisas envolvendo seres humanos em áreas temáticas especiais, encaminhadas pelos CEPs das instituições, além de responder pela elaboração de normas específicas para diversas áreas, dentre elas, genética humana, reprodução humana, alterações da estrutura genética de células humanas, organismos geneticamente modificados, funcionamento de biobancos para pesquisa, novos dispositivos para a saúde, pesquisas em populações indígenas, pesquisas conduzidas do exterior e aquelas que envolvam aspectos de biossegurança. Tem também função consultiva, deliberativa, normativa e educativa, atuando conjuntamente com a rede de Comitês de Ética em Pesquisa - CEP- organizados nas instituições onde as pesquisas se realizam. É de se observar que o participante de pesquisa, voluntário que realiza uma tarefa de relevante cunho social, deve ter seus direitos garantidos durante a realização do estudo. Daí que, obedecendo a uma regra fundamental atrelada ao princípio da autonomia da vontade, assina o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Referido documento, elaborado com linguagem clara e acessível, compreende a anuência do participante da pesquisa ou de seu representante legal, livre de vícios, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, tanto os atuais como os potenciais, individuais e coletivos, declina os nomes dos responsáveis pelo acompanhamento do estudo e até mesmo a indispensável previsibilidade no tocante ao direito à indenização, em caso de dano provocado em razão da pesquisa. Percebe-se, desta forma, que a pesquisa é imprescindível para o desenvolvimento científico de um país e tem como bandeira a conquista de melhores condições de vida e saúde, não só para a comunidade local, mas também universal, em razão do princípio da justiça distributiva apregoado pela Bioética. Por outro lado, como indispensável garantia, o participante de pesquisa goza da mais ampla tutela protetiva pela colaboração prestada em favor de um estudo que acarretou benefícios para a humanidade.    
Toda mudança legislativa traz profundas e relevantes alterações no mundo jurídico compreendendo desde a retroatividade da lei mais benéfica até uma nova leitura a respeito do fato antes reprovado. Tal fenômeno alcançou a lei 14.230/21, que trouxe em seu bojo a expressa revogação da improbidade administrativa na modalidade culposa. Assim, pela configuração atual, as múltiplas condutas descritas no artigo 10 da lei anterior, foram levadas de roldão e passaram a exigir, juntamente com as descritas nos artigos 9º e 11 da novatio legis, a ocorrência de dolo, assim definido: Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente. A delimitação da conduta exclusivamente dolosa abre espaço para a aplicação do permissivo constitucional da retroatividade in mellius. Assim, o agente condenado pela prática de improbidade em qualquer das modalidades culposas, pode pleitear a revisão do julgamento, ou até mesmo, se a ação estiver em curso ou em estágio recursal, requerer a aplicação da lei não incriminadora, pela perda do fato gerador que provocou a conduta descrita na peça vestibular. Tamanha a ratio legis que motivou a alteração que ficou mais do que evidenciado que há necessidade inconteste de demonstrar a comprovação do ato doloso praticado pelo agente público, pelo agente político, pelo servidor público e, de uma forma abrangente, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades públicas, estendendo-se até mesmo ao terceiro que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra dolosamente para a prática do ato de improbidade. A sinalização da nova lei exige muita cautela na investigação da vontade do agente. É necessário que se faça uma pesquisa apropriada para encontrar pelo menos má-fé ou qualquer outro comportamento incompatível e desonesto do administrador público com o escopo de violar o ordenamento jurídico protetivo e que desague na reveladora conduta ímproba, capaz de comprometer o patrimônio público e social. Fica definitivamente afastada a possibilidade de se inserir na peça inicial uma afirmação genérica, com expressões abertas, sem conteúdo de especificidade e que não indique, de forma clara, precisa e transparente a dosagem do dolo do agente. A esse respeito, em esmerada definição, Simão esclarece didaticamente: As condutas ímprobas são aquelas permeadas de má-fé (do latim malefatius). Má-fé, na terminologia jurídica, designa o fato jurídico desencadeado pela maldade, em oposição a boa-fé. Representa a fraude, a corrupção e o dolo, por exemplo. Nesse sentido, quando descrevemos juridicamente que uma pessoa agiu de má-fé, estamos dizendo que ela agiu com fraude ou dolo.1 Diga-se, até mesmo para sustentação da novatio legis, que os tribunais superiores, de longa data, vinham buscando a imprescindível comprovação do dolo para a configuração do ilícito administrativo na actio improbitatis, tanto pelo cometimento isolado pelo administrador público como também com relação àqueles que se acumpliciam com ele. É de se observar que, pela alteração legislativa, a ação para a aplicação das sanções de que trata a lei será proposta exclusivamente pelo Ministério Público. Diante da nova realidade, há necessidade de uma mudança estratégica na atuação do parquet que, desde o nascedouro da investigação ou do inquérito civil, deve perquirir de forma intensa a conduta dolosa do agente. Não se trata de uma tarefa de fácil realização e sim de um grande desafio para perscrutar o elemento subjetivo projetado pelo gestor público imbuído da intenção de lesar e fraudar a integridade do patrimônio público. O foco da investigação deve se concentrar nas ações ilícitas praticadas que poderão proporcionar material mais do que suficiente para aquilatar o desiderato do agente infrator. O dolo, como é sabido, transcende a vontade interior do agente e vai ser refletido em sua conduta externa. Daí que a valoração do resultado em muito contribuirá para a formatação do designío subjetivo; O inquérito civil, instrumento de investigação criado no âmbito do Ministério Público de São Paulo - após palestra proferida pelo promotor de justiça José Fernando da Silva Lopes em reunião realizada pelo Grupo de Estudos da Associação Paulista do Ministério Público, na cidade de Ourinhos, interior de São Paulo (21/06/1980) - embora previsto inicialmente para a ação civil pública, pode ser utilizado também para apuração de improbidade administrativa, desde que especifique seu objeto. Além de colher as provas pertinentes para o alicerçamento da ação principal, tem que convencer o próprio titular da ação a formar sua opinio delicti a respeito de ocorrência que ofenda a ordem jurídica prevista e os interesses sociais protegidos. Com tal rigorismo é de se concluir que muitos procedimentos instaurados na fase administrativa serão arquivados pelo Conselho Superior do Ministério Público, se provocado, em razão da ausência de dolo. Os que vencerem essa etapa forçosamente trarão provas inconcussas a respeito do elemento subjetivo, com maior chance de vingarem.  _________________ 1 Simão, Calil. Improbidade administrativa: teoria e prática. Leme/SP: Editora JH Mizuno, 2017, p. 86.
domingo, 28 de novembro de 2021

Agora é lei: Estatuto da Pessoa com Câncer

A lei, desde o seu nascedouro - oportunidade em que são travadas as pertinentes discussões a respeito das questões relevantes para seus destinatários - traz, de forma cogente e com validade erga omnes, uma normatização para que seja criteriosamente seguida pela comunidade. A sociedade civilizada necessita não só de preceitos éticos regulatórios para uma harmônica convivência social, como, também, de regulamentar direitos previstos na Lei Maior para que sejam proclamados com a eficácia necessária. Assim, na maioria dos casos, a lei, como instrumento regulatório, lança uma tutela primária sobre todas as pessoas, conferindo-lhes direitos concretos e difusos condizentes com os parâmetros da dignidade humana, um dos fundamentos da Constituição Federal. Na sequência, em se tratando de casos especiais que exigem uma atuação diferenciada, com maiores cuidados ainda, estreita o canal protetivo e nele insere uma nova legislação específica para atendimento de casos excepcionais, sem ferir a isonomia consagrada constitucionalmente. Quer dizer, na igualdade entre as pessoas, terão prioridade aquelas que necessitam de atendimento e acolhimento preferencial, em razão de uma vulnerabilidade momentânea ou não. Tal espírito norteou a lei 14.238/21, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Câncer e que tem como finalidade específica assegurar e promover, em condições de igualdade, o acesso ao tratamento da pessoa com câncer, garantindo-lhe a sua inclusão social e necessária proteção no âmbito das políticas públicas de prevenção e combate à doença. Para tanto, a novatio legis assim definiu: "Considera-se pessoa com câncer aquela que tenha o regular diagnóstico, nos termos de relatório elaborado por médico devidamente inscrito no conselho profissional, acompanhado pelos laudos e exames diagnósticos complementares necessários para a correta caracterização da doença". É interessante observar que a terminologia Estatuto passou a frequentar a legislação pátria após a Constituição Federal de 1988, que sedimentou a extensa via dos direitos e garantias individuais e coletivos. Basta ver, dentre outros, o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990), Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015) e Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003). Referida denominação, por si só, deixa entender que pretende regulamentar direitos de um determinado agrupamento social para que todas as pessoas que o integram possam receber, em igualdades de condições, o tratamento adequado em razão de uma moléstia comum. Dentre os objetivos propostos podem ser mencionados: diagnóstico precoce e confiável da doença, quando ainda há grande possibilidade para um tratamento exitoso; acesso do paciente ao tratamento recomendado pelo protocolo médico; assistência social e jurídica; transparência das informações dos órgãos encarregados pelo atendimento, com acompanhamento dos processos, prazos e fluxos, indicando a sustentabilidade do tratamento; estímulo à prevenção e humanização da atenção aos pacientes e familiares, e garantia do tratamento adequado, nos termos das leis 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 12.732, de 22 de novembro de 2012. Como é sabido, pelo alcance da lei 12.732/2012, o paciente com câncer, assim diagnosticado pelo SUS, deve receber o primeiro tratamento da doença no prazo de 60 dias, a partir da emissão do laudo patológico ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso, registrada em prontuário único. Portaria posterior do Ministério da Saúde (nº 1.220/2014) mitigou a interpretação da Lei dos 60 dias e passou a considerar o prazo a partir da data do diagnóstico da doença no exame (laudo patológico). Quer dizer, a data da assinatura do laudo patológico apontará o termo inicial para a contagem do prazo de 60 dias, obrigando os gestores públicos a tal determinação. A lei 13.896/2019, que entrou em vigência no dia 28/4/2020, por sua vez, com a intepretação mais adequada e consentânea com um diagnóstico mais célere que, além de diminuir os custos, irá proporcionar melhores condições de sucesso do tratamento, estabeleceu o prazo máximo de 30 dias para a confirmação da doença, in verbis: "Nos casos em que a principal hipótese diagnóstica seja a neoplasia maligna, os exames necessários devem ser realizados no prazo máximo de 30 (trinta) dias, mediante solicitação fundamentada do médico responsável". Outra inovação da lei é voltada para as crianças e adolescentes com câncer ou até mesmo com suspeita, que terão garantidos o tratamento universal e atendimento integral, em todas as fases. A própria lei delimitou a conceituação de atendimento integral como sendo aquele realizado nos diversos níveis de complexidade e hierarquia, bem como nas diversas especialidades médicas, de acordo com as necessidades de saúde da pessoa com câncer, incluídos assistência médica e de fármacos, assistência psicológica, atendimentos especializados e, sempre que possível, atendimento e internação domiciliares. Pode se dizer que a lei atendeu os reclamos da população brasileira em conferir a proteção necessária para o doente com câncer, além de, com base na recomendada medicina humanizada, introduziu atendimento multidisciplinar e cuidados paliativos ao paciente, extensivos aos familiares.  
domingo, 21 de novembro de 2021

