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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
Fato interessante, com grande repercussão bioética e, obliquamente, no biodireito, ocorreu recentemente em Miami, Estados Unidos, quando um paciente com setenta anos de idade, sem documentos ou familiares, diabético, com histórico de doenças no coração e pulmão, foi encaminhado e atendido em hospital, oportunidade em que os médicos responsáveis pela primeira avaliação, constataram uma tatuagem cravada no seu peito, que dizia: "Do not resuscitate", com o not sublinhado - conhecida pela sigla DNR. No vernáculo pátrio: Não ressuscite ou "ordem para não reanimar". Tal advertência causou grande impacto aos profissionais estabelecendo, de plano, invencível conflito médico, obrigando-os a buscar auxílio na Comissão de Bioética da instituição que, após as discussões pertinentes, entendeu que o pleito do paciente deveria ser atendido. Assim foi feito. Será que a tatuagem, com seus dizeres, por si só, é suficiente para demonstrar a intenção do paciente? É fonte reveladora e autorizadora para que os médicos possam interpretá-la como a vontade indiscutível do paciente, no âmbito de sua autonomia? Assim, nesta linha de raciocínio, no caso do paciente tatuado, o comitê de bioética do hospital entendeu que a manifestação de vontade estava mais do que evidenciada e não justificava, em paciente sem chance de cura, a prática de qualquer conduta que resultaria em fúteis tentativas e infrutíferas intervenções, outorgando, desta forma, total crédito à autonomia da vontade do paciente. Por tal princípio deve-se entender que a decisão por ele tomada, com plena capacidade de discernimento, em determinado momento ou que tenha deixado documento a respeito de um procedimento médico, no caso lavrado em seu próprio peito, deve ser respeitada, por ser a legítima expressão de sua vontade. Daí que a ordem de não reanimação representa a determinação de um comportamento negativo do médico, impedindo-o de utilizar as técnicas de suporte vital. No Brasil, prestigiando a autonomia da vontade do paciente e sua determinação, a resolução 1995/12 do Conselho Federal de Medicina estabeleceu uma disciplina de final de vida, compatível com a ética médica, sem afrontar qualquer texto legal. Assim, proclama o artigo 1º: Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Na realidade, fazendo-se uma interpretação mais restritiva e rigorosa, a tatuagem, por si só, não carrega amparo legal que, no caso específico, deveria contar com a assinatura do paciente em documento próprio ou em outro lavrado anteriormente, com tal finalidade. Mas lançando mão de uma interpretação mais liberal, consentânea com o caso, também não pode ser descartada a vontade declinada pelo paciente em tatuagem moldada em seu corpo, justamente no local onde seria feita a reanimação. Num futuro, não muito distante, o biochip, implante corporal que fará o armazenamento de informações médicas, será o instrumento apropriado para a leitura da real vontade do paciente. Talvez caia a tatuagem. Biochip é mais chique.
domingo, 27 de abril de 2025

O legado ambiental do Papa Francisco

O Papa Francisco, reconhecido pelo seu espírito despojado, incorporando a humildade franciscana em seus atos, preocupou-se não só com o avanço da biotecnologia, como, também, com o ser humano, visto tanto na sua individualidade, como na sua contextualização coletiva. Com tal iniciativa demonstrou, ao longo de seu pontificado, um interesse desmedido em abrir novos canais para que a Igreja pudesse dialogar com as mais recentes tecnologias que vão, a passos rápidos, invadindo e se assenhorando do universo, influenciando diretamente a vida do homem. Não só o aparato tecnológico, como, também, muitos outros temas relevantes afastados até então da preferência cristã, como, por exemplo, a aproximação e o acolhimento dos homossexuais, refletido no documento Instrumentum Laboris que, pela primeira vez, usou a sigla LGBT, além do interesse em abrigar as famílias irregulares, principalmente as privações estabelecidas aos divorciados. Dentre inúmeras ações merece especial destaque a iniciativa papal de proclamar uma tutela ordenada ao meio ambiente. A transformação provocada na humanidade abriu espaço para que a Igreja se ajustasse diretamente às questões que gravitam com mais intensidade, exigindo uma postura mais condizente com a realidade humana. Tanto é que teve aceitação global a Carta Encíclica Laudato Si, de iniciativa do Papa Francisco, cuja mensagem é a união de toda família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral. O Bispo de Roma assim se manifestou na oportunidade: "Lanço um convite urgente para renovar o diálogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental que vivemos e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós".1 Pode-se até dizer que a salvadora expressão "desenvolvimento sustentável", entendida hoje na sua interpretação mais extensiva, cunhada com a intenção de balizar as intervenções do homem no meio ambiente, provocou uma nova responsabilização social e desencadeou o interesse para que várias comunidades mundiais assinassem compromissos e convenções para estancar ou até mesmo tutelar a vida e a saúde das pessoas, além de evitar danos irreversíveis ao próprio ambiente, provocados pela prática indevida das atividades econômicas. Todos os povos, notadamente os chefes de Estado, já se certificaram que é impossível um crescimento ilimitado num mundo dotado de recursos finitos e esgotáveis. A natureza não possui a capacidade ilimitada de prover a economia e daí a necessidade do acesso ecologicamente equilibrado e da exploração racional das riquezas naturais. O brado de alerta anunciado no documento papal fez com que novos olhares fossem direcionados para um tema de tamanha importância - a humanidade, decisivamente, não pode continuar sugando o capital natural do planeta além da sua capacidade de renovação e de regeneração dos estoques de bens - e que até hoje garantem a sobrevivência de todos os seres na Terra. Problemas comuns a todos os povos demandam soluções concretas globais.  As nações, nas suas individualizadas posturas, pretendem se adequar e ajustar ambientalmente as suas políticas públicas às práticas cotidianas de proteção e conservação do patrimônio ecológico mundial. Os governantes sabem que não é mais possível qualquer postergação. A natureza já está respondendo e cobrando, indistintamente, preço elevado para tamanho descaso. Aquilo que deveria ser uma casa comum, representando o condomínio mundial ou patrimônio comum, a res communis omnium, passa a ser um objeto de fruição imediata, tratando a natureza como se máquina fosse podendo montá-la e desmontá-la, de acordo com as necessidades e conveniências do modelo econômico. Tamanho continua sendo o reflexo da Encíclica do Papa Francisco que a Campanha da Fraternidade deste ano tem como tema principal a Fraternidade e a Ecologia Integral, cuja proposta foi abraçada pela Igreja Peregrina, assim chamada pelo Concílio Vaticano II. __________ 1 Papa Francisco. Laudato Si'. Paulus Editora, Edições Loyola Jesuítas, 2015, p. 16.
domingo, 20 de abril de 2025

Abraço de Páscoa

Em algumas datas durante o ano, geralmente as motivadas por feriados religiosos, as pessoas param a desenfreada correria, fazem um pit stop quase que obrigatório e deixam transparecer os sentimentos que invadem seu interior, direcionados para a liturgia da comemoração. A Páscoa é uma delas. Com o significado hebraico de "passagem" na história, compreendeu a libertação do povo israelita da escravidão do Egito. No ritual cristão, é a passagem da morte para a vida, retratada na ressureição de Cristo. E o povo brasileiro, com a sensibilidade que lhe é peculiar, tem por lema cumprimentar os parentes e amigos pensando no louvável progresso da humanidade. Quanto maior for a carga positiva dos votos, mais fecunda será a vida. É o efeito bumerangue em que se lançam os melhores cumprimentos que irão alcançar as pessoas destinatárias e, com sobras, atinge também o arremessador. Não adianta quixotear contra o tempo. "Nós somos os tempos, bradava Santo Agostinho, quais formos nós tais serão os tempos. Vivamos bem e os tempos serão bons."" Aquilo que foi alcançado nada mais é do que o resultado da dedicação de cada um, devendo ser preservado no interior de uma concha protetora e mantido como um troféu, representando a conquista de um elevado projeto de vida. Daí é que nasce o criador, o idealizador, o vitorioso. Aquele que não entope de promessas os ouvidos carentes, mas preenche e sacia o vazio do coração e do corpo. O pouco que for extraído será significativo para cada um e para todos que o cercam, fortalecendo o espírito corporativo e edificando o altruísmo coletivo. Se o homem tiver a consciência de sua finitude será um construtor da obra duradoura que poderá legar ao próximo, ressuscitando as potencialidades do espírito e não vivendo como pequenos personagens no país imaginário de Lilipute, do romance Viagens de Gulliver. Quando se diz Feliz Páscoa não representa um toque dado com a varinha mágica para canalizar a atingir um fim colimado. É, antes de tudo, um pacto de comprometimento social com apelo de construir a passagem humana pelas melhores veredas, buscando sempre a sintonia do homem com a humanidade e o encaminhamento para a perfeição É uma verdadeira ação fertilizante que corrige a rota existencial, fazendo com que nasça no indivíduo a necessária disposição de renovar-se e reeducar o olhar para apreciar as belas coisas que se apresentam no dia a dia, com estímulos necessários para avançar nesta aventura maravilhosa chamada vida. E, acima de tudo, imbuído do melhor espírito cristão. Que a Páscoa, nos moldes da liturgia cristã, no seu exato sentido de renascimento, possa inundar a humanidade com suas bênçãos, indicar e abrir os caminhos mais salutares e remover todos os obstáculos para que cada pessoa possa sentir e ver o mundo pelos olhos do coração. Et resurrexit.
É muito difícil e até mesmo, se assim prosperar a pretensão, uma ousadia tecer comentários jurídicos a respeito de um fato perquirido por um processo criminal em que as informações que chegam ao público foram registradas unicamente pela imprensa. Não que não sejam idôneas, mas falta o olho clínico profissional para captar as circunstâncias determinantes de uma decisão. O jogador brasileiro Daniel Alves foi condenado - em primeira instância pela Justiça espanhola pela prática do crime de estupro - a cumprir uma pena de quatro anos e meio de prisão, além de outras obrigações impostas na sentença. Recorreu e logrou provimento em seu apelo dirigido ao tribunal espanhol que entendeu que a sentença, que teve como suporte a palavra da vítima, trazia lacunas, imprecisões, inconsistências e contradições sobre os fatos, uma vez que, pela justiça local, cabe à ofendida o ônus da prova. A liberdade sexual, após o rompimento de muitos entraves morais e legais, é hoje considerada um direito inalienável à pessoa, integrando o casulo protetivo da dignidade humana, consagrado constitucionalmente. Assim, apresenta-se como uma conquista do homem e da mulher para escolherem o parceiro que for do seu afeto e conveniência. Neste terreno prevalece a reciprocidade. Se, porventura, ocorrer a incidência de grave ameaça ou violência para o ato sexual, incompatíveis com o propósito, rompe a linha de confiança e torna-se insuportável qualquer convivência. É o verdadeiro estupro. O crime de estupro em sua origem, acompanhando sua etimologia (stuprum), carrega duas vertentes em sua definição. A primeira relacionada com a desonra, a vergonha de uma pessoa e a segunda atrelada à agressão sexual para atingir o coito forçado. Esse último conceito prevaleceu e ficou sedimentado para as pessoas comuns que no estupro obrigatoriamente deveria ocorrer a conjunção carnal entre homem e mulher, mediante violência. Porém, nem sempre a vontade popular coincide com a do legislador. Tanto é que tal conceito não é compartilhado por ele que, deliberadamente, inseriu no tipo penal também a prática de outro ato libidinoso, diverso da conjunção carnal. A palavra da vítima ganha relevo na Justiça brasileira e é de vital importância para esclarecer o crime de estupro que, cometido sem a presença de testemunhas (solus cum sola in solitudinem), busca na versão da ofendida o único caminho informativo e, como tal, núcleo de todo trabalho policial e judicial. Paralelamente, outros indícios, que são os fatos que circundam a conduta principal, serão coletados para formarem um conteúdo probatório que seja coerente e guarde veracidade com a versão apresentada. Conta, também, na montagem do quebra-cabeças investigativo, além da prova pericial, com os laudos periciais que formarão um conjunto de convicção mais apropriado e viável para o deslinde do crime. São os olhos ocultos, ausentes do local do crime, que a tudo veem, são os ouvidos que captam as vozes dos vestígios e escrevem o que eles revelam. Tanto é que a vítima de estupro, sentindo-se abusada sexualmente, comparece à delegacia de polícia e apresenta sua versão a respeito dos fatos, escancarando sua intimidade sexual, oportunidade em que será submetida a exames de corpo de delito. Em juízo ficará novamente exposta e, inevitavelmente, irá reiterar sua versão inicial. Mas não se pode olvidar que as provas no processo penal pátrio têm credibilidade relativa. O processo penal busca uma harmoniosa integração entre todas elas para encontrar a verdade real. Mesmo até sem o laudo pericial em caso de estupro, a palavra da vítima, se coerente e endossada por outras provas, tem valor por si só. Neste sentido a decisão do Superior Tribunal de Justiça: Dando relevância à palavra da vítima, o Tribunal da Cidadania assim se pronunciou: "Em delitos contra a dignidade sexual, normalmente praticados na clandestinidade, a palavra da vítima, reforçada pelos demais elementos de prova - no caso, a prova testemunhal -, assume especial relevância. (...)".
A atuação da Vigilância em saúde corresponde, entre outros aspectos, na sua maior medida, à análise permanente da saúde populacional, assim como ao desenvolvimento contínuo de ações destinadas ao seu controle, incluindo tanto a abordagem individual como coletiva dos problemas de saúde.1 Nesse sentido, recentemente, diante da análise do quadro epidemiológico no âmbito do Estado de São Paulo, no que concerne à ocorrência dos casos de arboviroses transmitidas pelo mosquito "Aedes aegypti", tais como a Chikungunya e a Zika, em especial a Dengue, foi publicado o decreto 69.359, de 19 de fevereiro de 2025. O referido diploma legal teve como objetivo declarar a "situação de emergência em saúde pública no Estado de São Paulo, em razão de epidemia de Dengue". A medida permitiu à Administração a adoção de ações estratégicas.  De início, adentrando na sua análise jurídica, cabe esclarecer que nos termos do inc. II do art. 47, da Constituição do Estado, compete, privativamente ao Governador. exercer com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual. Ademais, referido dispositivo guarda perfeita simetria com o inc. II, art. 84, da Constituição Federal. Corroborando tais premissas, o decreto é um ato administrativo que perfaz a competência privativa pelo Chefe do Executivo, segundo a letra "a", inc. I, art. 12 da lei 10.177, de 30 de dezembro de 1998. Nesta perspectiva, não há discussão de que o Decreto foi a correta e mais adequada medida acautelatória do Governador do Estado para tratar o tema. Trata-se de uma normatização excepcional, caracterizada pelas circunstâncias específicas que determinaram sua edição e que prevê medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública, com a finalidade de evitar a contaminação ou a propagação da dengue. Prevalece aqui a regra de que a lei temporária tem por finalidade acudir uma determinada situação de perigo à saúde pública e terá sua vigência durante o tempo em que for necessária (cessante ratione legis, cessat ipsa lege). Daí, é de se constatar que, cessando a razão de ser da lei excepcional, prevalece, para todos os efeitos, a regra da lei geral. O ordenamento legal, desta forma, como um avatar necessário e, somente ele, estribado na justiça geral em favor da necessidade humana, faz evidenciar não só a defesa da saúde da comunidade, como também os interesses econômicos, sociais e outros necessários para o compartilhamento harmônico das atividades humanas. Ademais, coube à Secretaria da Saúde, segundo o art. 4º do Decreto n° 69.359, de 19 de fevereiro de 2025, por meio do Centro de Operações de Emergências (COE), instituído pelo decreto 69.329, de 23 de janeiro de 2025, a competência para elaborar diretrizes gerais para a execução das medidas de enfrentamento da situação de emergência em saúde pública. A matéria se insere perfeitamente no campo funcional da referida Secretaria, pois se trata, de modo geral, de ação voltada ao combate e controle de epidemia de dengue, não se contrapondo à sua organização pelo Decreto 26.774, de 18 de fevereiro de 1987 (e alterações posteriores). O COE teve a representação formalizada pela resolução SS 29 de 20 de fevereiro de 2025, compondo-se por integrantes da:  Secretaria da Saúde; Casa Civil; Casa Militar; Secretaria de Comunicação; Secretaria da Segurança Pública; Secretaria da Educação; Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística e Secretaria de Desenvolvimento Social. Consolida-se como um órgão colegiado, de natureza consultiva, com a finalidade de assessorar a Secretaria da Saúde, mantendo-se vinculado à referida Pasta (art. 1, decreto 69.329, de 23 de janeiro de 2025). Na razoabilidade das medidas reside não só a prevenção como, também, buscar a eficiência dos cuidados para as pessoas infectadas, já que a epidemia se propaga de forma difusa e rápida, atingindo nível de atenção extrema. Não se olvidando que o combate às arboviroses não é dever unicamente da saúde e sim da vigilância de todos. No âmbito federal, ademais, há o estabelecimento de critérios para a declaração de situação de emergência ou estado de calamidade pública pelos entes federativos que, segundo a portaria MDR 260, de 2 de fevereiro de 2022, alterada pela portaria MDR 3.646, de 20 de dezembro de 2022, conforme o seu art. 4º, será realizada pelo Chefe do Poder Executivo Municipal, Estadual ou do Distrito Federal. Pois bem, declarada a emergência, foram autorizadas as providências de que trata o inc. I, art. 2º do decreto 69.359, de 19 de fevereiro de 2025, referentes às aquisições e contratações, segundo os termos do art. 75, inc. VIII e § 6°, da lei Federal 14.133, de 1° de abril de 2021, quais sejam: "Art. 75. É dispensável a licitação: (...) VIII - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso; (...) § 6º Para os fins do inciso VIII do caput deste artigo, considera-se emergencial a contratação por dispensa com objetivo de manter a continuidade do serviço público, e deverão ser observados os valores praticados pelo mercado na forma do art. 23 desta lei e adotadas as providências necessárias para a conclusão do processo licitatório, sem prejuízo de apuração de responsabilidade dos agentes públicos que deram causa à situação emergencial." A norma, em comento, é completamente pertinente no bojo do Decreto Emergencial, pois são fundamentais ações eficientes para conter a situação epidêmica, em conjunto com a agilizada e a rapidez na execução das medidas requeridas pela administração. Dando ênfase à velocidade dessas medidas, permitiu-se a dispensa da prévia manifestação do Comitê Gestor do Gasto Público, nos termos referidos no inc. IX, art. 2º do decreto 64.065, de 3 de janeiro de 2019, concedendo-se um prazo de 30 dias, a contar da assinatura do contrato, para a sua comunicação nos casos de contratação. O decreto sub studio, por si só, autorizou a contratação de servidores temporários para o enfrentamento do problema, medida que vai ao encontro do esforço em fortalecer e ampliar a força de trabalho nos locais e horários necessários, dentro da estratégia de combate ao contágio e demais consequências da dengue, levando-se em consideração também a especificidade da região. Não se trata de medida incomum. Ademais, referida permissão legal tem respaldo na lei complementar 1.093, de 16 de julho de 2009, vejamos: "Artigo 1° - Para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, a contratação por tempo determinado de que trata o inciso X do artigo 115 da Constituição Estadual será realizada nas condições e prazos previstos nesta lei complementar. (...) § 1° - Considera-se necessidade temporária de excepcional interesse público: (...) 2 - a assistência a emergências em saúde pública, inclusive combate a surtos, epidemias, endemias e pandemias;" (g.n.)     Em continuidade à análise, importante destacar que com a declaração da situação de emergência em saúde pública no território paulista, a lei complementar 791, de 9 de março de 1995 autorizou a transferência de recursos do Estado para o financiamento de ações ou serviços não previstos nos planos de saúde municipais, conforme disposição do seu art. 50, § 3º: "Artigo 50. O processo de planejamento e orçamento do SUS será ascendente, do nível local até o estadual, passando pelo regional, ouvidos os respectivos conselhos de saúde, e compatibilizando-se, em planos de saúde estadual e municipal, os objetivos da política de saúde no Estado com a disponibilidade de recursos (...) § 3º. É vedada a transferência de recursos do Estado para o financiamento de ações ou serviços não previstos nos planos de saúde municipais, exceto em situações emergenciais ou de calamidade pública na área da saúde. (g.n.)"  Diante do exposto, fica evidente que a estratégia adotada pelo Decreto nº 69.359, de 19 de fevereiro de 2025, foi medida plenamente justificada e amparada legalmente. Mostra-se pertinente para o contexto atual, no qual a situação epidêmica ultrapassa as divisas do Estado, permeando o território nacional, dentro do contexto de suas respectivas particularidades. Em outro aspecto, a medida em comento consolidou-se como uma decisão estratégica, permitindo ao Estado de São Paulo responder rapidamente à epidemia, com o intuito de proteger a saúde da população, garantir a continuidade dos serviços públicos e, assim, minimizar impactos epidemiológicos, sociais e econômicos decorrentes da situação. __________ 1 Plano de contingência das arboviroses urbanas dengue, chikungunya e zika 2025/2026. Disponível aqui. Acesso em 30/3/2025.
domingo, 30 de março de 2025

