COLUNAS

Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 9 de outubro de 2022

Rejeição vacinal

Constata-se facilmente, não só pela informação oficial do Ministério da Saúde, como também pelas notícias que circulam nos canais de comunicação, que os últimos anos apresentaram um declínio no índice de imunização da população de crianças e de adultos e, inevitavelmente, muitas doenças que eram consideradas erradicadas no Brasil, ganharam um canal aberto e vão fazendo novas vítimas, enquanto que o estoque vacinal fica disponível e sobrando nas unidades de vacinação. Basta ver, a título de exemplo, durante o período pandêmico, quanto maior o avanço da imunização no combate às variantes de fácil propagação, mais incontestável o resultado positivo com a cobertura de toda a população. E não resta nenhuma dúvida de que as vacinas foram as responsáveis pela batalha contra a Covid-19, apesar de muita desinformação a respeito. E a notícia mais alvissareira é que a Organização Mundial da Saúde já cogita decretar o fim do status de pandemia conferido à doença. A inquietação que se desenha no presente, e ao que tudo indica não conscientizou ainda a população, é que governo de São Paulo, preocupado com a baixa procura vacinal, prorrogou até 31 de outubro de 2022 a campanha de vacinação contra a poliomielite, visando alcançar crianças a partir de 2 meses a 1 ano de idade, índice que não superou a margem de 50% do público-alvo. E o pior é que o Plano Nacional de Imunizações (PNI) - que tem como objetivos o controle e a erradicação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis e que já chegou a atingir a meta de 95% da população alvo - vem se desgastando ano após ano. A poliomielite, conhecida também como paralisia infantil, é considerada doença contagiosa pela transmissão de pessoa a pessoa e acarreta sequelas gravíssimas, principalmente motoras pela infecção da medula e cérebro, sem qualquer chance de cura. Talvez o movimento antivacinal, que vem prosperando a cada ano, tenha desestimulado os pais a levarem seus filhos para a recomendada imunização, apesar da previsão imposta no § 1º do artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente de ser obrigatória a vacinação dos menores de idade, nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. O grupo contrário à vacinação não encontra qualquer amparo científico que tenha sido comprovado e muito menos a adesão da Organização Mundial da Saúde, que já se manifestou reiteradas vezes a respeito da eficácia das vacinas e que considera o movimento como uma das ameaças mundiais à saúde. Uma vacina, como é sabido, representa o resultado de longos anos de estudos obedecendo rigorosamente os protocolos científicos internacionais, tudo para atingir a almejada segurança e eficácia. A específica para o combate à poliomielite, em razão dos vários anos de imunização, já foi incorporada ao calendário vacinal e à vida dos brasileiros, pelos bons resultados alcançados. A vacinação, em razão do comando constitucional previsto no artigo 196 - que estabelece o dever de proteção e prevenção do gestor público - é uma questão que afeta diretamente a saúde pública, sinalizada por políticas adequadas visando à erradicação das doenças infectocontagiosas. Ora, o descumprimento do encargo vacinal por conta dos pais ou responsáveis legais não encontra qualquer escusa legal. Pelo contrário, reflete um ato de irresponsabilidade e total falta de zelo pelos filhos, tendo em vista que o imunizante é oferecido em várias unidades de saúde. Nenhuma justificativa, desta forma, socorre os responsáveis pelas crianças, que poderão, em um futuro próximo, em razão do dinamismo jurídico, ser acionados judicialmente pelos próprios filhos. Tem aqui total aplicação o pensamento desenvolvido pela Bioética que, apesar de não carregar regras ou normatização de qualquer natureza, colabora com os princípios da beneficência e o da justiça, no tocante à imunização da coletividade. Com relação ao primeiro deve-se buscar o resultado mais satisfatório para a vida humana, proporcionando dividendos de saúde, evitando-se ao máximo a ocorrência de qualquer risco ou dano à pessoa, nos exatos termos do primum non nocere. Ou, em outras palavras, extremar os prováveis benefícios e minimizar os possíveis danos. Já o segundo vem consagrado pela distribuição igualitária das vacinas e sem discriminações, cujo critério equitativo, sem prioridades de ordem econômica, conduz à igualdade de tratamento que deve imperar no relacionamento humano. Quer dizer, se cientificamente for comprovado que uma vacina produziu resultado promissor para a preservação da saúde de uma pessoa, igualmente deve se estender às demais. Daí que a Organização Mundial da Saúde considera a vacina como um bem público global, com acesso irrestrito a toda comunidade mundial.
domingo, 25 de setembro de 2022

Furto por necessidade e furto insignificante

Tramita pela Câmara Federal o projeto de lei 4.540/21, de autoria da deputada Talíria Petrone e outros deputados, apensado ao PL 1244/11 para uma decisão em conjunto pelas comissões,  que visa alterar o artigo 155,§ 2º do Código Penal para nele acrescentar que não haverá prisão quando ocorrer o furto por necessidade e o furto insignificante, mesmo em se tratando de agente reincidente, cabendo ao juiz aplicar uma pena restritiva de direitos ou multa, além do que, eventual ação penal será de natureza exclusivamente privada, mediante iniciativa da vítima.1 A proposta cria duas modalidades diferentes de furto. A primeira, por necessidade relacionada diretamente com a situação de pobreza ou extrema pobreza do autor que pratica a subtração para saciar sua fome ou para atender necessidade básica de sua família, conduta já conhecida dos meios judiciais como furto famélico, abrangida pelo estado de necessidade, que justifica a excludente. A segunda, relacionada com o furto insignificante, incide diretamente sobre o valor da res furtiva com relação ao patrimônio do ofendido. O parâmetro aqui pode até causar distorções pois tem como base o valor do patrimônio alheio. Trata-se de uma proposta que visa estabelecer uniformização legislativa a respeito de fatos praticados até com certa frequência e que, apesar de carregarem baixa repercussão social, refletem uma realidade atrelada a uma crise social e econômica. É certo que o Direito vive do fato social e cuida das condutas humanas previamente ajustadas nas regras legislativas Bem dizia Maximiliano que o Direito "nasce na sociedade e para a sociedade; não pode deixar de ser um fator do desenvolvimento da mesma. Para ele não é indiferente a ruína ou a prosperidade, a saúde ou a moléstia, o bem-estar ou a desgraça".2 O projeto merece ser criteriosamente discutido pela sociedade, contando até mesmo com a manifestação popular, que é a vertente mais legitimada para corretamente direcionar uma decisão. A realidade brasileira merece ser estudada com mais acuidade. Os teóricos do Direito no século 18 profetizavam que não é o tamanho do castigo imposto que atua como freio da criminalidade e sim a virtual certeza de que a punição não virá. A proposta legislativa tem como sustentáculo o pensamento de que o abrandamento da lei é a medida mais eficaz para o tratamento da baixa lesividade. Quer dizer, quanto menor for a intervenção penal - provocando até mesmo certa descriminalização do furto em algumas modalidades - maior e mais benéfica será a resposta social. Vários abrandamentos legislativos foram feitos como, por exemplo, na Lei dos Crimes Hediondos, que tinha por objetivo uma punição exemplar para aquele que praticasse um delito grave e acabou levando a população a uma frustração coletiva pelo esfacelamento das cláusulas mais rígidas. A atenuação pretendida já carrega um entendimento da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que elencou os requisitos de ordem objetiva para aplicação do princípio da insignificância, nos chamados crimes de bagatela, com a mínima repercussão penal e social: a) conduta minimamente ofensiva do agente; b) ausência de risco social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica. O projeto de lei apresentado, apesar da preocupação social demonstrada, no entanto, estende o benefício até mesmo para o infrator reincidente. Tal abertura não coaduna com a realidade da política criminal brasileira, que apresenta alto índice de insegurança diante de uma escalada estarrecedora de crimes de conteúdos diversos. O contumaz se sentiria prestigiado pela própria lei a praticar várias condutas irrelevantes, mesmo que separadamente sejam consideradas de valores ínfimos. Concede-se a ele uma espécie de carta de alforria e abre-se um espaço sem qualquer juízo de reprovabilidade e sim de incentivo para prosseguir na empreitada delituosa. O resultado é previsível: fragilizar o sistema penal com o enfraquecimento das poucas medidas protetivas da sociedade. O atalho pretendido pode desembocar no abismo. Melhor seria a criação de políticas públicas salutares voltadas para a construção de um cenário animador com a inclusão da população nos parâmetros da cidadania, com o consequente acesso ao trabalho, educação, saúde e tudo o mais que integra a dignidade da pessoa humana. O Código Penal, que carrega um olhar vetusto e corroído pelo tempo, merece sim uma remodelagem, tanto para captar qualquer lampejo da sensibilidade necessária como, também, para distinguir aquele que, aproveitando do flanco aberto na legislação, faz do crime um verdadeiro meio de vida. __________ 1 Disponível aqui. 2 Maximiliano, Carlos. Hemenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.  137.
domingo, 18 de setembro de 2022

