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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 7 de setembro de 2025

O embrião e seu direito alimentar

É importante destacar que a legislação brasileira, com foco não só nos direitos fundamentais explicitados na Constituição Federal, lança também seu radar para outras pretensões encobertas e difusas, mas já presentes e consistentes nos acontecimentos do dia a dia. O Direito, em razão da premente necessidade social, deixou de ser um instrumento de articulação teórica relacionado com a busca de uma sustentação legal para amparar determinada pretensão e saiu a campo como um agente desbravador e inovador, com capacidade suficiente de gerenciar situações até mesmo inusitadas e que exigem uma pronta definição. Para atingir suas metas e franquear o acesso aos seus diversos eixos, de um lado conta com a própria dinamização da sociedade que vai adquirindo e assimilando novas posturas e, de outro, com a colaboração indispensável da ciência, principalmente aquela relacionada com pesquisas e técnicas aprovadas como apropriadas para os seres humanos. Com tal roupagem o Direito desbrava novos campos e incorpora muitas conquistas aparentemente inatingíveis e que gravitam em torno do homem, tais como as questões relacionadas com a criança, o adolescente, o idoso, a pessoa com deficiência e muitas outras. Um tema que frequentemente suscita interesse é aquele voltado para o embrião e, especificamente, na conquista do direito de pleitear o já reconhecido alimentos gravídicos. No Brasil ainda tramita, desde 2007, o Estatuto do Nascituro, que certamente provocará intensos debates envolvendo desde a concepção, do início da vida humana, dos direitos reprodutivos da mulher, como também as variações a respeito do procedimento da reprodução humana. Nossa legislação, sem o auxílio da engenharia genética, possibilitava o ajuizamento da ação de alimentos somente após o nascimento com vida. O avanço na área da reprodução humana, regulamentada hoje pela resolução 2.320/22, do Conselho Federal de Medicina, foi tão acentuado que, num repente, a fecundação intraútero, que até então era o critério norteador do início da spes vitae, desloca-se para a manipulação humana extracorpórea com a consequente formação de embriões. Assim credenciado, desde que seja o embrião fecundado intraútero, em razão de sua vulnerabilidade, conta com a tutela protetiva do princípio da dignidade da pessoa humana, dogma constitucional inafastável e irretocável que, pela melhor hermenêutica, encarta a mais ampla interpretação possível, embora não seja ele ainda considerado como pessoa humana. O Código Civil, em seu artigo 2º, é taxativo em afirmar: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Tanto é que o legislador pátrio, visando cobrir a lacuna legislativa, elaborou a lei 11.804/2008 com o propósito de atingir a concessão de alimentos devidos ao nascituro. A esse respeito até o Estatuto da Criança e do Adolescente, na sua linha de tutela específica, acrescenta ainda o direito de proteção à vida e à saúde, proporcionando um nascimento sadio e harmonioso à criança e em condições dignas de existência. A lei que trata dos alimentos gravídicos confere o direito à mulher gestante, não casada e que também não viva em união estável, de receber alimentos, desde a concepção até o parto. Para tanto, deverá ingressar com o pedido judicial em desfavor do futuro pai. O juiz decidirá, no âmbito de uma cognição sumária, com base nos indícios de paternidade, a obrigação alimentar do pretenso pai, que poderá contestar, mas em restrito núcleo cognitivo também. Os alimentos fixados permanecerão até o nascimento com vida, quando serão convertidos em pensão alimentícia e, a partir deste marco, poderão ser revistos por uma das partes. Apesar de a lei referir-se a "alimentos gravídicos", o termo mais adequado com a realidade legislativa, pelo menos no âmbito jurídico, seria "alimentos ao nascituro", que compreendem as despesas relacionadas com a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames, internações, parto e medicamentos indispensáveis, além de outras que o juiz considerar pertinentes. Apesar de ser a gestante a legitimada para invocar a tutela jurisdicional, a proteção jurídica é voltada para o embrião, que além de carregar a linha genética da família, compreendendo as características físicas e eventuais doenças, representa uma nova individualidade, com identidade sui generis norteada pela capacidade jurídica do nascituro.
A cada dia que passa o mundo vai se transformando rapidamente. A revolução tecnológica cresce a passos largos e o homem, que a ela se incorpora com a mais grata satisfação - isto porque carrega promessas e vantagens incomparáveis e incontáveis com as oferecidas até então pelo cotidiano - não percebe que está sendo dominado por uma inteligência, embora artificial e por ele mesmo criada, com o rigorismo da mais perfeita tecnologia. Quando se fala em inteligência artificial dá-se a impressão que o tema pertence a mais distante ficção científica, justamente por incorporar um mundo ainda não experimentado. Mark Twain tinha razão quando afirmava que a principal diferença entre a ficção e realidade é que a ficção tinha que ter um conteúdo de credibilidade, enquanto a realidade gozava de pleno crédito. Mas a realidade faz ver que já convivemos com ela, que apenas iniciou seus primeiros passos com algoritmos altamente inteligentes com suporte racional suficiente para resolver, com perfeição, os mais intrincados problemas que o ser humano demandaria muito tempo para equacioná-los, sem contar, ainda, com a grande margem de erros. A inteligência do homem não nasce pronta, vai se criando com o tempo pelos métodos convencionais de ensino e vai se alimentando da observação de tudo que vê ao seu redor, constituindo-se na soma de experiências de inúmeras áreas do saber, trilhando, desta forma, as chamadas inteligências múltiplas, percorrendo o caminho que leva à sabedoria. As nações, na realidade, se preocupam em disputar a primazia e o poderio do progresso humano na busca de um super-homem, não se importando muito com o bem estar do ser humano. Ocorre que, pela limitação do homem, até então não vencida pela ciência, o foco é utilizar uma máquina e programá-la para executar tarefas de várias ordens, copiando, no que for possível, os comportamentos humanos. Desta forma, receberá ela as atividades cognitivas semelhantes às do cérebro humano, que é formado por dois hemisférios bem definidos. Tanto é que, com tal pensamento, foi criado o computador "Deep Blue", com especialidade no jogo de xadrez, que em 1997 venceu Gary Kasparov, campeão mundial da categoria. Com total pertinência e acuidade necessária a consistente observação feita por Guarcello, em obra recentemente lançada: No entanto, o mundo mudou de forma drástica no último século, impulsionado pelo avanço da tecnologia e pela revolução digital. Novos modelos de negócios surgiram, muitos dos quais passaram a utilizar ferramentas modernas e inovadoras para substituir não apenas o trabalho humano, mas estruturas empresariais inteiras. Brevemente, por exemplo, um robô poderá ser capaz de criar um novo produto utilizando inteligência artificial - sem qualquer supervisão humana.1 Assim, as novas máquinas passaram a executar tarefas para as quais foram programadas. Com o aperfeiçoamento que lhes confere o homem e com a introdução dos modelos conexionistas, que copia o funcionamento do cérebro humano, fazendo a interação adequada com vieses cognitivos especializados para realizar determinadas tarefas, podem, muitas vezes, em poucos segundos, resolver problemas que o homem consumiria horas ou dias para solucioná-los. Nesta linha de raciocínio, a máquina pode traduzir um difícil e complexo texto que causaria aflição além de enorme grau de dificuldade ao mais experiente profissional, porém, não irá compreender o seu significado. "As máquinas, esclarece eticamente De Masi, por mais sofisticadas e inteligentes que sejam, não poderão jamais substituir o homem nas atividades criativas.2 O avanço incansável na área da inteligência artificial, que cada vez amplia mais as interrogações a respeito de suas fronteiras, causa certa inquietação à humanidade. Pelo que se percebe e se anuncia, em pouco tempo, o corpo humano será dotado de sensores para, numa rápida leitura biométrica, fornecer informações a respeito de todos os estímulos, emoções, sensações que passam no interior da pessoa, fazendo revelações até mesmo desconhecidas pelo próprio ser humano. Sem falar ainda dos carros autônomos que transitarão pelas ruas sem a convencional figura do motorista; os drones que riscarão os céus para se incumbirem de entregas de produtos; os robôs que substituirão os serviçais e outros mais. Sem cogitar, também, da criação da memória afetiva para a máquina, que passa a ser programada para uma superinteligência artificial e, a partir daí, poderá disputar espaços com seu criador, destronando-o com facilidade, vindo a assumir o controle do universo. Faz lembrar a peça do autor checo Karel Tchápek, A Fábrica de Robôs, escrita em 1920, em que os robôs criados com a finalidade de executar todas as funções de uma indústria, após atingirem altíssimo índice de produtividade, revoltaram-se e destruíram o sistema. Com traços humanoides, assumem a linha de frente e extinguem a sociedade que os projetou, considerando-a sem importância. Os direitos fundamentais, que hoje são proclamados na Constituição Federal, deverão ser revistos porque, com a nova dimensão da IA, a nascente tecnologia deverá tutelar os "neurodireitos", impedindo que a mente humana seja acessada e até mesmo manipulada, acarretando sérias consequências e prejuízos à pessoa. Faz repetir a sensação descrita por Harari: "A mão fria do passado emerge do túmulo dos nossos ancestrais, nos agarra pelo pescoço e nos força a olhar na direção de um único futuro. Sentimos esta constrição desde o momento em que nascemos. E assim presumimos que ela é parte natural e inescapável do que somos.3 _______ 1 Guarcello, Glaucia. Menos forescast, mais foresight. Editora Alínea, 2025, p. 37. 2 De Masi, Domenico. O ócio criativo - Entrevista a Maria Serena Palieri-. Tradução de Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p. 107. 3 Harari, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Tradução Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 67.
domingo, 24 de agosto de 2025

Você, seu sangue e sua medula óssea

Machado de Assis, com sua sensibilidade descritiva aguçada, mestre da observação psicológica, romântico e parnasiano-realista, querendo satisfazer uma curiosidade a respeito da influência do sangue no ser humano, fez uma incursão na área do xenotransplante. Pela experiência narrada, Stroibus e Pítias, dois amigos filósofos e cientistas, descobriram que se a pessoa ingerir o sangue do rato irá tornar-se ratoneiro, da coruja, sábia, da aranha, arquiteta, da andorinha, viajante, da rola, fidelidade conjugal, do pavão, vaidade. Tomaram o sangue de rato. Foram presos na corte de Ptolomeu e condenados à morte por seguidos furtos de raras obras literárias da biblioteca de Alexandria.1 É certo que a ficção científica nunca foi o campo preferido do Bruxo do Cosme Velho e nem mesmo propôs a popularização dos achados científicos, mas faz ver que o homem sempre se interessou por aventuras biológicas relacionadas com o sangue. Tamanha verdade que a própria ciência médica entabulou os procedimentos envolvendo transplantes sanguíneos com inquestionáveis sucessos para a saúde humana. E assim é possível caracterizar o homem como proprietário de um imenso latifúndio, chamado corpo humano e, ao mesmo tempo em que representa um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcionar a continuidade da humanidade. As novas práticas médicas produzem uma mudança no humano e, consequentemente, realidades no mundo exterior com reflexo imediato no bem-estar da pessoa. A doação de órgãos e tecidos no Brasil é feita inter vivos, modalidade em que qualquer pessoa capaz poderá consentir e, na impossibilidade, seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo) ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consanguíneos até o quarto grau, ou qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada em relação à medula óssea. Sempre e sempre a título gratuito, em razão do disposto no art. 199 § 4.º da Constituição Federal e da lei 9.434/1997, em seu art. 1º. Percebe-se, pelo relato legislativo, que a pessoa não divide com o Estado a legitimidade de doar sua medula óssea e pode fazê-lo a quem lhe aprouver, prevalecendo sua autonomia. Na realidade, a doação nada mais é do que um ato de comunhão, de alteridade, levando-se em consideração que a natureza humana tem como sustentáculo o altruísmo. O sangue que circula no corpo ou se aloja na medula óssea de uma pessoa, tem compatibilidade para se transferir para outro corpo e restaurar uma vida atingida por doenças que afetam as células, como as leucemias. É, por um lado, uma doação representando um gesto de extrema solidariedade, com rápida reconstituição do material doado e, por outro, a única chance de vida para o doente receptor. Diga-se, de passagem, a esse respeito, que serve de parâmetro a lei 13.289, de 20/5/16, que criou o selo Empresa Solidária com a Vida, destinado às empresas que desenvolvem programa de esclarecimento e incentivo aos seus funcionários para que sejam doadores de sangue e medula óssea.2 Para ser doador de sangue basta possuir boas condições de saúde e ter entre 16 e 69 anos, desde que a primeira doação tenha sido feita até os 60 anos e pesar mais de 50 kg. A lei permite a doação feita por adolescente, mas exige o termo de autorização assinado por um dos pais ou pelo responsável legal. Admite-se a doação feita por homem até quatro vezes ao ano, obedecendo um período de 60 dias de intervalo. Quando mulher, até três doações, com intervalo de 90 dias. A doação de medula óssea, por sua vez, pode ser feita por qualquer pessoa entre 18 a 55 anos de idade, no gozo de boas condições de saúde. O procedimento é invasivo e se resume na retirada do sangue do interior dos ossos da bacia, mediante punções. O material coletado irá determinar as características genéticas que são exigidas para a compatibilidade entre doador e paciente, por meio de um sistema que realiza o cruzamento de informações entre ambos, visando a realização do transplante. Em caso de compatibilidade, o doador será comunicado e nasce daí a necessidade de se fazer a atualização constante do cadastro, quando se submeterá a exames complementares. Tamanha é a importância do procedimento que o transplante também pode ser realizado com a utilização de células-tronco de cordão umbilical de recém-nascidos, preservadas e doadas voluntariamente pelas mães. Geralmente o doador é procurado na família. Se a busca não der resultado positivo, faz-se a consulta ao Redome - Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea que, por sua vez, age articulado com o cadastro mundial, sendo as buscas realizadas simultaneamente no Brasil e nos bancos internacionais. Assim, quanto maior o número de pessoas inscritas, maior a possibilidade de se encontrar doador compatível. Com as novas tecnologias apontadas para aprimorar a vida e o bem-estar do homem, respeitadas as condições exigidas, qualquer um pode ser doador e irá contribuir imensamente com a construção de uma sólida formação em humanidades. Basta procurar pelo hemocentro mais próximo e manifestar o interesse. É, sem dúvida, um ato de extremada solidariedade, revelador de um sentimento humanitário digno de todo respeito e admiração, demonstrando que a natureza humana proporciona o bem-estar àquele que é saudável e acode o vulnerável com os recursos do corpo humano alheio. ________ 1 Conto Alexandrino, escrito em 1884. Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 
O Brasil, apesar de sua vasta extensão territorial e de sua população expressiva, passa a ser o único país que criou um sistema de atendimento à saúde que, entre outros princípios, carrega o da universalidade. Justamente em razão dessa peculiaridade cumpre integralmente o preceito disciplinado no art. 196 da Constituição Federal em que figura como órgão provedor e entrega a gratuidade dos serviços de saúde, que são financiados com recursos da União, Estados, Distrito Federal e municípios. Para tanto, além de várias investidas - sempre com a intenção de oferecer mais dividendos de saúde para a população - criou a Ouvidoria do SUS, que constitui um dos principais canais de participação e controle social dentro da Administração Pública em saúde. Mais do que um espaço de atendimento ao cidadão, é um instrumento estratégico de gestão que viabiliza o diálogo entre a população e os gestores públicos, promovendo transparência, responsabilização e a melhoria contínua dos serviços de saúde. No Estado de São Paulo, a Ouvidoria Geral do SUS, vinculada à SES/SP - Secretaria de Estado da Saúde, atua como articuladora de uma vasta e capilarizada rede de ouvidorias, presente tanto na esfera estadual quanto nas gestões municipais. Essa rede representa um elo fundamental entre o cidadão e o sistema de saúde, contribuindo, de forma decisiva, para o aperfeiçoamento das políticas públicas e para o fortalecimento da democracia participativa. Ao contrário das ouvidorias gerais, que possuem uma atuação transversal nas diversas áreas da Administração Pública, a Ouvidoria do SUS possui um escopo de atuação especializado, técnico e orientado por princípios e diretrizes constitucionais próprios do sistema de saúde brasileiro. Sua função vai além do simples acolhimento de manifestações: ela escuta, analisa, encaminha, acompanha e devolve respostas aos usuários, sempre com foco na qualificação da gestão pública e dos serviços prestados. A escuta qualificada é um dos pilares fundamentais da Ouvidoria do SUS. Isso significa tratar cada manifestação com atenção, respeito e compromisso, garantindo ao cidadão o direito de ser ouvido, compreendido e ter sua manifestação analisada de forma técnica e justa. Essa prática promove o acolhimento e a humanização do atendimento e fortalece a confiança da população nas instituições públicas de saúde. A atuação da Ouvidoria do SUS é orientada por princípios fundamentais, que garantem não apenas a sua efetividade, mas também sua legitimidade social: 1.      Universalidade: Assegura que todo cidadão, independentemente de sua origem, condição ou localização, tenha direito de se manifestar sobre os serviços de saúde, sendo acolhido de maneira ampla e humanizada.   2.      Equidade: Oferece múltiplos canais de acesso - como atendimento presencial, telefone, carta, e-mail ou mídias digitais - para garantir que todos tenham a possibilidade de se expressar da forma mais compatível com sua realidade. 3.      Regionalização: Por meio da presença de ouvidorias em Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde, permite o atendimento mais próximo das demandas locais, respeitando as especificidades de cada território e promovendo maior eficácia e transparência nas respostas. 4.      Hierarquização: Respeita a organização dos níveis de atenção à saúde, articulando-se com os diversos componentes da rede assistencial do SUS de forma estruturada e coerente. 5.      Descentralização: Fortalece a presença das ouvidorias em todo o território, aproximando a escuta da realidade vivida pela população e facilitando a avaliação dos serviços com base nas experiências reais dos usuários. 6.      Participação Popular: Constitui um dos elementos mais importantes da Ouvidoria, pois garante que a população tenha voz ativa na gestão do SUS, contribuindo para a construção de políticas públicas mais eficientes, justas e alinhadas às reais necessidades da sociedade. A robustez da estrutura da Ouvidoria do SUS no Estado de São Paulo é reflexo do compromisso com a escuta cidadã e com a melhoria da gestão em saúde. Atualmente, a Rede de Ouvidorias da SES/SP conta com mais de 650 ouvidorias distribuídas entre os níveis estadual e municipal. Essa presença capilarizada permite uma cobertura eficiente em todo o território paulista, alcançando populações das mais diversas realidades e contextos. Mais de 870 profissionais atuam nessa rede, sendo que cada unidade de saúde possui ao um Ouvidor responsável, comprometido com a escuta qualificada e com a interlocução entre o cidadão e os serviços públicos. Embora nem todas as unidades disponham de equipes completas, a atuação em rede viabiliza o compartilhamento de informações, o apoio técnico e a padronização de procedimentos, garantindo um padrão de qualidade em toda a rede de atendimento. Além disso, a Ouvidoria Geral do SUS - SES/SP - realiza webconferências regulares com os profissionais da rede, promovendo capacitação continuada, alinhamento de práticas e atualização sobre temas estratégicos. Esses encontros abordam aspectos como: gestão e melhoria dos processos de trabalho; atualizações legislativas e normativas sobre ouvidorias; compartilhamento de experiências e boas práticas entre ouvidores; monitoramento e análise de indicadores de desempenho; uso de sistemas informatizados de registro e acompanhamento de manifestações, além de temas técnicos e operacionais ligados à gestão e à atenção em saúde. Essas iniciativas fortalecem a coesão da rede, aumentam a eficiência do atendimento e promovem a transparência institucional, traduzindo as manifestações dos cidadãos em subsídios reais para a melhoria do SUS. A relevância da atuação da Ouvidoria do SUS está na sua capacidade de transformar a escuta em ação. As manifestações recebidas - que podem incluir elogios, reclamações, denúncias, sugestões e solicitações - são insumos valiosos para o aprimoramento da gestão pública. Elas permitem identificar falhas, mapear gargalos, propor ajustes e até reformular políticas públicas com base na percepção e experiência direta dos usuários do sistema. É, sim, uma via de reciprocidade em que o cidadão oferta sua colaboração, seja lá a que título for, e recebe a devolutiva esperada. Nesse sentido, a Ouvidoria não apenas reage aos problemas, mas antecipa soluções e orienta a gestão pública para um modelo mais eficiente, participativo e centrado no cidadão. Ao devolver à sociedade respostas fundamentadas e mudanças efetivas, fortalece-se a confiança da população nas instituições e se consolida um modelo de governança pública mais transparente, justo e democrático. A Ouvidoria do SUS no Estado de São Paulo, com todos os seus encargos, é muito mais que um canal de atendimento: é uma ferramenta estratégica de gestão, um espaço de cidadania ativa e um elo indispensável entre a população e os gestores do sistema de saúde. Sua atuação qualificada, descentralizada e integrada fortalece o SUS, promove a melhoria contínua dos serviços e reafirma o compromisso do Estado com uma saúde pública acessível, equitativa e de qualidade. Ao acolher a voz do cidadão e transformá-la em ação, a Ouvidoria cumpre sua missão de contribuir para um SUS mais eficiente, humano e próximo das necessidades reais da população.
domingo, 10 de agosto de 2025