A aceitação da denúncia pelo STF

Toda imprensa vem alardeando que o STF aceitou a denúncia ofertada pelo procurador-Geral da República contra o ex-Presidente da República Jair Bolsonaro e outros sete acusados de idealizar e integrar a trama golpista ocorrida no mês de janeiro de 2023. A decisão foi unânime dos ministros integrantes da 1ª turma da Corte Maior, tendo como sustentação a existência de indícios razoáveis das práticas descritas na peça delatória. Não se trata, porém, como muitas pessoas estão concluindo, de uma condenação antecipada. E, pelo que tudo indica, a imprensa não se preocupou em penetrar no âmbito do procedimento para explicar os requisitos autorizadores de uma ação penal, principalmente para os leigos. Em primeiro lugar, a denúncia, de legitimidade exclusiva do Ministério Público, é a peça processual que dá início a uma ação penal pública incondicionada e traz como suporte uma investigação preliminar feita pela Autoridade Policial ou até mesmo através de peças de informações apresentadas pelo cidadão. Não há necessidade da apresentação de provas inconcussas e sim de indícios que permitam descrever o fato criminoso com todas as suas circunstâncias. Por ser a delação estatal uma peça propositiva, satisfaz-se com a prova indiciária colhida de forma idônea e que tenha condições de apontar com a segurança jurídica necessária a autoria e materialidade do delito, binômio indispensável na pretensão acusatória, além da justa causa para a proposição da persecução penal judicial. Isso porque a opinio delicti, inerente à função do Ministério Público, deve traduzir, de forma inequívoca e transparente, a vontade do órgão persecutório judicial, em perfeita sintonia com o regramento processual vigente. Daí que a postulação é submetida ao crivo do Judiciário que poderá rejeitá-la quando ausentes os requisitos norteadores do art. 395 do CPP. Na fase do recebimento da denúncia, não será feita qualquer apreciação a respeito da culpabilidade, satisfazendo-se o Judiciário com a presença de indícios razoáveis de autoria e materialidade, conforme acentuado pelos ministros da 1ª turma.  A palavra indicium em latim, que originou o vocábulo português, tem uma conceituação abrangente, denotando a ação de procurar, marcar, fixar, indicar, encontrar vestígios, pegadas, com o sentido de apontar algo que tenha relevância na apuração de tudo aquilo que gravita em torno de um fato que é conhecido e, pelo esforço interpretativo, assim como pelo emprego do pensamento lógico, pode-se chegar com mais facilidade ao fato que se pretende provar. Pode-se dizer também que é um ponto de partida onde são utilizadas as informações disponíveis em busca do ponto de chegada, que vem a ser a conclusão daquilo que se quer atingir. Na realidade, de acordo com a melhor lógica, vai se chegar ao fato que se pretende demonstrar por dedução, isto é, tudo aquilo que se concluiu após as análises das circunstâncias apresentadas. Indícios, desta forma, são obtidos via de inferência, pois cabe ao agente partir de um fato já conhecido para percorrer o iter necessário para chegar a outro que seja ainda desconhecido, cuja elucidação tem relevância.   Por isto que o caminhar probatório na peregrinação processual penal, ao atingir a primeira fase da postulação, consistente na apresentação da peça acusatória formal, mesmo que atenda à exigência mínima, vale-se do brocardo in dubio pro societate, demonstrando que prevalece o interesse maior, que é o da sociedade na persecução penal. Porém, o mesmo critério não pode ser adotado em caso de condenação, vez que aí se aplica o in dubio pro reo, em razão da exigência de provas robustas para tanto. De forma lapidar, Marques esclarece que a denúncia, "por ser um ato instrumental da ação pública, deve conter todos os elementos desta. A pretensão punitiva que se condensa na acusação será exposta com clareza, indicando-se seu objeto (ou petitum) e os seus fundamentos (ou causa petendi), e ainda os dados subjetivos que a integram: o sujeito ativo que acusa (o órgão do Ministério Público) e o sujeito passivo que é acusado (o réu). O promotor de justiça faz o seu pedido, dá-lhe os devidos fundamentos e diz contra quem se dirige a acusação". 1 Tudo deve ser matematicamente exposto na peça inicial penal. Tanto é que a Constituição Federal não abraça o princípio da ampla acusação e sim da ampla defesa. Daí que a proposta acusatória tem que soar em sintonia com as provas arrecadadas preliminarmente e, desde seu início, abrir as comportas para o acolhimento da pretensão estatal.  A narrativa precisa e aberta do fato constitui, desta forma, a pedra angular da proposta acusatória. Por outro lado, no polo oposto da relação processual, em razão do princípio da ampla defesa, vem a resposta a todos os argumentos lançados na inicial, que podem ser descobertos inicialmente e desvendados no final. Na conjugação desses dois fatores, a defesa exsurge de forma ampla com o estabelecimento de um contraditório mais condizente com a natureza democrática do processo. E o julgador terá um material seguro para proferir uma sentença absolutória ou condenatória. A ausência da descrição que envolve o elemento subjetivo demonstra, por si só, a falta de justa causa para a propositura da ação penal, fator impeditivo do procedimento, pois é regra constitucional que ninguém será submetido a um processo criminal se não houver provas inconcussas com a mínima probabilidade de potencial condenação. A ação penal, pelo desgaste que proporciona, não é um campo de probabilidade e sim de certeza provisória com um indiscutível lastro de seriedade. A pesquisa da verdade para a propositura de uma ação penal tem que corresponder ao material probatório coletado, que se apresenta como a base, a sustentação de uma pretensão acusatória. Do contrário, se assim não for, bastaria a simples articulação punitiva na inicial para autorizar seu acolhimento. O Judiciário, no entanto, se apresenta como um aparelho dedutivo, que vai realizar regras operatórias e buscar uma interpretação que represente o valor suficiente daquilo que foi demonstrado. É a operação idealizada por Hegel, em sua dialética, quando propõe a pretensão por meio da tese, admite sua refutação pela antítese e elege a síntese como o meio para elucidar o fato proposto.  ________ 1 Marques, José Frederico.  Elementos de direito processual penal, vol. II. Campinas: Bookseller, 1997, p.   146.
domingo, 23 de março de 2025

O gênero neutro

O Superior Tribunal de Justiça, por sua 3ª Turma, foi instado a julgar um recurso especial em caso inédito nos tribunais brasileiros. Em resumo, determinada pessoa, após realizar cirurgia, fazendo uso de considerável carga de hormônios para alteração de gênero, não se ajustou na conformação pretendida e, depois de muito refletir, chegou à conclusão de que não se identificava nem como homem e nem como mulher. Diante disso, invocou a tutela jurisdicional com o intuito de retificar o seu registro civil para que nele ficasse constando o gênero neutro. O julgamento chegou até o Superior Tribunal de Justiça e foi suspenso, mas, antes, a ministra Nancy Andrighi antecipou seu voto, que foi favorável à pretensão deduzida, pois segundo ela, em seu arremate final, concluiu: "Porque você sofrer cirurgia, tomar hormônios, converter-se naquilo que ela imaginava que seria bom para ela. E depois ela se deu conta que não era também aquilo".1 Pelo sistema binário prevalente na Constituição Federal - em que predomina o sexo masculino e feminino sem qualquer outro concorrente - os cartórios, anteriormente, não tinham autorização para lavrar o documento nele inserindo sexo "ignorado". O Conselho Nacional de Justiça, no Provimento 122/2021, traz interessante regulamentação com relação ao assento de nascimento no Registro Civil das Pessoas Naturais, nos casos em que o campo "sexo" da Declaração de Nascido Vivo tenha sido preenchido como "ignorado".2 Com a nova regulamentação, quando se tratar de Anomalia de Diferenciação de Sexo (ADS), em que fica constatado ictu oculi a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de identificação imediata do sexo, o oficial do cartório irá observar se no campo sexo da DNV foi preenchido como "ignorado". Se assim for, nos mesmos moldes, será lavrado o registro. O registrador, no entanto, recomendará ao declarante a escolha de prenome comum aos dois sexos e, se recusada a proposta, permanecerá o prenome indicado pelo declarante. No caso sub judice, no entanto, é outra realidade. A pessoa se submeteu à cirurgia de redesignação de sexo, que é complexa e traz sérios dissabores e nem sempre alcança o propósito perquirido. Já foi o tempo em que o homossexual pleiteava alteração de prenome, assim como de gênero no registro civil e teria, obrigatoriamente, que realizar a cirurgia de transgenitalização. O pleito pretendido busca, na realidade, uma alternativa inexistente no direito pátrio vez que o recorrente alega colidência entre o gênero biológico e sua identidade de gênero, por ter frequentado as duas opções e em nenhuma delas encontrou aderência. A genitália ambígua não provoca o surgimento de um terceiro sexo - denominação que vai até mesmo criar mais confusão do que encontrar uma solução adequada - e sim é resultado geralmente de uma malformação, conhecida como intersexo, para a identificação da genitália, principalmente na faixa infantil.  Ocorre quando as características sexuais não se encaixam no espaço binário dos corpos masculino e feminino, como é o caso dos pacientes hermafroditas, impedidos de conhecer imediatamente o sexo, circunstância que trará sérias complicações familiares e sociais. Tanto é que os pais, erroneamente, escolhem o sexo para o filho ao nascer, provocando, com o passar do tempo, discordância entre a identidade sexual e a identidade de gênero. O provimento 122/21, coerente com a necessidade social, de forma oportuna, estabeleceu que a designação do sexo poderá ser feita a qualquer tempo por um termo de opção, independentemente de autorização judicial ou de comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual, de tratamento hormonal, ou de apresentação de laudo médico ou psicológico. Se a pessoa optante estiver sob o poder familiar, será representada ou assistida pela mãe ou pelo pai, mas terá que dar seu consentimento se for maior de 12 anos de idade. É idêntico ao procedimento estabelecido para a alteração do prenome e do gênero no assento de nascimento e casamento de pessoa transgênera, conforme se observa do § 1º do artigo 4º do provimento 73/18, do mesmo órgão. O voto, até agora escoteiro da ministra retratou, de forma inequívoca, a complexidade do tema que repentinamente aflorou, desprovido de parâmetros legais para embasar uma correta decisão. Valeu-se ela da ciência da Hermenêutica e também dos princípios basilares contidos na Constituição Federal, dentre eles, com relevo, o da dignidade da pessoa humana. O Direito, dessa forma, pela sua própria estruturação interpretativa, revela-se cada vez mais como um instrumento voltado para atender às necessidades do homem. Vale-se da lei, que estabelece os parâmetros permissivos e proibitivos, porém, não se prende a ela de forma servil e sim, com a autonomia que lhe é peculiar, alça voo em busca de uma verdadeira integração entre a norma e o fato perquirido, avizinhando-se da realidade pretendida. Pode-se até dizer que a lei é uma ficção, enquanto sua aplicação na medida certa depende unicamente da forma pela qual será interpretada. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui.
domingo, 16 de março de 2025