O corpo e o cadáver

A corporeidade - assim entendida como um princípio individualizante - tem por função imprimir ao homem sua realidade singular, revelando-o como pessoa articulada com as demais. Faz dele o detentor de um enorme latifúndio chamado corpo humano, que funciona como instrumento não só deambulatório mas também com inúmeras funções mais para realizar seus objetivos e, ao memo tempo, abriga, em seu interior, as vidas psíquica, volitiva e inteligente. Tanto é que, dessa unidade intrínseca, faz fluir a dignidade da pessoa humana, compreendida na tutela voltada para a saúde física, mental e psíquica. Ocorre que, como é inevitável, toda esta construção ruirá com a ocorrência da morte e o corpo humano transmuda-se em cadáver e, como tal, tem as proteções também definidas. O Estado, responsável pelo corpo que carregava a vida humana, continua sua missão, agora com o cadáver. Criou, para tanto, o tipo penal de vilipêndio a cadáver ou suas cinzas, no artigo 212, inserindo como vítimas os parentes e amigos próximos que guardam sentimentos de respeito e admiração pelo falecido. A responsabilidade familiar pelo cadáver vem desde a Roma antiga, época em que prevalecia fortemente a religião doméstica e somente os parentes mais próximos poderiam participar do funeral, uma vez que os mortos eram enterrados no fundo da casa, local onde se realizavam os cultos aos mortos e ao fogo, que deveria permanecer aceso para representar a imortalidade da alma. "O vivo, esclarece Coulanges, não podia passar sem o morto, nem este sem aquele. Por esse motivo, poderoso laço se estabelecia unindo todas as gerações de uma mesma família, fazendo dela um corpo eternamente inseparável".1 Percebe-se, nesta linha de pensamento, que os parentes são os responsáveis pelo cadáver, cabendo ao Estado realizar somente as ações referentes às escolhas feitas por eles em vida. A legitimidade familiar conferida legalmente conserva uma motivação de cunho eminentemente íntimo, resultante da convivência de muitos anos, em razão da revelação feita em vida por aquele interessado na doação de órgãos e do próprio cadáver. O primeiro questionamento que se faz é a respeito da doação de órgãos, tecidos e partes do cadáver, regulamentada pela lei 9.434/97. Na modalidade post mortem, referida Lei estabelece que a doação de órgãos só poderá ser realizada com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central.  Assim, se a pessoa nada exigiu em vida, seu sepultamento será realizado no cemitério local, com a observância das normas estabelecidas pelo poder público. Quando optar pela cremação do cadáver somente poderá ser feita se houver manifestado para a família em vida a vontade de ser incinerado, ou no interesse da saúde pública, além do caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária, conforme disciplina a lei 6015/73. Há casos em que a pessoa em vida deixa um documento revelando que pretende doar seu corpo post mortem para uma instituição de ensino com a finalidade de realizar estudos científicos. A esse respeito, o próprio CC/02 (art. 14) considera válida a disposição do próprio corpo, no todo ou em parte, após a morte, desde que tenha por objetivo motivação científica ou altruística. Mas, mesmo assim, a palavra final ainda será da família. Pode até ser que seja encontrado um cadáver sem qualquer identificação e, mesmo identificado, apesar das diligências feitas, não sejam encontrados seus parentes ou o representante legal. Neste caso, obrigatoriamente, será publicada a notícia do falecimento em jornal da cidade pelo prazo de 10 dias, na tentativa de encontrar os parentes. Resultando infrutífera, o cadáver será destinado às escolas de medicina para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico, consoante determina a lei 8.501/92. Por isso que as faculdades de medicina realizam todos os anos cultos e celebrações ao Cadáver Desconhecido, projetando uma perfeita reflexão humanística em nome daquele que, de forma altruísta e solidária, doou seu corpo para a formação científica dos futuros médicos. A rainha Elizabeth II, monarca mais longeva da história, morreu aos 96 anos e seu corpo foi exposto à visitação pública por vários dias e será enterrado na Capela familiar de Saint George, mausoléu escolhido por ela porque lá se encontram os restos mortais dos seus pais, da sua irmã e de seu marido. É conhecida a dedicatória de Machado de Assis na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas: "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas". Mário Quintana, por sua vez, conhecido como o poeta das coisas simples e encantado pela vida, como que querendo afugentar a morte e eliminar o pensamento a respeito do cadáver, mandou escrever na lápide de seu túmulo: "Eu não estou aqui". _____ 1 De Colulanges, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jean Melville. Editora Martin Clarete, 2003, p.38.
domingo, 11 de setembro de 2022

Setembro Amarelo

No dia 10 de setembro é comemorado o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Amarelo para representar a cor que Mike Emme, jovem norte-americano de 17 anos, que cometeu suicídio, pintou seu Mustang 68. Em seu velório, os pais e amigos distribuíram cartões amarrados com fitas amarelas e com mensagens de apoio para quem estivesse enfrentando o mesmo problema. Referido mês foi escolhido para alavancar no Brasil a campanha de conscientização a respeito do suicídio. O Código Penal Brasileiro, mirando a vida humana como o bem jurídico prevalente, com relação ao suicídio, traçou três modalidades de seu cometimento no artigo 122. A primeira delas é pela instigação, compreendendo aqui o ato de incitar, estimular na pessoa a ideia pré-existente, para que ela venha realmente concretizar seu intento. A segunda, pelo induzimento, manifestado pelo ato de incutir, fazer a pessoa se interessar e estimulá-la a alimentar a ideia suicida. Nesta situação a mente da pessoa está inicialmente in albis e nela é plantada a semente para colocar um fim à própria vida. A terceira, consistente em prestar auxílio, compreende toda ajuda material para que o suicida atinja seu propósito. Visando oferecer políticas públicas direcionadas ao tema, o governo editou a lei 13.819/2019 instituindo a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio a ser implementada pela União, em colaboração com os Estados, Municípios e Distrito Federal. Compreendem na lei a violência autoprovocada, o suicídio consumado, a tentativa de suicídio e todo ato de automutilação, com ou sem ideação suicida. Traz ainda, dentre outros objetivos, a promoção à saúde mental, a prevenção à violência autoprovocada e o acesso às pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, notadamente àquelas com ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio, envolvendo entidades da saúde, educação, comunicação, imprensa e polícia, entre outras. No caso específico do suicídio, os objetivos da campanha cingem-se na promoção da saúde mental com a finalidade de: a) garantir  o acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, especialmente daquelas com histórico de ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio; b) abordar adequadamente os familiares e as pessoas próximas das vítimas de suicídio e garantir-lhes assistência psicossocial; c)  informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e a relevância das lesões autoprovocadas como problemas de saúde pública passíveis de prevenção e promover a articulação intersetorial para a prevenção do suicídio. Uma das formas de comunicação será o serviço telefônico ou qualquer outra forma de comunicação destinada ao serviço gratuito e sigiloso de pessoas em sofrimento psíquico, observando que o atendimento deverá ser prestado por profissional com qualificação adequada. Fica bem delineado o espírito educativo e preventivo da lei quando se refere à assistência às pessoas em sofrimento psíquico e, principalmente, quando elege os profissionais da psicologia e da psiquiatria como os qualificados para a prestação da assistência necessária e adequada. O zelo pela saúde mental da comunidade é de vital importância. É sabido que pessoas portadoras de sofrimento psíquico se perdem em seus próprios pensamentos, persistem em suas ideias errôneas, indolentes, não sabem para onde ir e não se abrem para assimilar novas perspectivas de vida, a não ser os reiterados choques de negatividade. Daí a necessidade da participação de profissional qualificado e que tenha condições de romper o modelo de vida desgastado e introduzir a reflexão necessária e construtiva para enfrentar e acertar as contas com o passado turbulento das pessoas em sofrimento mental. A saúde psíquica do cidadão, a exemplo da definição de saúde da Organização Mundial da Saúde, integra todos os cuidados de saúde, independentemente das condicionantes sociais, ambientais, econômicos e outras, visando sempre a atingir o bem comum. Desta forma, detectada a vulnerabilidade em razão do sofrimento psíquico, o próprio Estado deve garantir políticas públicas de atendimento preventivo com as condições necessárias e acessíveis a todos os que se encontram sob o mesmo quadro clínico mental, com absoluta proteção da confidencialidade das informações. Tamanha é a importância da atenção voltada às pessoas com sofrimento psíquico que os casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada, compreendendo o suicídio consumado, suicídio tentado ou qualquer ato de automutilação, com ou sem ideação suicida, são de notificação compulsória, de caráter sigiloso. Assim os estabelecimentos públicos e privados de saúde devem notificar as autoridades sanitárias, ao passo que os estabelecimentos públicos e privados de ensino farão a notificação ao Conselho Tutelar. Com tal aparato, as medidas devem atingir resultados que sejam considerados satisfatórios ao minorar a mortalidade em razão do suicídio, em cumprimento à obrigatoriedade imposta ao Estado pelo artigo 196 da Constituição Federal.
domingo, 4 de setembro de 2022