Uma carta com poesia ao pai

O título não é nada original. É de uma carta, posteriormente transformada em livro, que o autor checo Franz Kafka escreveu para seu pai. Carta de desabafo, por considerá-lo tirano, ditador e que, provavelmente, tenha exercido influência direta em suas obras, pelo caráter irônico da existência e do culto extremado do absurdo. O pai, no entanto, jamais recebeu a missiva. Deixando de lado a revolta kafkiana, desperta a atenção de qualquer filho escrever uma carta ao pai, principalmente nos dias de hoje.  Ao pai presente, ao ausente, seja porque se foi ou porque nunca quis ser, ao pai são e ao doente, ao pai jovem e ao experiente, ao pai discípulo e ao docente, ao pai que divide a alegria, ao silente do dia a dia, ao pai, enfim, seja lá qual ele for. Escrever ao pai que você gostaria de homenageá-lo no seu dia, entregar a ele o mais caloroso dos abraços, proporcionar a melhor festa, com o cardápio do seu gosto, com a caloria da comida e do afeto, contar a história de sua vida, buscar seu assunto predileto, com muita calma, sem traumas. Fazer como os românticos romanos: acordar cedo, colher a mais bela flor do dia -carpe diem- e depositar a de cor branca para aquele que já partiu e a de cor vermelha para aquele com quem compartilha este mundo feito um jardim. Escrever ao pai, com letras garrafais, que você o tem como amigo, o melhor parceiro, que divide corpo e alma por inteiro, com a total liberdade de vasculhar os segredos do seu coração. Segurar em suas mãos e saltar o fosso, vencer o pantanoso e movediço solo, com total segurança, como se ainda fosse criança. Abrir as comportas da infância e encontrar seu herói, seu paladino, com poderes quase divino, a protegê-lo nesta aventura maravilhosa chamada vida, sem vergonha de ser feliz, como propõe o refrão musical. Escrever ao pai que você gostaria de dar as mais deliciosas gargalhadas, de suas histórias e piadas, com suas palavras curtas e ricas, de ouvir a repetição constante das novidades já envelhecidas, dos sonhos cantados em trovas e versos, como o conquistador do universo. Tamanho o êxtase que daria asas e afagos para a imaginação, pegaria carona nas nuvens sombrias do horizonte, faria caricaturas no céu e brincaria de ciranda com as estrelas, sem querer ouvi-las como o poeta.       Escrever ao pai que você sofreu reveses sucessivos, que foi tocado pelo desespero, mas encontrou, lá no fundo, tudo junto, no nascedouro, a semente de fé e esperança que ele lançou e emergiu rompendo o círculo vicioso da boa crença. Narrar que na sua vida você já se viu diante de feridos tentando juntar seus cacos pelos caminhos e você os recolheu e os assistiu, pela bandeira de solidariedade que carrega. Escrever ao pai relatando o quanto você o admira pela maneira simples e prazerosa de encarar a vida quando com ela fala, quando enche seu coração de júbilo e destila generosidade e respeito ao próximo, alma nobre e sem idade que, certamente, ganhará o passaporte para a eternidade. Contar a ele, em letras de forma que, quando fechava os olhos, ouvidos e razão, abria, de todas as formas o coração, pulsando-o com paixão. Escrever ao pai para que ele saiba que, agora como pai, você vem enfrentando suas cruzadas com as armas balizadas para arrostar os moinhos eleitos e que os ecos de seus feitos ainda reverberam. E também que ele saiba que seu filho vai levar a marca do bom guerreiro, a do pai, fiel amigo e companheiro, além de perpetuar a relação cultivada bem estreita com a felicidade. Se a sua carta já estiver pronta, entregue-a o mais rápido possível, pessoalmente, de preferência. O escrito lacra o sentimento da sua gratidão. Se, no entanto, ele já se foi, revisite você mesmo e lá irá encontrar alojado em seu coração aquela imagem inesquecível, adornada de sentimentos e emoções que a vida continua a proporcionar.                                                           
domingo, 3 de agosto de 2025

Um dilema bioético

Recordo-me de uma peculiar situação, que chamou muito minha atenção para um dilema eminentemente bioético, em que uma mãe invocou a tutela jurisdicional em desfavor do próprio filho, portador de plena capacidade de discernimento, com o objetivo de obrigá-lo a se submeter a sessões de hemodiálise, vez que era portador de uma doença que impedia o funcionamento normal dos rins. O filho, com 22 anos de idade, que já se negara a realizar o procedimento de transplante em duas oportunidades, entendeu que a recusa ao tratamento era direito seu. Todas as vezes em que um tema com perfil bioético como o relatado bate às portas da Justiça, em razão da inusitada articulação, provoca sempre muitos questionamentos relacionados com a própria complexidade do homem e de sua determinação com relação à vida e à morte.  A cultura do povo brasileiro apresenta dogmas inquebrantáveis a respeito da vida e, a própria Constituição Federal conferiu a inviolabilidade necessária para a preservação do direito à vida. Assim, diante destas ponderações, é mais adequado entender que a mãe esteja agindo de forma correta e até mesmo providencial, pois pretende conferir a necessária assistência médica ao filho. Porém, já não é mais detentora da legitimidade de pleitear benefícios em favor dele, em razão de sua maioridade e capacidade para a realização dos atos da vida civil. Mas, não se pode negar também que é difícil aceitar uma conduta passiva da mãe diante da recusa do filho em se cuidar. O imbróglio ganha proporção maior quando vem à tona o princípio da autonomia da vontade do paciente, um dos basilares da bioética, consagrado de forma definitiva no Código de Ética Médica, (resolução CFM 2.217/18), que confere a total liberdade de manifestação diante de opções médicas apresentadas para o enfrentamento de uma determinada doença, cabendo ao paciente aceitar uma delas ou a todas recusar, de acordo com seus critérios de conveniência. O homem, na imensidão dos direitos humanos conquistados, ingressou numa esfera protetiva individualizada, de tal forma que o profissional da área da saúde, que fez o juramento hipocrático, dentre eles o de lutar pela prevalência da vida humana, vê-se obrigado a se curvar diante da manifestação de qualquer direito assegurado ao paciente. O paternalismo, que durante muitos anos imperou na ars curandi, passa agora pelo crivo da justiça e somente poderá levar adiante o propósito profissional se não ferir as camadas protetivas da cidadania. Estabelece-se, desta forma, um patamar de Justiça na colidência existente entre a intervenção médica, que seria a recomendada para a moléstia, e a negativa do paciente em autorizá-la, de acordo com a sua capacidade de autogoverno. Com a precisão acadêmica que lhe é peculiar, Gracia, enaltecendo o direito do paciente, enfatiza: "Este é quem tem de dizer o que considera bom para si, não o profissional. Não se pode fazer as pessoas felizes à força. Ou melhor, há que deixar que cada um viva de acordo com sua ideia de felicidade".1 Quer dizer, a decisão do paciente é tão importante que supera até mesmo a recomendação médica, baseada no princípio da beneficência, para a realização de um determinado procedimento que possa produzir resultados satisfatórios, como também a súplica familiar para anular a resistência ao tratamento. No caso examinado a Justiça agiu cum grano salis, com a cautela recomendada. De um lado foi confirmado que o paciente reúne todas as condições de discernimento com relação à sua conduta, embora apresente, por outro lado, imaturidade afetiva e emocional, circunstância que, por si só, autorizou a medida pleiteada. É racional para entender a gravidade do caso, mas, ao mesmo tempo, ignora o esforço familiar para reverter seu quadro clínico para que possa obter um resultado satisfatório e equilibrar sua saúde. Mas não se pode dizer que o filho esteja infringindo qualquer conteúdo legal. Pelo contrário. A Constituição Federal, no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos assevera que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". A legislação brasileira, que preza a vida como um bem indisponível e merecedor de toda tutela estatal, por sua vez, não estimula a prática do suicídio e muito menos permite a realização do suicídio assistido. Mas, respeita a decisão da pessoa humana diante da recusa de se submeter a um tratamento médico recomendado. Fala mais alto a voz da consciência do paciente do que todo aparato médico colocado à sua disposição. Na realidade, ele não está fazendo a opção pela morte e sim pela não realização de tratamento, que não trará qualquer benefício. É até difícil aceitar esta nova postura sabendo que a recusa ao tratamento poderá acarretar danos maiores à saúde. Mas o divisor agora determinante é justamente a autonomia da vontade do paciente, encartada definitivamente na dignitas hominis. O filósofo italiano Ordine, em seu reconhecido manifesto, fazendo referência a Pico Della Mirandola, revela que a dignidade humana se baseia no livre arbítrio e proclama que "quando Deus criou o homem, não podendo atribuir-lhe nada específico, porque tudo já havia sido concedido aos outros seres viventes, decidiu deixá-lo indefinido, para conceder a ele mesmo a liberdade de escolher o seu próprio destino".2 1 Gracia, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2010, p. 313. 2 Ordine, Nuccio. A utilidade do inútil: um manifesto. Tradução Luiz Carlos Bombassaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 155.
domingo, 27 de julho de 2025