Ainda resta uma esperança

Eu tive notícia, ó rei venturoso, como se iniciam os contos do Livro das Mil e Uma Noites, que um "puxador", com maestria profissional, subtraiu um veículo e, para sua surpresa, nada agradável em razão das dificuldades apresentadas, encontrou no banco traseiro uma criança que dormia, por mais paradoxal que seja, o sono dos justos.  Imediatamente parou o veículo. Lançou mão do celular clonado e contatou a autoridade policial. Apresentou-se como furtador e prontificou-se em abandonar o veículo em determinado local para que a criança fosse resgatada. Na realidade, não seria um resgate, pois não houve sequestro, emendou em tempo. Solicitou à autoridade para que advertisse os pais da criança, irresponsáveis e criminosos. Eles sim que deveriam ser responsabilizados criminalmente. Apesar de hilariante, o fato vem revestido de um senso ético marcante. A intenção do furtador era somente a de subtrair o veículo, encaminhá-lo para o responsável pela encomenda, ganhar seu dinheiro e seguir a vida. A presença da criança no banco traseiro não estava na sua linha de desígnio, portanto, excluída de sua intenção delituosa. Não pretendia sequestrar, já que sua especialidade era a subtração, pura e simples, sem violência a qualquer pessoa. Diante da ponderação subjetiva, no exato encontro do si para o sigo mesmo, poeticamente enfatizado por Guimarães Rosa, resolveu interromper a prática do delito, não ultrapassando os limites da tentativa. Devolveu-o com a criança em seu interior. E mais: apontou os verdadeiros criminosos, como sendo os pais da criança, que a abandonaram no interior do veículo, enquanto frequentavam um bar tomando aperitivo. Esta omissão, segundo ele, poderia provocar a morte da criança, como já aconteceu em outros casos idênticos. A subtração frustrada até que foi providencial.  Quando se vê uma atitude responsável e consciente, mesmo que exteriorizada por quem vive à margem da lei, renasce a esperança no homem. A vida humana ocupa o núcleo real de importância, abrindo espaço para que a consciência moral e ética fale mais alto. De repente, no desenrolar de uma ação ilícita, o infrator é tomado de sentimentos de generosidade e altruísmo, que proporcionam uma conduta totalmente contrária à vontade inicial. O que seguia pela contramão de direção, passa, pela mesma via, a conduzir-se corretamente, de forma exemplar, disciplinando o vai e vem irresponsável das pessoas. Faz lembrar a observação feita por José Saramago, no livro Ensaio Sobre a Cegueira, no sentido de que a ocasião, apesar de propícia, nem sempre faz o ladrão.  Amigos, hoje perdi o dia, como Tito, teria dito o furtador. Mas, no seu íntimo, agora revestido do apanágio da nobreza, tinha a consciência de ter praticado uma conduta responsável. Não a medindo pela extensão do dano maior que pudesse provocar, como aqueles em que, em situação idêntica, em outra ocasião, arrastaram impiedosamente um menino, provocando-lhe a brutal morte. Nem mesmo para se ver impune da subtração tentada. Mas sim porque atendeu o apelo que ainda iluminava a sua tênue zona de penumbra, do crivo de justiça feito rapidamente no âmbito de seus estreitos preceitos e, imbuído de valores à moda antiga, desistiu de sua conduta ilícita. Não antes de apontar para a sociedade os verdadeiros culpados. Em razão do furto de um pão para sustentar a família, Jean Valjean, personagem de Os Miseráveis, de Victor Hugo, cumpriu dezenove anos de prisão. Depois, em liberdade, por voltar a acreditar nas pessoas, tornou-se um bem sucedido empresário, marcado pela sua bondade e generosidade De quando em quando, em ato isolado que merece divulgação pela imprensa, ainda dá para acreditar no homem. Ainda há sensibilidade moral pairando no ar. Ainda presente o humano. Mesmo que a aurora alcance Scheherazade, narradora do Livro das Mil e Uma Noites, no dia seguinte terá fôlego suficiente para mais uma narrativa de esperança.
O STF, em julgamento com repercussão geral, compreendendo aqui a validade para todo o país e com a obrigatoriedade da decisão ser seguida por todas as instâncias, afirmou que as guardas municipais têm legitimidade para realizar policiamento ostensivo e comunitário, assim como fazer buscas pessoais e, principalmente, prender em flagrante delito. Isto porque as guardas municipais, além do permissivo delimitado constitucionalmente, são consideradas órgãos de segurança pública, sem, no entanto, confrontar com as funções das polícias Civil e Militar. Cabem, neste espaço, algumas anotações concernentes à prisão em flagrante delito. O ainda vigente Código de Processo Penal brasileiro, editado no governo de Getúlio Vargas em 1941, vem se arrastando com muito esforço e pouco fôlego para sustentar o dinamismo social. As novas formas de se praticar delitos, as exigências de uma Justiça mais célere, as prisões com todas suas variações deixam enrubescidas as páginas do estatuto processual. Apenas reformas pontuais foram introduzidas paulatinamente, procurando ajustar com a rapidez necessária as condutas que fazem parte da realidade brasileira, que cobra cada vez mais providências em busca de uma persecução penal que seja eficiente e uma célere resposta da jurisdição penal. Flagrans, na sua configuração no Direito Romano, tem o significado daquilo que está queimando, ardente, resplandecente, daí, sem muita dificuldade, se incorporou ao Direito brasileiro como flagrante delito nos exatos termos da certeza visual do cometimento de um crime, nas hipóteses em que alguém está praticando uma infração penal, acaba de praticá-la, ou é perseguido, logo após, pela autoridade, ofendido ou qualquer pessoa e quando for encontrado, logo depois, com instrumentos, armas ou objetos que façam presumir ser ele o autor da infração penal. Isso porque o Direito Penal trabalha com o binômio autoria e materialidade que, no caso flagrancial, são constatadas facilmente. A prisão em flagrante, em sua formatação original, é a que corresponde à vontade do legislador, pois compreende todas as circunstâncias necessárias para reunir os requisitos de autoria e materialidade, além de permitir a participação popular. Prevê o Código de Processo Penal duas modalidades de flagrante delito. A primeira delas é a obrigatória, ou compulsória, realizada pela autoridade policial ou os agentes de segurança, sempre em razão do próprio ofício. A segunda é o flagrante facultativo, em que se permite a qualquer pessoa do povo a praticar o ato coercitivo. Trata-se de uma legitimidade abrangente. E, quando o cidadão assim age em nome do Estado, na realidade, não está prendendo em flagrante delito, e sim fazendo uma captura de um eventual autor de ilícito, pois o ato da prisão legal será de responsabilidade do delegado de polícia, após fazer o crivo de admissibilidade do ato flagrancial. Percebe-se, claramente, por essa linha de raciocínio que, se qualquer pessoa do povo pode assim agir, permite-se, com carradas de razões, que a Guarda Municipal, que vai além da pessoa do povo, seja detentora de legitimidade para tanto e, com a decisão ora comentada, passa a incorporar a modalidade de prisão obrigatória, em razão da vinculação da instituição com a segurança pública. Não pairam dúvidas no sentido de conferir à outra instituição de segurança a legitimidade para dar a voz de prisão ao infrator, nos casos flagranciais. Quanto maior a cobertura da tutela da comunidade, mais protegida ficará a população. Com suporte na decisão do STF, alguns prefeitos propuseram projetos para as câmaras municipais com a intenção de encontrar outra nomenclatura para a Guarda Municipal, com o nome de Polícia Municipal ou Metropolitana, em razão do poder de polícia conferido pela Suprema Corte.
O governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), presidiu o lançamento da "Disciplina Paulista de Acessibilidade e Inclusão", contando, para tanto, com a participação efetiva da SEDPcD - Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, além da parceria com quatro universidades estaduais, todas vinculadas à SCTI - Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação. A disciplina, que se apresenta como uma proposta revolucionária para os alunos de graduação, já disponível no primeiro semestre de 2025, tem como destinatários os estudantes de todos os cursos da USP - Universidade de São Paulo, Unicamp - Universidade Estadual de Campinas, Unesp - Universidade Estadual Paulista e a Univesp - Universidade Virtual do Estado de São Paulo e oferece 8.000 vagas por semestre letivo, incorporando 18 mil vagas por ano. As transformações sociais vão surgindo e se amoldando em um espaço de conquistas igualitárias para o ser humano. Cria-se, dessa forma, um marco de suma importância, conferindo novos direitos que vão se pulverizando em variadas direções, justamente para alcançar a efetiva acessibilidade e a tão almejada inclusão, nos casos de pessoas com deficiência. Sem dúvida foi uma atitude corajosa e retirou o tema da sombra que, como se sabe, faz a projeção ficar cada vez maior. Trata-se de questão atual com característica de perenidade, pois precisa ganhar corpo para eliminar muitas interrogações. Para construir uma nova realidade social, que seja mais abrangente e calcada na política de igualdade, faz-se necessário suscitar reflexões que possam fazer a diferença, uma vez que o conhecimento científico tem densidade própria e, por ser cumulativo, depende sempre de injeção de novas ideias para rotinizar uma prática que se apresenta como vitoriosa. O olhar constitucional, panorâmico que é, além de todas as tutelas individuais e coletivas, é conclusivo no sentido de que o ser humano não pode ser considerado um estrangeiro em seu próprio universo, pois a ele é assegurada a igualdade, assim como a difusão da cidadania. Toda pessoa tem o direito de viver intensamente sua dignidade consagrada constitucionalmente, sem qualquer discriminação ou restrição à sua liberdade. Tal iniciativa abre amplo horizonte para mirar uma infinita gama de oportunidades, visando, em primeiro lugar, ofertar informações úteis e necessárias para o alunato e, posteriormente, facilitar o relacionamento profissional no âmbito da diversidade humana, com nítida atuação junto às pessoas com deficiência. O ser humano é destinado a viver em grupos sociais em variadas dimensões e deles não pode ser excluído. Tão importante também é saber explorar as ferramentas de tecnologia assistiva. Dessa forma, em um só bloco do projeto, o aluno terá condições de se inteirar das mais variadas situações, conhecendo, inclusive, as especificações de cada uma delas. Os temas a serem abordados terão como eixo estruturante a acessibilidade e a inclusão e serão expostos de forma prática e objetiva visando atingir as diversidades catalogadas e, dentre eles, podem ser destacadas as discussões a respeito das conceituações filosófica, política e social, a ética humanizada. além de enveredar para a área da saúde pública, da educação consistente para um determinado perfil, do urbanismo acessível e na construção de mais tecnologias eficientes, visando até mesmo viabilizar a construção de políticas públicas adequadas. A Bioética, pelo seu caleidoscópio multidisciplinar, que consegue encontrar a correta lente para a leitura adequada da vida, ocupa um espaço de destaque na disciplina recém-criada, vez que reúne todos os predicados para atender às múltiplas exigências do mundo atual e produzir mudanças de longo alcance. Tem potencial suficiente para unificar as várias línguas dissonantes e apresentar um canal por onde todos podem se manifestar com vista ao tão reclamado bem comum e, principalmente, com condutas e ações pertinentes, trazer dividendos e benefícios para ampliar a escolaridade de crianças e adolescentes, com total respeito à diversidade humana.
domingo, 16 de fevereiro de 2025

Uma contextualização bioética

A partir da CF/88, o Brasil elencou, dentre seus fundamentos, o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal inserção, que integra a teoria kantiana e se abrigou no preceito contido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, abriu um novo portal por onde transita a pessoa como destinatária de uma enorme carga protetiva de direitos fundamentais não estáticos e sim ampliados para que possa atingir a essência de sua plenitude como cidadão. Aflorou, assim, a bioética no espaço de reflexão envolvendo os pensamentos de várias pessoas com sólida formação em humanidades a respeito da utilização de novas tecnologias que possam ser consideradas oportunas e convenientes para que o homem mantenha sua identidade e dignidade. Quando se fala em dignidade da pessoa humana, ingressa-se em um universo de proteção ilimitada, amparando direitos já conquistados, assim como outros difusos que ainda virão em razão da mutabilidade da própria sociedade. O homem, desta forma, torna-se fim e valor em si mesmo, centro e ponto de convergência de todas as ações, dotado da capacidade volitiva e intelectiva, detentor de uma supremacia própria, exerce sua condição de sujeito moral, com autonomia decisiva própria, buscando todos os meios para o desenvolvimento de sua inalienável dignidade. A inter, multi e a transdisciplinaridade inerentes à bioética avançam em todas as áreas de atuação do ser humano e não se limitam somente ao campo da saúde. De ciência criada para proteger o meio ambiente - para que o homem pudesse desenvolver a contento suas atividades - atingiu sua plenitude como ciência da vida. Assim, no estágio atual em que os avanços científicos vão se proliferando e se incorporando à vida cotidiana, o pensamento bioético ganha uma nova dimensão e lança seus tentáculos para proporcionar ao homem as melhores condições do viver com qualidade e dignidade. A bioética - pelo seu caleidoscópio multidisciplinar, que consegue encontrar a correta lente para a leitura adequada, ocupa um espaço de destaque que reúne todos os predicados para atender às múltiplas exigências do mundo atual. Tem potencial suficiente para unificar as várias línguas dissonantes e apresentar um canal por onde todos podem se manifestar com vista ao tão reclamado bem comum. Assim é que a bioética busca a resposta para os temas que aguçam e desafiam o homem ainda despreparado e que não carrega de pronto uma definição a respeito da aceitação ou rejeição de condutas que podem quebrar o consenso ético ou da utilização de técnicas que venham a ser incompatíveis com a expectativa da vida individualizada, como, por exemplo: as pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias; as variadas técnicas aprovadas para a realização da procriação assistida; a maternidade de substituição; o patrimônio genético; a célula sintética; a decifração do DNA recombinante; as incursões perigosas da edição genética; o aborto permitido, o de feto anencefálico e o proveniente da opção procriativa da mulher; o necessário planejamento familiar; a cirurgia de transgenitalização e suas consequências na vida civil; o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (lei 14.874/24); as clonagens terapêutica e científica; a transfusão de sangue e o direito à crença diante do direito à vida, de acordo com a recente decisão do STF; o direito à dignidade da morte em razão da eutanásia, distanásia, ortotanásia e suicídio assistido; as uniões homoafetivas e suas implicações legais; o Estatuto do Idoso e a proteção à longevidade; o Estatuto da Pessoa com Deficiência e suas vulnerabilidades; a doação e o transplante de órgãos e tecidos humanos; o início e o fim da vida humana, conforme decisão proferida pelo STF são, dentre muitos outros, temas que provocarão mudanças sociais, éticas, culturais e jurídicas. A bioética, desta forma, como se fosse um senso regulatório, compartilha os resultados favoráveis e comparece a fim de dar seu nihil obstat para a utilização humana. Sua aplicação não se limita à área médica e sim à própria vida humana, em suas variadas fases. É a leitura de muitos olhos a respeito de problemas individuais e coletivos, com a intenção de buscar a melhor solução, a mais próxima e condizente com a dignidade humana.
domingo, 9 de fevereiro de 2025

