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O desafio do desodorante e a responsabilidade penal

domingo, 1 de junho de 2025

Atualizado em 30 de maio de 2025 17:34

Quando surgiu pela primeira vez a proposta de uma revolução digital - ainda mero indicador de uma realidade que continha uma modesta estrutura funcional - não se imaginava que a humanidade fosse abraçar e impulsionar toda a virada histórica projetada. Inevitável qualquer esforço em contrário, porque a tecnologia digital expandiu de tal forma que não se pode afirmar ter atingido o ponto de chegada que, pelo visto, cada vez mais ficará distante.

A banalização da vida, infelizmente, tem encontrado nas redes sociais um palco fértil para a sua manifestação mais cruel, haja vista a complexidade de fiscalização existente. Em ambientes digitais, projetados para o consumo rápido, efêmero e emocional, práticas perigosas - muitas vezes travestidas de brincadeiras - têm ganhado corpo e audiência. É nesse contexto que se insere o chamado "desafio do desodorante", uma prática que consiste no desafio à vítima para inalação contínua do aerossol, até a perda de consciência. O caso recente da menina de 11 anos1, que morreu em decorrência desse comportamento em São Bernardo do Campo, é expressão trágica de um fenômeno mais amplo e inquietante: a repetição de condutas manipuladoras e com alto poder de persuasão, habilidosa e maliciosamente direcionadas a pessoas vulneráveis, levanta questões urgentes sobre a responsabilidade digital e a atuação do Direito Penal.

A análise jurídica da conduta daqueles que produzem ou difundem esse tipo de conteúdo exige atenção ao art. 122 do Código Penal, cujo alcance foi ampliado pela lei 13.968/19. Tradicionalmente voltado à instigação, induzimento e auxílio ao suicídio, o novo tipo penal trouxe relevante alteração: passou a prever, como crime, o ato de induzir ou instigar alguém não apenas ao suicídio, mas também à prática de automutilação, ou ainda de prestar-lhe auxílio material para tal finalidade. A consumação independe do resultado, embora as consequências mais graves - como a morte ou a lesão corporal de natureza grave - ensejem aumento da pena. Há, inclusive, previsão de majorantes específicas quando a vítima é pessoa vulnerável, como os menores de idade e incapazes.

No ambiente digital, essa previsão legal ganha contornos específicos. A instigação - uma das modalidades previstas no tipo penal - consiste no estímulo, reforço ou encorajamento de uma ideia já alojada no ânimo da vítima; enquanto o induzimento traz o conceito de implantar na mente da pessoa uma ideia até então inexistente.

Desta forma, é importante destacar que, consoante o que se verifica nos fatos noticiados, a "trend" chamada de "desafio do desodorante" consiste em uma batalha para ver quem consegue inalar grandes quantidades do produto químico no menor tempo1" (trend é uma palavra da língua inglesa, que significa "tendência" e que indica, nas redes sociais, os conteúdos mais populares, que são replicados por grande número de usuários). E é interessante observar, com tal comportamento, que as condutas consideradas ilícitas se desenvolvem como se fossem parceiras das lícitas, dificultando, desta forma, as incautas vítimas de perceberem o mal ali contido.

Portanto, quem inicia esta absurda "batalha" gera o nexo causal entre conduta (instigação/induzimento) e o resultado morte, chamando pela incidência do crime previsto no art. 122 do Código Penal, cujas penas vão de reclusão, de seis meses a dois anos.

Agora um ponto crucial: nos termos do § 2º do art. 122 do Código Penal, "se o suicídio se consuma ou se da automutilação resulta morte, a pena é de reclusão, de dois a seis anos". E mais: no § 3º do mesmo art.: "A pena é duplicada:

(...)

II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

§ 4º A pena é aumentada até o dobro se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real.

§ 5º Aplica-se a pena em dobro se o autor é líder, coordenador ou administrador de grupo, de comunidade ou de rede virtual, ou por estes é responsável".

Indaga-se: é possível aplicar todas as duplicações e aumentos previstos no novo dispositivo? Ou haveria, para um mesmo desafio (mesmo caso concreto), a incidência do princípio do ne bis in idem (ninguém pode ser punido mais de uma vez pelo mesmo fato)?

Parece que, no caso concreto, pode, sim, ensejar a aplicação cumulativa das majorantes, tudo a depender da forma como a conduta foi praticada. Igualmente importante é o fato de que a lei não exige, para a configuração do crime, que o agente esteja imbuído do animus necandi (vontade de matar) ou laedendi (de causar lesão), bastando a vontade de criar/fomentar na vítima a automutilação. Então, quando esse incentivo ocorre por meio de plataformas de grande alcance, com linguagem voltada a públicos impressionáveis, o potencial lesivo se amplia consideravelmente e, ainda que o agente não conheça diretamente quem será afetado, a sua contribuição para o resultado torna-se penalmente relevante - é o nexo causal entre conduta e resultado, nos termos do art. 13 do Código Penal - conditio sine qua non.

É nesse ponto que o Direito Penal precisa intervir, não como instrumento de censura, mas como mecanismo de contenção diante de comportamentos que, por sua natureza, transcendem a esfera privada e alcançam consequências socialmente intoleráveis.

Com efeito, o "desafio do desodorante" não é um fenômeno isolado, nem fruto de exceção; ele integra um ciclo contínuo de práticas virais que flertam com o sensacionalismo, a autodestruição e a morte. A criação e difusão de conteúdo que instiga condutas perigosas não pode ser naturalizada nem amparada em uma concepção absoluta e descontextualizada da liberdade de expressão: esta, como toda liberdade, possui limites que se impõem, observando sempre o direito à vida e à proteção dos mais vulneráveis.


1 Disponível aqui.