Múltiplas doações de órgãos

No Brasil, somente é permitida a doação de órgãos, tecidos e partes do próprio corpo vivo, feita por quem seja capaz, desde que se trate de órgãos duplos, como os rins ou partes renováveis do corpo humano, que não coloquem em risco a vida ou a integridade física e que também não comprometam as funções vitais do doador. Além disso, por ser uma regra de exceção, a doação para fins terapêuticos ou para transplantes, só pode contemplar o cônjuge, parentes consanguíneos até o 4º grau, ou ainda mais excepcionalmente, qualquer outra pessoa, desde que seja mediante autorização judicial. O procedimento será realizado em estabelecimentos de saúde públicos ou privados credenciados, assim como por equipes médicas especializadas. Quando, no entanto, se tratar de doação post mortem, há necessidade da comprovação da morte encefálica, com a juntada dos exames realizados para sua confirmação e da autorização do cônjuge ou parente em linha colateral ou reta até o segundo grau.           Nem sempre, porém, ocorre a doação de órgãos. Após o evento morte, familiares são consultados a respeito da autorização para doar os órgãos do parente. É, sem dúvida, um momento crucial e que pode fazer prevalecer o sentimento altruísta ou o silêncio que acompanha a própria morte emudecida na vala da impotência. A morte ocorre com a falência da atividade encefálica, mesmo que os outros órgãos estejam ativos, ainda que impulsionados por drogas e aparelhos. A volição, as ordens, a manipulação de todo sistema nervoso, dos órgãos sensoriais, são ditadas pelo cérebro, que é o administrador deste grande latifúndio chamado corpo humano. Pois bem. Confirmada a morte encefálica pelos exames neurológicos realizados por dois médicos não participantes das equipes de captação ou transplante, com aptidões específicas, faz-se a comunicação à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Estado, que indicará o nome do receptor, devidamente cadastrado. De nada valerá a doação feita em vida, aquela em que a pessoa fazia constar da CNH sua intenção de doar seus órgãos. Esta declaração perdeu validade e a legislação revogadora legitima somente o cônjuge ou parente maior de idade até o segundo grau, para autorizar a retirada dos órgãos (lei 10.211/2001). É muito difícil para a família decidir a respeito da doação de vários órgãos e tecidos de um ente que faleceu, às vezes prematuramente. Em primeiro lugar, porque nunca se cogitou sobre tal possibilidade e, em segundo, porque carece de informações a respeito do ato. Na realidade, o sentimento que aflora de imediato é para que fique intocável o cadáver, de tal forma que ele represente sempre a imagem última do ente falecido. Se o homem ainda não se encontra preparado para a vida, muito distante se encontra da morte. Daí o dilema crucial em autorizar a retirada de órgãos. Se o falecido, em vida, deixou transparecer que tinha intenção de fazer a doação de seus órgãos, a decisão fica mais fácil. Os responsáveis pela autorização não se inibirão e, prontamente, assinarão o termo autorizativo. Do contrário, sempre ocorrerá uma junta familiar para decidir a respeito da doação. É sempre um momento difícil porque concorre com o evento morte, em que, por ironia, o paciente ainda registra batimento cardíaco, mesmo com a declaração da morte encefálica. Dá-se a impressão que é um apressamento da morte, uma modalidade de eutanásia. Na verdade, é a oportunidade única para se decidir a respeito da doação, pois o paciente já expirou em razão da falência do tronco cerebral. A vida se esvaiu e no leito há um corpo movido a uma propulsão biológica conduzida, por tempo limitado. A morte determina o divórcio inevitável da pessoa e da sua vida biológica. Morre a pessoa e assume o cadáver.  A disponibilidade do corpo tem seus limites e somente poderá ocorrer quando, para fins terapêuticos e humanitários, ficar evidenciado o benefício. Sacrifica-se um bem em favor de outro, levando-se em consideração o progresso das técnicas médicas que possibilitam uma reposição com considerável margem de sucesso.   Descobre-se agora que o corpo humano é um repositório infindável de órgãos, com a possibilidade de doá-los e recebê-los. E, importante, sem conhecer o receptor beneficiado. É um ato de extrema solidariedade revelador de um sentimento indizível que transcende a natureza humana, merecedor de todo respeito e admiração. Vale a pena lembrar o verso do poeta Renato Castelo Branco: "Posso partir, porque já semeei minhas sementes. Podes plantar meu corpo no ventre do mundo".
Na última década vem-se notando um recrudescimento de epidemias que se encontravam controladas ao longo do tempo, em razão de não se atingir a média satisfatória de imunização, principalmente das crianças, com notável redução dos índices de cobertura. É o caso, por exemplo, do sarampo, cujo vírus voltou a circular no país. Muitos genitores, em razão de informações errôneas, equivocadas e sensacionalistas, e outros levados pela própria convicção, deixaram de realizar a cobertura vacinal dos filhos, em evidente flagrante de descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar. Em alguns casos, em razão de risco eminente, há até a intervenção da Justiça com a finalidade de estabelecer um prazo determinado para que os pais fossem obrigados a providenciar a imunização dos filhos. O PNI - Plano Nacional de Imunizações, criado em 1973, tem como objetivos o controle e a erradicação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis, visando proporcionar melhor qualidade de vida às pessoas, com o fornecimento de cerca de 20 vacinas para todas as faixas etárias, disponíveis gratuitamente nas Unidades Básicas de Saúde. Entre as doenças imunopreveníveis por essas vacinas estão a poliomielite1, sarampo2, rubéola3, tétano4, coqueluche5, além de outras doenças graves. Geralmente produzem reações leves, de pouca duração e sem efeitos colaterais. Assim, por ser um dever inerente ao poder familiar, de nenhuma valia a escusa dos pais. Pode até ser que a recusa dos genitores tenha alguma fundamentação contrária à imunização, porém a decisão do casal não é suficiente para afrontar o comprometimento familiar erigido no texto constitucional. Em razão dessa determinação legal, os pais devem tomar todas as providências e praticar as ações necessárias para realizar a efetivação dos direitos referentes à saúde da prole. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente é incisivo ao afirmar que "é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades públicas", de acordo com o art. 14, parágrafo único, impondo uma multa de 23 salários de referência, que será aplicada em dobro em caso de reincidência, consoante o art. 249 da legislação menorista, além do que pode ensejar a instauração de processo penal contra os responsáveis pela criança pelo crime de maus tratos, vez que desencadearam uma situação de vulnerabilidade. Assim, as autoridades da saúde, após elegerem as melhores políticas públicas para o país, elencando um rol de vacinas recomendadas para as diversas idades das crianças, provocam uma vinculação de obrigatoriedade por parte dos responsáveis. Tanto é que, para o controle do Estado e dos pais, criou-se a caderneta de vacinação, exigida em muitas oportunidades. A omissão dos responsáveis, além de provocar o abuso de autoridade parental, também quebra o princípio da paternidade responsável e a violação do melhor interesse da criança. O STJ decidiu, recentemente, que os pais que não vacinaram os filhos contra a Covid-19 podem ser multados. Isto porque o STF considerou constitucional a obrigatoriedade da imunização, desde que a vacina tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou que sua aplicação seja imposta por lei.6 A não imunização, pela desídia dos genitores, não prejudica somente os filhos do casal. Exerce uma expansão difusa, abrangendo e colocando em risco toda uma comunidade. O filho não é propriedade exclusiva dos pais, como acontecia no Direito Romano que conferia ao pátrio poder o direito de vida e morte sobre eles (jus vitae et necis). Com o nascimento é ungido com a cidadania que confere a ele a personalidade civil de pessoa, tornando-o sujeito de direitos com todos os atributos legais, a começar pela dignidade prevista constitucionalmente. Biologicamente o filho carrega o DNA dos pais, porém é detentor de personalidade própria e conta com a tutela protetiva integral desde a tenra idade, período em que os seus representantes devem suprir todas as esferas de interesse para o seu bem-estar. Pode-se dizer que não prevalece, in casu, a autonomia de vontade dos pais porque o bem que está em jogo tem dupla proteção: uma, a individual, direcionada à saúde do próprio filho, conferindo a ele os cuidados necessários; a outra, de caráter difuso, é a voltada para a própria coletividade, que é o bem maior e o objetivo da realização da saúde pública. Pairando colidência entre o Estado e o indivíduo, devem prevalecer os interesses do ente que exerce maior cobertura protetiva. A vontade dos responsáveis não atinge a prole quando se tratar de tema em que há a obrigação legal cogente. Cogita-se até mesmo de se inserir na legislação uma norma de apresentação obrigatória da carteira de imunização como pré-requisito para a matrícula escolar. Mas tal exigência não resiste ao crivo da constitucionalidade. A criança não pode ser prejudicada por não ter acesso à escola pela negligência dos pais. Seria duplamente penalizada. Tanto é que a falta de atualização da carteira de vacinação não pode impedir a matrícula escolar, devendo a situação ser regularizada no prazo de sessenta dias pelo responsável, sob pena de comunicação ao Conselho Tutelar para as providências, de acordo com o art. 4º da lei paulista 17.252/20. Finalmente, cumpre salientar que o Ministério Público, dentre as atribuições conferidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é o órgão legitimado para promover as medidas de proteção às crianças e adolescentes cujos direitos sejam ameaçados, violados ou não reconhecidos, segundo preceitua o art. 98 do Estatuto menorista. 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui.
domingo, 13 de julho de 2025

A relevância do teste do pezinho

A medicina vai buscando cada vez mais caminhos estreitos para ganhar o interior do corpo humano e dele extrair a leitura do Código genético. Michel Foucault norteou seu pensamento filosófico por canais extensos, muitas vezes rompendo barreiras que se apresentavam intransponíveis e, no saldo positivo de suas conquistas, deixou relevantes contribuições para a humanidade, principalmente quando enfrentou os procedimentos e políticas ditadas pelo Estado para se ocupar do homem como ser vivente, intervindo na população para deitar regras a respeito dos nascimentos, mortes, taxas de reprodução, fertilidade e outras correlatas. Os avanços da biotecnologia e da biotecnociência ganham corpo e projetam-se em muitas áreas da saúde, principalmente na engenharia genética, iniciada após a decifração do DNA. Há um fascínio incontrolável do pesquisador em vencer todas as barreiras que se apresentam e, a um só tempo, encontrar tecnologias conceptivas que sejam seguras e viáveis, com o total controle sobre o patrimônio genético. É até natural, pois o homem - pelo seu próprio comportamento e em razão da inteligência de que é dotado - carrega uma característica investigativa e pesquisadora voltada para conhecer os mistérios que desafiam e rondam seu mundo interior. A lei 9.263/1996, regulamentando o § 7º do art. 226 da Constituição Federal - que trata do planejamento familiar a ser desenvolvido por ações preventivas e educativas - estabeleceu como atividades básicas a assistência à concepção e contracepção, atendimento pré-natal, a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato, além do controle das doenças sexualmente transmissíveis e prevenção dos cânceres de mama, próstata e pênis. O Ministério da Saúde, na esteira de buscar benefícios para o cidadão, criou inédito programa de saúde visando identificar casais que carregam riscos genéticos hereditários e, para tanto, propõe a eles a realização de uma investigação laboratorial para evitar o nascimento de criança com a mesma doença. Trata-se do aconselhamento genético com a finalidade de orientar e ajudar as pessoas portadoras de doenças genéticas com o risco de recorrência nos familiares, ofertando o diagnóstico e o manejo disponível. Nesta mesma linha de assistência encontra-se o chamado "teste do pezinho" (lei 8.069/1990), de caráter preventivo, gratuito e obrigatório, disponível nas redes hospitalares, a ser realizado no período entre o terceiro e quinto dia de vida da criança, a partir das gotinhas de sangue extraídas do calcanhar do recém-nascido, com a finalidade de detectar precocemente a existência de até sete doenças raras e graves, possibilitando um diagnóstico que irá conferir o tratamento adequado de tais moléstias, com a chance de extirpá-las. Pode, também, ampliar a pesquisa que terá seu campo dilatado para cerca de cinquenta doenças, igualmente raras e severas. O teste do pezinho, que integra a Triagem Neonatal na política pública de saúde preventiva, tem como suporte legal o dever do Estado de reduzir os riscos de doenças e ao acesso às ações voltadas para a proteção e recuperação da saúde, conforme proclama o art. 196 da Constituição Federal. É de se observar, por se tratar de uma ação preventiva, que há outras modalidades de exames, como, por exemplo, o teste da orelhinha (acuidade auditiva); o teste do olhinho (reflexo vermelho nos olhos); o teste do coraçãozinho (oximetria de pulso) e o teste da linguinha (frênulo lingual). A Constituição Federal do Brasil, no § 7º do art. 226, apregoa que "o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas". Fica explicitado que incumbe ao Estado a responsabilidade de conscientizar as famílias a quem cabe definir o número de filhos. Diferentemente de países que exercem o controle populacional.  É preciso sim conscientizar cada vez mais os pais, orientando-os a respeito da importância da realização do teste do pezinho e os benefícios contidos no procedimento. Trata-se, na realidade, de proporcionar à criança uma proteção prioritária e integral com a intenção de conferir a ela o dividendo contido no princípio bioético da beneficência, desde o nascimento, contribuindo, dessa forma, pela progressão de uma vida sem riscos graves para a saúde. 
domingo, 6 de julho de 2025

Quando a vida e a morte se confundem

Do Estado americano da Geórgia veio a notícia de que uma mulher com 30 anos, somando nove semanas de gravidez, teve a morte encefálica declarada e, a partir desse evento, passou a ser mantida em suporte de vida com a intenção de proteger o embrião para que pudesse se desenvolver dentro de um padrão de viabilidade. No Brasil ocorreu fato semelhante. Uma mulher, com 21 anos, grávida de gêmeos, sofreu uma grave hemorragia cerebral. Levada ao hospital, apesar dos esforços médicos, o quadro evoluiu para pior e três dias após a internação foi declarada sua morte encefálica. A gestação iniciava o segundo mês e a equipe médica decidiu mantê-la biologicamente viva para que os embriões pudessem se desenvolver. Um verdadeiro aparato médico envolvendo também enfermeiros, fisioterapeutas e nutricionistas monitoraram 24h a gestação artificial. Até música infantil fez parte do ambiente da UTI. Os bebês nasceram pouco antes de completar sete meses, com saúde compatível com os prematuros da idade. Elogiável a conduta da equipe responsável pela manutenção da gestação que não mediu esforços para conseguir levar a bom termo o nascimento das crianças, contando, também, com o apoio e autorização da família, assim como o parecer favorável da Comissão de Bioética do hospital. A morte encefálica, diferentemente da cardiopulmonar, introduzida há pouco tempo na área médica, justamente para facilitar a doação de órgãos, tem lugar quando todas as medidas de suporte vital resultaram fracassadas, fazendo ver que o paciente se encontra em situação de irreversibilidade absoluta. Não se confunde com a prática eutanásica, que é a conduta em que, por ação ou omissão, alguém antecipa a morte de um doente que, apesar da gravidade da doença, ainda tem vida encefálica. No Brasil, a decretação da morte encefálica foi permitida pela lei 9.434/1997, estabelecendo que será registrada por dois médicos que não sejam participantes da equipe transplantadora e que obedecerão, os critérios clínicos e tecnológicos definidos pela resolução do Conselho Federal de Medicina. O primeiro deles consiste na realização do exame clínico, que deve ser repetido pelo prazo mínimo de seis horas de observação. O segundo deve ser realizado obrigatoriamente por um médico neurologista. Após, faz-se os exames complementares utilizando-se a angiografia cerebral, o eletroencefalograma, a cintilografia de perfusão cerebral ou ultrassom cerebral com Doppler e outros, se necessários. Vencido tais procedimentos o paciente é juridicamente declarado morto. Tem-se que, apesar dos sinais vitais permanecerem, a vida já se escoou e o corpo humano nada mais é do que um cadáver. Assim, no caso da mãe que teve a morte encefálica declarada, toda conduta daí por diante foi realizada no cadáver, seguindo as normas éticas e jurídicas para tanto. Todo o tratamento dispensado foi no sentido de manter a mãe como se viva fosse para que pudesse exercer com sucesso a função de incubadora viva. Desta forma, como por ironia, habitam o mesmo corpo a vida e a morte e, fora dele, eventuais receptores aguardam a doação de órgãos. A morte, já consumada, independentemente de qualquer utilização que se queira dar aos órgãos, tecidos e partes do cadáver, observando sempre a necessidade do consentimento do cônjuge ou parente na linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive. A vida, por representar o bem maior e supremo do homem, patrocinada com todo privilégio pela Constituição Federal, é detentora da prioridade absoluta. E sem necessitar do consentimento de qualquer parente legitimado. No embate entre os dois opostos, a vida tem toda a preferência, mesmo ocorrendo no útero de mãe já morta. Tanto é que a hipótese de aborto foi descartada pela própria legislação penal, deixando a entender que, com a morte da mãe, os embriões que se encontravam em condições de continuar sua peregrinação uterina, seriam também declarados mortos. Diante de tal quadro, os gêmeos que habitavam a silenciosa clausura, tiveram todo o aparato médico para que pudessem nascer com condições de saúde condizentes com a desconfortável situação em que se encontravam. Tais nascimentos são abrigados pelo pensamento bioético e contam com a aprovação do Direito. A vida humana, de inestimável valor, deve prevalecer em qualquer hipótese de perigo e cabe ao homem praticar as condutas necessárias para fazer prevalecer a spes vitae.
domingo, 29 de junho de 2025