O lar e sua intimidade inviolável

Um dos significados da palavra grega oikos compreende casa, em seu sentido de local de habitação de um grupo familiar. Tanto é que referido radical deu origem à palavra ecologia, com o significado de estudo relacionado com o local em que se habita. Os romanos, por seu turno, mais apegados à tradição e aos costumes, denominavam domus o local de agregação dos grupos regidos pelo pater famílias. No Brasil, a palavra casa compreende domicílio, residência, imóvel ocupado por um indivíduo ou grupo familiar e, em algumas situações especiais, aproxima-se da palavra lar, como é o espírito indicativo da lei Maria da Penha. A Constituição Brasileira apregoa taxativamente no art. 5º, XI: "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial." O Código Penal brasileiro, em seu art. 150, erigiu à categoria de crime a violação de domicílio: "Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências" e ampliou ainda o conceito para compreender qualquer compartimento habitado, aposento ocupado de habitação coletiva, compartimento não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade. Percebe-se, claramente, que a tutela da legislação brasileira está voltada integralmente para a proteção à pessoa na sua esfera de liberdade doméstica e não para a defesa do imóvel. Assim, quando a Lei Maior rotulou a casa de asilo inviolável teve a intenção de erigi-la como um reduto intransponível, a não ser quando presentes as cláusulas permissivas de ingresso à moradia. Até mesmo o agente policial, com exceção dos casos de flagrante delito, deve contar com a ordem judicial autorizativa ou a concedida pelo morador para ter acesso a casa. A Constituição de 1988, dentre vários direitos alargados e tutelados, abrigou em seu texto a proteção à intimidade do cidadão, assim descrita no inciso X do art. 5º: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". A intimidade do lar, expressão mais adequada do que residência ou domicílio, vai muito além. É o lugar mais recôndito da convivência familiar ou individual, indevassável por pessoas que não obtiveram acesso para dele participar. É, enfim, sinônimo de intimidade, privacidade. É o território onde se abrigam pessoas que se consideram aparentadas, unidas por laços naturais, legais ou por afinidade, mas que têm em comum o respeito mútuo e a convivência harmônica. Não é a delimitação física, com estreitas divisórias, orientadas por números e nomes. É, sim, um espaço de convivência, amplo o suficiente para suportar o desenvolvimento natural e espiritual de seus moradores. É o templo sagrado (my home is my temple) onde serão edificados os sentimentos, a dignidade e o caráter de seus moradores que, posteriormente, poderão repassá-los à comunidade maior, que é a sociedade em que se vive. Nesse reino pode desfilar tudo que é mais precioso para a pessoa, desde a sua crença religiosa até os segredos mais recônditos, sem qualquer risco de invasões arbitrárias e, principalmente, de se chegar ao conhecimento público porque não há qualquer registro materializado com sua anuência. Por fim, a intimidade, nesta abordagem, configura como o núcleo da esfera de proteção. Pode ser conceituada como o direito de estar só - the right to be alone, proteção consagrada nos EUA para assegurar a peace of mind. Nela, verifica-se um conjunto de informações que apenas seu titular traz consigo para desfrutar tudo o que lhe for conveniente, além de ser o local apropriado para encontrar a paz e o equilíbrio. Ali se sentirá o rei, o bedel, o juiz, e pela sua lei, será feliz, de acordo com a canção popular. Pode-se dizer até que, na era da mais célere informática, da tecnologia mais apurada, nenhum dispositivo, ferramenta ou aplicativo será capaz de captar o que circula neste espaço reservado, de uso exclusivo de seu titular. Costa Jr., com a precisão que lhe é peculiar, definiu a intimidade como sendo "a necessidade de encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna, de manter-se a pessoa, querendo, isolada, subtraída ao alarde e à publicidade, fechada na sua intimidade, resguardada da curiosidade dos olhares e dos ouvidos ávidos".1 O enunciado, por si só, deixa a entender que, no espaço reservado com exclusividade para o indivíduo numa constante atividade solitária, ninguém poderá ter acesso, seja pessoalmente ou por máquinas, pois encerra um mundo puramente individualista, sem qualquer relação com o exterior. 1 Costa Jr., Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1970, p. 8.
domingo, 2 de fevereiro de 2025

Ainda a violência obstétrica

É interessante observar que, quanto mais avança a medicina no sentido de oferecer cuidados específicos em determinados procedimentos, maior se torna a proteção dos pacientes, além de criar um campo de tutela em que vários deles são aquinhoados com direitos aderentes à sua própria condição de saúde. É o que acontece, por exemplo, nas ações relacionadas ao parto, compreendendo várias dimensões de cuidados, que vão desde a gestação, o parto e o pós-parto. Em todas as fases, no entanto, há a obrigatoriedade, advinda do texto constitucional, que abriga não só a obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana, como, também, outros direitos fundamentais, visando proporcionar à parturiente a melhor assistência à saúde com um parto digno e humanizado, priorizando seu bem-estar físico e emocional, juntamente com o da criança, atentando sempre que o direito à vida ou à saúde foi erigido à categoria de primeira geração. E é em razão da atenção diferenciada às gestantes que passou a se utilizar o termo "violência obstétrica", no sentido de designar a ocorrência de abusos, maus tratos, negligência e outras violações desrespeitosas da saúde materna e fetal. Algumas tentativas foram feitas por instituições médicas, dentre elas a Febrasgo - Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, no sentido de eliminar referido termo que, na realidade, reflete uma conotação genérica e, ao mesmo tempo, agressiva, permitindo até a interpretação que médicos e enfermeiros rotineiramente tratam as parturientes de forma violenta, quando, na prática, alguns profissionais incidem em comportamento tão reprovável. Cabe aqui a observação, em busca de nomenclatura mais apropriada, que o CNJ acolheu o pedido feito pelo CBC - Colégio Brasileiro de Cirurgiões e modificou a tabela processual unificada com a eliminação do termo "erro médico" para uma nova denominação consistente em "danos materiais e/ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde".1 Isto porque o termo "erro médico" carregava uma distorção histórica ao responsabilizar os médicos por todos os erros e falhas praticados no âmbito hospitalar e que, na realidade, teriam sido praticados por profissionais de outras áreas. Na violência obstétrica encontram-se as ofensas verbais, com a nítida intenção de menosprezar, diminuir, ridicularizar a mulher; ameaças de não atendimento, mesmo com o apelo de dor por parte da gestante; aplicação de medicamentos para aceleração do parto; realização de cesarianas desnecessárias, contra a vontade da parturiente; não obtenção do termo de consentimento informado antes de qualquer procedimento; proibição de ter um acompanhante durante o trabalho de parto, em manifesta violação a tal direito; violação à privacidade e várias outras. A OMS, em documento intitulado Prevenção e Eliminação de Abusos, Desrespeitos e Maus-tratos durante o parto em instituições de saúde, publicado em 2014, assim se manifestou: "Todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão de saúde atingível, incluindo o direito a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto, assim como o direito de estar livre da violência e discriminação. Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente".2 O termo combatido, desta forma, ganha especificidade e elasticidade toda vez que cada ação praticada contra uma mulher no procedimento obstétrico provoque nela qualquer situação inequívoca de violência física, psíquica, emocional, constrangimento ilegal, desrespeito, maus tratos, ameaças e outras consideradas inadequadas ao senso do homo medius. É incontestável que, no instante em que ocorre o atendimento de uma mulher grávida, forma-se entre paciente e médico um dever jurídico e um dever contratual. Essa vinculação acarreta uma dependência de proteção, de confiança onde fica expresso o cuidado especial que a ocorrência exige. O dever jurídico surge em razão da própria obrigação advinda do exercício médico. O contratual não é somente aquele que brota de uma disposição escrita entre as partes, mas compreende também aquele em que o médico se apresenta como um profissional garantidor e protetor daquela vida humana. 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
domingo, 26 de janeiro de 2025

Rol de pedófilos e castração química

Com relação à reiteração de crimes contra a dignidade sexual previstos no Código Penal, parece até que as pessoas caminham pela contramão de direção da evolução cultural, praticando crimes considerados primitivos. Quando se pensa que o homem adquiriu mais conhecimento, dominou a parafernália tecnológica que envolve o mundo numa só rede, transformando-o num ser mais racional e maduro, depara-se com crimes absurdamente gritantes, como múltiplas modalidades de estupros, inclusive de vulnerável, corrupção de menores, exploração sexual de criança, adolescente e delitos praticados por meios digitais, com a finalidade de expor vídeo de sexo com a participação de menores. O fator agressividade-violência, constantemente presente nas ações humanas, veio demonstrar mais uma vez que, apesar de todas as teorias desenvolvidas para elucidar determinados comportamentos, não se chegou ainda a uma conclusão satisfatória a respeito das causas determinantes. "O sentimento médio comum, observa Costa, não é um resultado estatístico, mas uma análise dos elementos de valor da sensibilidade ética do grupo, segundo uma equilibrada concessão da vida humana e social em determinado momento histórico. Como no estudo científico da vida humana, as verdadeiras dificuldades são, na prática, a enorme complexidade dos dados e a imperfeição dos métodos de observação".1 Visando criar medidas protetivas às crianças e adolescentes, foi apresentado o PL 3.976/20, de autoria do deputado Aluísio Mendes (Republicanos - MA), com a finalidade de criar um cadastro nacional de pedófilos condenados por crimes de natureza sexual praticados contra crianças e adolescentes, a ser organizado pelo CNJ, que se incumbirá de publicar na rede mundial de computadores para consulta pública do nome completo e CPF das pessoas condenadas. Diga-se, em complementação, que a criação do Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais já foi autorizada pela lei 15.035, de novembro de 2024, nos casos tipificados nos arts. 213, 216-B, 217-A, 218-B, 227, 220, 229 e 230, todos do CP, a partir de condenação em primeira instância. Ao lado do texto principal, figurou, com certa estranheza, uma emenda de urgência apresentada pelo deputado Ricardo Salles, que prevê a obrigatoriedade da castração química a ser aplicada cumulativamente com a pena privativa de liberdade, tudo sendo aprovado pela Câmara dos Deputados e encaminhado para o Senado Federal. Ocorre que a CF/88, em seu art. 5.º, XLVII, letra "e" proíbe, terminantemente, a imposição de penas consideradas cruéis, além do disposto no inciso XLIX, também da Lei Maior, que assegura aos presos o respeito à integridade física e moral, a proposta legislativa se apresenta totalmente incompatível com a regra maior. A imposição da castração química, sem obediência aos princípios da legalidade e anterioridade da lei, faz nascer, por si só, outro ilícito, o de lesão corporal gravíssima, consistente na perda ou inutilização de membro, sentido ou função. A castração química ou a esterilização eugênica, assim também conhecida, compreende a utilização de medicamentos hormonais com a finalidade de reduzir a libido, com a consequente diminuição da testosterona, deveria ser discutida de forma autônoma, isolada do Cadastro dos Pedófilos, por tratar de questão de cunho relevante e com aderência no plano constitucional. Seria, por assim dizer, após atingir nosso ordenamento regras que sejam condizentes com a dignidade humana, retornar à pena de incapacitação do infrator, como é o caso da amputação da mão do furtador no Direito Penal muçulmano. Presentes ainda os ensinamentos de Cesare Beccaria, em seu livro Dos Delitos e das Penas, em que apregoa o fim de penas cruéis, recomenda a feitura de leis mais justas e que sejam aplicadas conforme o delito praticado. É o princípio da proporcionalidade da pena, tão defendido pelo Direito Penal moderno. 1 Costa, Álvaro Mayrink da. Criminologia. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 454.
domingo, 19 de janeiro de 2025

Um relevante caso de adoção

Sempre são lembrados aqueles casos com aderência à área jurídica, relatados por pessoas ou até mesmo pela própria imprensa que, mesmo com o passar do tempo, ficam marcados de forma indelével em nossas mentes e, quando os temas vêm à baila, sempre carregam novas interpretações em razão da dinâmica do Direito. Aproveitando a cunha aberta, lembro - ainda quando exercia o cargo de promotor de Justiça no Estado de São Paulo - de ter lido um caso de adoção post mortem do adotado, que muito me sensibilizou, tanto pelas circunstâncias da narrativa, como, também, pela aplicação da lei por analogia para realizar a justiça mais adequada e recomendada. O tema da adoção sempre carrega interesse, tanto pela sua peculiaridade como pela sua complexidade. Isto porque, em razão do afeto, que é a essência motivadora nele contido, ultrapassa até os ditames da lei e alcança situações até então não previstas, mas que exigem uma definição jurídica. Em rápido relato, como se tratava de um processo com tramitação em segredo de Justiça, poucas informações foram obtidas, mas suficientes para entender a intrincada questão. Uma menina foi abandonada pelos pais logo após o nascimento, em precário estado de saúde, pois era portadora de síndrome de Down, lesão neurológica, mosaicismo, hipotonia, sucção débil, cardiopatia congênita e síndrome de West. Todo este quadro desanimador era indicativo de que a criança seria abandonada à sua triste sorte e figuraria na escala daqueles que não são aquinhoados com direitos iguais, mesmo não sendo responsável pela sua situação. Mas há pessoas dotadas de uma sensibilidade estremada, que se posicionam na escala superior de outras e que são detentoras do senso voltado para a prática do bem e vocação para a solidariedade. Assim é que uma pedagoga, solteira, candidatou-se à adoção e inicialmente pleiteou a guarda provisória, que lhe foi conferida. Quatro meses após, no entanto, ainda no curso do processo, a criança faleceu, mas não desencorajou a pretendente à adoção de levar adiante o pedido, que foi julgado procedente posteriormente. No caso em questão, trata-se de adoção unilateral, prevista em lei. A legislação que trata da questão é o Estatuto da Criança e do Adolescente. A lei menorista, em diversas oportunidades, faz ver que toda criança ou adolescente deve ser criado ou educado no seio da família natural. A adoção, portanto, é uma medida excepcional. Por outro lado, há o permissivo de adoção post mortem do interessado que falecer durante a tramitação do pedido, desde que comprovada a posse de estado de filho. Porém, com relação à adoção post mortem do adotado a mesma lei silencia a respeito. E até com certa razão, pois cessa o interesse do pedido em razão do falecimento daquele cuja adoção é pretendida, ainda mais sem qualquer reflexo patrimonial e direitos sucessórios. Afinal, mors omnia solvit (a morte apaga tudo), diziam os romanos. Ora, não é preciso caminhar muito para se chegar à conclusão de que a pedagoga, pela sua corajosa conduta inicial, pretendia levar adiante sua pretensão. O que se leva em consideração nos casos de adoção é justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar afetivo. O tempo de convivência, por menor que seja, estabelece uma coexistência toda especial. Tamanha é sua força que se encarrega de romper todas as regras previamente estabelecidas. É o caso típico da menina Marcela, muito comentado pela imprensa da época, diagnosticada como anencéfala, que viveu durante um ano e oito meses, contrariando as previsões médicas. Este tempo de vida pode ser compatível com o de qualquer outra criança sem a malformação. Afinal, em um momento se vive uma vida, na fala de Al Pacino, no filme Perfume de Mulher. A lei é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando a um convívio social harmônico. Porém, apesar de trazer uma regra mandamental, vem despojada de sentimento. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado. Ela brota no mundo jurídico com a finalidade de atender determinada situação, mas nada impede que, dando a ela uma extensão mais dilatada, alcance outra situação que seja semelhante. O Direito coloca à disposição do intérprete a analogia, que vem a ser a aplicação de uma determinada regra nos mesmos moldes de outra utilizada em caso semelhante, para fazer prevalecer a igualdade jurídica. Quer dizer, espécies semelhantes reguladas por normas semelhantes (analogia legis). "O manejo acertado da analogia, adverte Maximiliano, exige, da parte de quem a emprega, inteligência, discernimento, rigor de lógica; não comporta uma ação passiva, mecânica. O processo não é simples, destituído de perigos; facilmente conduz a erros deploráveis o aplicador descuidado".1 A Justiça, desta forma, se apoia numa construção intelectual aliada a um sentimento que vem a ser a expressão dos princípios básicos que revelam as ações humanas altruístas, impulsionadas por sentimentos de afeto pelo próximo. 1 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e a aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 172.
domingo, 29 de dezembro de 2024

