A aceitação da denúncia pelo STF
domingo, 30 de março de 2025
Atualizado às 11:24
Toda imprensa vem alardeando que o STF aceitou a denúncia ofertada pelo procurador-Geral da República contra o ex-Presidente da República Jair Bolsonaro e outros sete acusados de idealizar e integrar a trama golpista ocorrida no mês de janeiro de 2023.
A decisão foi unânime dos ministros integrantes da 1ª turma da Corte Maior, tendo como sustentação a existência de indícios razoáveis das práticas descritas na peça delatória. Não se trata, porém, como muitas pessoas estão concluindo, de uma condenação antecipada. E, pelo que tudo indica, a imprensa não se preocupou em penetrar no âmbito do procedimento para explicar os requisitos autorizadores de uma ação penal, principalmente para os leigos.
Em primeiro lugar, a denúncia, de legitimidade exclusiva do Ministério Público, é a peça processual que dá início a uma ação penal pública incondicionada e traz como suporte uma investigação preliminar feita pela Autoridade Policial ou até mesmo através de peças de informações apresentadas pelo cidadão. Não há necessidade da apresentação de provas inconcussas e sim de indícios que permitam descrever o fato criminoso com todas as suas circunstâncias.
Por ser a delação estatal uma peça propositiva, satisfaz-se com a prova indiciária colhida de forma idônea e que tenha condições de apontar com a segurança jurídica necessária a autoria e materialidade do delito, binômio indispensável na pretensão acusatória, além da justa causa para a proposição da persecução penal judicial. Isso porque a opinio delicti, inerente à função do Ministério Público, deve traduzir, de forma inequívoca e transparente, a vontade do órgão persecutório judicial, em perfeita sintonia com o regramento processual vigente. Daí que a postulação é submetida ao crivo do Judiciário que poderá rejeitá-la quando ausentes os requisitos norteadores do art. 395 do CPP.
Na fase do recebimento da denúncia, não será feita qualquer apreciação a respeito da culpabilidade, satisfazendo-se o Judiciário com a presença de indícios razoáveis de autoria e materialidade, conforme acentuado pelos ministros da 1ª turma. A palavra indicium em latim, que originou o vocábulo português, tem uma conceituação abrangente, denotando a ação de procurar, marcar, fixar, indicar, encontrar vestígios, pegadas, com o sentido de apontar algo que tenha relevância na apuração de tudo aquilo que gravita em torno de um fato que é conhecido e, pelo esforço interpretativo, assim como pelo emprego do pensamento lógico, pode-se chegar com mais facilidade ao fato que se pretende provar. Pode-se dizer também que é um ponto de partida onde são utilizadas as informações disponíveis em busca do ponto de chegada, que vem a ser a conclusão daquilo que se quer atingir.
Na realidade, de acordo com a melhor lógica, vai se chegar ao fato que se pretende demonstrar por dedução, isto é, tudo aquilo que se concluiu após as análises das circunstâncias apresentadas. Indícios, desta forma, são obtidos via de inferência, pois cabe ao agente partir de um fato já conhecido para percorrer o iter necessário para chegar a outro que seja ainda desconhecido, cuja elucidação tem relevância.
Por isto que o caminhar probatório na peregrinação processual penal, ao atingir a primeira fase da postulação, consistente na apresentação da peça acusatória formal, mesmo que atenda à exigência mínima, vale-se do brocardo in dubio pro societate, demonstrando que prevalece o interesse maior, que é o da sociedade na persecução penal. Porém, o mesmo critério não pode ser adotado em caso de condenação, vez que aí se aplica o in dubio pro reo, em razão da exigência de provas robustas para tanto.
De forma lapidar, Marques esclarece que a denúncia, "por ser um ato instrumental da ação pública, deve conter todos os elementos desta. A pretensão punitiva que se condensa na acusação será exposta com clareza, indicando-se seu objeto (ou petitum) e os seus fundamentos (ou causa petendi), e ainda os dados subjetivos que a integram: o sujeito ativo que acusa (o órgão do Ministério Público) e o sujeito passivo que é acusado (o réu). O promotor de justiça faz o seu pedido, dá-lhe os devidos fundamentos e diz contra quem se dirige a acusação". 1
Tudo deve ser matematicamente exposto na peça inicial penal. Tanto é que a Constituição Federal não abraça o princípio da ampla acusação e sim da ampla defesa. Daí que a proposta acusatória tem que soar em sintonia com as provas arrecadadas preliminarmente e, desde seu início, abrir as comportas para o acolhimento da pretensão estatal.
A narrativa precisa e aberta do fato constitui, desta forma, a pedra angular da proposta acusatória. Por outro lado, no polo oposto da relação processual, em razão do princípio da ampla defesa, vem a resposta a todos os argumentos lançados na inicial, que podem ser descobertos inicialmente e desvendados no final. Na conjugação desses dois fatores, a defesa exsurge de forma ampla com o estabelecimento de um contraditório mais condizente com a natureza democrática do processo. E o julgador terá um material seguro para proferir uma sentença absolutória ou condenatória.
A ausência da descrição que envolve o elemento subjetivo demonstra, por si só, a falta de justa causa para a propositura da ação penal, fator impeditivo do procedimento, pois é regra constitucional que ninguém será submetido a um processo criminal se não houver provas inconcussas com a mínima probabilidade de potencial condenação. A ação penal, pelo desgaste que proporciona, não é um campo de probabilidade e sim de certeza provisória com um indiscutível lastro de seriedade.
A pesquisa da verdade para a propositura de uma ação penal tem que corresponder ao material probatório coletado, que se apresenta como a base, a sustentação de uma pretensão acusatória. Do contrário, se assim não for, bastaria a simples articulação punitiva na inicial para autorizar seu acolhimento. O Judiciário, no entanto, se apresenta como um aparelho dedutivo, que vai realizar regras operatórias e buscar uma interpretação que represente o valor suficiente daquilo que foi demonstrado. É a operação idealizada por Hegel, em sua dialética, quando propõe a pretensão por meio da tese, admite sua refutação pela antítese e elege a síntese como o meio para elucidar o fato proposto.
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1 Marques, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. II. Campinas: Bookseller, 1997, p. 146.