Novas regras sobre eutanásia em animais

Percebe-se que, nos últimos anos, os animais vêm recebendo uma tutela legislativa diferenciada, assim como decisões jurisprudenciais favoráveis exaradas nos processos que envolvem a interpretação da Lei dos Crimes Ambientais. Até então as leis existentes preocupavam-se em resguardar o direito essencial ao meio ambiente, equilibrando-o ecologicamente com a indispensável proteção da fauna e flora. Basta ver que, no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 640 (ADPF), o ministro relator concedeu medida liminar determinando a suspensão de todas as medidas administrativas ou judiciais autorizadoras de sacrifício de animais silvestres como os domésticos ou domesticados que fossem apreendidos em situação de maus tratos. A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, em ação intentada para impedir o abate dos animais que se encontravam em situação de maus tratos, considerou inconsistente e até mesmo ilegal a decisão tomada em muitos casos pela justiça ou por autoridades administrativas determinando o sacrifício dos animais. Nesse sentido a posição do ministro Gilmar Mendes, relator da ação: "No caso, observa-se que a interpretação da legislação federal proposta pelos órgãos administrativos e adotada pelas autoridades judiciais, ao possibilitar o abate de animais apreendidos em condições de maus-tratos, ofende normas materiais da Constituição."1 Nenhuma dúvida paira mais a respeito do status atribuído aos animais como seres sencientes, sujeitos de direitos despersonalizados, dotados de natureza emocional e passíveis de sofrimento, conforme foi reconhecido recentemente pela Lei 14.064/20. Os animais abandonaram definitivamente a incômoda classificação a eles atribuída pela lei 9.605/1998 e o Código Civil, que os consideravam bens móveis, sendo oportuno observar que, em recente decisão proferida pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, foi reconhecido, por unanimidade, o direito dos animais de figurarem como autores de ações judiciais visando pleitear o que a lei faculta, desde que corretamente representados.2 E é importante ressaltar que agora, com a lei referida acima (Lei 14.064/20), ocorre severa punição à prática de abuso, maus tratos, ferimentos ou mutilação a cães e gatos, considerados animais de estimação, com a aplicação da pena de reclusão de 2 a 5 anos. Na tutela progressiva ofertada pela legislação protetiva aos animais, foi sancionada a lei 14.228/21, que dispõe a respeito da proibição de eliminação de cães e gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres. O ponto fulcral da novatio legis, publicada no dia 20/10/21 e com vigência programada para 120 dias a partir de sua publicação oficial, é proibir terminantemente a eutanásia de cães e gatos abandonados, recolhidos da rua em situação de maus tratos ou não, pelos estabelecimentos oficiais referidos. Trata-se, na realidade, de uma determinação que coaduna com o artigo 25 § 1º da Lei dos Crimes Ambientais que, com a redação determinada pela lei 13.052/14, assim disciplina a matéria relacionada com os animais apreendidos: "Os animais serão prioritariamente libertados em seu habitat ou, sendo tal medida inviável ou não recomendável por questões sanitárias, entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, para guarda e cuidados sob a responsabilidade de técnicos habilitados". Pode-se acrescentar aqui também a campanha de adoção de animais, prática que tem recebido adesão da comunidade. A eutanásia, compreendida na indução da cessação da vida animal, por meio de método tecnicamente aceitável e cientificamente comprovado, conforme preceitua o Conselho Federal de Medicina Veterinária (Resolução 1000/2012), apresenta-se como uma conduta contrária à legislação protetiva dos animais apreendidos sem doenças graves e infectocontagiosas. A própria lei traz em seu corpo uma exceção permissiva para a realização da eutanásia. É justamente quando os animais apresentarem casos de males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e a de outros animais. Mesmo assim, há a necessidade se fazer a justificativa da medida extrema por meio do laudo do responsável técnico pelo estabelecimento que abriga os animais, juntando, quando for necessário, o resultado do exame laboratorial. Nesse caso, é de se observar que as entidades de proteção animal devem ter acesso irrestrito à documentação que comprove a legalidade da eutanásia. É, verdadeiramente, mais um importante passo que se dá ao combate ao especismo em que os seres humanos se colocam em situação privilegiada enquanto as demais espécies, que convivem com o prazer e a dor, ficam alojadas em um plano secundário, sem qualquer consideração. É salutar observar que os animais estão se alinhando aos homens em algumas circunstâncias. Em se tratando de xenotransplante, as pesquisas estão indicando que o porco transgenitalizado pode oferecer seu rim para o humano com uma longa margem de sucesso, sem rejeição. Daí surge um novo repositor de órgãos, que merece cuidados especiais. ____________ 1 https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/09/17/maioria-do-stf-conclui-que-abate-de-animal-em-situacao-de-maus-tratos-sem-risco-sanitario-viola-a-constituicao.ghtml 2 https://www.tjpr.jus.br/noticias/-/asset_publisher/9jZB/content/id/55859528.
domingo, 14 de novembro de 2021

O afeto acima de tudo

Foi noticiado pela imprensa que uma mãe ingressou com pedido judicial de pensão alimentícia em favor de sua filha e o pretenso pai contestou a paternidade, solicitando, para tanto, a realização do exame de DNA, que foi feito. Para surpresa da mãe, o exame excluiu a paternidade. A mãe, da mesma forma, posteriormente, submeteu-se ao mesmo exame, que resultou na sua exclusão da maternidade biológica, após sete anos de convivência com a criança.1 As suspeitas, inevitavelmente, voltaram-se contra o hospital responsável pelos partos. Diligências foram realizadas na maternidade e constataram que, no mesmo dia, em horário muito próximo, nasceram duas meninas, segundo o registro hospitalar. Os dois pais, as duas mães e as duas crianças fizeram o exame de DNA, que comprovou a troca das recém-nascidas. É indescritível o abalo emocional entre as pessoas envolvidas, até mesmo as crianças em receberem o resultado de que não são filhas biológicas dos pais com quem até então conviveram e sentiram-se incluídas naquele grupo que representava suas famílias. Para os genitores, que até então caminhavam pela via segura da genética, abre-se uma enorme vala com relação a uma indisfarçável frustração e insegurança da vida futura. E a indagação que passa a habitar a mente de cada um é se deve prevalecer a filiação sanguínea ou a construída pelo afeto, pela dedicação, pelo comprometimento, pelo apego, transversalizando e privilegiando uma vida até então consolidada em um lar sólido. Tanto é que os pais registraram as filhas e desconheciam por completo a hipótese de troca das recém-nascidas. As crianças cresceriam no seio de cada família, com a educação e costumes próprios e se tornariam adultas, constituindo novos núcleos familiares.   A rotina estaria desenhada se não tivesse sido descoberta a troca na maternidade. Após a Constituição Federal de 1988 ocorreu uma evolução, ainda em fase de efervescência, com relação ao direito de procriação. Todos os filhos, havidos ou não fora do casamento, assim como aqueles provenientes da adoção, gozam dos mesmos direitos, sem quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Nasce, então, não só pela introdução legal, mas também como um novo conceito social, a paternidade socioafetiva, na qual alguém, sem qualquer vínculo sanguíneo e sem imposição legal, recebe uma criança como filho, tendo como sustentáculo o sentimento de afeto, que é o caso da adoção. A ascendência genética, por si só, já não é mais suficiente para determinar a filiação. Pelo contrário, em razão das novas práticas consolidadas no âmbito da dignidade da pessoa e no princípio do melhor interesse da criança, o vínculo da socioafetividade se expandiu e incorporou a contribuição daqueles que participaram da construção dos laços afetivos com a criança. Pai e mãe, desta forma, pelo novo perfil da família, não são só aqueles que cederam o material procriativo e sim aqueles que dispensaram afeto, que passa a ser a essência motivadora que ultrapassa até mesmo os ditames da lei, mas que exige uma solução jurídica e alcança situações até então não previstas, tudo para que o filho possa viver em harmonia e atingir a plena realização. É o mesmo critério adotado pela lei de adoção, que ainda permite ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica, após completar 18 anos de idade. Nesta linha de pensamento, no caso presente, apesar do DNA ter apontado outra família, a decisão é exclusiva dos pais e, ao que tudo indica, será mantida a documentação registral, sem prejuízo do reconhecimento da paternidade biológica. Assim, nada mais justo que as filhas trocadas tenham dois pais e duas mães, sem qualquer conflito. Privilégio para poucos. Em harmonia e em igualdades de condições, as duas famílias vão se juntar na relevante missão e cumprir a tarefa que lhes foi reservada pela vida e pela lei.  _____________ 1 https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/10/31/enquanto-ela-viver-vou-estar-do-lado-dela-diz-mae-de-crianca-trocada-na-maternidade-no-df.ghtml
domingo, 7 de novembro de 2021