Esperança, a palavra do ano

Há bem pouco tempo, o mundo viveu no centro de um torvelinho com várias ondas de pandemia que levaram de roldão incontáveis vidas humanas. Agora - contida a fase de contaminação das mais variadas cepas dos invisíveis vírus - a humanidade esbarra nos desastres naturais provocados pelo aquecimento global e degradação ambiental, que produzem eventos imprevisíveis e com consequências catastróficas, como os terremotos, tsunamis, incêndios florestais, enchentes, deslizamentos de terras, ciclones, dilúvios e outros mais. O homem, inevitavelmente, mesmo conhecedor da finitude dos recursos naturais, tem consciência de que vem comprometendo consideravelmente o porvir das futuras gerações. Harari, com sua perspicácia aguçada, assim se manifestou: "Apesar - ou talvez por causa - de nosso tesouro de dados, continuamos a despejar gases de efeito estufa na atmosfera, a poluir rios e oceanos, a desmatar florestas, a destruir hábitats inteiros, a levar à extinção uma quantidade incontável de espécies e a pôr em risco as bases ecológicas de nossa própria espécie. Também estamos produzindo armas sempre mais poderosas de destruição em massa, de bombas termonucleares a vírus fatais."1 A esperança para uma humanidade melhor - muitas vezes erroneamente confundida com a utopia que se desmancha como um castelo de areia - mais uma vez passa a ser a perspectiva da humanidade, que desfila as melhores intenções para a construção do futuro homem, amadurecido pela vida e em busca de alçar voos mais altos, sem se descuidar dos passos iniciais. É momento de renascimento, em que cada um vai se fundir no seu próprio eu para retomar o curso da vida. É certo que não podemos dar as costas à esperança e nem mesmo é oportuno resgatar as recordações de momentos felizes que vivemos em um passado antes do momento pandêmico. É sim chegada a oportunidade de recarregar a alma e criar uma nova linha de montagem para nosso corpo, assim como blindá-lo contra os acidentes naturais e biológicos. Percebemos que a humanidade chegou ao fim de uma era e pisamos no alvorecer de outra, ainda desconhecida. A esperança inspirou também o Papa Francisco quando abriu uma "Porta Santa" em um dos maiores presídios da Itália, na comemoração do Jubileu Católico, celebrado a cada 25 anos, cujo tema central foi a esperança pela paz e o perdão no mundo. "A esperança não desaponta", enfatizou o pontífice. Assim, ao mesmo tempo em que combatemos os moinhos de vento que vão se apresentando, vamos desfilando votos que povoam nossa imaginação. Que no próximo ano possamos ter um olhar panorâmico - sem desprezar o olhar para dentro de nós mesmos - com olhos grandes e sonhadores mirando para o infinito, em busca do ponto de equilíbrio para envolver as pessoas na contextualização necessária da preservação da natureza, visando construir uma nova identidade com ênfase na proteção do patrimônio comum, evitando, dessa forma, a ocorrência de sinistros de grande amplitude e que, diretamente, afetam a vida e a saúde das pessoas, além de danos irreversíveis. Que a tecnologia - nossa acólita já considerada inseparável - continue seu processo de aperfeiçoamento para que possamos fazer o download dos melhores pensamentos que habitam nossas mentes para copiar e colar, principalmente, os sentimentos de generosidade e altruísmo, afastando a tão lastimada polarização linear, que limita cada vez mais a pessoa dentro de seu labirinto. O verdadeiro homo digitas é aquele que, apesar de não deixar suas pegadas na areia, aceita ser monitorado para corrigir seus passos em busca da verdade. Que possamos atingir a sabedoria depurada pelo tempo com uma linguagem de revelação, sem estandardizar critérios ou normas para compreender melhor o novo enredo da vida. Que cada um possa fortalecer, com sua elevada estima, o grupo a que pertence e executar o papel que lhe cabe nesta aventura chamada vida humana. Não teremos mais mão única para circular e sim vários caminhos que projetarão os melhores propósitos de uma civilização mais inclusiva. Nesta cruzada que se inicia, que cada um seja um poeta a engarrafar suas nuvens depositando nelas votos de moderação, temperança, serenidade e, de braços abertos e corações contritos, possa apreciar a natureza com seus ciclos harmônicos, o verde dos campos com todas as suas tonalidades, o azul contemplativo do céu, o rio que dá curso às suas águas caudalosas, o brotar das flores no embalo do canto dos pássaros. 1 Harari, Yuval Noah. Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial. Tradução: Berilo Vargas e Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2024, p. 17.
domingo, 22 de dezembro de 2024

Mensagem de Natal da inteligência humana

Procurei pela inteligência artificial, tão abreviadamente chamada de IA, e solicitei a ela um texto em que eu, pessoa de muitos amigos, com excelente convivência com todos, desejava um Natal feliz e um próspero ano. Observei a ela, no entanto, que a espiritualidade e até mesmo certa intimidade deveriam receber ênfase na escrita. Na sequência, recebi o contido texto acalentado por belas palavras genéricas, mas desprovido da espiritualidade e da intimidade permitida entre os amigos. Não culpo a IA porque, apesar de ladeada e estruturada por algoritmos de última geração, com vieses cognitivos especializados e modelos conexionistas, carrega interessantes estilos de linguagem, mas não consegue atingir um conteúdo personalíssimo porque não dialoga com a sensibilidade humana. Daí que passei a tarefa para a inteligência humana que, nesse caso, é mais confiável e se faz presente. Já na primeira linha constato a dificuldade da empreitada, pois a convivência humana é aflitiva e complicada. Nem sempre pode ser utilizada a mesma régua para todos e cada situação tem seus contornos próprios, além do que, em algumas oportunidades, exige uma solução laboratorial. A resposta você não encontra no seu navegador e muito menos em aplicativo para tal fim. Às vezes, tem que buscar soluções com pessoas mais experientes, aquelas que romperam com galhardia todas as etapas da vida, a exemplo do marinheiro, que vence as mais tormentosas borrascas e segue ileso e seguro para as vindouras. Outras vezes, tem que tatear seu interior para acender a lareira do espírito e encontrar a luz necessária para atravessar o labirinto de dúvidas e incertezas. E, nessa inclusão, quando você se sentir sufocado e necessitando de ajustamento em suas bases, você vai encontrar bem visível à sua frente o brado de poucas palavras, mas com profunda sabedoria, de Sêneca: Vindica te tibi, em que ele exortava o homem a reivindicar a propriedade do seu ser, o seu conteúdo mais abrangente, com alcance muito maior do que a limitada selfie, a sua liberdade, o seu desejo de viver em paz consigo e com todas as demais pessoas, em uma sociedade harmônica, com suporte suficiente para a realização do seu projeto de felicidade. E é justamente no sincronismo da felicidade que cravo meus votos. Que você intensifique suas energias para situar-se sempre na linha de frente. Que você tenha a serenidade de um bom guerreiro para se surpreender com a merecida maturidade que abraçará em cada etapa da existência. Que você busque os bons augúrios, cultive a esperança e a fé. Basta abrir as comportas da espiritualidade, estender suas súplicas que colherá no fundo de sua alma tudo que viu de belo na vida. É a oportunidade para ressuscitar a potencialidade do espírito. Que você possa encontrar seu ponto de equilíbrio para gozar da sintonia do bem-estar. Que você otimize e aperfeiçoe o dinamismo que sempre carregou para expressar solidariedade e simpatia. Enfim, não perca o timing, procure ultrapassar a grandeza do ser humano, entronizando definitivamente a felicidade em sua vida. Basta lançar uma pedra em um pequeno lago com águas serenas e observar, na sequência, que as ondas lentamente se propagam e alcançam a outra margem. E não param. E quanto maior a pedra, maiores as ondas. Retornam em revezamento e neste vai e vem dão uma nova imagem àquele remansoso lago. Tudo em razão de um pequeno movimento. Assim, lançando a pedra, por pequena que seja, você irá patrocinar uma nova realidade, transformando a vida em uma sucessão prazerosa de atos simples que culminarão na multiplicação dos elevados projetos da humanidade. Assim, renasça no Natal e viva a bem-aventurança do novo ano. 
domingo, 15 de dezembro de 2024

A prática da inseminação caseira

As normas técnicas para o procedimento de reprodução assistida estão contidas na resolução 2.320/22, do CFM - Conselho Federal de Medicina, que considera a infertilidade um problema relacionado com a saúde humana. Daí, permite a utilização das técnicas somente quando ocorrerem problemas no processo de procriação, levando-se em consideração a possibilidade de sucesso e desde que não se incorra em risco grave de saúde para o (a) paciente e o possível descendente. Indiscutível a conveniência do ordenamento ético, uma vez que contempla até mesmo a utilização para o relacionamento socioafetivo, pessoas solteiras, além da gestação compartilhada, no caso de união homoafetiva feminina em que não existe infertilidade, observando que o consentimento livre e esclarecido é obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida. Ocorre que, em razão do custo elevado do procedimento médico na reprodução assistida, vem ganhando espaço na mídia o aconselhamento e até mesmo o passo a passo para a realização da inseminação artificial caseira1. O procedimento é básico: busca-se um doador de esperma, que não é anônimo, faz-se a retirada do material que será coletado num recipiente esterilizado ou até mesmo no preservativo e, em seguida, com o auxílio de uma seringa ou aplicador, faz-se a inseminação na cavidade vaginal da mulher, que deverá estar nos dias do seu período fértil. Na realidade, a intenção é fazer com que o esperma seja introduzido o mais próximo do colo do útero. A prática é mais costumeira na união homoafetiva feminina. Não há qualquer restrição legislativa proibindo o procedimento doméstico. Porém, deve-se levar em consideração, não só com relação à saúde da mulher, como também outros fatores, em caso de sucesso da inseminação. O doador, que na resolução do CFM, obrigatoriamente é anônimo, no procedimento caseiro é conhecido e a mulher interessada mantém com ele contato direto, firmando acordo com relação à prática da inseminação, assim como para celebrar um pacto de isenção de qualquer responsabilidade futura com relação ao filho, que não surtirá o efeito jurídico desejado, pois, a qualquer tempo, poderá ser intentada ação de investigação de paternidade em desfavor do doador, que não terá condições de provar, por total ausência probatória, que o filho nasceu de uma inseminação artificial caseira. Também o doador não é submetido a exames específicos, com a finalidade de pesquisar eventuais doenças genéticas ou não, que podem ser transmitidas à mulher ou à prole (HIV, HTLV-I/II, Hepatite e outros). Além do que, não foge da probabilidade que o homem doador, com ou sem filhos, venha a gerar outros que não levarão seu nome no registro e poderão, no futuro, casar entre si, desconhecendo a mesma filiação paterna. Para o doador, pai somente biológico, é até confortável sua condição, porque se vê perpetuado em seus muitos filhos desconhecidos, mas não se pode dizer o mesmo de sua prole. Não é de se olvidar, também, nos casos de união homoafetiva feminina, que o registro da criança será feito somente em nome da mulher que deu à luz, cabendo à companheira invocar a tutela jurisdicional para pleitear a adoção unilateral. A situação se torna preocupante na medida em que várias mulheres vêm utilizando a prática da inseminação caseira, fugindo totalmente da área de proteção delimitada pela reprodução assistida, prevista na Resolução já referida, realizada por médico especializado no procedimento, que determina que a doação de sêmen não pode ter caráter lucrativo ou comercial; os doadores não podem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa; o registro dos nascimentos evitará que um só doador tenha produzido mais de duas gestações de crianças com sexos diferentes, em uma área de um milhão de habitantes. Assim, numa rápida análise, pelos motivos expostos, apresenta-se desaconselhável a inseminação caseira. Se a arte imita a vida, pode-se dizer que o homem imita a ciência, porém atua desprovido dos cuidados necessários e, no tema ora exposto, com imprudência manifesta com relação à prole. _________ 1 Disponível aqui.
domingo, 8 de dezembro de 2024