O obeso e a caneta emagrecedora

A Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária exigiu, em Reunião Ordinária Pública da Diretoria Colegiada, tanto a prescrição médica em duas vias e também, a retenção dela para a aquisição de medicamentos análogos ao hormônio GLP-1, como, por exemplo, Mounjaro, Ozempic, Wegovy e outros, conhecidos vulgarmente por canetas emagrecedoras para o tratamento de diabetes e obesidade, a partir do dia 23/6. A medida tem perfeita aderência porque, principalmente para atingir um emagrecimento satisfatório, aumentou e em muito o consumo do medicamento e daí pode acarretar danos à saúde pública, quer seja pela automedicação, quer seja pelo uso inadequado do fármaco. Percebe-se, até com certa expectativa, que a inovação do medicamento, principalmente relacionado à obesidade, tem todo potencial para trazer dividendos de saúde para as pessoas que se encontram acima do peso e que são portadoras de comorbidades. Estudos da Organização Mundial de Saúde, que elegeu a obesidade como a doença do século XXI, revelam que 30% da população mundial sofre com sobrepeso e obesidade e que um adolescente nestas condições tem mais de 70% de chance de se tornar um adulto obeso. E este mesmo órgão, que definiu o anoréxico como o portador do IMC igual ou inferior a 18, classificou o obeso como o portador do IMC igual ou maior a 30.   A obesidade é uma condição crônica relacionada diretamente com a saúde pública e, pelo que se deduz das estatísticas publicadas anualmente, vem, literalmente, ganhando corpo em visível crescimento na população brasileira, apresentando-se não só como doença, mas também como fator de risco para outras moléstias, principalmente em período de quadro epidemiológico. Percebe-se, por outro lado, um crescimento considerável da obesidade entre crianças e adolescentes que, desde a mais tenra idade, vêm convivendo em ambientes obesogênicos, tanto por ingerirem alimentos ultraprocessados, como pelos comportamentos sedentários. Da mesma forma que a anorexia, o excesso de peso provoca problemas graves para a saúde, pois, a exemplo do que acontece nos EUA, país que lidera o ranking do tecido adiposo, a população brasileira se alimenta de produtos ricos em gordura e carboidrato, que ficam alojados no organismo. O crescimento desordenado da população obesa atinge graus de morbidade e passa a ser um problema de saúde pública, que deve acudir as doenças decorrentes da obesidade, tais como: cardiovasculares, diabetes, câncer, hepatite, apneia do sono, estresse e outras. Todo indivíduo sabe que o controle do peso é um fator importante para gozar de boa saúde. Já foi a época do Renascentismo em que a beleza feminina era mais roliça, conforme se vê da Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Hoje, a beleza toma uma forma mais esquálida na qual a magreza deve prevalecer. Porém, não se pode levar a obesidade a ponto de impedir a pessoa de exercer suas funções rotineiras, nem mesmo privá-la do lazer. O que deve ser levado em consideração para a avaliação de uma pessoa não é unicamente a massa corporal e sim a competência, a inteligência e a aptidão para viver com dignidade e realizar seus projetos de vida. Se o Estado pretende, na esfera de seus objetivos sociais, ditar regras específicas a respeito da saúde pública, notadamente com medidas proibitivas aos obesos, deve desenvolver programas de proteção à saúde dessa nova categoria, orientando-a a conter o controle de seu peso, com políticas claras de nutrição saudável e balanceada, além de possibilitar com maior frequência o acesso à cirurgia bariátrica, mais conhecida como redutora de estômago. Cria-se, desta forma, para o Estado-providência, outra proteção e agora relacionada com o fantasma da obesidade que ronda o país. Aí sim fica justificada a intromissão estatal nesta área de intimidade pessoal.  É importante observar que, na lista de benefício para a saúde humana, a Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias - responsável pela análise e incorporação ou alteração de tecnologias e assistência terapêutica no âmbito do SUS - Sistema Único de Saúde - abriu Consulta Pública a respeito da incorporação do medicamento Wegovy no SUS.
domingo, 22 de junho de 2025

O corpo e o padrão de beleza

O ser humano, pela sua própria natureza, preocupa-se com o seu bem-estar e estabelece regras rígidas de estética para o seu próprio corpo. Para tanto, muitas vezes, como um bom espartano, frequenta academias e praças de exercício para conseguir um peso que lhe seja satisfatório, de acordo com o programa de saúde adotado e com os objetivos almejados. O modelo de beleza, principalmente o feminino, está intimamente ligado aos padrões internacionais, sempre capitaneados pelas famosas musas que ocupam as passarelas. Assim, cada um leva sua vida de acordo com os critérios escolhidos, compreendendo todas as opções praticadas na sociedade, com sua autonomia e independência, fazendo aquilo que for de seu interesse para alcançar os objetivos de vida propostos, sem, no entanto, colidir com o do alheio. Quer dizer, no universo das diferenças, procura-se um senso comum que seja do agrado de todos, não só no relacionamento entre as pessoas, mas também na estética do próprio corpo. O padrão de beleza evolui com os critérios da própria humanidade. Cada época adota seu modelo, entoando o ritmo do let's stay young forever. Atualmente, pelas exigências da indústria da moda, as modelos devem apresentar um corpo cada vez mais magro. Para tanto, sacrificam-se e muitas vezes rejeitam alimentos ou fingem saboreá-los, ingressando no transtorno psicológico da anorexia. É a beleza presente, já fugidia no corpo esquálido. Fica até difícil apontar um padrão de mulher que possa representar o belo. Há um consenso na literatura mundial de que a mulher mais bonita é Anna Karenina, personagem do autor russo Liev Tostói. De tão formosa, fazia as pessoas perderem a fala. Para o nosso lado, com o suor e a cor indígena, José de Alencar pintou Iracema como a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que às asas da graúna e mais longos que o talhe da palmeira. Bonita e misteriosa, Capitu foi descrita por Machado de Assis com olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Beleza é fundamental, cantava Vinicius de Moraes, com as escusas devidas às mulheres não portadoras do predicado. Nenhuma delas, no entanto, somando-se a elas a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, apresentava-se magra, ou melhor, magérrima, como a exigência atual. A preocupação com a aparência física é louvável, mas a modelagem do corpo para se adaptar à ditadura da moda, com o jejum obrigatório e a consequente utilização de laxantes, diuréticos e medicamentos para emagrecimento, transformam jovens saudáveis em belezas esqueléticas, atingindo a magreza em seu nível excessivo e prejudicial à saúde. Somam-se no mundo vários casos de morte por anorexia. Lembro-me, com certa melancolia, da morte da cantora Karen Carpenter, considerada uma das vozes mais envolventes, principalmente quando entoava Close to you que, juntamente com seu irmão, formou o grupo The Carpenters. Começou a fazer dietas obsessivas e desenvolveu anorexia nervosa, vindo a falecer aos 32 anos, no auge da fama. De um lado fica até difícil dimensionar a intervenção estatal para regular a imagem do corpo, que é a extensão da intimidade individual. Pode-se até cogitar em situações que justifiquem um posicionamento governamental com ações preventivas somente, impedindo a jovem de agredir o próprio corpo e provocar sua morte, numa visão holocáustica, como árvore seca no coração de um deserto, descrito pelo Nobel da Paz Elie Wiesel. O padrão de beleza desloca-se, portanto, da exigência imposta comercialmente pelas agências da moda e meios de comunicação e ingressa no limite ético determinado pelo bem-estar físico e mental, nos parâmetros de respeito à dignidade humana, um dos fundamentos de nossa Constituição. O próprio IMC - Índice de Massa Corpórea, por si só, não é um marcador para se encontrar o peso saudável. Segundo a OMS, o indicador de 18,5 kg é classificado como abaixo do peso, ingressando na classificação de pessoa magra. Para se chegar ao peso permitido, basta pegar a altura e multiplicar por ela mesma. Em seguida, dividir o peso pelo resultado da primeira operação. Assim o corpo perfeito não é mais aquele preconizado pela estética corporal ditada pelos regramentos da beleza, que recomendam uma silhueta esquia para se enquadrar nos parâmetros exigidos e, sim, aquele que satisfaz a própria pessoa ofertando-lhe a melhor sensação de bem-estar. Mens sana in corpore sano, é a receita infalível.
domingo, 15 de junho de 2025

O ageísmo e a proteção legal do idoso

Dia 15/6, durante o mês conhecido por Junho Violeta, é comemorado o Dia Mundial da Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa, com a finalidade de sensibilizar e, ao mesmo tempo, aparelhar a sociedade para o enfrentamento de diversas violências contra tal pessoa. Procura, acima de tudo, dar ênfase ao etarismo que, de certa forma, vem ganhando força e discriminando as pessoas da terceira idade. Além do que, irá promover o preconceito em razão da idade e dar azo ao ageísmo. O período compreendendo a infância, a juventude e a idade adulta passa tão rápido que, ao se dar conta da real situação etária, a pessoa já se encontra nas fileiras da idade avançada e, agora, principalmente, preocupada com os cuidados necessários para atingir uma longevidade saudável, sonho de consumo do cidadão. É exatamente o sentimento do tempus fugit, conforme bem elucida a expressão romana. O homem, durante sua vida, vai rompendo várias barreiras e, com o incessante avanço da medicina, aliada à biotecnologia, que oferece melhores condições de saúde, vai ultrapassando suas marcas de existência, superando em muito a expectativa prevista. Basta ver que em 1940 atingia 45,5 anos e em 2023 alcançou a marca de 76,4 anos, de acordo com os índices do IBGE.1 Machado de Assis, em suas obras, quando descrevia um personagem com 40 anos de idade, referia-se a ele como sendo um idoso. Interessante o encontro de Brás Cubas com Quincas Borba, que contava 38 a 40 anos de idade, assim relatado: "Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos tinham um resto de expressão de outro tempo, e o sorriso não perdera certo ar de escarninho, que lhe era peculiar."2 A Constituição Federal, em seu art. 230, estabelece: "A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar pessoas idosas, assegurando sua participação na sociedade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida." Assim é que a lei 8.842/1994 criou a chamada Política Nacional do Idoso, conclamando a observar os seus direitos da cidadania, defender sua dignidade, bem-estar e inserir-se como o principal agente das transformações propostas na referida lei. Posteriormente, dando cumprimento à determinação constitucional, foi editada a lei 10.741/2003, conhecida como Estatuto do Idoso, legislação que regulamenta os direitos conferidos aos idosos, estabelecendo condições para a preservação da saúde mental e física, assim como seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, tendo como diretriz o princípio da dignidade da pessoa humana. De uma rápida leitura, percebe-se que o arsenal legislativo é compatível e suficiente para amparar os idosos, que cumpriram todos os estágios na vida e agora são detentores de um significativo compêndio de vida, tudo levando a crer que o país está envelhecendo com comprometimento e seriedade. Porém, ainda não está preparado para tanto. A discriminação, os preconceitos e a violência contra os idosos, tanto no âmbito familiar como fora dele, são práticas constantes e ocupam uma agenda infindável de ocorrências e processos. A falta de acessibilidade vai se acentuando cada vez mais. Degraus, rampas íngremes, calçadas mal conservadas, vagas preferenciais ocupadas por pessoas comuns representam obstáculos limitadores para o idoso que tem sua mobilidade reduzida, sujeito a quedas com sérias consequências em razão do descompasso da arquitetura urbana com a necessidade do idoso. Na área da saúde, a população idosa tem sua especificidade e necessita de políticas públicas que possam refletir a atenção integral, compreendendo não só o acesso a serviços médicos preventivos, prolongados e domiciliares, cobertura vacinal e cuidados humanizados, com a utilização dos fármacos de primeira geração, assim como outras necessidades sociais, como os esclarecimentos sobre a velhice, saneamento básico, água encanada, esgoto, renda e previdência social compatíveis. O homem, antes e acima de tudo, é um ser temporal, com início, meio e fim, e não um marco definido pelo idadismo.  Assim é que vai superando cada tempo seu, ampliando suas expectativas e apostando em um futuro com mais esperança e até mais entusiasmo - pois contará com uma rica experiência adquirida ao longo da vida e encontrará um campo propício para demonstrar seu dinamismo, sua articulação e fertilidade em descobrir iniciativas e ideias novas - enfim promovendo tudo aquilo que lhe trouxer satisfação. 1 Disponível aqui. 2 Assis, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas/ Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 89.
domingo, 8 de junho de 2025

A felicidade como direito fundamental

Na World Happiness Report 2025, pesquisa realizada pela Universidade de Oxford, o Brasil, dentre os 147 países avaliados, ocupa a 36ª posição no ranking de felicidade, que leva em consideração os índices de liberdade de expressão, renda, desigualdade e estrutura social.1 Trata-se, sem dúvida, de uma conquista relevante para o país que alcançou índices superiores aos da Espanha, Itália e Japão. A leitura que se faz é no sentido de que o Brasil, sem artificializar o espaço natural, há várias décadas vem passando por significativas transformações, demonstrando, de forma inequívoca, que saiu de um país essencialmente agrícola e, em pouco mais de 30 anos, atingiu um desenvolvimento em vários segmentos e agora já dialoga com certa facilidade com a inteligência artificial. E, pelo que se vê da pesquisa publicada, a felicidade do povo continua em alta. A Constituição Federal é o maior diploma jurídico do país. Elenca em seu bojo um vastíssimo rol de tutelas e, como um caleidoscópio, vai girando e fazendo o movimento de rotação e, ao mesmo tempo, de translação em torno do ser humano, dimensionando-o como destinatário exclusivo de sua programação. Apresenta uma infindável relação de direitos e obrigações envolvendo Estado e cidadãos na órbita jurídico-política e, dentre eles, como ponto de destaque o direito fundamental à felicidade, conforme proposta da abordagem do título. Assim é que a Constituição, na realidade, dita o projeto social, político e econômico a ser seguido pelos administradores públicos. Em contrapartida, em caso de descumprimento, o cidadão poderá pleitear a realização de seus direitos consagrados invocando a tutela jurisdicional. A esse respeito, preleciona Canotilho: "Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)".2 E é interessante observar que a Constituição, como qualquer outra lei ordinária, não é estática e necessita, de acordo com os reclamos sociais, fazer os ajustes e acertos para que possa levar adiante o projeto idealizado pela nação. Fica até difícil definir o que é felicidade. Muitos já se aventuraram em tão árdua tarefa e, por mais amplo e abrangente que seja o conceito, sempre ficará em descoberto determinada leitura, em razão da própria natureza humana, com sua dinâmica e mutabilidade variáveis.  A conceituação de felicidade se modifica de época para época. Pode-se arriscar, sem muito compromisso, em dizer que se trata de uma emoção humana que procura retratar uma situação, mesmo que efêmera, mas que transmite a sensação de alegria, bem-estar e que possibilite usufruir as boas coisas da vida. Quer dizer, feliz é aquele que procura viver intensamente seus momentos e retirar deles a receita para o seu bem viver. E, por incrível que pareça, as legislações não trazem, explicitamente, a consagração do direito à felicidade, que teria o condão de reunir, num artigo só, tudo que está sendo conferido como direitos e obrigações entre as pessoas, assim como seu relacionamento com o Estado. A Declaração de Direitos de Virgínia, que precedeu a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, idealizada por Thomas Jefferson, proclamava em seu art. 1º: "Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança". Nesta vinculação, as ações sociais são de vital importância para se atingir os propósitos almejados. Não se trata de um estímulo ao cidadão para carregar a bandeira em defesa da felicidade, e sim de uma garantia conferida pelo próprio Estado. O ideal seria um texto legal apontando a felicidade como um direito fundamental, porém, a felicidade carrega um caminho árduo para ser atingida e, necessariamente, passa por todos os percalços apontados na legislação vigente.  ______________ 1 Disponível aqui.  2 Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional - 7ª ed. - Coimbra: Livraria Almedina, Portugal, 2003, p.408.
Quando surgiu pela primeira vez a proposta de uma revolução digital - ainda mero indicador de uma realidade que continha uma modesta estrutura funcional - não se imaginava que a humanidade fosse abraçar e impulsionar toda a virada histórica projetada. Inevitável qualquer esforço em contrário, porque a tecnologia digital expandiu de tal forma que não se pode afirmar ter atingido o ponto de chegada que, pelo visto, cada vez mais ficará distante. A banalização da vida, infelizmente, tem encontrado nas redes sociais um palco fértil para a sua manifestação mais cruel, haja vista a complexidade de fiscalização existente. Em ambientes digitais, projetados para o consumo rápido, efêmero e emocional, práticas perigosas - muitas vezes travestidas de brincadeiras - têm ganhado corpo e audiência. É nesse contexto que se insere o chamado "desafio do desodorante", uma prática que consiste no desafio à vítima para inalação contínua do aerossol, até a perda de consciência. O caso recente da menina de 11 anos1, que morreu em decorrência desse comportamento em São Bernardo do Campo, é expressão trágica de um fenômeno mais amplo e inquietante: a repetição de condutas manipuladoras e com alto poder de persuasão, habilidosa e maliciosamente direcionadas a pessoas vulneráveis, levanta questões urgentes sobre a responsabilidade digital e a atuação do Direito Penal. A análise jurídica da conduta daqueles que produzem ou difundem esse tipo de conteúdo exige atenção ao art. 122 do Código Penal, cujo alcance foi ampliado pela lei 13.968/19. Tradicionalmente voltado à instigação, induzimento e auxílio ao suicídio, o novo tipo penal trouxe relevante alteração: passou a prever, como crime, o ato de induzir ou instigar alguém não apenas ao suicídio, mas também à prática de automutilação, ou ainda de prestar-lhe auxílio material para tal finalidade. A consumação independe do resultado, embora as consequências mais graves - como a morte ou a lesão corporal de natureza grave - ensejem aumento da pena. Há, inclusive, previsão de majorantes específicas quando a vítima é pessoa vulnerável, como os menores de idade e incapazes. No ambiente digital, essa previsão legal ganha contornos específicos. A instigação - uma das modalidades previstas no tipo penal - consiste no estímulo, reforço ou encorajamento de uma ideia já alojada no ânimo da vítima; enquanto o induzimento traz o conceito de implantar na mente da pessoa uma ideia até então inexistente. Desta forma, é importante destacar que, consoante o que se verifica nos fatos noticiados, a "trend" chamada de "desafio do desodorante" consiste em uma batalha para ver quem consegue inalar grandes quantidades do produto químico no menor tempo1" (trend é uma palavra da língua inglesa, que significa "tendência" e que indica, nas redes sociais, os conteúdos mais populares, que são replicados por grande número de usuários). E é interessante observar, com tal comportamento, que as condutas consideradas ilícitas se desenvolvem como se fossem parceiras das lícitas, dificultando, desta forma, as incautas vítimas de perceberem o mal ali contido. Portanto, quem inicia esta absurda "batalha" gera o nexo causal entre conduta (instigação/induzimento) e o resultado morte, chamando pela incidência do crime previsto no art. 122 do Código Penal, cujas penas vão de reclusão, de seis meses a dois anos. Agora um ponto crucial: nos termos do § 2º do art. 122 do Código Penal, "se o suicídio se consuma ou se da automutilação resulta morte, a pena é de reclusão, de dois a seis anos". E mais: no § 3º do mesmo art.: "A pena é duplicada: (...) II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. § 4º A pena é aumentada até o dobro se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real. § 5º Aplica-se a pena em dobro se o autor é líder, coordenador ou administrador de grupo, de comunidade ou de rede virtual, ou por estes é responsável". Indaga-se: é possível aplicar todas as duplicações e aumentos previstos no novo dispositivo? Ou haveria, para um mesmo desafio (mesmo caso concreto), a incidência do princípio do ne bis in idem (ninguém pode ser punido mais de uma vez pelo mesmo fato)? Parece que, no caso concreto, pode, sim, ensejar a aplicação cumulativa das majorantes, tudo a depender da forma como a conduta foi praticada. Igualmente importante é o fato de que a lei não exige, para a configuração do crime, que o agente esteja imbuído do animus necandi (vontade de matar) ou laedendi (de causar lesão), bastando a vontade de criar/fomentar na vítima a automutilação. Então, quando esse incentivo ocorre por meio de plataformas de grande alcance, com linguagem voltada a públicos impressionáveis, o potencial lesivo se amplia consideravelmente e, ainda que o agente não conheça diretamente quem será afetado, a sua contribuição para o resultado torna-se penalmente relevante - é o nexo causal entre conduta e resultado, nos termos do art. 13 do Código Penal - conditio sine qua non. É nesse ponto que o Direito Penal precisa intervir, não como instrumento de censura, mas como mecanismo de contenção diante de comportamentos que, por sua natureza, transcendem a esfera privada e alcançam consequências socialmente intoleráveis. Com efeito, o "desafio do desodorante" não é um fenômeno isolado, nem fruto de exceção; ele integra um ciclo contínuo de práticas virais que flertam com o sensacionalismo, a autodestruição e a morte. A criação e difusão de conteúdo que instiga condutas perigosas não pode ser naturalizada nem amparada em uma concepção absoluta e descontextualizada da liberdade de expressão: esta, como toda liberdade, possui limites que se impõem, observando sempre o direito à vida e à proteção dos mais vulneráveis. 1 Disponível aqui.
domingo, 25 de maio de 2025