Sigilo médico no autoaborto

Um fato ocorrido em hospital do interior do Estado de São Paulo chamou a atenção da comunidade médica a respeito da decisão proferida pela Justiça em caso de autoaborto. Em breve relato, uma gestante, após realizar manobras abortivas, veio a sentir fortes dores, oportunidade em que foi encaminhada a um hospital e logo entrou em trabalho de parto prematuro, sendo atendida por uma médica. Realizado o procedimento necessário, a profissional declarou à autoridade policial ter encontrado resquícios de medicamento abortivo na vagina da paciente, fato que ensejou a decretação da prisão preventiva da então gestante, que se livrou da segregação provisória pelo pagamento da fiança arbitrada.1 A paciente, após receber ameaças e se ver obrigada a mudar de cidade, intentou ação indenizatória contra o hospital pela quebra do sigilo médico da profissional responsável pelo atendimento e o Tribunal de Justiça, em grau de recurso, condenou o nosocômio a pagar a verba indenizatória de dez mil reais. O artigo 5º, §3º do Código de Processo Penal, faculta a qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de crime em que caiba ação pública, que é o caso do abortamento, poderá, verbalmente ou por escrito, comunicar o fato à autoridade policial, que irá instaurar inquérito, se procedente a notitia criminis. Assim, levando-se em consideração o fato narrado, o vizinho da gestante teria plena legitimidade para fazer a delação à autoridade policial que, obrigatoriamente, deveria dar início à persecução penal. A médica que a atendeu e realizou o procedimento, no entanto, não está compreendida neste permissivo processual. Parece até uma incoerência, porém há razões legais para tanto. A relação médico-paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. No instante em que a paciente foi atendida e que a médica constatou a presença de medicamento abortivo, tal fato, por si só, elege a profissional como depositária e guardadora de seu segredo. Tais informações são imprescindíveis e devem ser utilizadas somente para providências em favor da paciente, permitindo a realização de exames clínicos, obstétricos e complementares indicados para o caso. Tamanha é a importância do sigilo médico que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que o paciente tenha falecido, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Tanto é que o Código Penal, em seu artigo 154, erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Preserva a vida privada e a intimidade do paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão, nos moldes do peace of mind do direito americano. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada da paciente, acarretando não só a inconveniente investigação policial como, também, a intranquilidade do espírito pela intromissão alheia. É certo que o sigilo relatado, compreendendo somente aquele revelado no exercício profissional, não vem revestido de caráter absoluto, pois, em algumas hipóteses, pode ser quebrado, tais como dever legal, justa causa ou autorização expressa do paciente. Mas, no caso presente, encontram-se ausentes tais requisitos. A preservação da confiança da paciente que procurou um atendimento médico de urgência, mesmo que o fato gerador seja considerado ilícito, jamais poderia ser quebrada, por se tratar de circunstância de caráter íntimo e direcionada para uma prestação de serviço mais eficiente e não pode provocar, em contrapartida, a exposição pública e submeter a pessoa que foi atendida a uma investigação penal. O Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2217/2018), que contém as normas que devem ser seguidas pelos profissionais, em seu artigo 73 é taxativo ao afirmar que é vedado ao médico "Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente." Concluindo, todo o imbróglio foi criado pelo fato de ter a médica feito a revelação do autoaborto à autoridade policial. Daí surgem várias outras situações jurídicas, tais como o erro do médico em acreditar que fosse obrigado a denunciar o fato, o direito da paciente em pleitear indenização cível, a constituição de prova ilícita para a apuração penal, sem falar ainda do processo de cunho ético profissional. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 31 de outubro de 2021

O xenotransplante bem sucedido

A humanidade recebeu com júbilo indisfarçável a notícia de que foi realizado com sucesso um transplante de rim entre animais de espécies diferentes, mais precisamente, um xenotransplante, em que uma mulher recebeu o rim de um porco. Xenotransplante, na precisa definição de Marcelo Coelho, é "o transplante de um órgão, ou tecido, ou células de um animal a outro de espécie distinta e é uma das grandes promessas da medicina para suprir as necessidades de órgãos, tecidos e células transplantáveis".1 Não que a notícia cause estranheza - levando-se em consideração a evolução da transplantação que vai ganhando espaços até então desconhecidos - mas sim pela exemplar conduta científica e o resultado atingido. Para tanto a equipe de transplantes, após anos de pesquisa, usou o rim de um porco devidamente preparado e geneticamente modificado, para afastar uma molécula que provoca rejeição em humanos. Em seguida, fora do corpo da mulher, que já se encontrava com a morte encefálica decretada, o rim suíno foi ligado às veias e artérias e, sem qualquer rejeição, funcionou perfeitamente por 54 horas de observação. Animal transgênico é aquele que experimentou mudança em seu patrimônio genético, em consequência da inoculação de um ou vários genes humanos com a finalidade de compatibilizar a realização de transplantes. Tal prática hoje já é uma realidade no meio científico, principalmente com a utilização de porcos transgênicos, cuja anatomia de órgãos é bem semelhante à dos humanos. Não se trata de criação de quimeras da mitologia grega, representada pela cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, e sim de experimentos científicos voltados para proporcionar benefícios de saúde para o ser humano. Dá-se a impressão que se trata de um relato de ficção científica, principalmente pela utilização de um rim suíno quando a regra aconselha o transplante de órgãos entre humanos e, mesmo assim, como é sabido, com certa frequência, ocorre a rejeição. No caso específico, realizado por transplantadores de um hospital de Nova York, o estudo científico obedeceu a todas as fases, além de, rigorosamente, atender os princípios norteadores da Bioética para a realização do procedimento invasivo. A paciente, quando viva e lúcida, havia assinado um documento em que registrou sua vontade de ser doadora de órgãos post mortem. Com a decretação de sua morte encefálica a equipe médica consultou os familiares que endossaram seu consentimento. Prevaleceu, desta forma, a autonomia da vontade da paciente, reforçada ainda pela adesão dos familiares, revelando, de forma inequívoca, a vontade de se oferecer como doadora, mesmo em se tratando de transplante realizado em pessoa já morta, mas suficiente para avaliar o órgão transplantado. O benefício resultante do estudo é infindável e deixou transparecer que o estudo merece continuidade uma vez que trouxe dividendos favoráveis à saúde humana, apesar do pouco tempo em que o rim permaneceu atrelado ao corpo da doadora, com visível resultado mais do que satisfatório. É evidente que há ainda uma longa trajetória científica a ser percorrida, mas, pelo menos para o momento, reacende a esperança de encontrar mais uma opção, que certamente trará inúmeros benefícios para o homem. Finalmente, em razão do princípio da justiça distributiva, o feito médico deve ser compartilhado com toda a humanidade. Se um determinado e inédito procedimento médico foi bem sucedido e trouxe benefício comprovado, deve ser utilizado por todas os pacientes que se encontram em situação idêntica. O benefício, desta forma, deve ser distribuído entre aqueles que necessitam de um transplante de rim, com o intuito de atingir uma vida saudável. É de conhecimento público, pelas informações veiculadas pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, que o Brasil goza de destaque mundial na realização de transplantes de órgãos, apesar ainda da baixa taxa de doadores efetivos e da consequente diminuição em razão da pandemia da Covid-19. A escassez de órgãos humanos faz com que muitos pacientes, em estado delicado de saúde, fiquem aguardando durante longo período nas filas dos transplantes a oferta de algum órgão que seja compatível e muitas vezes vão a óbito sem atingir o objetivo almejado. É de se esperar que o estudo anunciado, estribado no melhor embasamento científico e ancorado pelo pensamento bioético, proporcione uma acalentadora esperança para a humanidade. __________ 1 Marcelo Coelho, Mario. Xenotransplante - ética e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 56.
domingo, 24 de outubro de 2021