O planejamento familiar

A família, como base da sociedade, goza de especial tutela no § 7º do art. 226 da CF/88, que assim dispõe: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.  O planejamento familiar, regulamentado originariamente pela lei 9.263/96, explicita um conjunto de ações de regulação da fecundidade, limitação do aumento da prole pela mulher e pelo homem e vem atrelado às políticas públicas gestadas pelo SUS - Sistema Único de Saúde, no que diz respeito à atenção à mulher, ao homem ou ao casal, compreendendo, dentre outras finalidades, a assistência à concepção e contracepção; atendimento pré-natal; assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato; controle das doenças sexualmente transmissíveis e o controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis. Quando se fala em políticas públicas de saúde, seu conteúdo original reside na própria CF/88 que atribui ao Estado o dever de garantir a saúde da população, com a consequente participação de órgãos que atuam de forma direta e preventiva, com atendimento integral e assistencial para a redução dos riscos e doenças. Por se tratar de uma lei com quase trinta anos de vigência, o tempo - que flui, sem interrupção, em sua inexorável ampulheta - os costumes e a própria tecnologia têm o condão de provocar a revisão legislativa em busca de um ajuste com relação à dinâmica social, que é mutável por natureza. Assim é que a lei 14.443/22, que alterou parcialmente a anterior, trouxe inúmeras mudanças e, dentre elas, a necessidade de determinar prazo para oferecimento de métodos e técnicas contraceptivas, além de disciplinar condições para esterilização no âmbito do planejamento familiar. Reduziu de 25 para 21 anos a idade mínima entre homens e mulheres para se submeterem a procedimento voluntário de esterilização - laqueadura de trompas e vasectomia - faixa etária não exigida daqueles que tiverem pelo menos dois filhos vivos, sendo terminantemente proibida para menores de idade.  Outra alteração de salutar pertinência e que vai ao encontro dos protocolos médicos recomendáveis, consiste em realizar no próprio ato cirúrgico do parto a esterilização da mulher que, na lei anterior, exigia procedimentos distintos. A contrapartida legal, no entanto, é que a manifestação de vontade da mulher deverá ser ofertada no prazo de sessenta dias, a contar da data do seu propósito e a laqueadura. O ponto fulcral reside na ausência do consentimento expresso do outro cônjuge ou companheiro no ato da intervenção médica. Prevalece aqui, em toda sua extensão, a autonomia da vontade da pessoa interessada em se submeter ao procedimento. Revela, de forma inequívoca que, não obstante haja o casamento ou a união estável entre o casal, nenhum deles terá domínio absoluto sobre a vida sexual e procriativa do outro. A autonomia procriativa vem ganhando corpo e reafirma que a pessoa é proprietária de um patrimônio chamado corpo humano, detentora de seus atos, administradora deste inesgotável latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e a torna sujeito de direitos e obrigações, além de exteriorizar a dimensão do preceito constitucional da dignidade da pessoa humana. A vontade determinada e livre, corolário do principium individuationis, que é o resultado de uma operação coordenada pelo cérebro, forma a ação ideomotriz, que nada mais é do que a realização de condutas selecionadas pela pessoa para o exercício do seu direito de limitação ou aumento da prole, resultado de sua coerência ética. Poder-se-ia até afirmar que desperta a consciência da finalidade do ser humano, delineia com clareza seus objetivos e o habilita a praticar atos que julgar necessários e convenientes para sua vida.
A mudança mais expressiva ao regime jurídico aplicável aos servidores públicos no Brasil, em hipótese, pode ser atribuída à Emenda Constitucional 19, de 1998. De base argumentativa calcada na crise do Estado por reflexos da estagnação econômica, sua elaboração teve como um dos seus principais objetivos flexibilizar o regime único, possibilitando à administração pública contratar pelo regime estatutário, ou, alternativamente, pelo regime celetista (CLT). Referida alteração se ateve ao art. 39 da Constituição Federal, abrindo caminho para que novas contratações fossem realizadas de acordo com a necessidade de cada órgão ou entidade pública, flexibilização tida com o intuito de vislumbrar a modernização da gestão pública. No entanto, houve questionamentos sobre a constitucionalidade da referida proposta, por meio da ADI 2.135.     O objetivo principal da referida ADI envolveu a argumentação sobre a inconstitucionalidade formal da EC 19/98, especialmente sobre o caput do art. 39 da CF/88. A transcrição original desse artigo previa o estabelecimento de regime jurídico único aos servidores da administração pública direta, autárquica e fundacional, com referência à lei 8.112 de 11/12/90. Os proponentes da ação (PT, PCdoB, PSB e pelo PDT) alegaram que a emenda tinha sido aprovada à margem do quórum mínimo exigido pelo art. 60, §2º da CF/88, que exige aprovação em dois turnos, culminando em vício formal na sua tramitação. Na data de 2/8/07, houve decisão cautelar proferida pelo STF, que suspendeu parcialmente a eficácia do caput do art. 39 da lei maior, com a redação dada pela EC 19/98. Essa decisão concedeu efeitos ex nunc, preservando a validade dos atos praticados sob o regime jurídico único, aguardando-se o julgamento do mérito. O objetivo da medida foi evitar a instabilidade no serviço público, especialmente em relação aos servidores que já haviam sido contratados sob o regime estatutário. No julgamento do mérito, a ministra Carmen Lúcia, relatora da ação, observou a existência da inconstitucionalidade formal. No seu entender, a alteração do caput do art. 39 da CF/88, não teria alcançado o quórum constitucional no primeiro turno da votação. Disposição, essa, extremamente relevante para proteger a Carta Magna de mudanças arbitrárias ou precipitadas, sem o devido alinhamento com as Casas Legislativas. José Afonso da Silva, em sua obra, conjecturando preocupação semelhante, ponderou que o poder constituinte derivado deve obedecer aos limites materiais e formais estabelecidos na Constituição, sob pena de inconstitucionalidade. In verbis: Toda modificação constitucional, feita com desrespeito do procedimento especial estabelecido (iniciativa, votação, quórum etc.) ou de preceito que não possa ser objeto de emenda, padecerá de vício de inconstitucionalidade formal ou material, conforme o caso, e assim ficará sujeita ou controle de constitucionalidade pelo judiciário, tal como se dá com as leis ordinárias.1 O voto divergente foi da lavra do ministro Gilmar Mendes (redator do acórdão), o qual descartou a existência do vício formal na tramitação da emenda. No seu entender, destacando a autonomia do legislativo em interpretar a aplicar as suas normas internas, o texto aprovado transferiu a redação do §2º para o caput do art. 39 da CF/88, sendo submetido à votação em ambos os turnos. Fato esse que deu atendimento aos requisitos constitucionais e regimentais sobre a tramitação da matéria.     A sustentação da autonomia do Legislativo sobre a interpretação e aplicação das suas normas internas, encontra respaldo no respeito dos demais poderes. Neste meandro, na doutrina de Alexandre de Morais, o Poder Judiciário não deve intervir nas decisões internas das Casa Legislativas, em respeito ao princípio da separação dos poderes. Destaco: Diferentemente, porém, ocorre com a possibilidade de controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas. Nessas hipóteses, entendemos não ser possível ao Poder Judiciário, substituindo-se ao próprio legislativo, dizer qual o verdadeiro significado da previsão regimental, por tratar-se de assunto interna corporis, sob pena de ostensivo desrespeito à separação de Poderes (CF, art. 2º), por intromissão política do Judiciário no Legislativo.2 O respeitável decano, no transcorrer do voto, desenvolveu argumentos sobre a preservação da autonomia do Legislativo em definir seu funcionamento e regras internas. Tal premissa é fundamental para evitar o controle judicial sobre questões interna corporis das Casas Legislativas. Entendimento não destoante da jurisprudência do STF, como no Mandado de Segurança 24.104 (MS 24.104/DF, rel. ministro Celso de Mello, DJe de 10/9/15), o qual reforça que o Judiciário não deve intervir nas escolhas interpretativas das normas regimentais do Legislativo, salvo em casos de flagrante violação constitucional. Nesse diapasão, ao término do julgamento de mérito realizado em 6/11/24, o STF decidiu, por maioria, sobre a constitucionalidade da flexibilização do regime de contratação. Balizou-se a compreensão de que a adaptação das contratações, refletindo as necessidades específicas de cada órgão, será o prelúdio de uma gestão mais eficiente, refletindo uma visão mais moderna da gestão pública e, assim, contribuindo para o aprimoramento do serviço público.  Na doutrina, o tema é alvo de discussões que ponderam os benefícios e desafios dessa flexibilização. Para Hely Lopes Meirelles, a estabilidade dos servidores é uma garantia contra ingerências políticas, constituindo uma proteção essencial do serviço público, assim contextualizado: "(...)criada pela Carta de 1938, a estabilidade tinha por fim garantir o servidor público contra exonerações, de sorte a assegurar a continuidade do serviço, a propiciar um melhor exercício de suas funções e, também, a obstar aos efeitos decorrentes da mudança do Governo. De fato, quase como regra, a cada alternância do poder partidário o partido que assumia o Governo dispensava os servidores do outro, quer para admitir outros do respectivo partido, quer por perseguição política."3 Não obstante, trata-se de medida essencial considerar os novos desafios diante da flexibilização do regime de contratação, especialmente no que condiz com o tratamento dos servidores. No intuito de entregar um serviço público de qualidade, a administração deve seguir os princípios esculpidos no art. 37 da CF/88 e, no que se refere ao princípio da eficiência, Di Pietro esclarece de forma exemplar: O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.4 A contratação de funcionário público, dessa forma, em razão da elasticidade da decisão da Corte Maior, poderá ser viabilizada também pela CLT, além da forma convencional pelo RJU -Regime Jurídico Único. Assim, no edital, pela opção híbrida, o órgão público deve informar qual será o regime pretendido, permanecendo União, estados, Distrito Federal e municípios com a legitimidade para a escolha do mais adequado. O funcionário que for contratado pela CLT carregará os benefícios próprios da área privada, como, por exemplo, o FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, que não integra o regime jurídico único que, por sua vez, dentre outros benefícios, preserva a estabilidade. Por fim, o julgamento da ADI 2.135 consolidou a possibilidade de flexibilização do regime de contratação dos servidores públicos, com o objetivo de se permitir uma gestão pública mais eficiente. Por um lado, uma das consequências da decisão, será a diminuição de oferta de concursos públicos pelo regime estatutário, assim como, de acordo com a perspectiva, um considerável aumento de contratação pela CLT. Referida decisão, no entanto, resguardou os direitos dos servidores que já se encontravam sob o regime jurídico único, conferindo efeitos ex nunc a ela. A flexibilização deve ser vista como uma ferramenta de modernização, mas seu uso deve ser acompanhado de cuidados e critérios para garantir que não sejam prejudicados os valores e princípios que orientam a administração pública brasileira. ________ 1 Silva José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 37º edição. São Paulo: Malheiros 2 Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional, 33º edição. São Paulo: Atlas, 2017, pag. 556. 3 Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, pag. 472. 4 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 31º edição. São Paulo: Atlas, 2018, pag. 112.
O Código de Ética Médica, contido na resolução CFM 2.217/2018, constantemente vem sendo revisto e atualizado não só para incorporar temas de inovações científicas e tecnológicas, como, também, as novas condutas pertinentes para o exercício da boa medicina, tendo como escopo final o respeito absoluto pelo ser humano, sem discriminação. Na natureza personalíssima da relação médico-paciente permanece inabalável o princípio da autonomia da vontade do paciente, que foi até mesmo ampliado com relação à decisão do final de vida, assim como a objeção de consciência do médico em recusar, em algumas situações especialíssimas, atender o paciente. Estabeleceu, então, que o médico, preparado tecnicamente para o seu mister, deve compartilhar com seu paciente os procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem adotados e que serão realizados somente após o consenso entre as partes. No dictum hipocraticum não há nenhuma norma que estabeleça o livre arbítrio do paciente a respeito do procedimento a ser adotado, a não ser a obrigatoriedade do profissional da saúde cuidar do seu bem-estar. Tal regra foi consagrada no Código de Ética Médica, em seu Capítulo I, item II, quando trata dos princípios fundamentais: "O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional". Vale a pena observar que a capacidade de consentir estabelecida no Direito Civil pátrio teve origem no Direito Médico. Miranda, com sua perspicácia doutrinária insuperável, fez ver: "A noção advém do Direito Médico de diferentes países para marcar a linha de limite entre as intervenções médicas praticadas em vista de um ato de autodeterminação do paciente e aquelas praticadas com a assistência ou mediante representação do legalmente responsável pelo paciente. Seu objeto específico é o processo de tomada de decisões sobre os cuidados para com a saúde, globalmente considerados, abrangendo, portanto, não apenas os casos de autorização para participar de pesquisas na área da saúde, mas quaisquer atos de lícita disposição do próprio corpo".1 A autonomia da vontade do paciente (Pacient Self-Determination Act) não pode, no entanto, ultrapassar as barreiras éticas e morais do profissional da saúde a exigir que, se preenchidas as condições estabelecidas, seja realizado determinado procedimento previsto em protocolo médico, como, por exemplo, o abortamento em caso de gravidez por estupro de uma mulher. Tal hipótese afigura-se como uma causa de limitação da autonomia da vontade, quando o interesse do paciente, mesmo que legítimo, não pode obrigar o profissional da saúde. Trata-se da justificativa de objeção de consciência. O médico pode se recusar a cumprir determinado preceito legal alegando um imperativo proibitivo de sua consciência, contrariando, desta forma, a vontade do paciente. O próprio Código de Ética Médica, no Capítulo que trata dos Direitos dos Médicos, em seu item IX, assim se expressa: "Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência". A prerrogativa é resultante de preceitos morais, éticos, religiosos e até mesmo pessoais que venham a constranger a consciência do médico e não se exige a obrigatoriedade do profissional declinar a causa determinante de sua recusa. O médico recusante, em razão da objeção de consciência, exerce, na realidade, sua autonomia no âmbito da sua liberdade profissional. Tanto é que não se vê obrigado a prestar serviços que contrariem sua determinação íntima, excetuando-se os casos de ausência de outro médico no local para fazer o atendimento, em casos de urgência e emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos ao paciente. No caso de abortamento referido anteriormente, no entanto, quando se tratar de hospital devidamente credenciado pelos órgãos públicos e com referência para a prática do procedimento, o profissional médico indicado com competência para tanto não pode suscitar a escusa de consciência, pois, em assim agindo, estará impedindo o direito de uma usuária do SUS - independentemente da idade gestacional - de interromper a gravidez em um serviço público oferecido nos casos indicados em lei. Uma verdadeira contradictio in adjecto. Nesse sentido prevalece a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1141, que suspendeu a resolução 2378/24 do Conselho Federal de Medicina, que proibia a interrupção de gestações decorrentes de estupro acima de 22 semanas, por meio da técnica de assistolia fetal. __________ 1 Miranda, Pontes. Tratado de Direito Privado. Introdução: pessoas físicas e jurídicas, atualizado por Judith Martins-Costa... [et al.] Editora Revista dos Tribunais, 2012 (coleção tratado de direito privado: parte geral; 1) p.251.
domingo, 17 de novembro de 2024

O crime de clonagem humana

A preocupação com a reprovação da clonagem bateu às portas do Legislativo brasileiro que se encarregou de editar a lei 11.105/05, conhecida como lei de biossegurança. Erigiu à categoria de crime a utilização de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro para fins de pesquisa e terapia, a não ser que sejam considerados inviáveis; que se encontrem congelados há três anos ou mais e sempre contando com o consentimento dos genitores. O consentimento é exigido tanto para a captação do material reprodutivo como sua utilização posterior em pesquisa e terapia. É interessante observar que a lei usou o termo genitores, designando os pais que cederam o material para fins de procriação somente, explicitando o permissivo legal. Também é conduta criminosa a prática de engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano. É ilícita, igualmente, a realização de clonagem humana. Reza o art. 26 da lei referida: Realizar clonagem humana: Pena - reclusão, de 2 a 5 anos e multa". Do nascimento da ovelha Dolly - o primeiro mamífero adulto artificial e assexuado, sem a participação do gameta masculino no processo de clonagem até o fechamento do Projeto Genoma Humano no início deste século - a medicina deu significativos passos para a pesquisa regenerativa e sua implantação nos seres humanos. Ingressou com todo potencial na área da engenharia genética visando criar células novas, ou até mesmo órgãos inteiros para substituir os que vão se deteriorando em razão de doenças, acidentes ou envelhecimento e cogita até mesmo da substituição do homem por outro par que seja mais eficiente, elaborado de acordo com sua própria imagem. A título de curiosidade, é interessante a leitura do livro Homem-Máquina, de Max Barry, em que o personagem Charles Neumann teve uma perna amputada por acidente e, propositadamente, perde a outra, perde a mão, recebe membros artificiais em laboratório e conclui que, em razão da fragilidade do ser humano, a indicação melhor é a reconstrução em laboratório. O tipo penal descrito é incisivo e objetivo. O núcleo da ação é o verbo realizar com o significado de criar, produzir, lançar mão de todos os meios técnicos e científicos para conceber um ser humano idêntico a outro já existente, independentemente dos objetivos. A simples ação de quebrar a regra da procriação e inverter seu procedimento para se obter artificialmente um clone é uma conduta demonstrativa de dolo intenso, uma vez que é social e penalmente relevante e reprovável. Interessante observar que qualquer pessoa pode figurar como sujeito ativo do crime, pois o legislador não exigiu que o ato seja executado por um profissional da saúde. Pode até ser que haja a participação de médico e pessoa que seja de outra área do saber. O bem jurídico tutelado é a própria dimensão do ser humano em sua natureza individualizada, assim como a proteção ao patrimônio genético da humanidade. Tal tipificação foi incluída na lei com o intuito de proteger o patrimônio genético e o genoma humano. A prática do procedimento de exceção pelos operadores da reprodução humana, não deve afastar o olhar do princípio do primum non nocere que rege a ciência da Bioética e sim fixar na justa causa, que é a procriação. Qualquer invasão das barreiras protetivas pode trazer sérios prejuízos à espécie humana, ferindo-a em sua integridade e até mesmo desconfigurando o patrimônio genético da humanidade. Tem-se a impressão de que se cria uma banalização em tema de tamanha importância, coisificando-o. O desenvolvimento das pesquisas na área da embriologia tem que ser visto com muita cautela, buscando sempre o respeito à dignidade humana para que não corra o risco de ingressar na procriação artificial, afastando todos os valores humanos do casal que desejou a procriação. Enquanto as técnicas são direcionadas para a solução dos problemas de infertilidade, tem sua aceitação e aprovação popular. Quando se distancia das metas optadas pela sociedade, como, por exemplo, a programação para fazer nascer somente homens com características previamente selecionadas, ou a clonagem, a rejeição é total. A legislação mundial repudia a técnica da clonagem por considerar que se trata de um procedimento despojado de ética e que afronta os princípios da própria natureza humana. É sabido, pelas experiências realizadas em animais, que são necessárias muitas tentativas seguidas e destruição de inúmeros embriões para se conseguir atingir o objetivo, que vem se mostrando de pouca eficiência, com reiterados abortos de fetos malformados e com morte em curto espaço de tempo. Sem falar ainda da dificuldade de se estabelecer a vocação genética e a ordem hereditária, para saber quem é o pai, o filho e assim por diante. Aceita-se a intervenção científica que seja para controlar ou até mesmo extirpar definitivamente doenças a fim de que o homem possa usufruir com mais dignidade de sua existência, mas entregar a ela o poder de replicar um ser humano vivo ou que já tenha morrido, foge totalmente do consentimento da humanidade. É até desumano. Mesmo socialmente não se vislumbra nenhum benefício com a replicação do ser humano. Pelo contrário. Todo procedimento tecnológico tem que carregar dividendos para a saúde e vida do homem, pois, do contrário, não poderia se pensar em um trabalho de pesquisa que não objetivasse tais metas.
O registro de nascimento, além de ser um documento de individualização da pessoa na comunidade, integra o direito de personalidade para viabilizar a prática de todos os atos compatíveis com o exercício da cidadania. Antes dele, no entanto, o hospital ou a maternidade onde ocorrer o nascimento, irá emitir a DNV - Declaração de Nascido Vivo, documento de validade provisória, em que constarão o nome, dia, mês e ano do nascimento da criança, sexo, informações sobre gestação múltipla, quando for o caso, além do nome da mãe, naturalidade, profissão, endereço, idade e o nome e prenome do pai. Pelo procedimento convencional o pai ou a mãe, isoladamente ou em conjunto, ou o responsável legal, de posse do DNV, irão buscar o cartório de registro civil do local do nascimento ou no local da residência da criança, no prazo de 15 dias (lei 6015/73), para o registro do assento de nascimento, que é obrigatório e gratuito. Tal prazo pode ser dilatado até 45 dias se ocorrer impedimento ou falta do pai ou da mãe ou até três meses quando os pais residirem em lugares distantes da sede do cartório. Se, porém, o nascimento ocorreu em casa, sem qualquer assistência hospitalar, os genitores ou o responsável legal, poderão ir diretamente ao cartório. O CNJ, no provimento 122/21, traz interessante regulamentação com relação ao assento de nascimento no Registro Civil das Pessoas Naturais nos casos em que o campo "sexo" da declaração de nascido vivo tenha sido preenchido como "ignorado".1 Pelo sistema binário prevalente na CF/88- em que predomina o sexo masculino e feminino sem qualquer outro concorrente - os cartórios não tinham autorização para lavrar o documento nele inserindo sexo "ignorado". Com a nova regulamentação, quando se tratar de ADS - Anomalia de Diferenciação de Sexo, em que fica constatado ictu oculi a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de identificação imediata do sexo, o oficial do cartório irá observar se no campo sexo da DNV foi preenchido como "ignorado". Se assim for, nos mesmos moldes, será lavrado o registro. O registrador, no entanto, recomendará ao declarante a escolha de prenome comum aos dois sexos e, se recusada a proposta, permanecerá o prenome indicado pelo declarante. A genitália ambígua não provoca o surgimento de um terceiro sexo - denominação que vai até mesmo criar mais confusão do que encontrar uma solução adequada - e sim é resultado de uma malformação, conhecida como intersexo, para a identificação da genitália da criança. Ocorre quando as características sexuais não se encaixam no espaço binário dos corpos masculino e feminino, como é o caso dos pacientes hermafroditas, impedidos de conhecer imediatamente o sexo, circunstância que trará sérias complicações familiares e sociais. Tanto é que os pais, erroneamente, podem escolher o sexo para o filho ao nascer, provocando, com o passar do tempo, discordância entre a identidade sexual e a identidade de gênero. O CFM, por sua vez, também se manifestou quando da edição da resolução CFM 1664/03, que estabeleceu as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. Na exposição de motivos faz ver que: "O nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social. Biológica, porque muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco de vida. Social, porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do prognóstico, também do paciente, gera graves transtornos." O provimento 122/21, coerente com a necessidade social, de forma oportuna, estabelece que a designação do sexo poderá ser feita a qualquer tempo por um termo de opção, independentemente de autorização judicial ou de comprovação de realização de cirurgia de designação sexual, de tratamento hormonal, ou de apresentação de laudo médico ou psicológico. Se a pessoa optante estiver sob o poder familiar, será representada ou assistida pela mãe ou pelo pai, mas terá que dar seu consentimento se for maior de 12 anos de idade. É idêntico ao procedimento estabelecido para a alteração do prenome e do gênero no assento de nascimento e casamento de pessoa transgênera, conforme se observa do § 1º do artigo 4º do provimento 73/18, do mesmo órgão. A providência determinada pelo CNJ irá proporcionar às crianças portadoras de anomalias de diferenciação sexual o exercício pleno da cidadania em busca da construção de sua autoimagem, com acesso aos programas sociais relacionados às políticas públicas compatíveis e também aos serviços públicos e privados de saúde. Tal providência vai ao encontro das regras protetivas em favor das crianças no Estatuto da Criança e do Adolescente, conferindo a ela proteção total, desde o nascimento ________ 1 Disponível aqui.
domingo, 3 de novembro de 2024