A leitura do DNA do brasileiro

Para o historiador, é importante garimpar todas as informações a respeito do fato que pretende pesquisar; é como se fosse um arqueólogo que utiliza métodos científicos em busca de vestígios que possam transmitir os hábitos e culturas que, com o passar do tempo, deixaram de existir. Aplica-se a mesma regra àqueles pesquisadores científicos que procuram desvendar a genética humana. Assim como a história do Brasil é importante para o conhecimento do país, vez que relata todos os acontecimentos relevantes até os dias atuais, o conhecimento do genoma da população é igualmente necessário para desvendar as informações genéticas que apontem as características do povo. Na realidade, em razão da tecnologia cada vez mais apurada, estamos diante da identidade externa, que é constatada com mais facilidade e a interna, que é justamente a coleta científica de informações genéticas de um grupo. O projeto "DNA do Brasil", assim conhecido, liderado pelos pesquisadores da USP, coletou importantes informações a respeito do DNA do povo brasileiro e já mereceu publicação feita recentemente pela revista Science. O objetivo da pesquisa é conhecer os fatores genéticos do povo brasileiro para compreender as doenças mais prevalentes e atuar preventivamente, formando uma verdadeira arquitetura do genoma pátrio onde serão encontrados indicadores clínicos que detectarão os prováveis grupos de risco e as recomendadas ações que devem ser tomadas para combatê-los. A leitura do DNA, desta forma, irá oferecer condições para garimpar informações importantes com a finalidade de desvendar e reconhecer o código genético da população e, a partir desse marco, possa fazer a prevenção contra as doenças com predisposição genética localizada. É sabido que a população brasileira não é proveniente de uma única origem. Pelo contrário. Pela sua formação histórica, é fruto de uma miscigenação exacerbada. Aqui encontramos desde os povos indígenas, africanos, portugueses, italianos, espanhóis, alemães e outros imigrantes europeus, asiáticos, formando uma integração genética e cultural. Uma verdadeira Torre de Babel genética. O que até então parecia uma evidência, agora, com sólidas conclusões, chega-se a uma afirmação categórica no sentido de que a miscigenação esteve sempre presente e que cerca de 60% da herança genética é europeia, enquanto que 27% reside no continente africano e 23% proveniente da comunidade indígena.1 Conhecer a função que cada gene exerce no interior do DNA significa ler a informação genética e descobrir o código da vida. A ciência inclina-se, desta forma, para desvendar os genes responsáveis por determinadas moléstias, como Alzheimer, Síndrome de Down, Mal de Parkinson e muitas outras, com a intenção de alterar o código genético e possibilitar sua erradicação definitiva. O estudo, por se tratar de uma inovação, que certamente renderá inúmeros benefícios para a saúde da população, merece o prestígio da comunidade uma vez que desempenhará importante tarefa e proporcionará ao Estado novas leituras para desenvolver políticas públicas que visem à redução de doenças tendo como prioridade as ações preventivas. Parte-se para uma medicina preventiva estruturada no genoma para garantir a saúde das pessoas. É uma verdadeira ponte ligando harmoniosamente o passado a um futuro promissor carregando melhores práticas para a ars curandi. _____________ 1 Disponível aqui. 
domingo, 18 de maio de 2025

Os dilemas do Papa Leão XIV

A proclamação do Habemus Papam fez com que o cardeal americano Robert Francis Prevost, da Ordem Agostiniana, fosse eleito Papa e, no mesmo ato, adotou o nome de Leão XIV, certamente com propósitos inovadores que nortearam também o Papa Leão XIII, que deixou inesquecível legado para a Igreja Católica.  O novo Bispo de Roma, em suas primeiras aparições públicas, mesmo com sua modernidade e conectividade, demonstrou, não só preocupação, como, também, nítido interesse, a exemplo de seu antecessor, Papa Francisco, com a intenção de abrir novos canais de comunicação para que a Igreja possa dialogar com as mais recentes tecnologias e, principalmente, controlar os avanços, muitas vezes desmedidos, da inteligência artificial, além de condenar a guerra da Ucrânia, da Faixa de Gaza e outros conflitos. Outros temas, que já se encontravam fermentando na pauta papal, aguardam o momento adequado para aflorarem, dentre eles o desenvolvimento incessante das pesquisas envolvendo seres humanos, as interferências sobre o início e o fim da vida, a reprodução homóloga e heteróloga, a utilização de contraceptivos para combater a crise demográfica, a engenharia genética, a maternidade de substituição, o aborto, a clonagem, as terapias gênicas, a eugenia, a eutanásia, ortotanásia, suicídio assistido e o acolhimento dos homossexuais, refletido no documento Instrumentum Laboris que, pela primeira vez, usou a sigla LGBT, além do interesse em abrigar as famílias irregulares, principalmente as privações estabelecidas aos divorciados, dentre outros. Pela maciça participação na escolha do novo Papa, percebe-se que a comunidade cristã ambiciona uma resposta mais ajustada a respeito da religião católica com a cultura dos novos tempos. É de se recordar que Eclesia semper reformanda, conforme determinação do Concílio Vaticano II. As sensatas e bem colocadas ponderações do Sumo Pontífice apontam uma estreita aproximação com a ciência da Bioética e seus salutares aconselhamentos. A bioética, pelo seu caleidoscópio multidisciplinar, que consegue encontrar a correta lente para a leitura adequada de dilemas intrincados eticamente, ocupa um espaço de destaque que reúne todos os predicados para atender as múltiplas exigências do mundo atual. Tem potencial suficiente para unificar as várias línguas dissonantes e apresentar um canal por onde todos podem se manifestar com vistas ao tão reclamado bem comum. No trilhar do pensamento bioético busca-se a resposta para os temas que aguçam e desafiam o homem ainda despreparado e que não carrega de pronto uma definição a respeito da aceitação ou rejeição de condutas que podem quebrar o consenso ético ou da utilização de técnicas que venham a ser incompatíveis com a expectativa da vida individualizada. Dá para sentir que a Igreja, sob o cajado do Papa Leão XIV, está disposta a participar dos grandes dilemas bioéticos da humanidade, numa proposta de renovação comedida, tendo como lema a Igreja peregrina. É um caminhar lento e refletido em busca da renovação, sem decisões precipitadas, que certamente encontrará resistência dos setores mais tradicionais da Cúria Romana. E a bioética, pela sua pertinência e consistência, certamente trará significativos dividendos nesta árdua tarefa. É nessa toada que as ideias germinam com mais profundidade e se reproduzem com rapidez. Como a parábola do semeador que saindo a semear, lançou semente no terreno fértil com a intenção de obter uma boa colheita.
domingo, 11 de maio de 2025

A mãe por adoção

Muitos poetas derramaram seus versos e escritores suas prosas enaltecendo a figura materna. E com justa razão. A mãe é sempre destaque ímpar, inconfundível, insubstituível e que proporciona sentimentos profundos de respeito e gratidão. É o canal por onde transita o sentimento mais nobre do ser humano. A cada ano que passa, de forma justa e devida, as homenagens se repetem e perpetuam o reconhecimento do carinho dispensado para quem dispensou afeto sem limites, desde a vida uterina.  Há, se assim for possível dizer, categorias diferenciadas de mães. A mãe biológica, aquela que gerou e deu à luz o filho; a genética, que cedeu seu material procriativo; a maternidade substitutiva, aquela em que a mulher suporta a gravidez em favor de outra, com a consequente entrega da criança após o parto e a maternidade proveniente da adoção. A figura da mãe de adoção sempre ocupou um lugar relevante com presença marcante no Brasil. Com incidência maior na segunda metade do século passado, era até assunto corriqueiro quando a mulher assumia uma criança "para criar", expressão própria para designar o ato de tomar para si tamanha responsabilidade de solidariedade. Daí que a população, principalmente das cidades menores, denominava de "filho de criação" aquele gerado neste regime. Geralmente a entrega era compartilhada entre parentes ou pessoas muito próximas dos pais que, em razão de dificuldades financeiras para sustentar o filho, confiavam-no àqueles que gozavam de bom nome e com condições para tanto. E a criança passava a ser um membro da nova família, sem, no entanto, qualquer reconhecimento judicial ou documental. Após a Constituição Federal de 1988, o conceito de família experimentou um alargamento necessário visando, de forma aprumada com a realidade, acomodar os vários núcleos que se formaram em torno do conceito original, restrito por demais. Na realidade, ocorreu uma evolução, ainda em fase de efervescência, com relação ao direito de procriação. Todos os filhos, havidos ou não fora do casamento, assim como aqueles provenientes da adoção, gozam dos mesmos direitos, sem quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Nasce, então, não só pela introdução legal, mas também como um novo conceito social, a paternidade socioafetiva, na qual alguém, sem qualquer vínculo sanguíneo e sem imposição legal, recebe uma criança como filho, tendo como sustentáculo o sentimento de afeto, que é o caso da adoção. Quando se fala a respeito da adoção, o tema transcende o humano e até mesmo os limites estabelecidos pela lei, justamente pela sublime motivação que o reveste. Desde os primórdios da civilização, sempre despertou a atenção pela sua característica de relação afetiva, na qual uma criança é recebida por uma família, geralmente carregada de uma sensibilidade extremada na busca de tal vínculo, e que proporcionará a ela um acolhimento caloroso com o propósito de se iniciar uma nova história de vida. Vigora a regra adoptio naturam imitatur (a adoção imita a regra da própria natureza), que prevalecia no Direito romano. O que se leva em consideração nos casos de adoção é justamente o envolvimento emocional, que impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar.  Nasce, então, não só pela introdução legal, mas também como um novo conceito social, a maternidade socioafetiva, na qual alguém, sem qualquer vínculo sanguíneo e sem imposição legal, recebe uma criança como filho, tendo como sustentáculo o sentimento de afeto, que é o caso da adoção. A ascendência genética, por si só, já não é mais suficiente para determinar a filiação. Pelo contrário, em razão das novas práticas consolidadas no âmbito da dignidade da pessoa e no princípio do melhor interesse da criança, o vínculo da socioafetividade se expandiu e incorporou a contribuição daqueles que participaram da construção dos laços afetivos com a criança.
Fato interessante, com grande repercussão bioética e, obliquamente, no biodireito, ocorreu recentemente em Miami, Estados Unidos, quando um paciente com setenta anos de idade, sem documentos ou familiares, diabético, com histórico de doenças no coração e pulmão, foi encaminhado e atendido em hospital, oportunidade em que os médicos responsáveis pela primeira avaliação, constataram uma tatuagem cravada no seu peito, que dizia: "Do not resuscitate", com o not sublinhado - conhecida pela sigla DNR. No vernáculo pátrio: Não ressuscite ou "ordem para não reanimar". Tal advertência causou grande impacto aos profissionais estabelecendo, de plano, invencível conflito médico, obrigando-os a buscar auxílio na Comissão de Bioética da instituição que, após as discussões pertinentes, entendeu que o pleito do paciente deveria ser atendido. Assim foi feito. Será que a tatuagem, com seus dizeres, por si só, é suficiente para demonstrar a intenção do paciente? É fonte reveladora e autorizadora para que os médicos possam interpretá-la como a vontade indiscutível do paciente, no âmbito de sua autonomia? Assim, nesta linha de raciocínio, no caso do paciente tatuado, o comitê de bioética do hospital entendeu que a manifestação de vontade estava mais do que evidenciada e não justificava, em paciente sem chance de cura, a prática de qualquer conduta que resultaria em fúteis tentativas e infrutíferas intervenções, outorgando, desta forma, total crédito à autonomia da vontade do paciente. Por tal princípio deve-se entender que a decisão por ele tomada, com plena capacidade de discernimento, em determinado momento ou que tenha deixado documento a respeito de um procedimento médico, no caso lavrado em seu próprio peito, deve ser respeitada, por ser a legítima expressão de sua vontade. Daí que a ordem de não reanimação representa a determinação de um comportamento negativo do médico, impedindo-o de utilizar as técnicas de suporte vital. No Brasil, prestigiando a autonomia da vontade do paciente e sua determinação, a resolução 1995/12 do Conselho Federal de Medicina estabeleceu uma disciplina de final de vida, compatível com a ética médica, sem afrontar qualquer texto legal. Assim, proclama o artigo 1º: Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Na realidade, fazendo-se uma interpretação mais restritiva e rigorosa, a tatuagem, por si só, não carrega amparo legal que, no caso específico, deveria contar com a assinatura do paciente em documento próprio ou em outro lavrado anteriormente, com tal finalidade. Mas lançando mão de uma interpretação mais liberal, consentânea com o caso, também não pode ser descartada a vontade declinada pelo paciente em tatuagem moldada em seu corpo, justamente no local onde seria feita a reanimação. Num futuro, não muito distante, o biochip, implante corporal que fará o armazenamento de informações médicas, será o instrumento apropriado para a leitura da real vontade do paciente. Talvez caia a tatuagem. Biochip é mais chique.
domingo, 27 de abril de 2025