Chame o síndico

É regra que qualquer pessoa do povo, assim expresso no artigo 5º, § 3º do Código de Processo Penal - que abre as comportas da mais ampla legitimidade processual - que tiver conhecimento da ocorrência de um crime que seja de natureza pública, poderá, verbalmente, ou por escrito, comunicá-lo à autoridade policial para que dê início à investigação e, posteriormente, se for o caso, à persecução penal cabível para a elucidação do fato, com ênfase em sua autoria e materialidade. O legislador processual, com tal regramento, visa possibilitar ao particular participar como longa manus do Estado que, na impossibilidade de comparecer a todos os locais preventivamente, delega tal função ao particular, que a exercerá como interveniente substitutivo do Estado. Tanto é que o Código de Processo Penal é taxativo no artigo 301: "Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito." De um lado, o legislador conferiu uma faculdade ao particular quando empregou o verbo poder na sua forma de futuro do presente, "poderá", designando uma mera faculdade, ao passo que, com relação às autoridades policiais e aos seus agentes, determinou a obrigatoriedade flagrancial. Na realidade o compartilhamento de informações entre Estado e particular é um canal que possibilita a rápida atuação dos responsáveis pela segurança pública. Assim o particular exerce temporariamente, e em ocasiões específicas, parcela do poder estatal, pelo menos quando se propõe a fazer  a delação a respeito de uma infração penal. E, se não se sentir confortável em declarar seus dados, poderá lançar mão da modalidade anônima, que será rigorosamente preservada. Os tentáculos protetivos da Lei Maria da Penha, no sentido de penetrar em todos os locais de convivência, abrangendo também os condomínios, fez com que o Governo do Estado de São Paulo editasse a lei 17.406/2021. Referida norma obriga, no âmbito estadual, os síndicos ou administradores de condomínios residenciais e comerciais a encaminharem comunicação à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher e, na sua falta, a órgãos de segurança pública, quando ocorrerem episódios de violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, adolescentes e idosos. Nem sempre a função de síndico é desempenhada por um profissional com formação qualificada na área. Na maioria dos casos, como prevê o Código Civil, é um morador, que a título de colaboração, sem qualquer remuneração, a não ser em alguns casos a isenção da taxa condominial, lança seu nome na assembleia para concorrer ao cargo. Se obtiver êxito na votação, passa a ser o representante do condomínio por determinado período e, como tal, responsável pelo cumprimento do regimento interno, convenção condominial e determinações das assembleias, além de outras obrigações inerentes à função. E agora, cumulativamente, recebe o ônus de exercer uma modalidade anômala de fiscalização com relação aos episódios ocorridos no interior das moradias e que tenham relação com violência doméstica, comunicando o fato à autoridade policial. Apesar de que qualquer morador possa fazer a comunicação, conforme permissivo do estatuto processual penal, a inovação é voltada para a pessoa do síndico ou do administrador que, em razão da função, é obrigado a comunicar a ocorrência. Assim, o morador poderá comunicar o fato ao síndico que se vê obrigado, mesmo sem qualquer formação na área jurídica, a fazer o crivo de viabilidade ou não da notitia criminis e repassá-la adiante para as autoridades competentes. Além do que, ainda de acordo com a nova lei, se o episódio de violência estiver em curso, em verdadeira situação flagrancial, o síndico deverá comunicar imediatamente à autoridade policial por ligação telefônica ou aplicativo móvel. Se já consumada, no período de 24 horas a partir do momento em que o síndico tomou conhecimento do fato, irá redigir documento endereçado à autoridade contendo informações que possam contribuir para a identificação da possível vítima e do possível agressor. A lei, apesar de revestida dos melhores propósitos, traz inconvenientes que dificultam e em muito a sua execução. É bem provável que, para cumprir rigorosamente a determinação legal, diante de um quadro provável de violência doméstica, o síndico ou o administrador, deva ter contato pessoal com as partes envolvidas, o que é, na prática, totalmente desaconselhável, pois além de ser pessoa não grata na residência, é desprovido de qualquer preparo para conter os ânimos ainda belicosos e pode até ser que os ataques se voltem contra ele. Se o fato já estiver findado, mesmo assim, para a feitura da comunicação, terá que se ver com os envolvidos para elaborar seu breve relatório. Sem falar ainda que, em caso de processo judicial, com certeza o síndico será arrolado como testemunha. É um desestímulo insuperável para quem tiver a pretensão de um dia colaborar com seu condomínio. É certo que a lei paulista foi publicada no Diário Oficial no dia 16/9/2021 e entrará em vigor 60 dias após a publicação, assim como ainda não foi elaborada a regulamentação pelo Poder Executivo visando estabelecer os aspectos necessários à sua efetiva aplicação. Neste período conhecido como vacatio legis, que compreende a data da publicação de uma lei e o início de sua vigência, seria até de bom alvitre repensar a modalidade de comunicação obrigatória por parte do síndico ou do administrador e diluir a responsabilidade entre todos os condôminos para que sejam incentivados a fazer a comunicação direta à autoridade policial de episódio de violência doméstica ou familiar no interior do condomínio, preservando a identidade do informante. Para tanto, seriam afixados cartazes explicativos nas áreas comuns do complexo habitacional, como já prevê o serviço do Disque-Denúncia, com garantia absoluta do anonimato.
domingo, 17 de outubro de 2021

A morte desautorizada

"Para mim, a morte é um descanso"Martha Líria Sepúlveda As redes sociais divulgaram notícia a respeito da colombiana Martha Líria Sepúlveda que, com 51 anos de idade, portadora de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), já com precária ambulação e experimentando muitas dores e inúmeras limitações, porém não hospitalizada, conseguiu autorização judicial da Suprema Corte do país para praticar a eutanásia, mesmo não se encontrando em estado terminal. Na realidade, a Corte colombiana, que já conferia direito à eutanásia, ampliou seu entendimento e possibilitou o pedido da autora da ação, que até já providenciara a data para a realização do seu intento, no dia 10 de outubro do ano em curso.1 Ocorre que a clínica responsável, no entanto, suspendeu a realização do procedimento em razão da paciente não se encontrar com doença em estágio terminal, constatação que conta também com a adesão do Ministério da Saúde, que irá criar um comitê para avaliar a revisão do procedimento. A Colômbia foi o primeiro país da América do Sul a autorizar, desde 1997, a prática da eutanásia, com a exigência da autorização do paciente ou de seu representante, que o doente seja declarado em estágio terminal e que a intenção seja voltada para abreviar o sofrimento. Percebe-se que a conduta narrada apresenta uma aproximação entre a eutanásia e o suicídio assistido, esse não permitido no país. Ambos não se confundem. A eutanásia é o ato pelo qual o médico pratica um ato específico para colocar fim à vida humana em estado irreversível e terminal, antecipando a morte do paciente. O suicídio assistido vem a ser a vontade expressa pelo doente, que se encontra em perfeitas condições mentais, de dar fim à sua vida realizando ele próprio os atos para garantir o seu intento, sempre orientado por médico, em razão de uma determinada doença. "No suicídio medicamente assistido, esclarece o sempre lembrado bioeticista Pessini, envolve a participação de um médico, na provisão, mas não na administração direta para ajudar a pessoa a abreviar sua vida".2 É desejo insculpido na sabedoria popular que toda pessoa tenha uma morte rápida, sem o calvário de qualquer sofrimento, isto após ter vivido intensamente a vida. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente. O direito de autodeterminação se faz presente no caso acima relatado. A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente. O morrer com dignidade compreende, em situação de sofrimento interminável, transferir a um profissional da saúde não o direito à sua própria vida, mas sim à renúncia ao direito de continuar vivendo em situação angustiante. Pode-se até dizer que se trata de uma morte voluntária, consensual do paciente em busca da morte com dignidade, após constatar que não há mais intervenção médica para estagnar a doença ou até mesmo administrá-la. Pode-se até dizer que se ingressa em um procedimento médico regrado pela antiga parêmia do voluntas aegroti suprema lex, no sentido de que o paciente tem o direito de decidir a respeito de sua morte, desde que ela se avizinhe de forma inequívoca. Com a maestria acadêmica que lhe é peculiar, D'Agostino assim se expressou: "Eis porque a vida humana, mesmo a vida doente, mesmo a vida perdida nos labirintos da loucura ou afundada nos abismos do coma irreversível, nunca pode perder a dignidade: porque continua sendo vidas ao lado de vidas, fonte e doadora de significados mesmo quando nem mais o perceba."3 É até difícil aparentemente aceitar a postura da paciente colombiana que não se encontrava no estertor da morte e nem mesmo internada em ambiente hospitalar. Além do que, pelo que se sabe, a doença é grave, mas não minou todas as suas forças a ponto de tornar a vida insuportável, circunstância essa que determinou a suspensão do procedimento pleiteado. Nessa linha de pensamento, qualquer doença degenerativa grave acarretaria idêntico final de vida.   O divisor agora determinante é justamente a autonomia da vontade do paciente, encartada definitivamente na dignitas hominis. Abre-se, desta forma, um enorme espaço de reflexão no caminhar de uma realidade nova que descortina um século que, obrigatoriamente, para a sobrevivência da humanidade, deve ser destinado ao processo de humanização. Não é de se levar em conta única e exclusivamente a intenção do paciente e sim colher também a manifestação médica no sentido de justificar que não há qualquer perspectiva de tratamento para combater a doença e que o sofrimento será cada vez mais acentuado e insuportável na já existente agonia terminal. No Brasil, é terminantemente proibida a prática do suicídio assistido e também da eutanásia, ambas modalidades incriminadas no Código Penal. Alguns países, no entanto, legalizaram e adotaram tais condutas, como é o caso da Colômbia, com relação à eutanásia somente. O próprio desenvolvimento cultural da sociedade brasileira vem oferecendo reflexões a respeito da finitude da vida, principalmente quando o paciente for declarado terminal, em estado de irreversibilidade. Daí que aflorou a conceituação de morte humanizada, tendo como sustentáculo o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado na Constituição Federal. Basta ver a introdução da ortotanásia no Código de Ética Médica (resolução CFM nº 2.217/2018), que permite ao médico, após ouvir o paciente, se lúcido, ou seu representante legal, suspender toda a obstinação terapêutica e introduzir medicamentos para aliviar a dor e o sofrimento, com a oferta de cuidados paliativos. É o encaminhamento humanizado para a morte. __________ 1 Disponível aqui. 2 Pessini, Leo. Eutanásia - porque abreviar a vida? São Paulo: Editora Loyola, 2004, p.127. 3 D'Agostino, Francesco. Bioética segundo o enfoque da Filosofia do Direito. Tradução: Luisa Raboline - Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2006, p. 203.
domingo, 10 de outubro de 2021