O neurodireito e sua tutela legal

Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudônimo George Orwell, escreveu a obra de ficção social 1984, publicada em 1949, em que narra a história de um funcionário público do Ministério da Verdade de um governo totalitário com a função de alterar atos e fatos e adequá-los ao regime político adotado. Assim o cidadão, pela política de controle, não tinha como se manifestar contrariamente e o seu pensamento era monitorado pelo Big Brother, ditador que impunha as regras doutrinárias do governo. Orwell jamais imaginaria que sua obra de ficção iria antecipar o progresso científico, notadamente na área da cognição humana e sua consequente tutela pela legislação. O Cogito, ergo sum, de Descartes, nunca foi tão valorizado e aplicado como no momento presente - na medida em que representa a atividade mental do ser humano - revelando sua forma de pensar, suas emoções, seus sentimentos e seus projetos. É uma atividade inerente ao próprio processo de viver e se encaixa perfeitamente no âmbito da manifestação do pensamento inviolável e na liberdade de consciência, assim considerados como garantias fundamentais na Constituição Federal. O incessante caminhar da tecnologia exige uma tutela especial à atividade cognitiva, responsável que é pela autogeração e pela perpetuação das redes vivas. Com toda razão esclarecem Capra e Luisi: Desse modo, a vida e a cognição são inseparavelmente conectadas. A mente - ou mais precisamente, a atividade mental - é imanente na matéria em todos os níveis da vida.1 Esta introdução se faz necessária para discutir as novas tecnologias existentes para introdução no corpo humano, por meio de próteses, chips e implantes, de minúsculos computadores que possam gerar senhas, aprovar transações em moedas digitais, abrir portas, medir e controlar o batimento cardíaco, a pressão corporal e inúmeras outras especialidades. Enfim, criam uma nova realidade com a introdução do dado neural, que vem a ser a informação obtida, direta ou indiretamente, da atividade do sistema nervoso central e cujo acesso é realizado por meio de interfaces cérebro-computador invasivas ou não-invasivas. Desta forma, mais parecendo uma ficção científica - que relata um futuro distópico na convivência das máquinas sencientes com os seres humanos já limitados pelo infindável mundo informático - abre-se uma interface entre cérebro-computador para que qualquer sistema eletrônico, óptico ou magnético, colete dados do sistema nervoso central e os transmita a um receptor informático. Desta forma, com a inserção de dispositivos na mente humana, o homem poderá ter seus pensamentos e memórias devassados, ficando como refém da própria tecnologia. De nada adiante ficar estarrecido e nem mesmo contrariar tamanha tecnologia porque não só vingará, como progredirá nesta direção. Por mais significativos que sejam os progressos científicos em áreas ainda pouco exploradas, eles serão considerados pela ciência como ensaios ainda incipientes. Daí que a biotecnologia avança a passos largos e sem qualquer indício de recuo e, rapidamente, atingirá os objetivos propostos. A não ser que o homem, seu destinatário natural, acenda o farol vermelho e estanque todo esforço concentrado por não ter mais interesse, o que é difícil na atualidade, ante os benefícios já auferidos. As propostas de facilitação da vida humana pela inserção de dispositivos tecnológicos são por demais interessantes e atrativas, um verdadeiro encantamento, dando a sensação de domínio da ciência em favor do homem. Mas há necessidade de precaução e muita cautela a respeito de possíveis danos à identidade individual do titular dos dados, causando até mesmo irreparáveis prejuízos à saúde, à autonomia e à organização psicológica da sua vida. A nova tecnologia vai conectar o sistema nervoso a um computador para captar todos os dados ali existentes, incluindo, dentre eles, os mais íntimos e sigilosos. Tais dados pertencem ao patrimônio mental da pessoa e, pela regra convencional, somente ela terá o permitido acesso. A pessoa retém em seu cérebro - e ali fica depositado durante a vida todos os registros importantes - quer sejam relacionados  à vida pessoal, social, familiar e à intimidade mais preservada que jamais serão exteriorizados, tudo a critério do titular das informações que, se quiser, elegerá, sob o crivo da sua avaliação, qual ou quais os itens podem ser disponibilizados para terceiros. Ora, com a coleta de dados neurológicos, quebra-se o freio e ocorre uma indevida invasão à intimidade do cidadão. E, de sobra, cai também a regra do Digesto, de Ulpiano: Cogitationis poenae non patitur (Ninguém pode ser punido pelos seus pensamentos). O Senado Federal do Chile, recentemente, aprovou por unanimidade a proposta de inclusão dos neurodireitos ou os direitos do cérebro em sua Constituição Federal - com fulcro nos princípios da dignidade da pessoa humana e da autodeterminação - e deve ser o primeiro país do mundo a exercer tutela a respeito da matéria.2 A intenção é preservar a integridade física e mental do indivíduo para que ninguém, nem mesmo o Estado, possa - por meio da tecnologia - aumentar, diminuir ou perturbar a integridade individual, sem o consentimento do seu titular. A ciência é dinâmica e cada vez mais irá expandir para criar uma nova realidade para a humanidade que, por sua vez, adotando-a, merece receber a tutela protetiva necessária, com restrita obediência aos limites éticos, bioéticos e jurídicos. Daí que, visando tutelar este novo avanço tecnológico, foi apresentado um projeto de lei no ano de 2021, de autoria do deputado federal Carlos Gaguim, que modifica parcialmente a lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), para nela incluir a definição de dado neural e regulamentar a proteção do cidadão com relação às informações que se encontram armazenadas no cérebro humano. __________ 1 Capra, Fritjof; Luisi, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas : tradução Mayra Teruya Eichemberg, Newton Roberval Eichemberg - São Paulo : Cultrix, 2014, p. 316.   2 Disponível aqui.
A família, como base da sociedade, goza de especial tutela no § 7º do artigo 226 da Constituição Federal, que assim dispõe: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. O planejamento familiar, inserido na lei 9.263/1996, explicita um conjunto de ações de regulação da fecundidade, limitação do aumento da prole pela mulher e pelo homem e vem atrelado às políticas públicas gestadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no que diz respeito à atenção à mulher, ao homem ou ao casal, compreendendo, dentre outras finalidades a assistência à concepção e contracepção; atendimento pré-natal; assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato; controle das doenças sexualmente transmissíveis e o controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis. Quando se fala em políticas públicas de saúde, seu conteúdo original reside na própria Constituição Federal que atribui ao Estado o dever de garantir a saúde da população, com a consequente participação de órgãos que atuem de forma direta e preventiva, com atendimento integral e assistencial para a redução dos riscos e doenças. Por se tratar de uma lei com mais de vinte anos de vigência, o tempo - que flui em sua inexorável ampulheta - os costumes e a própria tecnologia têm o condão de provocar a revisão legislativa em busca de um ajuste com relação à dinâmica social, que é mutável por natureza. Assim é que o PL 7.364/2014, de autoria da Deputada Federal Carmen Zanotto (Cidadania/SC), encampou o desafio de alterar a Lei de Planejamento Familiar e, dentre as mudanças propostas, reduz de 25 para 21 anos a idade mínima entre homens e mulheres para se submeterem a procedimento voluntário de esterilização - laqueadura de trompas e vasectomia -, faixa etária não exigida daqueles que tiverem pelo menos dois filhos vivos, sendo terminantemente proibida para menores de idade. Outra alteração proposta no Projeto, de salutar pertinência e que vai ao encontro dos protocolos médicos recomendáveis, consiste em realizar no próprio ato cirúrgico do parto a esterilização da mulher, que na lei a ser revogada exigia procedimentos distintos. A contrapartida legal, no entanto, é que a manifestação de vontade da mulher deverá ser ofertada no prazo de sessenta dias, a contar da data do seu propósito e a laqueadura. O ponto fulcral reside na ausência do consentimento expresso do outro cônjuge ou companheiro no ato da intervenção médica. Prevalece aqui, em toda sua extensão, a autonomia da vontade da pessoa interessada em se submeter ao procedimento. Revela, de forma inequívoca que, não obstante haja o casamento ou a união estável entre o casal, nenhum deles terá domínio absoluto sobre a vida sexual e procriativa do outro. A autonomia procriativa vem ganhando corpo e reafirma que a pessoa é proprietária de um patrimônio chamado corpo humano, detentora de seus atos, administradora deste inesgotável latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e a torna sujeito de direitos e obrigações, além de exteriorizar a dimensão do preceito constitucional da dignidade da pessoa humana. A vontade determinada e livre, corolário do principium individuationis, que é o resultado de uma operação coordenada pelo cérebro, forma a ação ideomotriz, que nada mais é do que a realização de condutas selecionadas pela pessoa para o exercício da sua vida social, resultado de sua coerência ética. Poder-se-ia até afirmar que desperta a consciência da finalidade do ser humano, delineia com clareza seus objetivos e o habilita a praticar atos que julga necessários e convenientes para sua vida. O Projeto foi aprovado pela Câmara dos deputados e pelo Senado Federal e segue para apreciação do Presidente da República, que poderá sancioná-lo ou vetá-lo parcial ou totalmente.
domingo, 21 de agosto de 2022

Razões humanitárias e a prisão

Uma mulher condenada e cumprindo pena em regime semiaberto, alegando ser mãe de três filhos menores de 12 anos de idade, pleiteou, perante o Superior Tribunal de Justiça, o benefício da prisão domiciliar. Em tal modalidade de prisão a pessoa deve se recolher em sua residência e só poderá dela ausentar-se com autorização judicial. As instâncias originárias anteriores indeferiram a pretensão pela ausência de comprovação da real necessidade da presença materna para exercer os cuidados com os filhos, decisão que também foi adotada pelo relator do habeas corpus impetrado perante referida corte de justiça.1 A 5ª Turma, no entanto, encarregada do julgamento, concedeu a prisão domiciliar à mulher por entender que o crime não foi praticado contra os filhos, não teve emprego de violência ou grave ameaça e, também por razões humanitárias, não há necessidade da comprovação da presença materna em favor dos filhos, vez que, in casu, ocorre a presunção da necessidade do acompanhamento materno. O Código de Processo Penal brasileiro estabelece no artigo 318, V a viabilidade da substituição da prisão preventiva pela domiciliar para a mãe com filho até 12 anos de idade incompletos. A lei  13.769/2018, por sua vez, estabelece a possibilidade da substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência. No mesmo diapasão a lei 13.257/2016, que dispõe sobre políticas públicas para a primeira infância. Percebe-se, claramente que a legislação penal vem recebendo forte influência do instituto conhecido como razões humanitárias que, originariamente, tratava de desastres naturais, pandemias, deflagração belicosa entre nações, o drama dos refugiados e outras causas que representam a vulnerabilidade intercorrente dos povos,  e que têm por objetivo a ação solidária de um ou mais países para acudir de forma emergencial as pessoas que necessitam de apoio, abrigo, alimentação e acolhimento. Na sociedade contemporânea o instituto experimentou um alargamento e passou a compreender também, no campo jurídico, um sentimento diferenciado, individualizado e atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana. A boa hermenêutica recomenda ao intérprete que retire do texto legal, por mais diminuto que seja, o máximo de benefício para o cidadão. Assim é papel do julgador não se apegar com severidade à norma e sim, em casos em que há a efetivação de um direito em conflito, que faça prevalecer uma sensibilidade extremada em busca de uma solução que não se afaste dos parâmetros legais e sim que possa suavizá-los com uma recomendada dose de humanidade. Coloca-se na balança, de um lado, a aflição e a angústia de uma mãe segregada de seus filhos e, de outro, a necessidade natural da convivência e assistência materna, cuja ausência para eles é incompreensível e pode provocar até mesmo trauma psicológico, que o pêndulo da justiça irá apontar o bem-estar das crianças como o fator mais relevante. A razão humanitária, desta forma, vem ganhando espaço no âmbito do Judiciário que não deixa de aplicar a regra prevista para determinada conduta. Mas dá a ela uma modulação mais abrangente considerando a pessoa humana em toda sua dimensão jurídica e, principalmente, ofertando maior atenção para a dignidade consagrada constitucionalmente. Quer dizer, focar o ser humano como um ente participante de uma comunidade e conferir a ele a proteção que for necessária para a efetivação de um direito social mais relevante do que a restrição apontada legalmente. Nenhuma dúvida de que a decisão comentada seguiu rigorosamente a interpretação mais consentânea com a mens legis. Na realidade, o que se busca é a proteção, a tutela mais adequada para as crianças e a presença materna torna-se indispensável. A própria natureza humana recomenda a convivência dos pais com os filhos, principalmente aqueles mais novos e que carecem do afeto familiar. Neste sentido é o pensamento que norteou o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), que conferiu à criança o gozo de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, além dos demais relacionados com a sua proteção integral. Referido estatuto menorista explicitou ainda em seu artigo 6º:  Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. A coerência da lei que protege os interesses dos menores é tamanha que, no caso presente, na ausência da figura materna e se o pai fosse o responsável pelos cuidados dos filhos até 12 anos de idade, seria ele contemplado pela prisão domiciliar humanitária, conforme se observa da regra disposta no artigo 318, V, do Código de Processo Penal. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 14 de agosto de 2022

