O lar e sua intimidade inviolável
domingo, 9 de fevereiro de 2025
Atualizado em 7 de fevereiro de 2025 09:06
Um dos significados da palavra grega oikos compreende casa, em seu sentido de local de habitação de um grupo familiar. Tanto é que referido radical deu origem à palavra ecologia, com o significado de estudo relacionado com o local em que se habita. Os romanos, por seu turno, mais apegados à tradição e aos costumes, denominavam domus o local de agregação dos grupos regidos pelo pater famílias.
No Brasil, a palavra casa compreende domicílio, residência, imóvel ocupado por um indivíduo ou grupo familiar e, em algumas situações especiais, aproxima-se da palavra lar, como é o espírito indicativo da lei Maria da Penha. A Constituição Brasileira apregoa taxativamente no art. 5º, XI: "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial."
O Código Penal brasileiro, em seu art. 150, erigiu à categoria de crime a violação de domicílio: "Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências" e ampliou ainda o conceito para compreender qualquer compartimento habitado, aposento ocupado de habitação coletiva, compartimento não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade.
Percebe-se, claramente, que a tutela da legislação brasileira está voltada integralmente para a proteção à pessoa na sua esfera de liberdade doméstica e não para a defesa do imóvel. Assim, quando a Lei Maior rotulou a casa de asilo inviolável teve a intenção de erigi-la como um reduto intransponível, a não ser quando presentes as cláusulas permissivas de ingresso à moradia. Até mesmo o agente policial, com exceção dos casos de flagrante delito, deve contar com a ordem judicial autorizativa ou a concedida pelo morador para ter acesso a casa.
A Constituição de 1988, dentre vários direitos alargados e tutelados, abrigou em seu texto a proteção à intimidade do cidadão, assim descrita no inciso X do art. 5º: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
A intimidade do lar, expressão mais adequada do que residência ou domicílio, vai muito além. É o lugar mais recôndito da convivência familiar ou individual, indevassável por pessoas que não obtiveram acesso para dele participar. É, enfim, sinônimo de intimidade, privacidade. É o território onde se abrigam pessoas que se consideram aparentadas, unidas por laços naturais, legais ou por afinidade, mas que têm em comum o respeito mútuo e a convivência harmônica. Não é a delimitação física, com estreitas divisórias, orientadas por números e nomes. É, sim, um espaço de convivência, amplo o suficiente para suportar o desenvolvimento natural e espiritual de seus moradores. É o templo sagrado (my home is my temple) onde serão edificados os sentimentos, a dignidade e o caráter de seus moradores que, posteriormente, poderão repassá-los à comunidade maior, que é a sociedade em que se vive.
Nesse reino pode desfilar tudo que é mais precioso para a pessoa, desde a sua crença religiosa até os segredos mais recônditos, sem qualquer risco de invasões arbitrárias e, principalmente, de se chegar ao conhecimento público porque não há qualquer registro materializado com sua anuência.
Por fim, a intimidade, nesta abordagem, configura como o núcleo da esfera de proteção. Pode ser conceituada como o direito de estar só - the right to be alone, proteção consagrada nos EUA para assegurar a peace of mind. Nela, verifica-se um conjunto de informações que apenas seu titular traz consigo para desfrutar tudo o que lhe for conveniente, além de ser o local apropriado para encontrar a paz e o equilíbrio. Ali se sentirá o rei, o bedel, o juiz, e pela sua lei, será feliz, de acordo com a canção popular. Pode-se dizer até que, na era da mais célere informática, da tecnologia mais apurada, nenhum dispositivo, ferramenta ou aplicativo será capaz de captar o que circula neste espaço reservado, de uso exclusivo de seu titular.
Costa Jr., com a precisão que lhe é peculiar, definiu a intimidade como sendo "a necessidade de encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna, de manter-se a pessoa, querendo, isolada, subtraída ao alarde e à publicidade, fechada na sua intimidade, resguardada da curiosidade dos olhares e dos ouvidos ávidos".1
O enunciado, por si só, deixa a entender que, no espaço reservado com exclusividade para o indivíduo numa constante atividade solitária, ninguém poderá ter acesso, seja pessoalmente ou por máquinas, pois encerra um mundo puramente individualista, sem qualquer relação com o exterior.
1 Costa Jr., Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1970, p. 8.