População em situação de rua

A Constituição Federal de 1988, ao erigir a dignidade da pessoa humana como um dos alicerces do Estado Democrático de Direito, alavancou de forma expressiva e até mesmo obrigatória, a necessidade de se construir uma sociedade justa e solidária, com a consequente erradicação da pobreza, sem preconceito e desigualdade social. Cabe exatamente nesta cunha a abordagem necessária para a tutela da população de rua, tão presente a olhos vistos, porém marginalizada e rotulada como se fosse pertencente a uma cidadania de segundo escalão. Sem teto. Na casa utópica, com a ironia bem dosada de Vinicius de Moraes, "não tinha teto, não tinha nada, ninguém podia entrar nela não, porque a casa não tinha chão." É até difícil elaborar uma definição que compreenda a dimensão social dessa categoria que também merece a inserção e o acolhimento social. O decreto 7.053/2009 instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e assim a definiu: "Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória." Fica evidenciada, desta forma, a vulnerabilidade como a principal característica dessa população que compreende um extenso grupo de risco, como, em uma amostragem rápida, pessoas idosas, pessoas com tuberculose, cardiopatas, HIV/AIDS, gestantes, puérperas, crianças de pouca idade, incluindo bebês, pessoas LGBTQIA+, indígenas e até mesmo imigrantes. Além do que, pelo que se percebe diariamente, são pessoas de família unipessoal, sem contato com parentes, com estudo até o Ensino Fundamental, sem emprego, vivendo de trabalhos eventuais nas ruas, muitos deles fazem consumo excessivo de álcool e outras drogas, expostos à violência e exploração constantes e desprovidos de itens básicos de subsistência, como alimentação, água potável, produtos de higiene e limpeza. Sem qualquer dúvida essa população não pode ser considerada invisível e pela sua constante presença, principalmente nas cidades de maior índice populacional, merece a necessária atenção dos gestores públicos. Tanto é que, logo após a deflagração mundial da pandemia, quando o Brasil decretou medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional (lei 13.979/2020), o Ministério da Cidadania expediu a Portaria 69/2020, que aprova a Nota Técnica 13/2020, trazendo as recomendações gerais para o Órgão Gestor da Política de Assistência Social, Unidades e Serviços Socioassistenciais direcionados à pessoa em situação de rua, no contexto da pandemia do novo Coronavírus, Covid-19. O Conselho Nacional de Justiça, engajado também com a política nacional de acolhimento das pessoas que vivem em situação de rua, após criar um grupo de trabalho com representantes da Justiça e de entidades da sociedade civil com atuação específica na área do projeto mencionado, expediu recentemente uma resolução que institui a Política Nacional Judicial de Atenção às Pessoas em Situação de Rua A norma aprovada determina ao Poder Judiciário a criação de um serviço especializado e prioritário para que a população em situação de rua tenha acesso direto ao Judiciário para garantir os direitos humanos desta parcela populacional com pouca frequência aos tribunais, sem qualquer tipo de burocratização. Exigir, por exemplo, um comprovante de residência para quem vive em situação de rua ou o traje forense adequado, é negar a prestação jurisdicional à pessoa que vive à margem da miserabilidade. Os serviços serão itinerantes e prestados de forma continuada, sempre em busca do maior número de pessoas atendidas, contando com a colaboração da assistência social, tanto para providenciar os documentos básicos para o exercício da cidadania, como, também, pelos órgãos competentes de ajuizamento, pleitear a concretização de um direito ou até mesmo um benefício previsto em políticas públicas específicas. É o momento de abrir as portas da justiça para contemplar os que se encontram em situação de vulnerabilidade social, tanto é que nem mesmo são alinhados no Censo do IBGE, para que possam exercer e fazer imperar os direitos fundamentais descritos na Constituição Federal.
domingo, 3 de outubro de 2021

Passaporte vacinal

A obrigatoriedade da vacina contra a covid-19 vem se alastrando por vários países que passaram a exigir das pessoas, para a frequência a locais públicos e de grandes aglomerações, a comprovação relativa à imunização. O que inicialmente parecia uma exigência que extrapolava e em muito, os poderes do gestor público, invadindo a área da autonomia da vontade da pessoa, passou a ser considerada uma medida de salvaguarda para a comunidade. A discussão a respeito da obrigatoriedade vacinal no Brasil já tinha sido abordada pelo Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade números 6586 e 6587, que foram conclusivas no sentido de que a obrigatoriedade da vacinação não compreende a imunização forçada, mas poderá ser efetivada por sanções indiretas, voltadas para a proibição de determinadas atividades ou à frequência de alguns lugares. É importante ter em mira que a lei 13.979/20, de vigência temporária, com a missão de estabelecer medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional, em seu artigo 3º, inciso III, letra "d", estabelece a realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas, tudo visando à proteção do grupo social. Por ser uma lei excepcional - com conteúdo protetivo voltado para a comunidade em caráter emergencial e temporário - terá vigência durante toda a situação de emergência de saúde pública, tendo como parâmetro a recomendação da Organização Mundial da Saúde, prevalecendo, desta forma, a regra do tempus regit actum. O caráter vinculatório existente no relacionamento social faz com que o interesse individual, ceda espaço para a realização de um objetivo comum que traga dividendos de saúde para a comunidade. Com precisão, Sandel é categórico em afirmar: "Se uma sociedade justa requer um forte sentimento de comunidade, ela precisa encontrar uma forma de incutir nos cidadãos uma preocupação com o todo, uma dedicação ao bem comum."1 Conforme se observa pelas notícias veiculadas, é expressiva a redução de casos de infecção e até mesmo de óbitos provocados pela covid-19. Parece ser consenso que o fato gerador tenha como referência o aumento da vacinação da comunidade. Quanto maior o avanço da imunização - apesar de vários percalços relacionados com a falta das vacinas - mais incontestável o resultado positivo, tudo levando a crer que em tempo próximo a maioria da população estará coberta. Mas não se trata ainda de um quadro com solução definitiva e a cautela recomenda que as autoridades responsáveis ajam com sobriedade ao liberar a frequência de logradouros públicos, principalmente os que demandam maior fluxo populacional, sem o uso de máscaras e sem respeito ao distanciamento recomendado. A variante Delta e outras ainda que serão provavelmente encontradas continuam a circular e aptas a infectar em ambiente desprotegido. Daí que os protocolos de saúde ainda não podem deixar a pauta sanitária. Neste sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao editar a Portaria 9.998/2021 - que dispõe sobre os reflexos do Plano Nacional de Imunização contra a Covid-19 e o acesso aos prédios do Tribunal -, considerou que o interesse público deve prevalecer sobre o interesse particular e que a preocupação maior da Corte é voltada para a preservação da saúde de magistrados, servidores, colaboradores, demais profissionais da área jurídica e do público em geral, notadamente em tempo de grave crise sanitária mundial. Para tanto, serão exigidos de todos os frequentadores maiores de 18 anos, além do uso de máscara de proteção respiratória, o comprovante de vacinação contra a Covid-19, representado pelo certificado de vacina digital que pode ser acessado pelo aplicativo conecte SUS, ou até mesmo pela exibição do comprovante emitido no momento da imunização por instituição governamental nacional ou estrangeira ou institutos de pesquisa clínica. No caso de não ter a pessoa recebido a segunda dose, deverá apresentar o comprovante relativo à primeira dose. As pessoas com contraindicação vacinal, por sua vez, deverão apresentar o relatório médico justificando o óbice à imunização. Segue nos mesmos moldes a resolução 1.370/2021- PGJ, que instituiu a obrigatoriedade de imunização contra a Covid-19 para o ingresso do público em geral nas dependências do Ministério Público do Estado de São Paulo. Assim, de forma oblíqua, por meio de sanções indiretas, a vacinação contra a Covid-19 vem se afirmando como obrigatória e o não vacinado, sem qualquer justificativa plausível, irá acumulando restrições tanto em sua vida pessoal como na social. __________ 1 Sandel, Michael J. O que é fazer a coisa certa. Tradução: Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 325.
domingo, 26 de setembro de 2021

A doação de órgãos e o transplante

A exemplo do Outubro Rosa e Novembro Azul, que chamam a atenção para a conscientização do controle dos cânceres de mama e de próstata, respectivamente, a campanha Setembro Verde, também realizada todos os anos, tem por finalidade despertar a conscientização da população a respeito da importância da doação de órgãos. Tanto é que no dia 27 de setembro é comemorado o Dia Nacional de Doação de Órgãos, data instituída pela lei 11.584/2007. O cidadão, após conhecer os benefícios da doação de sangue e até mesmo da medula óssea, passou a ter uma participação mais consciente e se apresenta como voluntário com a finalidade de poder colaborar com outras vidas humanas, demonstrando, de forma inequívoca, uma solidariedade compartilhada. Mas, para se atingir tal maturidade, foram necessárias muitas informações por meio de vários canais de comunicação, assim como pelo demonstrativo benéfico de tal procedimento. A doação, em sua essência, pode-se dizer, é um ato que transcende a generosidade humana. Descobre-se agora que o corpo humano é um repositório infindável de órgãos, com a possibilidade de doá-los e recebê-los. E, importante, sem conhecer o receptor beneficiado. É um ato de extrema solidariedade, revelador de um sentimento humanitário merecedor de todo respeito e admiração. Quando se fala em doação de órgãos, quer seja durante a vida ou até mesmo após a morte, as pessoas, por desconhecimento, procuram não frequentar o assunto, que é visto como se fosse uma prática indesejada. Mas, quando a doação é feita, principalmente com a utilização de vários órgãos, tecidos e partes do corpo humano - como foi o caso do apresentador Gugu que beneficiou 50 pacientes americanos que ganharam uma nova dimensão de vida - o ato já tem uma conotação de solidariedade e excede os parâmetros normais da aceitação popular. No Brasil, a lei que rege a matéria de transplantes é a de 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, regulamentada pelo decreto 9175/2017.  Na modalidade de doação em vida, em que qualquer pessoa capaz poderá consentir, e na impossibilidade seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo) ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consanguíneos até o quarto grau ou qualquer outra pessoa, mas dependendo nesse caso, de autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. Sempre e sempre a título gratuito, em razão do disposto no artigo 199 § 4.º da Constituição Federal e da lei 9.434/97, em seu art. 1º. A norma legal deixou transparecer que a doação inter vivos é permitida, desde que tenha por finalidade a realização de transplantes ou fins terapêuticos, envolvendo órgãos duplos ou partes renováveis do corpo, compreendendo pessoa capaz ou seu representante legal para a devida autorização e que o beneficiado seja o cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau. Se se tratar de pessoa que foge do trato familiar especificado, há necessidade de obtenção de autorização judicial, vez que o consentimento ofertado pela pessoa capaz ou pelo representante legal não tem nenhuma valia. Mas se a pessoa que for doar for juridicamente incapaz, mesmo após ter sido constatada sua compatibilidade imunológica nos casos de transplante de medula óssea, além de autorização dos pais ou responsáveis legais, deve vir acompanhada de autorização judicial, que se apresenta como um plus garantidor do ato. E, se por ventura, um dos genitores for declarado ausente, o outro solicitará o suprimento judicial da outorga familiar. Na modalidade post mortem, referida lei estabelece que a doação de órgãos só poderá ser realizada com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central. Quando se tratar, no entanto, de relacionamento homossexual, por analogia, o companheiro ou a companheira estará legitimado a autorizar a doação. Assim, se em vida a pessoa pretendeu firmar documento público ou privado antecipando sua vontade em doar seus órgãos após a morte, nenhuma validade terá tal manifestação de vontade, pois a legitimidade para tanto se desloca para os parentes e cônjuge. Tal circunstância, por si só, demonstra severa limitação ao princípio da autonomia da vontade da pessoa, tão arduamente defendido pela Bioética.
domingo, 19 de setembro de 2021