A vez do pai solo

Visando a mais completa proteção à criança, a licença paternidade foi criada para os trabalhadores com carteira assinada e funcionários públicos federais, com alcance aos estaduais e municipais, desde que sejam contemplados pela devida aprovação das casas legislativas. Tal benefício confere ao pai o afastamento por cinco dias a partir do dia seguinte do nascimento do filho e, se a empresa for cadastrada no programa Empresa Cidadã, computa-se a prorrogação por mais 15 dias. O mesmo abono é concedido em caso de adoção. O modelo de família delineado na Constituição Federal vem sofrendo constantes alterações - com a inclusão de novas configurações da entidade familiar - obrigando a Justiça a fazer a devida adequação, levando-se em consideração a total preferência e assistência integral à criança, que tem o direito da presença dos pais logo após o nascimento, justamente para alicerçar o vínculo familiar que se inicia. Basta ver que caiu por terra a definição restrita de família como sendo o núcleo compreendido na união do homem e da mulher. O Supremo Tribunal Federal reconheceu, pela ADIn 4.277/DF e pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ, a plena igualdade em direitos e deveres dos casais heteroafetivos e homoafetivos. Nesta linha de pensamento é possível que um servidor público, com a intenção de constituir uma família monoparental, procure uma clínica de reprodução assistida para realizar o procedimento de fertilização in vitro com a consequente utilização de maternidade substitutiva - plenamente regulamentada pela Resolução do Conselho Federal de Medicina 2294/ 2021 - e consiga êxito em seu intento, gerando um filho pela opção pai solo. A mulher que cedeu temporariamente o útero, sem qualquer fim lucrativo ou comercial, e sim guiada pela solidariedade familiar, deu sua adesão à empreitada com a plena convicção de que não teria qualquer comprometimento com a criança. Daí resta ao pai, unicamente a ele, conferir toda a carga afetiva ao filho, assim como cumprir todas as responsabilidades legais ante a ausência da figura materna. Apesar do exemplo pouco comum, mas concretamente possível, é de se indagar se, na específica situação, o pai solo terá o direito de ser beneficiado pelo mesmo prazo previsto na licença maternidade. A construção jurídica é interessante e caminha por via pavimentada pela Hermenêutica, que busca a melhor interpretação do texto legal, desprezando a letra fria da lei, mas buscando sua finalidade última e primordial como um instrumento para compreender a ação humana em toda sua dimensão e fazer o ajuste conveniente e adequado. O projeto de procriação solo impõe ao pai o mesmo dever e atenção que seriam exigidos da mãe, se presente. O que se leva em consideração, já que o procedimento de reprodução nesta modalidade é permitido, é buscar o melhor interesse da criança, além de prestigiar a paternidade responsável. Não se deve levar em conta a forma pela qual ocorreu o nascimento da criança e sim que ela necessita da presença do pai, único responsável pelo exercício da parentalidade. A licença, in casu, deve sim ser conferida a ele que representa a família monoparental, nos mesmos moldes da licença maternal de 180 dias, em se tratando de servidor federal. Caso idêntico foi julgado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal que, por votação unânime, julgou pela constitucionalidade da extensão da licença maternidade: "Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, I, 7º, XVIII, 37, 195, § 5º, 226, § 8º, 227, § 6º e 229 da Constituição Federal, a possibilidade ou não de estender o benefício de salário maternidade pelo prazo de 180 dias, previsto no artigo 207 da Lei 8.112/1990, ao pai solteiro de crianças geradas através de procedimento de fertilização in vitro e utilização de barriga de aluguel, por analogia à Lei 12.873/2013, ante a ausência de previsão expressa na Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional de regência, e da necessidade de fonte de custeio para suportar a extensão do benefício".1 O Direito - como um tecido social móvel - não deve andar a passos miúdos e sim acompanhar a dinâmica da sociedade, imbuído de um pensamento arguto para envolver as pessoas na contextualização mais adequada para a vivência social e, por outro lado, não deve conter e nem refrear o recomendado desenvolvimento técnico-científico e sim direcioná-lo para proporcionar mais benefícios para a humanidade. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 7 de agosto de 2022

I-Juca-Pirama e o 11 de agosto

Cursava o 5º ano de Direito na Faculdade de Direito de Bauru, no ano de 1975, da Instituição Toledo de Ensino. No último ano você olha para trás para ver o que foi feito e, ao mesmo tempo, com sérias preocupações, divisa seu futuro muitas vezes incerto, provocando a normal insegurança. Muitos colegas chegam carregados de planos no primeiro ano e com o passar do tempo vão aliviando o fardo, despejando-o pela estrada acadêmica, juntamente com suas frustrações. Os que vencem todo o percurso chegam eufóricos e encontram inúmeros motivos para comemorar. Naquele ano, por ser o derradeiro, alguns colegas de rotineira convivência, incluindo-me, resolveram dar a cartada final no tradicional dia da pendura. Conversa de cá, conversa de lá, sem celular, é claro, as sugestões foram aparecendo e frequentando a galeria das preferidas. Até que, em plena sessão solene na sala de aula, ficou definido o local: G Petisco, uma lanchonete e restaurante tradicional, como o trote, e com ele familiarizado. Frequentada na maioria das vezes por estudantes de várias faculdades, de quando em quando superlotava, obrigando a moçada a aguardar em grupos na calçada, sem prejuízo das rodadas de cerveja. Dia 11 de agosto era na segunda-feira e "cabulamos" as aulas de Direito Civil e Processo Penal, esta última do inesquecível Fernando Tourinho. Ocupamos uma mesa estratégica e dali divisávamos todos os ambientes do restaurante. A noite caía gostosa com o calor típico do interior. O garçom - que tinha um apelido interessante mas de que não me lembro mais - servia com satisfação nossa turma, que contava com dez bons entusiastas de chope. Depois de muita escolha, apontamos os pratos que nos apeteciam. E assim foi rolando a comemoração, todo mundo comendo, bebendo e tínhamos a impressão de que os demais frequentadores que lá se encontravam eram alunos de Direito. Lá pelo final da noite, todos já satisfeitos, um representante do nosso grupo chamou o gerente à mesa e explicou que comemorávamos o dia da fundação dos cursos jurídicos no país, daí que, em razão da isenção concedida pelo Imperador D. Pedro I, já transitada em julgado, não iríamos pagar a conta.  O gerente já se antecipou parabenizando-nos, mas dizendo que nada tinha a ver com a data. Propusemo-nos, então, a fazer um discurso típico da nossa área falando a respeito de direito ambiental, que começava a aflorar naquele período, ou uma saudação a todos os presentes, elogiando e referendando o restaurante. Pior ainda. Não só o gerente, mas os garçons com as bandejas fincadas nos braços, já assumiram seus postos formando uma espécie de frente de ataque. Os frequentadores, que por nosso azar não eram estudantes de Direito, fizeram o cerco do outro lado e abraçaram a causa do restaurante. Sentimo-nos acuados, como os espartanos. Todo o ensinamento do Direito despencou sobre nossas cabeças, num repente. Neminem laedere, suum cuique tribuere, honestae vivere, de Justiniano, que decoramos pela insistência do professor de Direito Civil e que compunham a Digesta, recomendava outra estratégia porque já sentíamos o amargo gosto de sermos conduzidos à delegacia de polícia, que ficava bem próxima. Situação indigesta, na certa. Parece que a deusa Themis veio em nosso socorro. Um cidadão, que a tudo assistia e sabia que nosso espírito não era o de cometer um ilícito, mas de dar continuidade a um ritual que se transformou em tradição, levantou-se e discursou de forma pausada e convincente em favor da nossa causa, arrancando aplausos de todos os frequentadores. Conseguiu até que os garçons abaixassem a guarda e abandonassem as bandejas, numa demonstração de rendição. Mas não parou por aí. Acrescentou que, como se tratava de uma comemoração acadêmica, tinha que ser coroada com algo significativo. Propôs, então, que nosso grupo recitasse, lendo, é claro, o poema indianista I-Juca Pirama, que soma 484 versos decassílabos e alexandrinos, além de 10 cantos de Gonçalves Dias e, em contrapartida, o gerente cobraria somente a metade do valor da conta. Proposta aceita.  Abriu sua pasta e retirou o livro que trazia a poesia e cada um tomava seu lugar sobre a mesa e deliciosamente recitava seu canto. Assim foi feito e o início daquela madrugada se tornou em verdadeiro sarau literário. Aplausos e mais aplausos pela exibição em que um colega procurava interpretar melhor que o outro. Teve um que, quando entoou "...Sou bravo, sou forte/Sou filho do Norte/Meu canto de morte/ Guerreiros, ouvi", ameaçou um tom melancólico na voz, seguido de uma pequena lágrima que insistia em cair, mas rapidamente foi contida. A conta foi paga com satisfação e a isenção atingiu também o interveniente frequentador, que se apresentou como professor de literatura de um cursinho preparatório para vestibulares. Ganhou o apelido de Santo Ivo. Saímos felizes com a nossa última comemoração e com a sensação do dever cumprido, por manter a tradição. No caminho para a república, um dos colegas exibiu gloriosamente uma faca de mesa alegando que a subtraíra do estabelecimento. "Garfei uma faca", dizia ele cantando em voz alta e todo sorridente, pensando que contaria com o apoio da turma. Imediatamente voltamos ao bar e humildemente pedimos as devidas desculpas ao gerente, entregando a ele a tal da res furtiva. O gerente olhou atentamente para o utensílio, foi até a cozinha e retornou afirmando com convicção que a faca não era do estabelecimento, pois não fazia parte de nenhum dos cinco jogos que utilizavam. Mesmo assim, elogiou a honestidade do grupo, com a certeza de que tudo não passava de um engano. E entregou a faca. Até hoje não sei se a faca não era mesmo do restaurante...
domingo, 31 de julho de 2022