A morte por suicídio assistido

"Como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se a vida vale a pena ou não sou eu. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade." Antonio Cícero1 Antonio Cícero, poeta com vários livros publicados e letrista de canções imortalizadas na música popular, membro da Academia Brasileira de Letras desde 2017, faleceu aos 79 anos de idade, na cidade de Zurique, na Suíça. Tinha Alzheimer e, em razão disso, passou a considerar que a vida se tornou insuportável e optou por fazer um procedimento de suicídio assistido no mencionado país, que legalizou tal prática desde 1942. O tema morte começa a fazer parte direta da vida das pessoas e a tendência é procurar uma modalidade mais ética que se coadune com a conveniência humana, que tem a morte como o esgotamento de todo o esforço terapêutico e o esvaziamento das reservas de resistência do paciente. Já que o morrer é inafastável, a tendência é buscar uma alternativa que se enquadre nos limites da razoabilidade ética. Mas o homem, na sua incansável evolução, arrebenta os diques das regras consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer, também, em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito das modalidades da morte. A finitude da vida, um tema que vem rompendo com preconceitos estigmatizados, ganha corpo e passa a frequentar a conversa do dia a dia e, apesar de não possuir uma legislação ordinária a respeito no Brasil, conta com resoluções do Conselho Federal de Medicina para disciplinar o procedimento ético do final da vida humana. Basta ver as regulamentações feitas a respeito da ortotanásia, dos cuidados paliativos e das diretivas antecipadas, seguindo o roteiro do princípio da dignidade da pessoa humana, preconizado na Constituição Federal. A morte surge, desta forma, como tema central e até mesmo natural, apesar de o homem resistir a travar discussão a respeito. O anseio das pessoas é ter uma morte rápida, sem sofrimento e, logicamente, após ter exaurido a vida em sua plenitude. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente e, principalmente, quando a pessoa for abandonada à morte amarga (amarae morti ne trada nos). Ao que tudo indica dos relatos feitos pelos amigos, nenhuma dúvida paira a respeito da higidez mental do escritor quando verbalizou sua vontade. Sua decisão foi rapidamente propagada pelo mundo, detonou sentimentos favoráveis e contrários e tocou o cerne da finitude humana, criando um labirinto de dúvidas e incertezas. A respeito do tema pode-se dizer que há inúmeros argumentos favoráveis e contrários à opção da escolha do processo de morrer. O direito de autodeterminação se faz presente no suicídio assistido. A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente. O morrer com dignidade compreende, em situação de sofrimento interminável, transferir a um profissional da saúde não o direito à sua própria vida, mas sim a renúncia ao direito de continuar vivendo em situação angustiante. O suicídio assistido, desta forma, vem a ser a vontade expressa pelo doente, que se encontra em perfeitas condições mentais, de dar fim à sua vida, realizando, ele próprio, os atos para garantir o seu intento, sempre orientado por médico, em razão de uma determinada doença.  No Brasil, é terminantemente proibida a prática do suicídio assistido em razão da norma incriminadora disposta no art. 122 do Código Penal, que pune a modalidade de prestar auxílio ao suicida, compreendendo aqui o fornecimento ou a viabilização dos meios necessários para a prática do ato. Não se confunde com a eutanásia, que é a conduta pela qual o agente pratica um ato específico para colocar fim à vida, em razão da irreversibilidade de uma doença. Na realidade, no suicídio ajudado, a pessoa solicita a um terceiro a colaboração quanto ao meio de atingir seu objetivo, sendo que a ação é do próprio interessado. Pessini, bioeticista com refinada agudeza de espírito, foi incisivo: "No suicídio medicamente assistido, envolve a participação de um médico, na provisão, mas não na administração direta para ajudar a pessoa a abreviar sua vida". 2 __________  1 Disponível aqui. 2 Pessini, Leo. Eutanásia - Porque abreviar a vida? São Paulo: Editora Loyola, 2004, p.127.
domingo, 20 de outubro de 2024

O pacote antifeminicídio

É fato notório, pelos constantes relatos estatísticos, que o crime de feminicídio, apesar do arsenal legislativo existente, vem apresentando um aumento considerável, deixando a entender que o feminicida, sabedor que é do alto grau de periculosidade que reveste sua conduta, não se intimida diante da pena e sim que, conforme vem ocorrendo em escala progressiva e, em muitos casos com requintes de crueldade, faz opção pelos atos de violência, não se importando com as consequências penais referentes ao seu status libertatis. Nova investida legislativa surge com a promulgação da lei 14.994/24, conhecida como "Pacote Antifeminicídio". Pode-se dizer que ordenamento jurídico brasileiro deu um passo fundamental na luta contra a violência perpetrada por razões da condição do sexo feminino da vítima, aumentando a proteção ao bem jurídico tutelado e garantindo maior eficiência ao caráter preventivo positivo e negativo da pena. Em primeiro lugar, é imprescindível compreender a extensão do termo "razões da condição do sexo feminino": (a) no contexto da violência doméstica e familiar e (b) com o menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121-A, § 1º, incisos I e II, do Código Penal). Já surge, aqui, o primeiro questionamento: a mulher trans receberá a nova proteção legal? Não podemos esquecer do fato de que o STJ reconheceu a possibilidade de aplicação da lei Maria da Penha à mulher trans, na medida em que o requisito básico desta proteção é o gênero feminino e não o sexo biológico da vítima.1 Então, caberá agora ao intérprete da lei fixar o alcance da expressão "sexo feminino", contida expressamente no novo crime tipificado no art. 121-A do Código Penal. Ao que parece, levando-se em conta a dignidade da pessoa humana, a vulnerabilidade da vítima e os mandados constitucionais implícitos e explícitos de criminalização, bem como o princípio da proibição da proteção deficiente de bens jurídicos, a mulher trans receberá o alcance da nova lei, não havendo falar-se na vedação da analogia prejudicial ao réu. Desta feita, importante destacar a criação deste novo tipo penal: O feminicídio passou a ser crime autônomo, tipificado no art. 121-A do Código Penal, com penas cominadas em abstrato de 20 a 40 anos de reclusão. Desta forma, o feminicídio, que já era uma das qualificadoras do crime de homicídio, ganha, com essa nova formulação, maior autonomia jurídica, refletindo a gravidade do crime e a necessidade de uma resposta penal mais robusta. Afinal, a partir de agora, é formalmente mais um dos crimes dolosos contra a vida, nominalmente apto a ser objeto de julgamento pelo tribunal popular do júri. Além disso, a nova lei agrava as penas para os crimes correlatos, como lesão corporal e ameaça, perpetrados no mesmo contexto do feminicídio. No caso de lesão corporal, a pena mínima foi majorada para 2 anos de reclusão, com a máxima de 5 anos; para os crimes de injúria, calúnia e difamação, as penalidades agora são dobradas. Outro aspecto central da nova legislação é a alteração na lei Maria da Penha (lei 11.340/06), que passou a prever penas mais rígidas para o descumprimento de medidas protetivas: os patamares da nova sanção vão de 2 a 5 anos de reclusão, o que reflete a tentativa do legislador de buscar maior proteção para a mulher em evidente situação de vulnerabilidade. Mas a nova lei não parou por aí em seus reflexos externos. A lei de execução penal (lei 7.210/84) também foi ajustada, com mudanças substanciais para o cumprimento de pena de agressores. Agora a progressão de regime no feminicídio só será possível após o cumprimento de 55% da pena. Além disso, o uso de tornozeleira eletrônica passa a ser obrigatório para qualquer benefício de saída. E, caso o agressor, durante o cumprimento da pena, venha a ameaçar a vítima, poderá ser transferido para um estabelecimento prisional distante do local onde vive a mulher, como medida de proteção adicional. Mais um ponto notável da reforma é que o crime de ameaça, quando cometido no contexto ora estudado, passar a ser de ação penal pública de iniciativa incondicionada, ou seja, o Estado não necessita mais da autorização (representação) da vítima - conhecida como condição de procedibilidade - para iniciar a persecução penal, o que permite ao Delegado de Polícia instaurar de ofício o competente inquérito policial (caso haja elementos para tanto), bem como ao Ministério Público inaugurar a ação penal, independentemente da manifestação da vítima. Portanto, a corriqueira situação da vítima que, sentindo-se ameaçada pelo agressor, faz cessar a persecução penal (retratando-se da representação oferecida), será sanada, uma vez que a vontade da vítima não é mais considerada para o caminhar do inquérito e do processo penal. As novas disposições também determinam a perda automática de cargos públicos, para condenados por crimes de violência doméstica ou feminicídio, além de vedar assunção às funções públicas durante o cumprimento da pena. O legislador reconhece a gravidade da prática de violência de gênero ao impedir que o agressor permaneça no exercício de qualquer função pública ou cargo eletivo, associando a integridade moral do servidor público à prática de um comportamento socialmente responsável, garantido plena aplicação aos efeitos secundários da condenação penal. Portanto, a lei 14.994/2024 não apenas endurece as penas para crimes contra a mulher, mas também modifica profundamente a forma como o sistema de justiça trata a violência de gênero, inserindo mecanismos de proteção mais rigorosos e ajustados à realidade atual. A promulgação desse pacote legislativo consolida uma importante ferramenta na luta contra o feminicídio e outras formas de violência contra a mulher, fortalecendo o papel do Estado na garantia de segurança e dignidade para as vítimas. ________ 1 Dísponivel aqui.
Muito se tem falado e comentado no país a respeito da assistência à saúde, erigida como dogma constitucional. O cidadão passa a ser sujeito de pleno direito e o Estado o detentor da obrigatoriedade de cumprir todas as metas estabelecidas nas políticas sociais que visem reduzir o risco de doenças, compreendendo acesso universal e igualitário às ações e serviços que tenham por objetivo a proteção e recuperação do cidadão enfermo e sem condições financeiras de arcar com os custos dos medicamentos. Apesar de se constatar um exagerado crescimento no sistema estatal, os recursos direcionados para a saúde, por mais que sejam representativos, serão insuficientes, minguando progressivamente e dificultando sua redistribuição. A mera formalidade assistencialista, totalmente distorcida da realidade social brasileira, criou uma frustração da expectativa popular, que foi buscar a satisfação de suas necessidades junto ao órgão jurisdicional.  A Justiça passou a determinar ao Estado a obrigatoriedade de cumprir o mandamento constitucional com a distribuição de medicamentos de alto custo para as pessoas menos favorecidas financeiramente. A vida humana, como bem maior, indisponível, com obrigação vinculativa ao Estado, ingressou na esfera de prioridade de atendimento, pois a dimensão humana não pode ser edificada com o bem-estar de uma camada reduzida de pessoas com poder aquisitivo e o consequente mal-estar da mais pobre.  Quando se fala em alto custo de medicamento ou tratamento relacionado com a saúde não se estabelece um parâmetro objetivo calcado sobre uma determinada renda ou valores equivalentes a tantos salários mínimos. O que se leva em conta é o valor exacerbado do medicamento, quer seja vendido no país ou no exterior e que sua aquisição se torne impossível para o doente ou seu representante que, com seu ganho, mesmo que encartado numa faixa razoável, não terá condições de adquiri-lo. Isto porque se leva em consideração os gastos com a manutenção da moradia, saúde, educação, sustento e satisfação dos familiares. De nada adianta o indivíduo desembolsar dinheiro destinado a suprir as necessidades básicas ou até mesmo contrair empréstimos bancários se não terá condições de honrá-los. O plenário do STF, recentemente, dando continuidade ao julgamento do processo RE 566471, de março de 2020, com tese de repercussão geral, estabeleceu as regras e parâmetros para toda decisão judicial que apreciar pleito relacionado com medicamentos registrados na ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, mas que não foram inseridos ainda no SUS - Sistema Único de Saúde, independentemente do custo. A regra básica a ser seguida determina que se o medicamento não estiver incluído na dispensação do SUS - composto pelo RENAME, RESME, REMUNE e outras - impede a prolação de sentença judicial para fornecimento do fármaco, sem levar em consideração o seu custo. Tal regra, no entanto, foi atenuada e com razoável abertura permite, excepcionalmente, prevalecer a concessão de decisão judicial desde que o autor da ação, titular e responsável pelo onus probandi, demonstre, cumulativamente, de forma inequívoca, as seguintes condições: negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa; ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou da mora na sua apreciação; impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS e dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas; comprovação, à luz da medicina baseada em evidências, da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do fármaco, necessariamente respaldadas por evidências científicas de alto nível; imprescindibilidade clínica do tratamento, comprovada mediante laudo médico fundamentado, descrevendo inclusive qual o tratamento já realizado; incapacidade financeira de arcar com o custeio do medicamento. Fica mais do que evidenciado que a decisão, ora em comento, observou princípios salutares, principalmente com maior incidência na área da saúde. Dentre eles, merecem destaques o da igualdade de acesso à saúde, a eficiência das políticas públicas, o respeito à medicina baseada em evidências e a escassez dos recursos públicos destinados à saúde. Além, é claro, dos princípios da beneficência e da justiça distributiva, ambos da bioética. Buscou-se, desta forma, um critério modulador ou até mesmo uma plataforma em que será analisada criteriosamente a realidade clínica do paciente e demais requisitos apontados, para evitar a judicialização excessiva e, consequentemente, prejuízos à população que depende do SUS. Se ausente um dos requisitos estabelecidos - observando que a exigência compreende a concorrência simultânea de todos eles - o pleito judicial será indeferido de plano.
No mês de outubro, na configuração dada anualmente no Brasil para prevenção de doenças, comemora-se Outubro Rosa, que teve seu berço em Nova York no ano de 1990, e tem por finalidade propagar uma ação mundial, difusa, compreendendo vários movimentos que se unem em torno da ideia, com a finalidade específica de alertar as mulheres a respeito da prevenção do câncer de mama e, principalmente, na busca do diagnóstico precoce, quando ainda há grande chance para um tratamento exitoso.  Tamanha consistência adquiriu a iniciativa que o próprio Estado já se apresenta como seu arauto e desempenha importante papel nesta tarefa, pois cabe a ele a missão constitucional de patrocinar políticas públicas em favor das mulheres que visem à redução de doenças, tendo como prioridade as ações preventivas. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, neste ano de 2024, abraçaram a causa com a campanha: "A sua saúde merece um toque de atenção". A escalada da biotecnologia e os avanços científicos na área da saúde proporcionaram novos caminhos alternativos, muitas vezes verdadeiros atalhos providenciais, que conduzem mais rapidamente a diagnósticos de doenças que seriam detectadas muito tempo após, já sem chances de cura.  Assim, nesta linha de pensamento, o governo editou a lei 11.664/08, que dispõe sobre a efetivação de ações de saúde que assegurem a prevenção, a detecção, o tratamento e o seguimento dos cânceres do colo uterino, de mama e colorretal no âmbito do SUS - Sistema Único de Saúde. Referida lei confere assistência integral à saúde da mulher, incluindo o trabalho informativo e educativo sobre a prevenção, disponibiliza o exame de mamografia para mulheres a partir de 40 anos de idade, com vistas à detecção, tratamento, controle ou seguimento pós-tratamento da doença. Trata-se da aplicação do princípio bioético da justiça distributiva, tendo como sustentáculo uma ação beneficente obrigatória para que o bem-estar individual possa atingir o bem-estar coletivo, sem peculiaridades diferenciadoras da pessoa humana, em razão da isonomia e da dignidade que a reveste.  A assistência diferenciada vem contida também no art. 2º da lei 12.732/12, que assegura ao paciente o prazo máximo de 30 dias para que sejam realizados os exames para a confirmação do câncer, quando de tratar de neoplasia maligna, cujo tratamento deve ser iniciado no SUS, no prazo de até 60 dias, contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico em laudo patológico ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso, registrada em prontuário único.  Portaria posterior do Ministério da Saúde (1.220/14) mitigou a interpretação da lei dos 60 dias e passou a considerar o prazo a partir da data do diagnóstico da doença no exame (laudo patológico), ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso registrada em prontuário. Quer dizer, a data da assinatura do laudo patológico apontará o termo inicial (dies a quo) para a contagem do prazo de 60 dias, obrigando os gestores públicos a tal determinação.  Indo além e alcançando a vontade que o legislador deixou transparecer na lei citada, a Agência Nacional de Saúde Suplementar expediu a Nota Técnica 876/13 ampliando a cobertura obrigatória dos planos de saúde, agora para detectar doenças genéticas. Dentre elas destacam-se a análise dos genes BRCA1/BRCA2, relacionados com câncer de mama e ovário hereditários, mediante a prescrição de um geneticista, a partir de 2/1/14. É, sem dúvida, um novo caminho que se abre em termos de prevenção de doença. Basta ver a decisão de Angelina Jolie ao se submeter a uma mastectomia dupla (retirada dos seios) porque, segundo os médicos, carregava 87% de chances de desenvolver o mesmo câncer que vitimou sua mãe. A decisão foi tomada após a realização de um mapeamento genético, capaz de detectar o crescimento das células defeituosas, com o consequente viciamento do DNA. A lei 12.880/13, em seu art. 1º, inclui entre as coberturas dos planos privados de assistência à saúde os tratamentos antineoplásicos de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia. Já a lei 12.802/13, por sua vez, obriga o SUS a realizar cirurgia plástica reparadora da mama, logo após a retirada do câncer, quando presentes as condições médicas. Ausentes, a paciente será encaminhada para posterior cirurgia reparadora. É interessante consignar que mulheres submetidas à mastectomia podem fazer a substituição da Carteira de Habilitação Comum para a Especial, benefício que lhes trará, na compra de um veículo, a isenção dos impostos IPI, ICMS e IPVA. E, se em razão da doença, ficarem incapacitadas para a atividade laboral, podem requerer o auxílio doença e ainda pleitear o saque do FGTS. Finalizando, o SUS oferece a cirurgia de laqueadura para a mulher que conta com mais de 21 anos ou, pelo menos dois filhos vivos, não mais exigindo a autorização do cônjuge ou companheiro, conforme atualização operada pela lei 14.443/22 na lei que disciplina o planejamento familiar (lei 9.263/96). Sabido que o câncer de mama é mais frequente acima de 35 anos de idade e representa uma das principais causas de morte das mulheres, o Outubro Rosa passa a exercer importância primordial para indicar as vias adequadas para o exame preventivo, assim como o tratamento e o combate à doença já instalada.
domingo, 29 de setembro de 2024