Esterilização voluntária

A lei 9.263/1996, que trata do planejamento familiar, em seu artigo 10, inciso I, quando cuida da esterilização voluntária realizada no âmbito do SUS, em uma das causas permitidas, estabelece "que o procedimento é permitido em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce."   E, mais adiante, no § 5º, do inciso II, estabelece taxativamente: "Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges." A leitura conjugada das exigências acima, até mesmo por quem não tem um trato próximo do Direito, leva à conclusão de que o Estado demonstra, de forma inequívoca, uma inadequada e incompatível ingerência na vida íntima do casal, além de envidar esforços para o aumento da prole. Cabe aqui recordar, em sentido contrário, o exemplo de intervenção estatal habitacional da China. Na década de 1970, foi adotada a política do filho único por casal. Em 2016, aumentou o limite para dois filhos e, em maio de 2021, três filhos. Se, por um lado, desacelerou o crescimento populacional, por outro acabou provocando um desequilíbrio de gênero, vez que no último censo eram 34,9 milhões a mais de homens do que mulheres.1 O tema foi ancorado pela Constituição Federal que deixou explicitado que a dignidade da pessoa humana, apontada como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, aliada à paternidade responsável, possibilitará um planejamento familiar de acordo com a deliberação do casal (art. 226, § 7º). O Código Civil, por sua vez, na mesma esteira constitucional, reitera que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas (art. 1.565, § 2º). E o mesmo estatuto sacramenta que é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família (art. 1.513). A lei 9.263/96, apesar de ter sido editada após a Constituição Federal, não observou as cláusulas legais atinentes à autonomia da vontade do casal, como sendo um espaço integrante da dignidade da pessoa humana. Foi por demais excessiva quando exige o consentimento expresso de ambos os cônjuges para a realização da esterilização voluntária. Invadiu não só a esfera íntima do casal como, principalmente, a determinação a respeito dos seus direitos sexuais e reprodutivos, provocando uma lastimável colidência com a garantia assegurada constitucionalmente. Quando se fala que a fundamentação da esterilização precoce voluntária integra o largo horizonte do princípio da dignidade da pessoa humana nada mais é do que a revelação inconteste de um direito amplo, abrangente, difuso até, e que perpassa as definições costumeiras atribuídas pelos doutrinadores. No instante em que a Constituição oferece sua programação de direitos direcionados ao cidadão, está descrevendo que toda a carga positiva e tuteladora deve ser obedecida pelo Estado e a sua recusa passa a constituir uma ofensa ao próprio direito fundamental. É nesse patamar que se insere a autonomia da vontade do casal para decidir livremente, de acordo com os direitos conferidos pela legislação, a respeito do planejamento familiar. Qualquer inserção do Estado, mesmo que calcada em políticas públicas específicas, que venha a se opor à decisão tomada pelo casal, arranha o núcleo protetivo da dignidade da pessoa humana. É interessante observar que a exigência da autorização de cônjuge foi até além do texto original da lei, que teve como objetivo a intervenção cirúrgica.  Algumas Unidades Básicas de Saúde vêm exigindo a assinatura do companheiro da mulher no termo de consentimento para a inserção do dispositivo intrauterino (DIU), que pode ser retirado a qualquer tempo.2 É um desprestígio à autonomia da mulher que é a única responsável pelo seu próprio corpo. O desnível legislativo, que perdura já por muitos anos, deve ser corrigido e ajustado ao conteúdo constitucional programado. Para tanto já foram intentadas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal contra os dispositivos da lei 9.263/1996, sendo uma pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que leva o número 5911, e a outra pela Associação Nacional de Defensores Públicos, número 5097. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
domingo, 12 de setembro de 2021

A tecnologia e a prática criminosa

Quando surgiu pela primeira vez a proposta de uma revolução digital - ainda mero indicador de uma realidade que continha uma modesta estrutura funcional - não se imaginava que a humanidade fosse abraçar e impulsionar toda a virada histórica projetada. Inevitável qualquer esforço em contrário porque a tecnologia digital expandiu de tal forma que não se pode afirmar ter atingido o ponto de chegada que, pelo visto, cada vez mais ficará distante. Por mais paradoxal que possa parecer, em razão das culturas diferenciadas, o universo todo se conectou às redes, produzindo uma conjugação mais aprimorada e necessária de sistemas e programas voltados para as tarefas e necessidades dos humanos. Assim concebida, a inclusão digital avança rapidamente para atingir o maior número de adeptos levando-se em consideração que a proposta seja a de multiplicar os benefícios pela comunicação mais célere nas relações humanas, rompendo definitivamente as fronteiras físicas. Ocorre que a articulação criminosa, após captar os benefícios do processo dialético da comunicação globalizada - que causou impacto altamente positivo para as pessoas e sociedade - passou a projetar uma adaptação para sair do seu campo estreito de atuação, repetitivo e praticamente defasado em relação à realidade dos novos tempos. Para tanto, sem muita originalidade, pois a proposta agora é aproveitar o resultado altamente satisfatório e adaptá-lo para um viés fraudulento e, em alguns casos, violento, com a finalidade de obter vantagem de qualquer proporção e locupletar-se causando prejuízo alheio. Com a decretação do estado pandêmico e a restrição do contato social, obrigando as pessoas a permanecerem o máximo de tempo possível em casa, abriu-se um campo fértil para os golpistas buscarem nas redes sociais suas vítimas. Assim é que, com talento, engenho e criatividade, conseguem o intento desejado.  Desempenham uma verdadeira mise-en-scène em que se colocam como se estivessem revelando um fato com aparência de verdadeiro, assim assimilado pelo destinatário da mensagem. Como em um passe de mágica, reduzem o poder de compreensão da vítima, magnetizando-a e invadem até a última trincheira de sua resistência, convencendo-a de que a proposta, além de carregar veracidade, trará inestimável ganho. Trata-se de uma encenação teatralizada entre os personagens participantes, em que os agentes demonstram uma incrível facilidade de expressão de fazer inveja ao mais consagrado ator, pois sem qualquer escola, a não ser a da rede social, com a qual já se encontram familiarizados, desempenham com maestria os personagens a que se propuseram. E é interessante observar que as condutas consideradas ilícitas se desenvolvem como se fossem parceiras das lícitas, dificultando, desta forma, as incautas vítimas de perceberem que se trata de um golpe. Assim é que as pessoas mal-intencionadas, e devidamente ajustadas para a obtenção de um benefício ilícito, frequentam as redes sociais com perfil falso e procuram de todas as formas obter informações bancárias e de cartões de crédito ou ainda praticar a clonagem de WhatsApp das vítimas. Outras vezes a vítima é atraída por anúncios convidativos de plataforma conhecida, mas, na realidade, as ofertas são clonadas e a pessoa efetua o pagamento sem jamais receber o produto solicitado. Além desses casos, há, por exemplo, o do Pix, sistema seguro de pagamento instantâneo e também de transferência bancária, visando ampliar a democratização digital. Ocorre que os golpistas, também apreciadores da modalidade, realizam o sequestro relâmpago e praticam não mais o roubo e sim a extorsão, pois mediante grave ameaça ou violência constrangem as vítimas a acessarem seus dados bancários e transferir o valor à conta determinada. O celular, que até então gozava da preferência nos assaltos, passa a ser desprezado em razão da vantagem instantânea obtida, muitas vezes maior do que o valor do aparelho. Tudo com sucesso e sem vestígio. É inegável que, diante do dinamismo da prática criminosa, a legislação penal deve caminhar pari passu com a evolução da delinquência na área digital, elaborando tipos penais específicos ou que as autoridades bancárias, para proteger o cliente, estabeleçam regras restritivas, principalmente durante o período noturno, impedindo o pagamento ou a transferência bancária. Parece até que a tecnologia está a serviço do crime.
domingo, 5 de setembro de 2021

Sexo ignorado no assento de nascimento?