Novas regras para a alteração do nome

O nome da pessoa é uma das formas da manifestação do direito da personalidade, assim inscrito no Capítulo II do Código Civil, compreendendo o prenome e o sobrenome ou o nome patronímico familiar, que serão transmitidos na incessante cadeia de pai para filho. É de se observar que o prenome é geralmente um nome simples ou composto que antecede o nome de família. O sobrenome traz a identificação da filiação, da família, sempre relacionado com a ascendência e será transmitido para as futuras gerações. Também pode ser incorporado quando se tratar de adoção e casamento. Diferente do agnome, que tem uso interno na própria família e não se transmite posteriormente, como é o caso de Filho, Sobrinho, Neto, Primeiro, etc. A Lei 6015/1973, conhecida como Lei dos Registros Públicos, por longos anos, vem estabelecendo as regras para o registro civil de pessoas naturais, reconhecendo de forma explícita a emanação da personalidade humana e a consequente tutela protetiva. Recentemente, no entanto, seguindo o pensamento não só da celeridade, como também da modernização e flexibilização dos atos registrais, experimentou profundas reformas dos artigos 55 a 57 a respeito de novas regras de alteração do nome da pessoa, introduzidas pelas recente lei 14.382/2022. Referida Lei, que é proveniente da MP 1085/2021, criou o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - SERP - órgão que irá conectar todos os serviços relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, em formato eletrônico. Todas as informações deverão ser implantadas até 31 de janeiro de 2023. A imutabilidade do nome, antes admitida somente em restritas hipóteses, com sequenciais aberturas jurisprudenciais a respeito, foi ganhando uma elasticidade maior e o procedimento, que anteriormente era feito perante o juízo cível, agora pode ser realizado administrativamente perante o Cartório de Registro Civil. A esse respeito, a título de atualização, seguem algumas alterações relevantes, que merecem ser propagadas para a comunidade em geral. É possível alterar o nome e o prenome do filho até quinze dias após a lavratura do registro, desde que haja o consenso entre os genitores, representantes que são do poder familiar. O prenome poderá ser modificado pelo interessado quando completar dezoito anos de idade ou a qualquer tempo após o marco da maioridade civil. Se, por acaso, tratar-se de pessoa emancipada, não poderá praticar o ato e terá que aguardar o prazo etário legal. Exige-se a presença do interessado perante o registrador civil, em razão de ser um ato intuitu personae e não há necessidade de justificar a pretensão. O ato da averbação perante o registrador pode ser praticado em uma só oportunidade. Se ocorrer arrependimento do interessado, o desfazimento do ato somente poderá ser pleiteado em processo judicial. Pode também ocorrer a alteração posterior de sobrenome perante o oficial de registro civil, sem qualquer intervenção judicial, desde que os interessados apresentem os documentos necessários para a averbação nos assentos de nascimento e casamento, quando se tratar de: a) inclusão de sobrenomes familiares; b) inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento;  c) exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas; d) inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado. Os conviventes em união estável - desde que o ato seja apontado no registro civil de pessoas naturais - poderão requerer a inclusão do sobrenome de seu companheiro, a qualquer tempo, bem como alterar seus sobrenomes nas mesmas hipóteses previstas para as pessoas casadas.  Em caso de desfazimento da sociedade, o nome de solteiro ou de solteira do companheiro ou da companheira poderá ser utilizado por meio da averbação da extinção da união estável em seu registro.   Outra inovação importante reside na faculdade de o enteado ou a enteada, se houver motivo justificável, requerer ao oficial de registro civil que, nos registros de nascimento e de casamento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus sobrenomes de família. Apesar de nada constar a respeito da alteração do prenome da pessoa transgênera há, a propósito, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN 4275/2018, possibilitando a alteração no registro civil de transgênero, sem cirurgia de redesignação social ou laudo psicológico. Logo na sequência, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento nº 73/2018, que dispõe sobre a retificação do referido registro para alterar o nome e o marcador de gênero nos assentos de nascimentos. Percebe-se que, doravante, os serviços prestados pelos cartórios públicos assumem uma dimensão incomensurável encerrando, definitivamente, os volumosos livros de escrituração e introduzindo tecnologia de ponta, ancorada na realidade virtual para mudar radicalmente toda a estrutura de atendimento com a oferta de um serviço rápido, de acesso universal e de custo módico.
domingo, 24 de julho de 2022

Tatuagens e piercings em animais?

Os animais, com especial relevo para aqueles que participam diariamente do convívio com os seres humanos - quer seja para companhia ou até mesmo para a guarda domiciliar - gozam dos olhares generosos dos nossos legisladores. A causa animal assume um formato defensivo e a tutela vai se ampliando cada vez mais. O convívio entre o homem e o animal revela-se uma harmonização perfeita, um estreitamento que coloca o afeto em primeiro plano, de forma que esta interação vai refletindo com maior intensidade e, em consequência, elevando cães e gatos à categoria de seres sencientes, dotados de emoção e sentimento. Tanto é que o especismo, recentemente, foi elevado à categoria de crime pelo acréscimo feito ao art. 32 da lei dos crimes ambientais, punindo severamente a prática de abuso, maus-tratos, ferimentos ou mutilação a esses animais, com a aplicação de pena de reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda do animal. Nos Estados Unidos a tatuagem em cães passou a ser considerada uma projeção da vontade do seu proprietário ou até mesmo uma alternativa diferenciadora de acessório. No Brasil os inúmeros pets atestam que a tendência do brasileiro é cuidar bem de seus animais, não só no item alimentação, como também na higiene e estética, mas não há ainda proibição com relação à tatuagem e aplicação de piercings. A comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou o projeto de lei 4.206/20, de autoria do deputado Fred Costa (Patriotas/MG), que proíbe a aplicação de piercings e tatuagens em cães e gatos com a finalidade estética, com acréscimo de um parágrafo à lei 9.605/98, estabelecendo a pena de três meses a um ano de detenção e multa a quem realiza ou permite realizar tais práticas estéticas. O texto agora segue para a votação do plenário. É de se observar, no entanto, que tal prática não alcança os procedimentos realizados com a finalidade de identificação ou até mesmo de rastreabilidade do animal - cujo manejo é simples e não acarreta estresse ou sofrimento desnecessário a ele - e sim demonstra responsabilidade dos tutores para os casos de desaparecimento, com larga chance de sua localização. Além do crime de maus tratos previsto na lei dos crimes ambientais, o conselho Federal de medicina veterinária, pela resolução 877/08, proíbe a realização de cirurgias consideradas desnecessárias ou que possam impedir a capacidade de expressão do comportamento natural da espécie. E reside neste contexto a nova proposta legislativa. O status atribuído aos animais como seres sencientes, sujeitos de direitos despersonalizados, dotados de natureza emocional e passíveis de sofrimento, conforme foi reconhecido recentemente pela lei 14.064/20, faz ver que os animais abandonaram definitivamente a incômoda classificação a eles atribuída pela lei 9.605/98 e pelo CC/02, que os consideravam bens móveis. Basta ver que, em recente decisão proferida pela 7ª câmara Cível do TJ/PR, foi reconhecido, por unanimidade, o direito dos animais de figurarem como autores de ações judiciais visando pleitear o que a lei faculta, desde que corretamente representados1 É totalmente inadequado qualquer procedimento de origem estética e que venha acarretar sequelas ao animal, principalmente quando afeta o comportamento natural da espécie. Modificar a originalidade constitutiva do animal para que o homem possa satisfazer seus caprichos, formatando-o externamente de acordo com sua intenção, é uma verdadeira ação desumana. Não se trata do exercício de um direito sobre uma propriedade exclusiva porque a própria lei elaborada pelo humano traz as obrigações de cuidado e zelo pelos animais. O homem, como agente moral, não pode se reservar ao direito de dispor do animal ao seu bel prazer e sim respeitar o valor intrínseco da criatura convivendo com ela de acordo com sua natureza, nos limites do bem estar recomendado. Sábios os conselhos proferidos por D'Agostino propondo um relacionamento de benevolência que se extrai das teorias dos direitos dos animais e as relações com os humanos: "Ao pregar a extensão da benevolência a todos os seres que têm sensibilidade, acalmam as consciências; como podemos ser malvados, se estamos perorando em favor da causa dos direitos dos animais? Como podemos temer pelo futuro do homem, se nos responsabilizamos também pelo futuro das outras espécies? O que pode existir de inquietante numa ética que renuncia a postular deveres absolutos, quando se trata de uma ética que perora a defesa das criaturas mais fracas? Bons sentimentos, certamente."2 _____ 1 Disponível aqui. 2 D'Agostino, Francesco. Bioética segundo o enfoque da filosófica do Direito. Tradução de Luísa Rabolini São Leopoldo, RS, Basil, 2006, p. 266.
domingo, 17 de julho de 2022