O legado ambiental do Papa Francisco

O Papa Francisco, reconhecido pelo seu espírito despojado, incorporando a humildade franciscana em seus atos, preocupou-se não só com o avanço da biotecnologia, como, também, com o ser humano, visto tanto na sua individualidade, como na sua contextualização coletiva. Com tal iniciativa demonstrou, ao longo de seu pontificado, um interesse desmedido em abrir novos canais para que a Igreja pudesse dialogar com as mais recentes tecnologias que vão, a passos rápidos, invadindo e se assenhorando do universo, influenciando diretamente a vida do homem. Não só o aparato tecnológico, como, também, muitos outros temas relevantes afastados até então da preferência cristã, como, por exemplo, a aproximação e o acolhimento dos homossexuais, refletido no documento Instrumentum Laboris que, pela primeira vez, usou a sigla LGBT, além do interesse em abrigar as famílias irregulares, principalmente as privações estabelecidas aos divorciados. Dentre inúmeras ações merece especial destaque a iniciativa papal de proclamar uma tutela ordenada ao meio ambiente. A transformação provocada na humanidade abriu espaço para que a Igreja se ajustasse diretamente às questões que gravitam com mais intensidade, exigindo uma postura mais condizente com a realidade humana. Tanto é que teve aceitação global a Carta Encíclica Laudato Si, de iniciativa do Papa Francisco, cuja mensagem é a união de toda família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral. O Bispo de Roma assim se manifestou na oportunidade: "Lanço um convite urgente para renovar o diálogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental que vivemos e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós".1 Pode-se até dizer que a salvadora expressão "desenvolvimento sustentável", entendida hoje na sua interpretação mais extensiva, cunhada com a intenção de balizar as intervenções do homem no meio ambiente, provocou uma nova responsabilização social e desencadeou o interesse para que várias comunidades mundiais assinassem compromissos e convenções para estancar ou até mesmo tutelar a vida e a saúde das pessoas, além de evitar danos irreversíveis ao próprio ambiente, provocados pela prática indevida das atividades econômicas. Todos os povos, notadamente os chefes de Estado, já se certificaram que é impossível um crescimento ilimitado num mundo dotado de recursos finitos e esgotáveis. A natureza não possui a capacidade ilimitada de prover a economia e daí a necessidade do acesso ecologicamente equilibrado e da exploração racional das riquezas naturais. O brado de alerta anunciado no documento papal fez com que novos olhares fossem direcionados para um tema de tamanha importância - a humanidade, decisivamente, não pode continuar sugando o capital natural do planeta além da sua capacidade de renovação e de regeneração dos estoques de bens - e que até hoje garantem a sobrevivência de todos os seres na Terra. Problemas comuns a todos os povos demandam soluções concretas globais.  As nações, nas suas individualizadas posturas, pretendem se adequar e ajustar ambientalmente as suas políticas públicas às práticas cotidianas de proteção e conservação do patrimônio ecológico mundial. Os governantes sabem que não é mais possível qualquer postergação. A natureza já está respondendo e cobrando, indistintamente, preço elevado para tamanho descaso. Aquilo que deveria ser uma casa comum, representando o condomínio mundial ou patrimônio comum, a res communis omnium, passa a ser um objeto de fruição imediata, tratando a natureza como se máquina fosse podendo montá-la e desmontá-la, de acordo com as necessidades e conveniências do modelo econômico. Tamanho continua sendo o reflexo da Encíclica do Papa Francisco que a Campanha da Fraternidade deste ano tem como tema principal a Fraternidade e a Ecologia Integral, cuja proposta foi abraçada pela Igreja Peregrina, assim chamada pelo Concílio Vaticano II. __________ 1 Papa Francisco. Laudato Si'. Paulus Editora, Edições Loyola Jesuítas, 2015, p. 16.
domingo, 20 de abril de 2025

Abraço de Páscoa

Em algumas datas durante o ano, geralmente as motivadas por feriados religiosos, as pessoas param a desenfreada correria, fazem um pit stop quase que obrigatório e deixam transparecer os sentimentos que invadem seu interior, direcionados para a liturgia da comemoração. A Páscoa é uma delas. Com o significado hebraico de "passagem" na história, compreendeu a libertação do povo israelita da escravidão do Egito. No ritual cristão, é a passagem da morte para a vida, retratada na ressureição de Cristo. E o povo brasileiro, com a sensibilidade que lhe é peculiar, tem por lema cumprimentar os parentes e amigos pensando no louvável progresso da humanidade. Quanto maior for a carga positiva dos votos, mais fecunda será a vida. É o efeito bumerangue em que se lançam os melhores cumprimentos que irão alcançar as pessoas destinatárias e, com sobras, atinge também o arremessador. Não adianta quixotear contra o tempo. "Nós somos os tempos, bradava Santo Agostinho, quais formos nós tais serão os tempos. Vivamos bem e os tempos serão bons."" Aquilo que foi alcançado nada mais é do que o resultado da dedicação de cada um, devendo ser preservado no interior de uma concha protetora e mantido como um troféu, representando a conquista de um elevado projeto de vida. Daí é que nasce o criador, o idealizador, o vitorioso. Aquele que não entope de promessas os ouvidos carentes, mas preenche e sacia o vazio do coração e do corpo. O pouco que for extraído será significativo para cada um e para todos que o cercam, fortalecendo o espírito corporativo e edificando o altruísmo coletivo. Se o homem tiver a consciência de sua finitude será um construtor da obra duradoura que poderá legar ao próximo, ressuscitando as potencialidades do espírito e não vivendo como pequenos personagens no país imaginário de Lilipute, do romance Viagens de Gulliver. Quando se diz Feliz Páscoa não representa um toque dado com a varinha mágica para canalizar a atingir um fim colimado. É, antes de tudo, um pacto de comprometimento social com apelo de construir a passagem humana pelas melhores veredas, buscando sempre a sintonia do homem com a humanidade e o encaminhamento para a perfeição É uma verdadeira ação fertilizante que corrige a rota existencial, fazendo com que nasça no indivíduo a necessária disposição de renovar-se e reeducar o olhar para apreciar as belas coisas que se apresentam no dia a dia, com estímulos necessários para avançar nesta aventura maravilhosa chamada vida. E, acima de tudo, imbuído do melhor espírito cristão. Que a Páscoa, nos moldes da liturgia cristã, no seu exato sentido de renascimento, possa inundar a humanidade com suas bênçãos, indicar e abrir os caminhos mais salutares e remover todos os obstáculos para que cada pessoa possa sentir e ver o mundo pelos olhos do coração. Et resurrexit.
É muito difícil e até mesmo, se assim prosperar a pretensão, uma ousadia tecer comentários jurídicos a respeito de um fato perquirido por um processo criminal em que as informações que chegam ao público foram registradas unicamente pela imprensa. Não que não sejam idôneas, mas falta o olho clínico profissional para captar as circunstâncias determinantes de uma decisão. O jogador brasileiro Daniel Alves foi condenado - em primeira instância pela Justiça espanhola pela prática do crime de estupro - a cumprir uma pena de quatro anos e meio de prisão, além de outras obrigações impostas na sentença. Recorreu e logrou provimento em seu apelo dirigido ao tribunal espanhol que entendeu que a sentença, que teve como suporte a palavra da vítima, trazia lacunas, imprecisões, inconsistências e contradições sobre os fatos, uma vez que, pela justiça local, cabe à ofendida o ônus da prova. A liberdade sexual, após o rompimento de muitos entraves morais e legais, é hoje considerada um direito inalienável à pessoa, integrando o casulo protetivo da dignidade humana, consagrado constitucionalmente. Assim, apresenta-se como uma conquista do homem e da mulher para escolherem o parceiro que for do seu afeto e conveniência. Neste terreno prevalece a reciprocidade. Se, porventura, ocorrer a incidência de grave ameaça ou violência para o ato sexual, incompatíveis com o propósito, rompe a linha de confiança e torna-se insuportável qualquer convivência. É o verdadeiro estupro. O crime de estupro em sua origem, acompanhando sua etimologia (stuprum), carrega duas vertentes em sua definição. A primeira relacionada com a desonra, a vergonha de uma pessoa e a segunda atrelada à agressão sexual para atingir o coito forçado. Esse último conceito prevaleceu e ficou sedimentado para as pessoas comuns que no estupro obrigatoriamente deveria ocorrer a conjunção carnal entre homem e mulher, mediante violência. Porém, nem sempre a vontade popular coincide com a do legislador. Tanto é que tal conceito não é compartilhado por ele que, deliberadamente, inseriu no tipo penal também a prática de outro ato libidinoso, diverso da conjunção carnal. A palavra da vítima ganha relevo na Justiça brasileira e é de vital importância para esclarecer o crime de estupro que, cometido sem a presença de testemunhas (solus cum sola in solitudinem), busca na versão da ofendida o único caminho informativo e, como tal, núcleo de todo trabalho policial e judicial. Paralelamente, outros indícios, que são os fatos que circundam a conduta principal, serão coletados para formarem um conteúdo probatório que seja coerente e guarde veracidade com a versão apresentada. Conta, também, na montagem do quebra-cabeças investigativo, além da prova pericial, com os laudos periciais que formarão um conjunto de convicção mais apropriado e viável para o deslinde do crime. São os olhos ocultos, ausentes do local do crime, que a tudo veem, são os ouvidos que captam as vozes dos vestígios e escrevem o que eles revelam. Tanto é que a vítima de estupro, sentindo-se abusada sexualmente, comparece à delegacia de polícia e apresenta sua versão a respeito dos fatos, escancarando sua intimidade sexual, oportunidade em que será submetida a exames de corpo de delito. Em juízo ficará novamente exposta e, inevitavelmente, irá reiterar sua versão inicial. Mas não se pode olvidar que as provas no processo penal pátrio têm credibilidade relativa. O processo penal busca uma harmoniosa integração entre todas elas para encontrar a verdade real. Mesmo até sem o laudo pericial em caso de estupro, a palavra da vítima, se coerente e endossada por outras provas, tem valor por si só. Neste sentido a decisão do Superior Tribunal de Justiça: Dando relevância à palavra da vítima, o Tribunal da Cidadania assim se pronunciou: "Em delitos contra a dignidade sexual, normalmente praticados na clandestinidade, a palavra da vítima, reforçada pelos demais elementos de prova - no caso, a prova testemunhal -, assume especial relevância. (...)".
A atuação da Vigilância em saúde corresponde, entre outros aspectos, na sua maior medida, à análise permanente da saúde populacional, assim como ao desenvolvimento contínuo de ações destinadas ao seu controle, incluindo tanto a abordagem individual como coletiva dos problemas de saúde.1 Nesse sentido, recentemente, diante da análise do quadro epidemiológico no âmbito do Estado de São Paulo, no que concerne à ocorrência dos casos de arboviroses transmitidas pelo mosquito "Aedes aegypti", tais como a Chikungunya e a Zika, em especial a Dengue, foi publicado o decreto 69.359, de 19 de fevereiro de 2025. O referido diploma legal teve como objetivo declarar a "situação de emergência em saúde pública no Estado de São Paulo, em razão de epidemia de Dengue". A medida permitiu à Administração a adoção de ações estratégicas.  De início, adentrando na sua análise jurídica, cabe esclarecer que nos termos do inc. II do art. 47, da Constituição do Estado, compete, privativamente ao Governador. exercer com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual. Ademais, referido dispositivo guarda perfeita simetria com o inc. II, art. 84, da Constituição Federal. Corroborando tais premissas, o decreto é um ato administrativo que perfaz a competência privativa pelo Chefe do Executivo, segundo a letra "a", inc. I, art. 12 da lei 10.177, de 30 de dezembro de 1998. Nesta perspectiva, não há discussão de que o Decreto foi a correta e mais adequada medida acautelatória do Governador do Estado para tratar o tema. Trata-se de uma normatização excepcional, caracterizada pelas circunstâncias específicas que determinaram sua edição e que prevê medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública, com a finalidade de evitar a contaminação ou a propagação da dengue. Prevalece aqui a regra de que a lei temporária tem por finalidade acudir uma determinada situação de perigo à saúde pública e terá sua vigência durante o tempo em que for necessária (cessante ratione legis, cessat ipsa lege). Daí, é de se constatar que, cessando a razão de ser da lei excepcional, prevalece, para todos os efeitos, a regra da lei geral. O ordenamento legal, desta forma, como um avatar necessário e, somente ele, estribado na justiça geral em favor da necessidade humana, faz evidenciar não só a defesa da saúde da comunidade, como também os interesses econômicos, sociais e outros necessários para o compartilhamento harmônico das atividades humanas. Ademais, coube à Secretaria da Saúde, segundo o art. 4º do Decreto n° 69.359, de 19 de fevereiro de 2025, por meio do Centro de Operações de Emergências (COE), instituído pelo decreto 69.329, de 23 de janeiro de 2025, a competência para elaborar diretrizes gerais para a execução das medidas de enfrentamento da situação de emergência em saúde pública. A matéria se insere perfeitamente no campo funcional da referida Secretaria, pois se trata, de modo geral, de ação voltada ao combate e controle de epidemia de dengue, não se contrapondo à sua organização pelo Decreto 26.774, de 18 de fevereiro de 1987 (e alterações posteriores). O COE teve a representação formalizada pela resolução SS 29 de 20 de fevereiro de 2025, compondo-se por integrantes da:  Secretaria da Saúde; Casa Civil; Casa Militar; Secretaria de Comunicação; Secretaria da Segurança Pública; Secretaria da Educação; Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística e Secretaria de Desenvolvimento Social. Consolida-se como um órgão colegiado, de natureza consultiva, com a finalidade de assessorar a Secretaria da Saúde, mantendo-se vinculado à referida Pasta (art. 1, decreto 69.329, de 23 de janeiro de 2025). Na razoabilidade das medidas reside não só a prevenção como, também, buscar a eficiência dos cuidados para as pessoas infectadas, já que a epidemia se propaga de forma difusa e rápida, atingindo nível de atenção extrema. Não se olvidando que o combate às arboviroses não é dever unicamente da saúde e sim da vigilância de todos. No âmbito federal, ademais, há o estabelecimento de critérios para a declaração de situação de emergência ou estado de calamidade pública pelos entes federativos que, segundo a portaria MDR 260, de 2 de fevereiro de 2022, alterada pela portaria MDR 3.646, de 20 de dezembro de 2022, conforme o seu art. 4º, será realizada pelo Chefe do Poder Executivo Municipal, Estadual ou do Distrito Federal. Pois bem, declarada a emergência, foram autorizadas as providências de que trata o inc. I, art. 2º do decreto 69.359, de 19 de fevereiro de 2025, referentes às aquisições e contratações, segundo os termos do art. 75, inc. VIII e § 6°, da lei Federal 14.133, de 1° de abril de 2021, quais sejam: "Art. 75. É dispensável a licitação: (...) VIII - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso; (...) § 6º Para os fins do inciso VIII do caput deste artigo, considera-se emergencial a contratação por dispensa com objetivo de manter a continuidade do serviço público, e deverão ser observados os valores praticados pelo mercado na forma do art. 23 desta lei e adotadas as providências necessárias para a conclusão do processo licitatório, sem prejuízo de apuração de responsabilidade dos agentes públicos que deram causa à situação emergencial." A norma, em comento, é completamente pertinente no bojo do Decreto Emergencial, pois são fundamentais ações eficientes para conter a situação epidêmica, em conjunto com a agilizada e a rapidez na execução das medidas requeridas pela administração. Dando ênfase à velocidade dessas medidas, permitiu-se a dispensa da prévia manifestação do Comitê Gestor do Gasto Público, nos termos referidos no inc. IX, art. 2º do decreto 64.065, de 3 de janeiro de 2019, concedendo-se um prazo de 30 dias, a contar da assinatura do contrato, para a sua comunicação nos casos de contratação. O decreto sub studio, por si só, autorizou a contratação de servidores temporários para o enfrentamento do problema, medida que vai ao encontro do esforço em fortalecer e ampliar a força de trabalho nos locais e horários necessários, dentro da estratégia de combate ao contágio e demais consequências da dengue, levando-se em consideração também a especificidade da região. Não se trata de medida incomum. Ademais, referida permissão legal tem respaldo na lei complementar 1.093, de 16 de julho de 2009, vejamos: "Artigo 1° - Para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, a contratação por tempo determinado de que trata o inciso X do artigo 115 da Constituição Estadual será realizada nas condições e prazos previstos nesta lei complementar. (...) § 1° - Considera-se necessidade temporária de excepcional interesse público: (...) 2 - a assistência a emergências em saúde pública, inclusive combate a surtos, epidemias, endemias e pandemias;" (g.n.)     Em continuidade à análise, importante destacar que com a declaração da situação de emergência em saúde pública no território paulista, a lei complementar 791, de 9 de março de 1995 autorizou a transferência de recursos do Estado para o financiamento de ações ou serviços não previstos nos planos de saúde municipais, conforme disposição do seu art. 50, § 3º: "Artigo 50. O processo de planejamento e orçamento do SUS será ascendente, do nível local até o estadual, passando pelo regional, ouvidos os respectivos conselhos de saúde, e compatibilizando-se, em planos de saúde estadual e municipal, os objetivos da política de saúde no Estado com a disponibilidade de recursos (...) § 3º. É vedada a transferência de recursos do Estado para o financiamento de ações ou serviços não previstos nos planos de saúde municipais, exceto em situações emergenciais ou de calamidade pública na área da saúde. (g.n.)"  Diante do exposto, fica evidente que a estratégia adotada pelo Decreto nº 69.359, de 19 de fevereiro de 2025, foi medida plenamente justificada e amparada legalmente. Mostra-se pertinente para o contexto atual, no qual a situação epidêmica ultrapassa as divisas do Estado, permeando o território nacional, dentro do contexto de suas respectivas particularidades. Em outro aspecto, a medida em comento consolidou-se como uma decisão estratégica, permitindo ao Estado de São Paulo responder rapidamente à epidemia, com o intuito de proteger a saúde da população, garantir a continuidade dos serviços públicos e, assim, minimizar impactos epidemiológicos, sociais e econômicos decorrentes da situação. __________ 1 Plano de contingência das arboviroses urbanas dengue, chikungunya e zika 2025/2026. Disponível aqui. Acesso em 30/3/2025.
domingo, 30 de março de 2025