O registro de nascimento, além de ser um documento de individualização da pessoa na comunidade, integra o direito de personalidade para viabilizar a prática de todos os atos compatíveis com o exercício da cidadania. Antes dele, no entanto, o hospital ou a maternidade onde ocorreu o parto irá emitir a Declaração de Nascido Vivo (DNV), documento regulamentado pela lei 12.662/2012, de validade provisória, em que constarão o nome, dia, mês e ano do nascimento da criança, sexo, informações sobre gestação múltipla, quando for o caso, além do nome do nome da mãe, naturalidade, profissão, endereço, idade e o nome do pai. Pelo procedimento convencional o pai ou a mãe, isoladamente ou em conjunto, ou o responsável legal, de posse do DNV irão buscar o cartório de Registro Civil do local do nascimento ou no local da residência da criança, no prazo de 15 dias (lei 6015/73), para o registro do assento de nascimento, que é obrigatório e gratuito. Se, porém, o nascimento ocorreu em casa, sem qualquer assistência hospitalar os genitores ou o responsável legal, poderão ir diretamente ao cartório. O Conselho Nacional de Justiça, no Provimento 122/2021, traz interessante regulamentação com relação ao assento de nascimento no Registro Civil das Pessoas Naturais nos casos em que o campo "sexo" da Declaração de Nascido Vivo tenha sido preenchido como "ignorado".1 Pelo sistema binário prevalente na Constituição Federal - em que predomina o sexo masculino e feminino sem qualquer outro concorrente - os cartórios não tinham autorização para lavrar o documento nele inserindo sexo "ignorado". Com a nova regulamentação, quando se tratar de Anomalia de Diferenciação de Sexo (ADS), em que fica constatado ictu oculi a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de identificação imediata do sexo, o oficial do cartório irá observar se no campo sexo da DNV foi preenchido como "ignorado". Se assim for, nos mesmos moldes, será lavrado o registro. O registrador, no entanto, recomendará ao declarante a escolha de prenome comum aos dois sexos e, se recusada a proposta, permanecerá o prenome indicado pelo declarante. A genitália ambígua não provoca o surgimento de um terceiro sexo - denominação que vai até mesmo criar mais confusão do que encontrar uma solução adequada - e sim é resultado de uma malformação, anteriormente conhecida como intersexo, para a identificação da genitália da criança. É o que ocorre no caso dos pacientes hermafroditas, impedidos de conhecer imediatamente o sexo, circunstância que trará sérias complicações familiares e sociais. Tanto é que os pais, erroneamente, podem escolher o sexo para o filho ao nascer, provocando, com o passar do tempo, discordância entre a identidade sexual e a identidade de gênero. A Corregedoria-Geral da Justiça do Paraná (CGJ-PR) já se antecipou a este respeito e expediu o Provimento nº 292/2019, autorizando o oficial a lavrar o registro de criança que tenha nascido com o sexo "ignorado", assim comprovado na DNV, em documento atestado pelo médico responsável pelo parto. O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, também se manifestou quando da edição da Resolução CFM nº 1664/2003, que estabeleceu as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. Na exposição de motivos faz ver que: "O nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social. Biológica, porque muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco de vida. Social, porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do prognóstico, também do paciente, gera graves transtornos." O Provimento 122/2021, coerente com a necessidade social, de forma oportuna, estabelece que a designação do sexo poderá ser feita a qualquer tempo por um termo de opção, independentemente de autorização judicial ou de comprovação de realização de cirurgia de designação sexual ou de tratamento hormonal, ou de apresentação de laudo médico ou psicológico. Se a pessoa optante estiver sob o poder familiar, será representada ou assistida pela mãe ou pelo pai, mas terá que dar seu consentimento se for maior de 12 anos de idade. É idêntico ao procedimento estabelecido para a alteração do prenome e do gênero no assento de nascimento e casamento de pessoa transgênera, conforme se observa do § 1º do artigo 4º do Provimento nº 73/2018, do mesmo órgão. A providência ora determinada pelo Conselho Nacional de Justiça irá proporcionar às crianças portadoras de anomalias de diferenciação sexual o exercício pleno da cidadania em busca da construção de sua autoimagem, com acesso aos programas sociais relacionados às políticas públicas compatíveis e também aos serviços públicos e privados de saúde. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 29 de agosto de 2021

Crime de homicídio sem cadáver

A imprensa noticiou que uma mãe, contando com a colaboração da companheira, matou o filho de 7 anos de idade e jogou seu corpo nas águas do Rio Tramandaí, no município de Imbé, no litoral do Rio Grande do Sul. O corpo do menino, até o presente, apesar de todas as buscas realizadas pelos integrantes do Corpo de Bombeiros e outros colaboradores, não foi encontrado.1 Não se pretende aprofundar nos motivos determinantes do fatídico crime de homicídio duplamente qualificado (motivo fútil e impossibilidade de defesa da vítima), além dos tipos penais referentes à tortura e à ocultação de cadáver, e sim, sob o prisma processual, analisar detalhadamente a ocorrência de um crime sem a comprovação da sua materialidade. O jejuno em Direito vai questionar a respeito da possibilidade de se intentar uma ação penal contra as prováveis responsáveis pelo crime sem o encontro do cadáver e poderá mesmo levantar a possibilidade da ocorrência de um crime perfeito.  Isto porque a legislação penal brasileira trabalha com o binômio autoria e materialidade para se dar início à persecução penal. Exige-se a prova da autoria, consistente na autoria mediata, intelectual, de execução, coautoria e participação e a consequente materialidade do delito, que vem a ser o representativo probatório do vestígio deixado pelo crime. Assim, elucidada a autoria, mas sem o comprovante da materialidade, de regra, seria impossível a propositura da ação penal. Basta ver que o Código de Processo Penal determina que, em infração que deixa vestígio, como é o caso do homicídio (delicta factis permanentis), faz-se o exame de corpo de delito chamado direto, no próprio cadáver, pelo perito. Mas, se ausentes os vestígios sensíveis do crime, a lei processual penal admite a realização do exame indireto, utilizando-se preferencialmente de testemunhas ou documentos. O juiz, neste caso, indagará as testemunhas a respeito do crime e de suas circunstâncias para se chegar à materialidade. O que não se permite é a confissão do acusado suprir o exame de corpo de delito direto ou indireto quando a infração deixar vestígios. Preserva-se, acima de tudo, o princípio constitucional do réu não produzir provas contra si mesmo, levando-se em consideração que é obrigação do Estado coletar todas as provas necessárias para o processo, em razão do ônus probatório que a ele incumbe. No caso específico, pela apuração policial, além das duas envolvidas, nenhuma outra pessoa presenciou a prática delituosa. Ocorre, porém, que os indícios que gravitam em torno do fato, representados pelos vídeos e conversas encontrados pela autoridade policial nos celulares de ambas, dão conta de que a criança era vítima constante de tortura física e psicológica, além de trazerem a informação no sentido de que ambas pretendiam constituir uma nova família e a criança não fazia parte de tal projeto. Além do que câmeras de segurança flagraram a mãe, acompanhada da companheira, carregando uma mala pelas ruas da cidade, em cujo interior se encontrava o corpo da criança, em direção ao rio onde foi lançado, roborando, desta forma, a confissão ofertada pela mãe. Nos casos de homicídio sem o encontro do cadáver e sem testemunha, a prova pericial ocupa lugar de destaque. A tecnologia científica da prova brasileira, de padrão semelhante à desenvolvida pelos países mais avançados, invade o trabalho pericial e oferece laudos minuciosos, da mais alta credibilidade, com um embasamento científico suficiente para comprovar a contento a materialidade de um crime. Juntando-se todas as provas consideradas pertinentes, os laudos periciais formarão o conjunto de convicção mais apropriado e viável para o deslinde do fato considerado ilícito. Apesar de o Código de Processo Penal demonstrar certa preferência pela prova testemunhal, admite também a pericial que, hodiernamente, vem assumindo uma posição de confiabilidade e segurança, em razão da aplicação dos mais recentes métodos da inteligência policial aliados à tecnologia altamente científica da Polícia Técnico-Científica. O perito invade o universo microscópico com equipamentos eletrônicos de última geração e retorna com o relato seguro a respeito do fato perquirido. Basta ver o resultado do julgamento dos Nardoni, que possibilitou a condenação sem o suporte da prova testemunhal. O Ministério Público já ofereceu a denúncia contra as duas envolvidas, que se encontram presas em razão da prisão preventiva, com relação à mãe, e temporária, com relação à companheira. Vários outros objetos foram apreendidos na residência, dentre eles a mala utilizada, e serão submetidos à perícia com chances de oferecerem um quadro probatório ainda mais seguro e confiável a respeito da materialidade. Resta observar que, por guardar certa semelhança com o presente caso, um ex-policial foi julgado no dia 26/8/2021, pelo Tribunal do Júri de Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte, e condenado a cumprir a pena de 22 anos de prisão por participar do homicídio de Eliza Samudo, ocorrido há 11 anos, cujo cadáver não foi encontrado.2 ___________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
domingo, 22 de agosto de 2021

Medidas sanitárias excepcionais

O presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª região, após apreciar a decisão proferida pela Justiça de 1ª instância em pedido de tutela de urgência proferida pela Justiça Federal do Ceará, suspendeu os efeitos da liminar concedida.  A decisão de primeiro grau exigia dos passageiros de voos com destino ao Ceará a apresentação do comprovante de vacinação completa, com uma ou duas doses, dependendo do imunizante, ou do resultado negativo do exame antígeno ou RT-PCR, realizado até 72 horas antes do embarque. Caminhou a Justiça de segundo grau por uma trilha segura quando suspendeu os efeitos da decisão proferida e que trazia restrições de acesso ao Estado do Ceará, além do que, mais importante ainda, a sentença não apresentou suporte probatório suficiente para demonstrar a necessidade e a urgência da drástica medida. A Organização Mundial da Saúde, após constatar no mês de janeiro de 2020 que o surto da doença provocada pelo coronavírus (Covid-19) atingiu cinco continentes, não hesitou em declarar o estado de pandemia. A partir daí cada Estado passou a legislar a respeito das medidas necessárias e adequadas para o combate ao vírus, observando ao menos as regras básicas e fundamentais recomendadas pela organização. O Brasil, em fevereiro de 2020, após proclamar Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), sancionou a lei 13.979/2020, de caráter excepcional, temporária, caracterizada por circunstâncias que determinaram sua edição, que prevê medidas de enfrentamento da emergência da saúde pública, com a finalidade de evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus. Dentre as medidas previstas no artigo 3º para o enfrentamento, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos. As medidas previstas na referida lei e que objetivam a proteção da coletividade são de competência do Poder Executivo, inclusive aquelas que compreendem a restrição excepcional e temporária de entrada e saída do país, desde que haja a recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), por rodovias, portos e aeroportos. Para tanto, já que existe a lei considerando situação de emergência e com previsão de enfrentamento para a proteção da coletividade, nada mais justo que ocorra a restrição a alguns direitos individuais em favor do interesse coletivo. Ao mesmo tempo em que se ergue a proteção para a pessoa contaminada, a própria comunidade é alcançada, pois trata-se de uma de medida preventiva de saúde. Ora, no caso relatado, percebe-se claramente que o Estado para o qual foi voltada a decisão encontra-se no mesmo patamar de igualdade sanitária dos demais. O Judiciário pode sim intervir excepcionalmente na esfera de competência do Executivo, desde que haja o demonstrativo inequívoco de omissão ou erro manifesto das autoridades administrativas competentes com a potencialidade de causar danos à coletividade local. Não é recomendado e nem goza de competência de regulação o Estado, isoladamente - sem qualquer motivo determinante - criar protocolo próprio sanitário com a proibição de movimentação da população em seu próprio território ou daqueles que pretendem frequentá-lo e, para tanto, utilizam o transporte aéreo. É certo que a comunidade científica vem se manifestando reiteradamente que a vacina se apresenta como o único recurso seguro e eficaz para a prevenção da Covid-19. Tanto é que pela resposta mundial, quanto maior o número de imunizações, menor será o número de infectados e óbitos. Basta ver que alguns países já criaram as cepas dos vacinados e não vacinados, esses com restrições de frequentar espaços e locais públicos. A prefeitura municipal de São Paulo, no âmbito de sua competência, publicou o decreto 6.044/2021, determinando a obrigatoriedade de vacinação contra a Covid-19 para todos os funcionários de autarquias, fundações e da administração indireta. Em caso de recusa, sem justa causa médica, caracterizará falta disciplinar do servidor ou do empregado público. Nos mesmos moldes o decreto 49.286/21, publicado pela prefeitura municipal do Rio de Janeiro. E, ao que tudo indica, nova lei, agora nacional, deverá ser editada para regulamentar a obrigatoriedade ou não da vacina fora do estado pandêmico. "O balanço entre o bem-estar individual e bem-estar do grupo, afirma categoricamente Stepke, deve ser considerado ao se desenvolver ou modificar qualquer sistema de cuidado de saúde".1 __________ 1 Stepke, Fernando Lolas, José Geraldo de Freitas Drumond. Fundamentos de uma antropologia bioética: o apropriado, o bom e o justo. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2007, p. 73.
domingo, 15 de agosto de 2021