A conceituação do estupro

A norma penal, a exemplo da dinâmica social, com o passar do tempo, vai experimentando novos ajustes visando fazer a perfeita adequação com a necessidade da coletividade, sua destinatária principal. Às vezes é recomendável burilar parcialmente um artigo de lei em virtude do desgaste do seu tempo de vigência - contemporizando-o com a realidade social -; outras, de forma irremediável, extinguir em definitivo o caráter criminoso do fato com a vigência de uma nova lei que o torna atípico (abolitio criminis) e a consequente aplicação da causa extintiva de punibilidade. O crime de estupro praticado pelo médico anestesiologista, noticiado pela imprensa nacional, além da conduta ignóbil que causou repúdio e comoção, por figurar como vítima uma mulher sob efeito de anestesia e em trabalho de parto, provocou dúvidas conceituais, principalmente para os jejunos em Direito, a respeito da tipificação do ilícito praticado. Daí que a proposta não é a analisar a conduta do profissional e sim a adequação típica aderente a ela. O crime de estupro em sua origem, acompanhando sua etimologia (stuprum), carrega duas vertentes em sua definição. A primeira relacionada com a desonra, a vergonha de uma pessoa e a segunda atrelada à agressão sexual para atingir o coito forçado. Esse último conceito prevaleceu e ficou sedimentado para as pessoas comuns que no estupro obrigatoriamente deveria ocorrer a conjunção carnal entre homem e mulher, mediante violência. Porém, nem sempre a vontade popular coincide com a do legislador. Tanto é que tal conceito não é compartilhado por ele que, deliberadamente, inseriu no tipo penal também a prática de outro ato libidinoso, diverso da conjunção carnal. O Código Penal, que é de 1940, sofreu profundas alterações introduzidas pela Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009, principalmente nos crimes contra os costumes, agora denominados crimes contra a dignidade sexual. Novas figuras típicas foram inseridas na formatação penal, dentre elas a junção dos delitos de estupro e atentado violento ao pudor. Pela nova lei incriminadora o núcleo do tipo vem revelado pelo verbo constranger, como era anteriormente, porém, "alguém" e não mais a mulher. Ficou definido da seguinte forma: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso". O "alguém" passa a ser o homem ou a mulher. Desta forma o crime de estupro ganhou uma dimensão mais dilatada pois incorporou ao seu tipo o crime de atentado violento ao pudor. É de se observar, no entanto, que se um homem tocar as nádegas ou os seios de uma mulher, sem o dolo recomendado pela conduta, não estará praticando o crime de estupro, sendo até temeroso fazer a subsunção da norma ao fato nesta situação peculiar. Por isso o legislador, com a intenção de minimizar a conduta, criou um tipo penal intermediário, previsto no artigo 215-A do Código Penal, que é o da importunação sexual: praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Ao lado do estupro convencional, cuja pena é de seis a dez anos de reclusão, o legislador criou outro, denominado estupro de vulnerável. Consiste na prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos ou contra pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. A vulnerabilidade, em uma conceituação mais apropriada ao Direito, vem a ser aquele estado que, em razão da idade e de algumas circunstâncias permanentes ou temporárias, a pessoa se vê impossibilitada de exercer os seus direitos em igualdades de condições com as demais. Necessita, portanto, de um cuidado especial do legislador para que possa se equiparar às demais pessoas e, a partir daí, sem qualquer tipo de assistencialismo ou ações paternalistas, possa desenvolver suas capacidades e competências. No caso específico, tem total aplicação ao caso ora examinado, a expressão "qualquer outra causa" referida pelo legislador, pois a parturiente estava sob efeito de anestésico, fato que, por si só, demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por uma circunstância momentânea. Nesse caso a pena é de oito a 15 anos
Os constantes e benéficos avanços que vêm predominando a área médica - não só com referência ao uso de tecnologias e tratamentos de ponta - inevitavelmente encaminharam o atendimento médico para a utilização das novas tecnologias digitais de informação e comunicação. O objetivo vai ao encontro da determinação encartada no disposto no artigo 196 da Constituição Federal, sedimentado também na estruturação do direito fundamental à saúde. Basta retroceder pouco tempo e observar que a decretação do estado pandêmico determinou a vigência da Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), levada a efeito pela lei 13.979/20, e abriu espaço para que o atendimento médico - a exemplo dos serviços educacionais - operasse na área digital com o intuito de romper distâncias e proporcionar um atendimento de qualidade para o paciente que necessitasse dos préstimos do profissional da saúde. Para tanto foi expedida a lei 13.989/20, que dispõe sobre o uso da telemedicina durante a pandemia provocada pelo coronavírus e confere ao Conselho Federal de Medicina a legitimidade para regulamentar a matéria. Ao mesmo tempo foi editada a Portaria GM/MS 467/20, que permitiu a telemedicina em caráter excepcional e temporário durante a pandemia. A experiência logrou êxito e a mencionada Portaria foi revogada pelo Ministério da Saúde que editou a de nº 1.348/22 regulamentando as ações, normas e critérios dos serviços de Telessaúde, de acordo com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O Conselho Federal de Medicina, por seu turno, baixou a Resolução 2.314/22, com a necessidade de disciplinar o exercício profissional médico, incluindo no atendimento as boas práticas recomendadas ética e legalmente. Define a telemedicina como o exercício da medicina mediado por Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDICs), para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde e inaugura os canais de teleatendimentos médicos: Teleconsulta, Teleinterconsulta, Telediagnóstico, Telecirurgia, Telemonitoramento ou Televigilância, Teletriagem e Teleconsultoria. A medicina convencional, a que estabelece atendimento presencial como padrão de qualidade, continua sendo realizada e cabe aos médicos, no âmbito da sua autonomia, decidir se utilizam ou recusam a telemedicina, que se apresenta como um ato complementar. Tanto é que o atendimento médico a distância pode ser interrompido tanto pela opção do profissional como pela do paciente. No caso específico da teleconsulta, para que o atendimento seja feito com sucesso, é necessário - dentre outras providências inseridas nas normas deontológicas - a observância ao princípio da beneficência, assim como da autonomia da vontade e, com especial relevo, à guarda dos sigilos das informações. É forçoso afirmar até que a avaliação técnica a distância exige muito mais interação do médico com o paciente, além de prolongar o tempo da consulta para se alcançar uma decisão correta por parte do profissional. Pelo princípio da beneficência, tanto no atendimento presencial como no remoto, o médico deve ofertar ao paciente o cuidado que seja condizente com sua necessidade, adotar a melhor estratégia terapêutica e se empenhar em conferir a ele os mais variados tratamentos com as melhores e mais recomendáveis tecnologias, eliminando ou reduzindo eventual risco no momento presente e futuro, distanciando-se cada vez mais de danos que possam ser identificados. Enfim, é envidar todos os esforços, mesmo que seja por teleconsulta, para beneficiar o paciente com a qualidade do atendimento e tratamento proposto, com a mínima probabilidade de dano. É, na realidade, um verdadeiro ato médico centrado no paciente. Faz lembrar o já conhecido pensamento de Sir William Olser, um dos pais da medicina moderna: "É mais importante conhecer o paciente acometido por uma doença do que a doença que acometeu o paciente". O princípio da beneficência, desta forma, integra o atendimento a distância e é erigido como um dos sustentáculos da boa prática da ars curandi. O médico, responsável que é pelo crivo de aceitabilidade da modalidade do atendimento, deve antever se a prestação de serviço, sem a presença do paciente, terá condições de atingir os objetivos pretendidos e, principalmente, sem a redução dos benefícios. Outro requisito indispensável para o atendimento por teleconsulta é a obtenção do Termo de Consentimento Esclarecido do paciente ou de seu representante legal para a realização do atendimento, assim como sua permissão ou não para compartilhamento de suas informações que, de qualquer forma, poderão ser acessadas em caso de emergência médica. Cabe aqui também a observação no sentido de que o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) editou a recente Resolução 1.465/22 liberando a teleconsulta para cães, gatos, outros pets e também para animais de grande porte. É indiscutível que o conhecimento científico proporcionado pela tecnologia de ponta consegue utilizar as ferramentas disponíveis para ampliar o acesso integral, igualitário e universal da saúde às áreas desassistidas e carentes de atendimentos especializados.
Quanto mais a humanidade vem se desenvolvendo e se aperfeiçoando no relacionamento entre profissionais da saúde e pacientes - com a elaboração de códigos deontológicos compatíveis com o alto nível do serviço prestado - parece que, em algumas situações, vai perdendo a razão. Há poucos dias um hospital de Santa Catarina recusou-se a praticar o abortamento em uma menina de 11 anos de idade, vítima de estupro, alegando que o procedimento não é recomendado após 22 semanas de gestação, de acordo com a publicação de uma Norma Técnica do Ministério da Saúde. A genitora da criança invocou a tutela judicial para obter a autorização quando, a contrario sensu, o pleito foi negado e a criança encaminhada para um abrigo, por determinação da Vara da Infância e Juventude. Somente após, com a recomendação do Ministério Público Federal, a menina retornou ao hospital, onde foi realizado o procedimento. Mais do que evidente que não foi observada a regra de que o aborto é permitido em caso de estupro - independentemente da idade gestacional -consoante determina o Código Penal, desde 1940. Já mais recente, a atriz Klara Castanho relatou que foi vítima de estupro, manteve a gestação e com o nascimento entregou a criança para a adoção. Ocorre que, quando ainda sob efeito da anestesia do parto, foi abordada por uma enfermeira que ameaçou divulgar para a imprensa o procedimento feito. A atriz não conseguiu interceptar a notícia e recebeu em seu celular mensagens de um colunista contendo todas as informações do ato médico e da entrega da criança para adoção. O COREN-SP - Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo abriu procedimento para apurar possível infração ética praticada pela profissional de enfermagem.1 O MP/SP, por sua vez, informou estar investigando a ocorrência da violação de sigilo profissional imputada à enfermeira.2 Percebe-se, pelo relato feito pela atriz, que ocorreu uma quebra no vínculo obrigacional e profissional estabelecido entre a paciente e uma enfermeira que participava da equipe de atendimento. A paciente quando procurou pelos préstimos dos profissionais da saúde elegeu todos eles como depositários e guardadores de seu segredo, devidamente registrado em seu prontuário médico. A profissional da enfermagem, além de participar como integrante da equipe de saúde, tem como princípios o respeito à vida, à dignidade da pessoa e os direitos humanos, em todas as suas dimensões, além das salutares referências dos princípios da ética e da bioética. Tanto é que o Código de Ética dos Profissionais da Enfermagem - CEPE -, instituído pela Resolução Cofen nº 564/2017, é taxativo em seu artigo 52 quando dispõe no capítulo dos deveres do enfermeiro: "Manter sigilo sobre fato de que tenha conhecimento em razão da atividade profissional, exceto nos casos previstos na legislação ou por determinação judicial, ou com o consentimento escrito da pessoa envolvida ou de seu representante ou responsável legal." Ora, no caso comentado, o fato não era de comunicação compulsória, nem obrigado por determinação judicial e muito menos tinha a profissional o consentimento da paciente para fazer a revelação. A relação estabelecida entre os profissionais da área da saúde e a paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. No instante em que a paciente narrou e confidenciou à equipe médica que foi vítima de estupro e, mesmo assim, queria ter a criança e entregá-la à adoção, elegeu-a como depositária e guardadora de seu segredo, permitindo a realização de exames clínicos, obstétricos e complementares para realizar o procedimento pretendido. Tais informações são imprescindíveis e devem ser utilizadas somente para providências em favor da paciente. Tamanha é a importância deste sigilo que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que a paciente tenha falecido, permanece vivo para sempre. Saindo da esfera ético-disciplinar e ingressando na esfera do Código Penal, em seu artigo 154 o legislador erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Preserva, desta forma, a vida privada e a intimidade da paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e o Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada da paciente, acarretando não só a inconveniente investigação policial, o processo judicial e até mesmo todo o noticiário propagado na imprensa fazendo relembrar um triste episódio da sua vida. A atriz nada mais fez do que agir de acordo com sua consciência e contou para tanto com a cobertura legal. ______________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 
domingo, 26 de junho de 2022