Testemunhas de Jeová e a decisão do STF

O STF, seguindo a pauta programada, analisou de um só vez dois processos de repercussão geral envolvendo tratamento médico de pessoas que professam a religião testemunhas de Jeová, que, como é sabido, não permite o recebimento de sangue proveniente de outra pessoa. Um deles, por meio do RE 1212.272, trata-se de um caso em que a paciente, por motivo religioso, apesar de ter assinado o termo de consentimento Informado, negou-se a assinar o termo referente à autorização prévia de eventual transfusão sanguínea de substituição de válvula aórtica, em cirurgia realizada em rede pública de saúde. Justificou em seu pleito judicial que se trata de uma ofensa à sua dignidade e ao acesso à saúde, contestando a nítida interferência estatal. Há muito tempo a justiça, principalmente a de 1º grau, profere decisões conflitantes a respeito do tema, ora prestigiando e reforçando a recusa, ora determinando, coercitivamente, a realização do procedimento. A decisão unânime da Corte Maior foi no sentido de que os seguidores da religião Testemunhas de Jeová, maiores e capazes, por convicção religiosa, podem recusar tratamentos médicos que utilizem a transfusão de sangue e o poder público, consequentemente, deve arcar com as despesas dos tratamentos alternativos disponíveis no SUS. Assim, pelo menos no tocante ao cerne da decisão - que tangencia direitos fundamentais previstos na CF/88, dentre eles, com relevo, a liberdade de consciência e de crença, a dignidade humana e a proteção à saúde. No campo da ciência Bioética, por sua vez, criou-se uma colidência entre os princípios da autonomia da vontade do paciente e o da beneficência, sendo que o primeiro deles recebeu o placet dos ministros. O princípio da autonomia da vontade do paciente, viga mestra do código de ética médica1, outorga ao seu titular o direito de se manifestar a respeito de eventual tratamento proposto pelo médico, demonstrando, de forma inequívoca, que sua vontade é de vital importância para se chegar à uniformidade de uma decisão. Na realidade, no estado atual, pelo recorte feito no referido código deontológico, a relação médico-paciente deve retratar uma verdadeira sintonia, na medida em que ambos dividem responsabilidades paritárias a respeito do conteúdo terapêutico. De qualquer forma, numa explicação mais singela, o paciente, como sujeito de autonomia, é detentor da legitimidade de confabular com o profissional de saúde, selecionar, dentre as opções apresentadas, a que julgar a mais conveniente Tem-se que, por outro lado, e o que vinha prevalecendo até então, a vida humana representa um bem indisponível, com tutela integral da CF/88 que a erigiu como o bem maior do homem, distinguindo-a com a proteção de todos os direitos fundamentais que a revestem. Assim, nesta linha de pensamento, há ativa participação estatal na preservação da vida, não prevalecendo, no caso, eventual recusa impeditiva do paciente na transfusão de sangue, conforme decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo: "Em que pesem as referidas convicções religiosas da apelante que, não obstante lhe são asseguradas constitucionalmente, a verdade é que a vida deve prevalecer acima de qualquer liberdade de crença religiosa".2 O princípio da beneficência, por sua vez, integra o atendimento médico e é erigido como um dos sustentáculos da boa prática da ars curandi.  Daí que o médico deve ofertar ao paciente os cuidados que sejam condizentes com suas necessidades, adotar a melhor estratégia terapêutica e se empenhar em conferir a ele os mais variados tratamentos com as melhores e mais recomendáveis tecnologias, eliminando ou reduzindo eventual risco no momento presente e futuro, distanciando-se cada vez mais de danos que possam ser identificados. Enfim, é envidar todos os esforços, para beneficiar o paciente com a qualidade do atendimento e tratamento proposto, com a mínima probabilidade de dano e, principalmente, sem a redução dos benefícios. Com a quebra do princípio da beneficência e a prevalência da autonomia da vontade, deixa de ser aplicado o procedimento previsto no protocolo médico, que ofertava total segurança ao paciente, sendo substituído por tratamento alternativo, que pode não produzir resultados tão satisfatórios. ________ 1 Resolução CFM 2.217/2018, modificada pelas Resoluções CFM 2222/18 e 2226/19. 2 TJ-SP autoriza transfusão em paciente contrária ao procedimento por motivos religiosos.
domingo, 15 de setembro de 2024

Setembro amarelo: Suicídio

Alguns temas não frequentam com assiduidade o noticiário e as redes sociais, como é o caso, por exemplo, do suicídio, que aflora ocasionalmente quando desponta algum assunto relacionado com sua prevenção. E é importante que haja continuidade nos debates, que geralmente se instalam em ambiente de alta fermentação coletiva para buscar uma decisão que seja satisfatória à população. A ABP - Associação Brasileira de Psiquiatria em parceria com o CFM - Conselho Federal de Medicina inseriu no calendário nacional a campanha Setembro Amarelo, que, neste ano, carrega o lema: "Se precisar, peça ajuda". Amarelo para representar a cor que Mike Emme, jovem norte-americano de 17 anos, que cometeu suicídio, pintou seu Mustang 68. Em seu velório, os pais e amigos distribuíram cartões amarrados com fitas amarelas e com mensagens de apoio para quem estivesse enfrentando o mesmo problema. Referido mês foi escolhido para alavancar no Brasil a campanha de conscientização a respeito da prevenção ao suicídio. Visando oferecer políticas públicas direcionadas ao tema, o governo editou a lei 13.819/19 instituindo a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio a ser implementada pela União, em colaboração com os estados, municípios e distrito Federal. Compreendem na lei a violência autoprovocada, o suicídio consumado, a tentativa de suicídio e todo ato de automutilação, com ou sem ideação suicida. Traz ainda, dentre outros objetivos, a promoção à saúde mental, a prevenção à violência autoprovocada e o acesso às pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, notadamente àquelas com ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio, envolvendo entidades da saúde, educação, comunicação, imprensa e polícia, entre outras. No caso específico do suicídio, os objetivos da campanha cingem-se na promoção da saúde mental com a finalidade de: a) garantir o acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, especialmente daquelas com histórico de ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio; b) abordar adequadamente os familiares e as pessoas próximas das vítimas de suicídio e garantir-lhes assistência psicossocial; c) informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e a relevância das lesões autoprovocadas como problemas de saúde pública passíveis de prevenção e promover a articulação intersetorial para a prevenção do suicídio. Uma das formas de comunicação será o serviço telefônico ou qualquer outra modalidade de comunicação destinada ao serviço gratuito e sigiloso de pessoas em sofrimento psíquico, observando que o atendimento deverá ser prestado por profissional com qualificação adequada. Fica bem delineado o espírito educativo e preventivo da lei quando se refere à assistência às pessoas em sofrimento psíquico e, principalmente, quando elege os profissionais da psicologia e da psiquiatria como os qualificados para a prestação da assistência necessária e adequada. O zelo pela saúde mental da comunidade é de vital importância. É sabido que pessoas portadoras de sofrimento psíquico se perdem em seus próprios pensamentos, persistem em suas ideias errôneas, indolentes, não sabem para onde ir e não se abrem para assimilar novas perspectivas de vida, a não ser os reiterados choques de negatividade. A porta de entrada recomendada oficialmente é a UBS - Unidade Básica de Saúde e também os CAPS - Centros de Atenção Psicossocial, serviços de saúde abertos à comunidade ofertando retaguarda clínica e outros pertinentes à saúde mental. A saúde psíquica do cidadão, a exemplo da definição de saúde da OMS, integra todos os cuidados de saúde, independentemente das condicionantes sociais, ambientais, econômicos e outras, visando sempre a atingir o bem comum. Desta forma, detectada a vulnerabilidade em razão do sofrimento psíquico, o próprio Estado deve garantir políticas públicas de atendimento preventivo com as condições necessárias e acessíveis a todos os que se encontram sob o mesmo quadro clínico mental, com absoluta proteção da confidencialidade das informações. Tamanha é a importância da atenção voltada às pessoas com sofrimento psíquico que os casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada, compreendendo o suicídio consumado, suicídio tentado ou qualquer ato de automutilação, com ou sem ideação suicida, são de notificação compulsória, de caráter sigiloso. Assim os estabelecimentos públicos e privados de saúde devem notificar as autoridades sanitárias, ao passo que os estabelecimentos públicos e privados de ensino farão a notificação ao Conselho Tutelar. Com tal aparato, as medidas devem atingir resultados que sejam considerados satisfatórios ao minorar a mortalidade em razão do suicídio, em cumprimento à obrigatoriedade imposta ao Estado pelo art. 196 da Constituição Federal, atentando ainda que a OMS apontou a população jovem, na faixa etária de 15 a 24 anos, período em que se registra o maior número de suicídio.
domingo, 8 de setembro de 2024

Setembro Verde e a doação de órgãos

O Brasil carrega vocação natural para a realização de transplantes. Para tanto, celebra no dia 27 de setembro - data instituída pela lei 11.584/2007 - o Dia Nacional da Doação de Órgãos, campanha que leva o nome de Setembro Verde, para conscientizar a comunidade brasileira a respeito da importância da doação. Dá-se o nome de transplante ou transplantação ao procedimento cirúrgico pelo qual se insere num organismo denominado hospedeiro, um tecido ou órgão, colhido de um doador. Autotransplante, assim designado, ou transplante autoplástico, quando é feita a transferência de tecidos de um lugar para outro, no mesmo organismo, como ocorre com as cirurgias de "ponte de safena". Homotransplante ou transplante homólogo quando se dá entre indivíduos da mesma espécie, embora geneticamente diferentes. Xenotransplante, quando ocorre a transferência de um órgão ou tecido entre espécies diferentes, como é o estágio atual das pesquisas envolvendo animais como doadores de órgãos para receptores humanos. No Brasil, em razão do que dispõe a lei 9434/97, somente é permitida a doação de órgãos, tecidos e partes do próprio corpo vivo, feita por quem seja capaz, desde que se trate de órgãos duplos, como os rins ou partes renováveis do corpo humano, que não coloquem em risco a vida ou a integridade física e que também não comprometam as funções vitais do doador. Além disso, por ser uma regra de exceção, a doação para fins terapêuticos ou para transplantes, só pode contemplar o cônjuge, parentes consanguíneos até o 4º grau, ou ainda mais excepcionalmente, qualquer outra pessoa, desde que seja mediante autorização judicial. O procedimento será realizado em estabelecimentos de saúde públicos ou privados credenciados, assim como por equipes médicas especializadas. Quando se tratar de doação post mortem, há necessidade da comprovação da morte encefálica, com a juntada dos exames realizados para sua confirmação e da autorização do cônjuge ou parente em linha reta ou colateral até o segundo grau. A opção registrada pela pessoa em vida como doadora, inscrita na Carteira Nacional de Trânsito ou na Carteira de Identidade, perdeu sua eficácia a partir da Lei 10.211, de março de 2001. A vontade da pessoa quando viva não se sobrepõe à de seus parentes. Eles que irão decidir a respeito da doação de órgãos vitais do cadáver, que podem, numa bem sucedida manipulação médica, ser úteis a outras pessoas, como é o caso de doação de rins, córnea, coração, pulmões e pâncreas, com procedimentos bem desenvolvidos. Com a boa cautela, o legislador retirou do alcance legal o sangue, mesmo o extraído da medula óssea, o esperma e o óvulo. As finalidades humanitárias e solidárias justificam plenamente a opção legislativa. A respeito da autonomia da prevalência da vontade do doador em ofertar seus órgãos ainda em vida, o Corregedor Nacional de Justiça, considerando a necessidade de simplificar e tornar mais eficiente a doação de órgãos, expediu o recente Provimento nº 164, de 27 de março de 2024, criando a utilização de um mecanismo seguro e gratuito, instituiu a Doação Eletrônica de Órgãos, Tecidos e Partes do Corpo Humano (www.aedo.org.br), símbolo da campanha "Um Só Coração: seja vida na vida de alguém." Aludido documento representa, por si só, a manifestação de vontade da parte interessada em fazer a doação e pode ser elaborado perante tabelião de notas acessando o módulo específico do e-Notoriado, local onde será alojada a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO), gratuitamente. Qualquer cidadão maior de 18 anos tem legitimidade para fazer valer sua vontade post mortem, ou revogar a que foi feita anteriormente. Ocorre que, mesmo com a Autorização Eletrônica, há necessidade de se cumprir o regramento contido no artigo 4º da Lei nº 9.434/97, que confere legitimidade exclusiva de doação ao cônjuge ou parente maior de idade, obedecida a linha sucessória reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive. O Provimento é apresentado em um bom momento em que a comunidade brasileira vem colaborando com a doação de órgãos e tecidos, proporcionando um sensível aumento no número de transplantes. Embora não modifique a lei que trata da matéria, traz uma nova opção para ampliar o leque de doação e, todo movimento neste sentido, proporcionará significativo impulso para revitalizar ainda mais o procedimento de transplantação.