Violência psicológica

Uma lei penal não deve viger para atender somente às necessidades sociais de um determinado período e sim, com o passar do tempo, ajustar-se às novas manifestações provenientes do grupo, sem modificar sua essência. Consegue impor, desta forma, sua linha protetiva e delinear seu núcleo duro, porém abre espaços para que novas condutas sejam incluídas, justamente para atingir a mens legis reclamada pelo grupo social. A lei 11.343/2006, conhecida como Maria da Penha, carrega tamanha flexibilização. Seu nascedouro tem como marco a determinação contida no § 8º do artigo 226 da Constituição Federal, criando toda uma estrutura para o combate eficiente à violência familiar, com sanções mais rigorosas e com o mínimo de benefícios processuais, além de estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres vítimas. Tamanha é a repercussão da lei que gerou o tipo penal específico do feminicídio, que inseriu em seu corpo a motivação da violência doméstica e familiar, permitindo o acréscimo do tipo previsto no art. 121, § 2º-A, do Código Penal. Assim, enquanto o termômetro da violência doméstica registrar um alto índice de ocorrências consideradas graves, cabe ao legislador inserir novas condutas que devam ser recriminadas pelo interesse coletivo. Recentemente foi promulgada a lei 14.118/2021 que tipificou o crime de violência psicológica contra a mulher, incluindo-o no Código Penal em seu artigo 147-B. Tal medida amplia ainda mais o esforço do legislativo em proteger a mulher contra a violência doméstica na sociedade, adotando o conceito outrora contido na já conhecida Lei Maria da Penha, em seu artigo 7º, inciso II. Mas, afinal, o que compreende e qual a extensão da "violência psicológica?" A violência psicológica pode ser considerada como todo e qualquer ato do homem que cause medo através da intimidação, ameaças físicas a si mesmo, à mulher ou a seus filhos, quebra de objetos da casa, forçar um isolamento indesejado da família, amigos e/ou colegas de trabalho ou qualquer outra forma de abuso. Maria Cecília de Souza Minayo, socióloga e antropóloga, ao falar da condição juvenil no século XXI, afirma que a violência psicológica "é uma forma sutil de abuso"1. Ainda segundo a autora acima, a violência psicológica se dá quando o parceiro a ignora ou a critica por meio de ironias e piadas; ofende ou menospreza seu corpo; ofende a moral da família; usa linguagem ofensiva; entre outras práticas abusivas2. Define, enfim, abuso psicológico como "agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, restringir a liberdade ou ainda, isolá-la do convívio social"3. Ainda transitando pelo campo conceitual teórico, um artigo científico de autores cubanos4 acerca do tema, em 2009, já identificava a violência psicológica na mulher como uma forma invisível de agressão. Como já é consenso entre os pesquisadores, a violência psicológica sempre existiu, mas antes vinha camuflada na violência física e/ou sexual, dificultando, assim, a sua identificação e sendo, muitas vezes, desprezada como situação abusiva capaz de afetar o psicológico da mulher. Víctor Perez e Yadira Hernandez definem o abuso psicológico como sendo qualquer ação ou omissão destinadas a "degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões da mulher por meio da intimidação, manipulação, ameaças diretas ou indiretas, humilhação, isolamento ou qualquer outra conduta que implique em prejuízo à sua saúde psicológica, autodeterminação ou desenvolvimento pessoal"5, em tradução livre do artigo original. A referida prática afeta todo o âmago da relação familiar e o desenvolvimento saudável de eventuais filhos, que também podem vir a apresentar reflexos do comportamento enviesado, correndo o risco de reproduzi-los no futuro ou repeli-los com veemência - só que de uma maneira não saudável. De uma forma ou de outra, é necessário que a violência psicológica seja evidenciada e particularizada, sendo tratada individualmente como violência real que é. Trata-se a violência psicológica, pois, de um pilar da violência doméstica - assim como a física e a sexual - e não de um subtema desta. Agora, ao analisar o tipo penal criado recentemente, percebe-se pela redação do seu caput, clara referência aos conceitos citados acima, mostrando que segue uma linha de pensamento já adotada pela comunidade científica há um tempo, o que é um bom sinal. No mais, se for resgatado o projeto de lei originário6, verificar-se-á que se propunha a pena de dois a quatro anos de reclusão, além de multa, para o condenado, ao passo que na sua redação final reduziu-se para reclusão de seis meses a 2 anos, "se a conduta não constitui crime mais grave". Nota-se que o legislador preservou os tipos penais mais graves, sem qualquer prejuízo a eles, apenas se preocupando em tipificar a violência psicológica contra a mulher que, apesar de sua redação subjetiva, se cuidou de ampliar a proteção à mulher contra a violência doméstica, buscando reprimir e prevenir comportamentos abusivos e danosos à sua saúde mental. Porém, por mais tipos penais que existam, nunca serão tão efetivos quanto uma boa política pública pautada na educação e informação. __________ 1 MINAYO, MCS., ASSIS, SG., e NJAINE, K., Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do 'ficar' entre jovens brasileiros [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011, p. 39. 2 Minayo, M. C. d. S. (2006). Violência e saúde. Brasil: Editora da Fundação Oswaldo Cruz. p. 97. 3 Idem, p. 82. 4 PEREZ MARTINEZ, Víctor T; HERNANDEZ MARIN, Yadira. The gender psychological violence is a hidden way of aggression. Rev Cubana Med Gen Integr, Ciudad de La Habana, v. 25, n.2, Sept.  2009. Disponível aqui. Acessado em 04 Aug. 2021. 5 Idem, p.4. 6 Conferir aqui.
domingo, 8 de agosto de 2021

Gratidão ao pai

É certo que cada pai é diferente do outro, como cada filho também é. A diferença, necessária para a firmação dos opostos, é considerada a viga mestra de sustentação da própria humanidade, embora o homem eleja a igualdade como garantia do direito individual. Mas, no dia dos pais, porém, tudo é diferente. O filho se aproxima mais do pai, sem qualquer laço de subordinação, mas com todos do afeto, e se dispõe a falar ou escrever algo a ele. Assuntos relacionados com coisas belas e que possam traduzir a gratidão da vida e compartilhamento, principalmente durante a infância e adolescência, períodos de construção da identidade e ampliação do conceito de pertencimento. É neste momento que, cada um encruado dentro de seu labirinto, começa a espremer o idioma ou até mesmo a imaginação para buscar as palavras que ficam ziguezagueando à sua frente, sem rumo, mas com certeza que tenham condições de traduzir uma linguagem de agradecimento. Mas nem sempre afloram com a espontaneidade desejada. Muitas vezes o silêncio, ou até mesmo o olhar fala mais alto e consegue expressar os melhores bocados de uma infância já distante, sem se preocupar com expressões complicadas. É certo que o dia dos pais não é propriamente uma data para o filho arranhar o enredo da vida e nem mesmo praticar a nostalgia de um passado distante. É dia de comemoração, com o pai presente ou não. É o dia em que o filho vai buscar no fundo aquela frase ou aquele pensamento que deixou suspenso durante muito tempo aguardando o momento encantatório de falar com eloquência e entusiasmo. E é lógico que o filho vai querer falar muita coisa a respeito do pai e é bem capaz que com a chegada das memórias, que são muitas e incontáveis, a um só fôlego, irá atropelar as letras do teclado ou até mesmo sua fala, tamanha sua pressa em expressar seu sentimento, num verdadeiro ordenamento desordenado, em uma silenciosa leitura compartilhada do passado. Nada de temas espinhosos, nada de pensamentos nostálgicos e sim fincar nas evidências toldadas pelo tempo e que se tornaram o canal para resgatar a felicidade. O filho pode até ter a mais singela formação, desde aquela que provoca os calos duramente marcados em seu corpo, como a melhor experiência de vida, a sabedoria como estandarte, a poesia como tesouro para expressar o afeto que guarda consigo. Não é somente um afeto ligado à derivação genética. Vai muito além. É aquele que representa a pessoa amiga, o melhor parceiro, aquele que divide corpo e alma por inteiro, aquele que agarra pelas mãos com toda segurança para vencer o pantanoso e movediço solo. É a hora do filho não pensar mais com os olhos e sim com o espírito amadurecido pela vida, erguer a cortina e visualizar a figura paterna na tentativa de explicar as coisas do seu jeito, demonstrando com sua sabedoria que sabe onde fincar as estacas para construir um futuro homem.  O filho irá se lembrar do olhar meio esgazeado do pai, da voz mansa ou altiva, dos gestos nem sempre bem distribuídos, dos passos quase sempre apressados, do silêncio que substituía as respostas, dos sábios conselhos que na época não ligava tanto, mas hoje sabe que para subir a montanha a estrada é uma só e o atalho, que é mais convidativo, pode levar ao abismo. O filho executa, desta forma, o papel que lhe cabe no palco da vida: um ato de gratidão pelos sentimentos, habilidades e competências herdadas do pai. É realmente um amor humano sem medidas, com vocação de eternidade.