Leitura jurídica do teste do pezinho

Ao longo do tempo é fácil constatar que a Medicina vem se dedicando para ampliar os cuidados com a prevenção primária, conforme recomendação da Organização Mundial da Saúde. No mesmo diapasão o direcionamento que se aninha na Constituição de 1988. Após considerar que a saúde é direito de todos os cidadãos e o Estado deve intervir obrigatoriamente como provedor, explicita que a saúde merece receber "atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais" (artigo 198, II). A inovação científica passou a frequentar com mais assiduidade os temas relacionados com a saúde humana, incentivando até mesmo a elaboração de políticas públicas, que compreendem desde a primeira infância até o envelhecimento da população. Basta ver que já é possível realizar o diagnóstico genético pré-implantacional dos embriões quando apresentarem alterações genéticas causadoras de doença. Neste caso poderão ser doados para pesquisa ou até mesmo descartados, com consentimento dos genitores. Assim como podem ser selecionados embriões HLA-compatíveis para transplante de células-tronco em irmão já afetado por doença grave, como é o caso da Anemia Falciforme. O rastreio neonatal, conhecido popularmente como "teste do pezinho", vem sendo realizado no Brasil desde 1970, com a finalidade de diagnosticar doenças graves em recém-nascidos. A Portaria 822/01 do Ministério da Saúde introduziu o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), obrigando hospitais públicos e particulares a realizarem o exame. A recente lei 14.154/22, por sua vez, ampliou, e em muito, de seis para aproximadamente cinquenta diagnósticos de doenças que podem ser detectadas pelo exame. Trata-se de um procedimento simplificado em que a coleta de sangue será retirada do calcanhar do recém-nascido, entre o terceiro e o quinto dia de vida. Mesmo que o resultado seja positivo para alguma doença, há necessidade de exames clínicos e complementares. As doenças encontradas pela triagem neonatal - metabólicas, genéticas, enzimáticas e endocrinológicas - possibilitam a identificação precoce para que o paciente possa receber os tratamentos adequados, evitando, desta forma, o desagradável surgimento na vida adulta, quando já não será possível uma intervenção exitosa. Na realidade, se for bem observado, o homem, desde o seu nascimento, vive se prevenindo de doenças. Basta ver o controle vacinal oferecido a partir da mais tenra idade, sem levar em consideração ainda a eventual exigência quando ocorrer uma pandemia. O Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90) dimensiona todo seu alicerce protetivo em torno de dois princípios: da proteção integral e do melhor interesse da criança. Esse último, apesar de ausente explicitamente do estatuto menorista, foi construído sobre sólida evolução hermenêutica dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, abrangendo também as crianças. Da junção dos dois princípios encontra-se o denominador comum da vontade do legislador, no sentido de que, além dos inúmeros outros direitos, difusos ou contextualizados, a saúde das crianças goza de prioridade e toda inovação que trouxer dividendos para o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual, em condições de igualdade e de dignidade, será bem recepcionada e amparada pelo princípio bioético da beneficência. Além do que, conforme determinação constitucional, é dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à saúde (art. 227 CF). Assim é que a lei menorista, em seu artigo 10, inciso III, foi taxativa ao determinar aos hospitais a obrigatoriedade de proceder a exames visando ao diagnóstico e terapêutica de anormalidades no metabolismo do recém-nascido, bem como prestar orientação aos pais. E no parágrafo primeiro, com o acréscimo determinado pela Lei nº 14.154/2021, foi incisiva em determinar que os testes para o rastreamento de doenças no recém-nascido serão disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde, no âmbito do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), na forma da regulamentação elaborada pelo Ministério da Saúde. Tamanho o interesse do legislador no cumprimento do procedimento que estabeleceu um tipo penal específico no artigo 229 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com a pena de seis meses a dois anos de detenção. In verbis: Deixar o médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de atenção à saúde de gestante de identificar corretamente o neonato e a parturiente, por ocasião do parto, bem como deixar de proceder aos exames referidos no art. 10 desta Lei. Percebe-se, claramente, que a preocupação do legislador é fazer com que a criança, antes de deixar o hospital, seja submetida ao exame de triagem neonatal. Pode ser até que haja recusa dos genitores - como ocorre com certa frequência no calendário vacinal - mas os funcionários da saúde irão envidar todos os esforços para convencer os pais da necessidade de se fazer o exame, levando-se em consideração que a saúde integra os direitos fundamentais da criança, opondo-se até mesmo à discordância deles. O eventual conflito de interesse - dilema ético da decisão parental - não pode reverter em prejuízo da saúde do recém-nascido, pois além de quebrar a regra do melhor interesse, colide frontalmente com a melhor proteção integral a ser ofertada a ele, comprometendo as perspectivas de uma melhor qualidade de vida futura. Prevalece, de forma soberana, o princípio da beneficência járeferido, que canaliza toda a proteção e cuidados em benefício da criança visando atingir um resultado satisfatório sem a ocorrência de danos desnecessários. Se persistir a recusa, há necessidade de se invocar o auxílio do Conselho Tutelar e do Ministério Público para que sejam tomadas as medidas cogentes legais.
domingo, 19 de junho de 2022

Plantio da Cannabis para uso medicinal

A 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, concedeu ordem de salvo-conduto - documento conferido pelo Judiciário para que a pessoa possa praticar determinada conduta sem correr o risco de ser presa ou impedida - para garantir a três cidadãos o direito de cultivar Cannabis sativa, vulgarmente conhecida como "maconha", com a finalidade exclusiva de extrair da planta óleo medicinal para ser utilizado em seu próprio benefício, sem qualquer intervenção ou proibição policial ou judicial. Na realidade, conforme se infere do teor decisório, o tema do julgamento está mais atrelado à área da saúde, porém, como não há uma regulamentação a respeito - a não ser a lei antidroga - o Judiciário é chamado para dirimir a questão. Também é de se deixar claro que a medida judicial tem validade somente para as pessoas que pleitearam o benefício, sem prejuízo de outros interessados escorarem no precedente jurisprudencial para invocar a tutela jurisdicional com a mesma finalidade. A Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas, acatando também a recomendação da Organização Mundial da Saúde, aprovou a reclassificação da Cannabis sativa da listagem de narcóticos considerados impróprios e perigosos para o homem e abriu espaço para sua utilização médica, exclusivamente.1 A Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), que define os crimes relacionados com o tráfico de drogas e outros crimes afins, além de instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) , carrega um permissivo legal no parágrafo único do artigo 2º, que permite à União: "Autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas." A brusca autorização concedida pelo Tribunal, no sentido de desconfigurar a figura delituosa prevista na Lei de Drogas para uso medicinal, provoca imediata rejeição social, vez que os preceitos existentes - erigidos em valores hierarquizados e fincados em alicerces quase que intransponíveis - não permitem uma aceitação e assimilação do pretendido uso. Faz-se necessário um esclarecimento popular convincente no sentido de orientar a população de que a extração do canabidiol, componente sem qualquer efeito alucinógeno, faz com que a planta perca sua capacidade de provocar prejuízo ou dano à cognição humana. E sim que, pelas mais atuais pesquisas científicas, o princípio ativo THC da Cannabis sativa vem conseguindo bons resultados em busca de novas e melhores alternativas para o homem. Tudo indica que, pelo caminho exitoso já percorrido, serão desbravados novos espaços com descobertas que irão ultrapassar os limites até então fincados pela ciência e que trarão  dividendos favoráveis à saúde humana. Muitos países, principalmente aqueles que desenvolvem linhas de pesquisa nesta área, liberaram o uso medicinal da maconha, mormente na redução das crises convulsivas, com razoável margem de segurança e boa tolerabilidade, sem relatos de efeitos alucinógenos ou psicóticos. A Argentina, há pouco tempo, regulamentou uma lei de 2017 e legalizou o plantio e cultivo da maconha medicinal, e também permitiu às farmácias venderem aos interessados óleos e cremes feitos a partir da planta, desde que se cadastrem em um programa vinculado ao Ministério da Saúde. A Resolução do Conselho Federal de Medicina 2.113/14, por sua vez, aprovou o uso compassivo do canabidiol para tratamento de epilepsia em crianças e adolescentes. Recentemente, uma associação em São Paulo, composta por pacientes que fazem tratamento à base de derivados da cânabis, ingressou com um pedido de habeas corpus coletivo, juntando aos autos laudos médicos que comprovam a necessidade da utilização da planta, pleito que foi julgado procedente.2A fundamentação legal foi lastreada na comprovação da utilização das substâncias extraídas da maconha para tratamentos contra epilepsia, dores crônicas, autismo e doença de Parkinson, além da efetiva proteção aos direitos à vida e à saúde, englobados na esfera da dignidade da pessoa humana. Com tal aparato judicial os associados não poderão ser presos em flagrante delito no cultivo da referida planta. Ora, se há comprovação científica a respeito da utilização do canadibiol, assim como já foi ultrapassada a linha de pesquisa que estabelece um patamar de segurança e tolerabilidade, a recomendação que se faz é para apoiar todas as possibilidades que tragam benefícios de saúde para o homem. A utilização medicinal, pela sua complexidade, apesar de receber o placet da justiça, merece uma atenção mais abrangente com a participação do Legislativo - que já aprovou o Projeto de Lei 399/15 regulamentando o plantio e o uso medicinal da planta e já se encontra no Senado Federal - do Executivo e da própria comunidade, essa última a tudo assistindo de forma amadora, visando autorizar a utilização do canadibiol, assim como suas regras, exigências e, principalmente, a garantia de que o plantio terá como finalidade o combate às doenças especificadas nos receituários médicos. _______________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
domingo, 12 de junho de 2022