A aceitação da denúncia pelo STF

Toda imprensa vem alardeando que o STF aceitou a denúncia ofertada pelo procurador-Geral da República contra o ex-Presidente da República Jair Bolsonaro e outros sete acusados de idealizar e integrar a trama golpista ocorrida no mês de janeiro de 2023. A decisão foi unânime dos ministros integrantes da 1ª turma da Corte Maior, tendo como sustentação a existência de indícios razoáveis das práticas descritas na peça delatória. Não se trata, porém, como muitas pessoas estão concluindo, de uma condenação antecipada. E, pelo que tudo indica, a imprensa não se preocupou em penetrar no âmbito do procedimento para explicar os requisitos autorizadores de uma ação penal, principalmente para os leigos. Em primeiro lugar, a denúncia, de legitimidade exclusiva do Ministério Público, é a peça processual que dá início a uma ação penal pública incondicionada e traz como suporte uma investigação preliminar feita pela Autoridade Policial ou até mesmo através de peças de informações apresentadas pelo cidadão. Não há necessidade da apresentação de provas inconcussas e sim de indícios que permitam descrever o fato criminoso com todas as suas circunstâncias. Por ser a delação estatal uma peça propositiva, satisfaz-se com a prova indiciária colhida de forma idônea e que tenha condições de apontar com a segurança jurídica necessária a autoria e materialidade do delito, binômio indispensável na pretensão acusatória, além da justa causa para a proposição da persecução penal judicial. Isso porque a opinio delicti, inerente à função do Ministério Público, deve traduzir, de forma inequívoca e transparente, a vontade do órgão persecutório judicial, em perfeita sintonia com o regramento processual vigente. Daí que a postulação é submetida ao crivo do Judiciário que poderá rejeitá-la quando ausentes os requisitos norteadores do art. 395 do CPP. Na fase do recebimento da denúncia, não será feita qualquer apreciação a respeito da culpabilidade, satisfazendo-se o Judiciário com a presença de indícios razoáveis de autoria e materialidade, conforme acentuado pelos ministros da 1ª turma.  A palavra indicium em latim, que originou o vocábulo português, tem uma conceituação abrangente, denotando a ação de procurar, marcar, fixar, indicar, encontrar vestígios, pegadas, com o sentido de apontar algo que tenha relevância na apuração de tudo aquilo que gravita em torno de um fato que é conhecido e, pelo esforço interpretativo, assim como pelo emprego do pensamento lógico, pode-se chegar com mais facilidade ao fato que se pretende provar. Pode-se dizer também que é um ponto de partida onde são utilizadas as informações disponíveis em busca do ponto de chegada, que vem a ser a conclusão daquilo que se quer atingir. Na realidade, de acordo com a melhor lógica, vai se chegar ao fato que se pretende demonstrar por dedução, isto é, tudo aquilo que se concluiu após as análises das circunstâncias apresentadas. Indícios, desta forma, são obtidos via de inferência, pois cabe ao agente partir de um fato já conhecido para percorrer o iter necessário para chegar a outro que seja ainda desconhecido, cuja elucidação tem relevância.   Por isto que o caminhar probatório na peregrinação processual penal, ao atingir a primeira fase da postulação, consistente na apresentação da peça acusatória formal, mesmo que atenda à exigência mínima, vale-se do brocardo in dubio pro societate, demonstrando que prevalece o interesse maior, que é o da sociedade na persecução penal. Porém, o mesmo critério não pode ser adotado em caso de condenação, vez que aí se aplica o in dubio pro reo, em razão da exigência de provas robustas para tanto. De forma lapidar, Marques esclarece que a denúncia, "por ser um ato instrumental da ação pública, deve conter todos os elementos desta. A pretensão punitiva que se condensa na acusação será exposta com clareza, indicando-se seu objeto (ou petitum) e os seus fundamentos (ou causa petendi), e ainda os dados subjetivos que a integram: o sujeito ativo que acusa (o órgão do Ministério Público) e o sujeito passivo que é acusado (o réu). O promotor de justiça faz o seu pedido, dá-lhe os devidos fundamentos e diz contra quem se dirige a acusação". 1 Tudo deve ser matematicamente exposto na peça inicial penal. Tanto é que a Constituição Federal não abraça o princípio da ampla acusação e sim da ampla defesa. Daí que a proposta acusatória tem que soar em sintonia com as provas arrecadadas preliminarmente e, desde seu início, abrir as comportas para o acolhimento da pretensão estatal.  A narrativa precisa e aberta do fato constitui, desta forma, a pedra angular da proposta acusatória. Por outro lado, no polo oposto da relação processual, em razão do princípio da ampla defesa, vem a resposta a todos os argumentos lançados na inicial, que podem ser descobertos inicialmente e desvendados no final. Na conjugação desses dois fatores, a defesa exsurge de forma ampla com o estabelecimento de um contraditório mais condizente com a natureza democrática do processo. E o julgador terá um material seguro para proferir uma sentença absolutória ou condenatória. A ausência da descrição que envolve o elemento subjetivo demonstra, por si só, a falta de justa causa para a propositura da ação penal, fator impeditivo do procedimento, pois é regra constitucional que ninguém será submetido a um processo criminal se não houver provas inconcussas com a mínima probabilidade de potencial condenação. A ação penal, pelo desgaste que proporciona, não é um campo de probabilidade e sim de certeza provisória com um indiscutível lastro de seriedade. A pesquisa da verdade para a propositura de uma ação penal tem que corresponder ao material probatório coletado, que se apresenta como a base, a sustentação de uma pretensão acusatória. Do contrário, se assim não for, bastaria a simples articulação punitiva na inicial para autorizar seu acolhimento. O Judiciário, no entanto, se apresenta como um aparelho dedutivo, que vai realizar regras operatórias e buscar uma interpretação que represente o valor suficiente daquilo que foi demonstrado. É a operação idealizada por Hegel, em sua dialética, quando propõe a pretensão por meio da tese, admite sua refutação pela antítese e elege a síntese como o meio para elucidar o fato proposto.  ________ 1 Marques, José Frederico.  Elementos de direito processual penal, vol. II. Campinas: Bookseller, 1997, p.   146.
domingo, 23 de março de 2025

O gênero neutro

O Superior Tribunal de Justiça, por sua 3ª Turma, foi instado a julgar um recurso especial em caso inédito nos tribunais brasileiros. Em resumo, determinada pessoa, após realizar cirurgia, fazendo uso de considerável carga de hormônios para alteração de gênero, não se ajustou na conformação pretendida e, depois de muito refletir, chegou à conclusão de que não se identificava nem como homem e nem como mulher. Diante disso, invocou a tutela jurisdicional com o intuito de retificar o seu registro civil para que nele ficasse constando o gênero neutro. O julgamento chegou até o Superior Tribunal de Justiça e foi suspenso, mas, antes, a ministra Nancy Andrighi antecipou seu voto, que foi favorável à pretensão deduzida, pois segundo ela, em seu arremate final, concluiu: "Porque você sofrer cirurgia, tomar hormônios, converter-se naquilo que ela imaginava que seria bom para ela. E depois ela se deu conta que não era também aquilo".1 Pelo sistema binário prevalente na Constituição Federal - em que predomina o sexo masculino e feminino sem qualquer outro concorrente - os cartórios, anteriormente, não tinham autorização para lavrar o documento nele inserindo sexo "ignorado". O Conselho Nacional de Justiça, no Provimento 122/2021, traz interessante regulamentação com relação ao assento de nascimento no Registro Civil das Pessoas Naturais, nos casos em que o campo "sexo" da Declaração de Nascido Vivo tenha sido preenchido como "ignorado".2 Com a nova regulamentação, quando se tratar de Anomalia de Diferenciação de Sexo (ADS), em que fica constatado ictu oculi a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de identificação imediata do sexo, o oficial do cartório irá observar se no campo sexo da DNV foi preenchido como "ignorado". Se assim for, nos mesmos moldes, será lavrado o registro. O registrador, no entanto, recomendará ao declarante a escolha de prenome comum aos dois sexos e, se recusada a proposta, permanecerá o prenome indicado pelo declarante. No caso sub judice, no entanto, é outra realidade. A pessoa se submeteu à cirurgia de redesignação de sexo, que é complexa e traz sérios dissabores e nem sempre alcança o propósito perquirido. Já foi o tempo em que o homossexual pleiteava alteração de prenome, assim como de gênero no registro civil e teria, obrigatoriamente, que realizar a cirurgia de transgenitalização. O pleito pretendido busca, na realidade, uma alternativa inexistente no direito pátrio vez que o recorrente alega colidência entre o gênero biológico e sua identidade de gênero, por ter frequentado as duas opções e em nenhuma delas encontrou aderência. A genitália ambígua não provoca o surgimento de um terceiro sexo - denominação que vai até mesmo criar mais confusão do que encontrar uma solução adequada - e sim é resultado geralmente de uma malformação, conhecida como intersexo, para a identificação da genitália, principalmente na faixa infantil.  Ocorre quando as características sexuais não se encaixam no espaço binário dos corpos masculino e feminino, como é o caso dos pacientes hermafroditas, impedidos de conhecer imediatamente o sexo, circunstância que trará sérias complicações familiares e sociais. Tanto é que os pais, erroneamente, escolhem o sexo para o filho ao nascer, provocando, com o passar do tempo, discordância entre a identidade sexual e a identidade de gênero. O provimento 122/21, coerente com a necessidade social, de forma oportuna, estabeleceu que a designação do sexo poderá ser feita a qualquer tempo por um termo de opção, independentemente de autorização judicial ou de comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual, de tratamento hormonal, ou de apresentação de laudo médico ou psicológico. Se a pessoa optante estiver sob o poder familiar, será representada ou assistida pela mãe ou pelo pai, mas terá que dar seu consentimento se for maior de 12 anos de idade. É idêntico ao procedimento estabelecido para a alteração do prenome e do gênero no assento de nascimento e casamento de pessoa transgênera, conforme se observa do § 1º do artigo 4º do provimento 73/18, do mesmo órgão. O voto, até agora escoteiro da ministra retratou, de forma inequívoca, a complexidade do tema que repentinamente aflorou, desprovido de parâmetros legais para embasar uma correta decisão. Valeu-se ela da ciência da Hermenêutica e também dos princípios basilares contidos na Constituição Federal, dentre eles, com relevo, o da dignidade da pessoa humana. O Direito, dessa forma, pela sua própria estruturação interpretativa, revela-se cada vez mais como um instrumento voltado para atender às necessidades do homem. Vale-se da lei, que estabelece os parâmetros permissivos e proibitivos, porém, não se prende a ela de forma servil e sim, com a autonomia que lhe é peculiar, alça voo em busca de uma verdadeira integração entre a norma e o fato perquirido, avizinhando-se da realidade pretendida. Pode-se até dizer que a lei é uma ficção, enquanto sua aplicação na medida certa depende unicamente da forma pela qual será interpretada. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui.
domingo, 16 de março de 2025

Ainda resta uma esperança

Eu tive notícia, ó rei venturoso, como se iniciam os contos do Livro das Mil e Uma Noites, que um "puxador", com maestria profissional, subtraiu um veículo e, para sua surpresa, nada agradável em razão das dificuldades apresentadas, encontrou no banco traseiro uma criança que dormia, por mais paradoxal que seja, o sono dos justos.  Imediatamente parou o veículo. Lançou mão do celular clonado e contatou a autoridade policial. Apresentou-se como furtador e prontificou-se em abandonar o veículo em determinado local para que a criança fosse resgatada. Na realidade, não seria um resgate, pois não houve sequestro, emendou em tempo. Solicitou à autoridade para que advertisse os pais da criança, irresponsáveis e criminosos. Eles sim que deveriam ser responsabilizados criminalmente. Apesar de hilariante, o fato vem revestido de um senso ético marcante. A intenção do furtador era somente a de subtrair o veículo, encaminhá-lo para o responsável pela encomenda, ganhar seu dinheiro e seguir a vida. A presença da criança no banco traseiro não estava na sua linha de desígnio, portanto, excluída de sua intenção delituosa. Não pretendia sequestrar, já que sua especialidade era a subtração, pura e simples, sem violência a qualquer pessoa. Diante da ponderação subjetiva, no exato encontro do si para o sigo mesmo, poeticamente enfatizado por Guimarães Rosa, resolveu interromper a prática do delito, não ultrapassando os limites da tentativa. Devolveu-o com a criança em seu interior. E mais: apontou os verdadeiros criminosos, como sendo os pais da criança, que a abandonaram no interior do veículo, enquanto frequentavam um bar tomando aperitivo. Esta omissão, segundo ele, poderia provocar a morte da criança, como já aconteceu em outros casos idênticos. A subtração frustrada até que foi providencial.  Quando se vê uma atitude responsável e consciente, mesmo que exteriorizada por quem vive à margem da lei, renasce a esperança no homem. A vida humana ocupa o núcleo real de importância, abrindo espaço para que a consciência moral e ética fale mais alto. De repente, no desenrolar de uma ação ilícita, o infrator é tomado de sentimentos de generosidade e altruísmo, que proporcionam uma conduta totalmente contrária à vontade inicial. O que seguia pela contramão de direção, passa, pela mesma via, a conduzir-se corretamente, de forma exemplar, disciplinando o vai e vem irresponsável das pessoas. Faz lembrar a observação feita por José Saramago, no livro Ensaio Sobre a Cegueira, no sentido de que a ocasião, apesar de propícia, nem sempre faz o ladrão.  Amigos, hoje perdi o dia, como Tito, teria dito o furtador. Mas, no seu íntimo, agora revestido do apanágio da nobreza, tinha a consciência de ter praticado uma conduta responsável. Não a medindo pela extensão do dano maior que pudesse provocar, como aqueles em que, em situação idêntica, em outra ocasião, arrastaram impiedosamente um menino, provocando-lhe a brutal morte. Nem mesmo para se ver impune da subtração tentada. Mas sim porque atendeu o apelo que ainda iluminava a sua tênue zona de penumbra, do crivo de justiça feito rapidamente no âmbito de seus estreitos preceitos e, imbuído de valores à moda antiga, desistiu de sua conduta ilícita. Não antes de apontar para a sociedade os verdadeiros culpados. Em razão do furto de um pão para sustentar a família, Jean Valjean, personagem de Os Miseráveis, de Victor Hugo, cumpriu dezenove anos de prisão. Depois, em liberdade, por voltar a acreditar nas pessoas, tornou-se um bem sucedido empresário, marcado pela sua bondade e generosidade De quando em quando, em ato isolado que merece divulgação pela imprensa, ainda dá para acreditar no homem. Ainda há sensibilidade moral pairando no ar. Ainda presente o humano. Mesmo que a aurora alcance Scheherazade, narradora do Livro das Mil e Uma Noites, no dia seguinte terá fôlego suficiente para mais uma narrativa de esperança.
O STF, em julgamento com repercussão geral, compreendendo aqui a validade para todo o país e com a obrigatoriedade da decisão ser seguida por todas as instâncias, afirmou que as guardas municipais têm legitimidade para realizar policiamento ostensivo e comunitário, assim como fazer buscas pessoais e, principalmente, prender em flagrante delito. Isto porque as guardas municipais, além do permissivo delimitado constitucionalmente, são consideradas órgãos de segurança pública, sem, no entanto, confrontar com as funções das polícias Civil e Militar. Cabem, neste espaço, algumas anotações concernentes à prisão em flagrante delito. O ainda vigente Código de Processo Penal brasileiro, editado no governo de Getúlio Vargas em 1941, vem se arrastando com muito esforço e pouco fôlego para sustentar o dinamismo social. As novas formas de se praticar delitos, as exigências de uma Justiça mais célere, as prisões com todas suas variações deixam enrubescidas as páginas do estatuto processual. Apenas reformas pontuais foram introduzidas paulatinamente, procurando ajustar com a rapidez necessária as condutas que fazem parte da realidade brasileira, que cobra cada vez mais providências em busca de uma persecução penal que seja eficiente e uma célere resposta da jurisdição penal. Flagrans, na sua configuração no Direito Romano, tem o significado daquilo que está queimando, ardente, resplandecente, daí, sem muita dificuldade, se incorporou ao Direito brasileiro como flagrante delito nos exatos termos da certeza visual do cometimento de um crime, nas hipóteses em que alguém está praticando uma infração penal, acaba de praticá-la, ou é perseguido, logo após, pela autoridade, ofendido ou qualquer pessoa e quando for encontrado, logo depois, com instrumentos, armas ou objetos que façam presumir ser ele o autor da infração penal. Isso porque o Direito Penal trabalha com o binômio autoria e materialidade que, no caso flagrancial, são constatadas facilmente. A prisão em flagrante, em sua formatação original, é a que corresponde à vontade do legislador, pois compreende todas as circunstâncias necessárias para reunir os requisitos de autoria e materialidade, além de permitir a participação popular. Prevê o Código de Processo Penal duas modalidades de flagrante delito. A primeira delas é a obrigatória, ou compulsória, realizada pela autoridade policial ou os agentes de segurança, sempre em razão do próprio ofício. A segunda é o flagrante facultativo, em que se permite a qualquer pessoa do povo a praticar o ato coercitivo. Trata-se de uma legitimidade abrangente. E, quando o cidadão assim age em nome do Estado, na realidade, não está prendendo em flagrante delito, e sim fazendo uma captura de um eventual autor de ilícito, pois o ato da prisão legal será de responsabilidade do delegado de polícia, após fazer o crivo de admissibilidade do ato flagrancial. Percebe-se, claramente, por essa linha de raciocínio que, se qualquer pessoa do povo pode assim agir, permite-se, com carradas de razões, que a Guarda Municipal, que vai além da pessoa do povo, seja detentora de legitimidade para tanto e, com a decisão ora comentada, passa a incorporar a modalidade de prisão obrigatória, em razão da vinculação da instituição com a segurança pública. Não pairam dúvidas no sentido de conferir à outra instituição de segurança a legitimidade para dar a voz de prisão ao infrator, nos casos flagranciais. Quanto maior a cobertura da tutela da comunidade, mais protegida ficará a população. Com suporte na decisão do STF, alguns prefeitos propuseram projetos para as câmaras municipais com a intenção de encontrar outra nomenclatura para a Guarda Municipal, com o nome de Polícia Municipal ou Metropolitana, em razão do poder de polícia conferido pela Suprema Corte.
O governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), presidiu o lançamento da "Disciplina Paulista de Acessibilidade e Inclusão", contando, para tanto, com a participação efetiva da SEDPcD - Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, além da parceria com quatro universidades estaduais, todas vinculadas à SCTI - Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação. A disciplina, que se apresenta como uma proposta revolucionária para os alunos de graduação, já disponível no primeiro semestre de 2025, tem como destinatários os estudantes de todos os cursos da USP - Universidade de São Paulo, Unicamp - Universidade Estadual de Campinas, Unesp - Universidade Estadual Paulista e a Univesp - Universidade Virtual do Estado de São Paulo e oferece 8.000 vagas por semestre letivo, incorporando 18 mil vagas por ano. As transformações sociais vão surgindo e se amoldando em um espaço de conquistas igualitárias para o ser humano. Cria-se, dessa forma, um marco de suma importância, conferindo novos direitos que vão se pulverizando em variadas direções, justamente para alcançar a efetiva acessibilidade e a tão almejada inclusão, nos casos de pessoas com deficiência. Sem dúvida foi uma atitude corajosa e retirou o tema da sombra que, como se sabe, faz a projeção ficar cada vez maior. Trata-se de questão atual com característica de perenidade, pois precisa ganhar corpo para eliminar muitas interrogações. Para construir uma nova realidade social, que seja mais abrangente e calcada na política de igualdade, faz-se necessário suscitar reflexões que possam fazer a diferença, uma vez que o conhecimento científico tem densidade própria e, por ser cumulativo, depende sempre de injeção de novas ideias para rotinizar uma prática que se apresenta como vitoriosa. O olhar constitucional, panorâmico que é, além de todas as tutelas individuais e coletivas, é conclusivo no sentido de que o ser humano não pode ser considerado um estrangeiro em seu próprio universo, pois a ele é assegurada a igualdade, assim como a difusão da cidadania. Toda pessoa tem o direito de viver intensamente sua dignidade consagrada constitucionalmente, sem qualquer discriminação ou restrição à sua liberdade. Tal iniciativa abre amplo horizonte para mirar uma infinita gama de oportunidades, visando, em primeiro lugar, ofertar informações úteis e necessárias para o alunato e, posteriormente, facilitar o relacionamento profissional no âmbito da diversidade humana, com nítida atuação junto às pessoas com deficiência. O ser humano é destinado a viver em grupos sociais em variadas dimensões e deles não pode ser excluído. Tão importante também é saber explorar as ferramentas de tecnologia assistiva. Dessa forma, em um só bloco do projeto, o aluno terá condições de se inteirar das mais variadas situações, conhecendo, inclusive, as especificações de cada uma delas. Os temas a serem abordados terão como eixo estruturante a acessibilidade e a inclusão e serão expostos de forma prática e objetiva visando atingir as diversidades catalogadas e, dentre eles, podem ser destacadas as discussões a respeito das conceituações filosófica, política e social, a ética humanizada. além de enveredar para a área da saúde pública, da educação consistente para um determinado perfil, do urbanismo acessível e na construção de mais tecnologias eficientes, visando até mesmo viabilizar a construção de políticas públicas adequadas. A Bioética, pelo seu caleidoscópio multidisciplinar, que consegue encontrar a correta lente para a leitura adequada da vida, ocupa um espaço de destaque na disciplina recém-criada, vez que reúne todos os predicados para atender às múltiplas exigências do mundo atual e produzir mudanças de longo alcance. Tem potencial suficiente para unificar as várias línguas dissonantes e apresentar um canal por onde todos podem se manifestar com vista ao tão reclamado bem comum e, principalmente, com condutas e ações pertinentes, trazer dividendos e benefícios para ampliar a escolaridade de crianças e adolescentes, com total respeito à diversidade humana.
domingo, 16 de fevereiro de 2025

Uma contextualização bioética

A partir da CF/88, o Brasil elencou, dentre seus fundamentos, o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal inserção, que integra a teoria kantiana e se abrigou no preceito contido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, abriu um novo portal por onde transita a pessoa como destinatária de uma enorme carga protetiva de direitos fundamentais não estáticos e sim ampliados para que possa atingir a essência de sua plenitude como cidadão. Aflorou, assim, a bioética no espaço de reflexão envolvendo os pensamentos de várias pessoas com sólida formação em humanidades a respeito da utilização de novas tecnologias que possam ser consideradas oportunas e convenientes para que o homem mantenha sua identidade e dignidade. Quando se fala em dignidade da pessoa humana, ingressa-se em um universo de proteção ilimitada, amparando direitos já conquistados, assim como outros difusos que ainda virão em razão da mutabilidade da própria sociedade. O homem, desta forma, torna-se fim e valor em si mesmo, centro e ponto de convergência de todas as ações, dotado da capacidade volitiva e intelectiva, detentor de uma supremacia própria, exerce sua condição de sujeito moral, com autonomia decisiva própria, buscando todos os meios para o desenvolvimento de sua inalienável dignidade. A inter, multi e a transdisciplinaridade inerentes à bioética avançam em todas as áreas de atuação do ser humano e não se limitam somente ao campo da saúde. De ciência criada para proteger o meio ambiente - para que o homem pudesse desenvolver a contento suas atividades - atingiu sua plenitude como ciência da vida. Assim, no estágio atual em que os avanços científicos vão se proliferando e se incorporando à vida cotidiana, o pensamento bioético ganha uma nova dimensão e lança seus tentáculos para proporcionar ao homem as melhores condições do viver com qualidade e dignidade. A bioética - pelo seu caleidoscópio multidisciplinar, que consegue encontrar a correta lente para a leitura adequada, ocupa um espaço de destaque que reúne todos os predicados para atender às múltiplas exigências do mundo atual. Tem potencial suficiente para unificar as várias línguas dissonantes e apresentar um canal por onde todos podem se manifestar com vista ao tão reclamado bem comum. Assim é que a bioética busca a resposta para os temas que aguçam e desafiam o homem ainda despreparado e que não carrega de pronto uma definição a respeito da aceitação ou rejeição de condutas que podem quebrar o consenso ético ou da utilização de técnicas que venham a ser incompatíveis com a expectativa da vida individualizada, como, por exemplo: as pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias; as variadas técnicas aprovadas para a realização da procriação assistida; a maternidade de substituição; o patrimônio genético; a célula sintética; a decifração do DNA recombinante; as incursões perigosas da edição genética; o aborto permitido, o de feto anencefálico e o proveniente da opção procriativa da mulher; o necessário planejamento familiar; a cirurgia de transgenitalização e suas consequências na vida civil; o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (lei 14.874/24); as clonagens terapêutica e científica; a transfusão de sangue e o direito à crença diante do direito à vida, de acordo com a recente decisão do STF; o direito à dignidade da morte em razão da eutanásia, distanásia, ortotanásia e suicídio assistido; as uniões homoafetivas e suas implicações legais; o Estatuto do Idoso e a proteção à longevidade; o Estatuto da Pessoa com Deficiência e suas vulnerabilidades; a doação e o transplante de órgãos e tecidos humanos; o início e o fim da vida humana, conforme decisão proferida pelo STF são, dentre muitos outros, temas que provocarão mudanças sociais, éticas, culturais e jurídicas. A bioética, desta forma, como se fosse um senso regulatório, compartilha os resultados favoráveis e comparece a fim de dar seu nihil obstat para a utilização humana. Sua aplicação não se limita à área médica e sim à própria vida humana, em suas variadas fases. É a leitura de muitos olhos a respeito de problemas individuais e coletivos, com a intenção de buscar a melhor solução, a mais próxima e condizente com a dignidade humana.
domingo, 9 de fevereiro de 2025

O lar e sua intimidade inviolável

Um dos significados da palavra grega oikos compreende casa, em seu sentido de local de habitação de um grupo familiar. Tanto é que referido radical deu origem à palavra ecologia, com o significado de estudo relacionado com o local em que se habita. Os romanos, por seu turno, mais apegados à tradição e aos costumes, denominavam domus o local de agregação dos grupos regidos pelo pater famílias. No Brasil, a palavra casa compreende domicílio, residência, imóvel ocupado por um indivíduo ou grupo familiar e, em algumas situações especiais, aproxima-se da palavra lar, como é o espírito indicativo da lei Maria da Penha. A Constituição Brasileira apregoa taxativamente no art. 5º, XI: "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial." O Código Penal brasileiro, em seu art. 150, erigiu à categoria de crime a violação de domicílio: "Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências" e ampliou ainda o conceito para compreender qualquer compartimento habitado, aposento ocupado de habitação coletiva, compartimento não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade. Percebe-se, claramente, que a tutela da legislação brasileira está voltada integralmente para a proteção à pessoa na sua esfera de liberdade doméstica e não para a defesa do imóvel. Assim, quando a Lei Maior rotulou a casa de asilo inviolável teve a intenção de erigi-la como um reduto intransponível, a não ser quando presentes as cláusulas permissivas de ingresso à moradia. Até mesmo o agente policial, com exceção dos casos de flagrante delito, deve contar com a ordem judicial autorizativa ou a concedida pelo morador para ter acesso a casa. A Constituição de 1988, dentre vários direitos alargados e tutelados, abrigou em seu texto a proteção à intimidade do cidadão, assim descrita no inciso X do art. 5º: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". A intimidade do lar, expressão mais adequada do que residência ou domicílio, vai muito além. É o lugar mais recôndito da convivência familiar ou individual, indevassável por pessoas que não obtiveram acesso para dele participar. É, enfim, sinônimo de intimidade, privacidade. É o território onde se abrigam pessoas que se consideram aparentadas, unidas por laços naturais, legais ou por afinidade, mas que têm em comum o respeito mútuo e a convivência harmônica. Não é a delimitação física, com estreitas divisórias, orientadas por números e nomes. É, sim, um espaço de convivência, amplo o suficiente para suportar o desenvolvimento natural e espiritual de seus moradores. É o templo sagrado (my home is my temple) onde serão edificados os sentimentos, a dignidade e o caráter de seus moradores que, posteriormente, poderão repassá-los à comunidade maior, que é a sociedade em que se vive. Nesse reino pode desfilar tudo que é mais precioso para a pessoa, desde a sua crença religiosa até os segredos mais recônditos, sem qualquer risco de invasões arbitrárias e, principalmente, de se chegar ao conhecimento público porque não há qualquer registro materializado com sua anuência. Por fim, a intimidade, nesta abordagem, configura como o núcleo da esfera de proteção. Pode ser conceituada como o direito de estar só - the right to be alone, proteção consagrada nos EUA para assegurar a peace of mind. Nela, verifica-se um conjunto de informações que apenas seu titular traz consigo para desfrutar tudo o que lhe for conveniente, além de ser o local apropriado para encontrar a paz e o equilíbrio. Ali se sentirá o rei, o bedel, o juiz, e pela sua lei, será feliz, de acordo com a canção popular. Pode-se dizer até que, na era da mais célere informática, da tecnologia mais apurada, nenhum dispositivo, ferramenta ou aplicativo será capaz de captar o que circula neste espaço reservado, de uso exclusivo de seu titular. Costa Jr., com a precisão que lhe é peculiar, definiu a intimidade como sendo "a necessidade de encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna, de manter-se a pessoa, querendo, isolada, subtraída ao alarde e à publicidade, fechada na sua intimidade, resguardada da curiosidade dos olhares e dos ouvidos ávidos".1 O enunciado, por si só, deixa a entender que, no espaço reservado com exclusividade para o indivíduo numa constante atividade solitária, ninguém poderá ter acesso, seja pessoalmente ou por máquinas, pois encerra um mundo puramente individualista, sem qualquer relação com o exterior. 1 Costa Jr., Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1970, p. 8.