Planos de saúde e o rol taxativo

O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento aguardado com muita ansiedade pelos beneficiários dos planos de saúde, por seis votos a favor e três contra, decidiu que as operadoras podem recusar a cobertura de procedimentos que não estão incluídos na listagem da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), concluindo, definitivamente, que o rol de benefícios é taxativo e não exemplificativo, conforme entendimento judicial dominante por mais de duas décadas nos tribunais. Referida decisão causou indignação e perplexidade para a comunidade brasileira que se sentiu, de repente, apequenada diante da restrição imposta, vendo seus direitos rolando montanha abaixo, qual Mito de Sísifo, de Camus, revelando que todo o esforço empreendido e toda a conquista alcançada de nada valeram. A interpretação dada pelo Tribunal, levando-se em consideração o equilíbrio atuarial das operadoras e seguradoras que terão melhores condições de ofertar um serviço de qualidade com preços mais acessíveis - abraçando a pretensão dos grupos empresariais que operam os planos de saúde - com o devido respeito, cai por terra diante da realidade social. Direito é uma ciência de interpretação. Os fatos são encaminhados para o Judiciário para julgamento e retornam com a entrega da prestação jurisdicional. É certo que a lei delimita a pretensão e a própria atuação do órgão jurisdicional. Mas a lei - como um cânone que vai nortear a vida em sociedade - não deve ser vista em sua estreiteza e sim na dimensão de encontrar a mens legis que norteou o legislador. Muitas vezes o texto que está sendo interpretado apresenta-se com determinada roupagem externa, porém, em seu interior, reflete muito mais do que aquilo que ostenta. Se o operador do direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus. Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que até mesmo, originariamente, não estavam contidas na mens legis. E a ciência hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. "Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma) afirmamos a existência de dois atos: um que dá a norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo".1   O rol exaustivo, taxativo que serviu de alicerce para a decisão do Tribunal, é revelador de uma situação que não permite diálogo e fecha a comporta judicial para a apreciação de qualquer pedido que não se encontre alistado no referido catálogo de serviços. Em total confronto com o próprio texto constitucional que, em abrangência praticamente ilimitada no artigo 196, proclama: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação." E tal obrigatoriedade alcança também a iniciativa privada complementar ao Sistema Único de Saúde, desde que siga rigorosamente as diretrizes traçadas pelo poder público (art. 199, § 1º, CF). A limitação imposta na referida decisão atinge todas as pessoas acobertadas pela proteção conquistada e garantida reiteradamente pelos tribunais. O que faz surgir a limitação de um direito tão amplamente exercido anteriormente e, principalmente, em prejuízo dos mais vulneráveis, que se apegavam a uma pequena abertura existente ainda. A realidade e a necessidade social são fatos que devem ser analisados juntamente com a norma, uma vez que o destinatário é o cidadão que necessita de serviços médicos. Além do que, com o avanço imensurável da medicina, várias doenças novas e raras serão desvendadas e o tratamento, com toda a certeza, não fará parte do rol exaustivo, pois serão analisadas e, se aprovadas, incluídas no prazo de 180 dias, prorrogáveis em mais 90. Na vigência do rol expansivo ou exemplificativo poderia se encontrar um paradigma existente na relação das doenças e que fosse mais próximo da moléstia com a possibilidade de pleitear autorização judicial para gozar do novo benefício pretendido. "A norma jurídica, com precisão adverte Bittar, se extrai da vivência social e para ela se dirige, reativa-se na medida em que é usada, em que é manipulada, vista, sentida, conhecida e interpretada."2 Os romanos, com sabedoria peculiar, proclamavam pelo aforismo summum ius summa iniuria que todas as vezes em que o Direito se apegar exclusivamente à pura expressão literal dogmática, por melhor que seja a intenção, irá abrir margem para uma grande injustiça. _____________ 1 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2006, p. 72. 2 Bittar, Eduardo Carlos Bianca. Linguagem jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p.154.
domingo, 5 de junho de 2022

Direito à educação após a pandemia

A pandemia acarretou diversos danos à humanidade atingindo, de uma só vez, inúmeras áreas de atuação do ser humano, assim como acelerou drasticamente o número de óbitos em razão da contaminação da Covid-19. O sistema educacional do país, como não poderia deixar de ser em razão da ausência da população discente das salas de aulas, também experimentou um prejuízo que não será recuperado em curto espaço de tempo. Se, de um lado, a pandemia provocou um marco infindável de prejuízos para a educação, de outro descortinou a vulnerabilidade educacional e abriu espaço para repensar medidas urgentes para mudar o curso de um projeto que já se arrastava com dificuldade e muitas vezes dava sinais de estagnação com práticas incompatíveis com o tempo atual. Com a decretação do término do estado pandêmico, é hora de buscar sugestões transformadoras que tenham o potencial para alavancar o projeto educacional para patamares mais adequados e sustentáveis. O princípio da dignidade da pessoa humana - erigido como sustentáculo do Estado Democrático de Direito na Constituição Federal - confere a cada cidadão o direito à sua realização pessoal, profissional e social, com ampla abrangência no direito educacional inclusivo e reconhece, de acordo com a realidade atual, a necessidade de se buscar plataformas confiáveis como instrumento da expressão dos saberes. As tecnologias digitais, mesmo improvisadas e até distribuídas de forma desigual, ofereceram um painel positivo e constataram que a difusão do conhecimento é de vital importância para a humanidade. A restrição imposta pelo período pandêmico de segregação sinalizou que as ferramentas tecnológicas possibilitam um grande salto para se buscar uma educação de transformação para crianças, jovens e adultos, possibilitando, desta forma, um novo contrato social para a educação, como propõe o Relatório da Comissão Internacional Sobre os Futuros da Educação, editado pela UNESCO, em 2021. As propostas contidas no referido documento têm como base os princípios da cooperação, colaboração e solidariedade deixando bem nítida a intenção de manter as políticas educacionais que renderam dividendos positivos e desprezando as que não vingaram e, acima de tudo, apostando na criatividade inspirada nos conhecimentos digitais para a construção de uma educação com qualidade para um futuro compartilhado e interconectado. É evidente que, para atingir tais objetivos, exige-se uma mobilização envolvendo governo e empresários visando aumentar os investimentos em educação para cobrir a lacuna deixada pelos dois anos da pandemia. A vulnerabilidade do ensino, agora ainda mais exposta, reclama a realização de ações voltadas para a retomada da continuidade educacional para a presente geração, para não aumentar o custo com as próximas. A tecnologia surge, desta forma, como uma plataforma segura para colaborar na edificação de um novo projeto educacional para a humanidade com a intenção de proporcionar a tão almejada inclusão e com ela o compartilhamento do conhecimento, transformando a educação em um bem comum para todos. O Relatório ganhou repercussão. Tanto é que Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, de maneira altiva, assim se manifestou: "A escolha que nos espera é difícil. Ou nós continuamos um caminho insustentável ou mudamos radicalmente de curso. Eu acredito firmemente que a educação é uma das ferramentas mais valiosas para a construção de um futuro sustentável. Recebo e saúdo este Relatório da UNESCO como uma contribuição essencial para as discussões que devem ocorrer na ONU e em todo o mundo. É uma referência seminal para a Cúpula da Educação Transformadora programada para o segundo semestre de 2022"1. É o momento para se cogitar também da inserção de novas modalidades de ensino, dentre elas a proporcionada pela educação a distância, que já vem apresentando um bom resultado pelas tecnologias mais avançadas, modalidade em que docentes e discentes, embora separados fisicamente, encontram-se presentes em um ambiente virtual de ensino. Também merece destaque e com perfeita aplicação das novas tecnologias a Educação Profissional que vem recebendo reiteradas mudanças pela verticalização curricular com o alinhamento dos planos de ensino, desde o Ensino Médio até os cursos de graduação. Não se poderia olvidar, nesta oportunidade, de chamar a atenção para o ensino domiciliar, mais conhecido como homeschooling, cujo texto-base da regulamentação foi aprovado recentemente pela Câmara dos Deputados e agora segue para o Senado Federal, tendo como suporte legal a autonomia familiar contida no artigo 206, incisos II e III da Constituição Federal.2 Assim neste novo caminhar as plataformas digitais, aprimoradas para tal fim, agindo em colaboração e integração com professores e alunos, introduzirão não só novas habilidades, mas também aprendizados que tragam benefícios para aperfeiçoar a vida escolar, produzir novas realidades no mundo exterior e proporcionar um rendimento acelerado de conteúdo em busca de uma sociedade mais qualificada em múltiplos saberes. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
domingo, 29 de maio de 2022

Do uxoricídio ao feminicídio

O Tribunal do Júri da comarca de Santo André/SP condenou um homem a cumprir a pena de 12 anos de reclusão, em regime inicial fechado, por ter matado, no interior de um motel, em total menosprezo à condição de mulher, uma garota de programa que havia conhecido em uma boate e se recusou a manter com ele relação sexual.1 O Direito, assim como outras ciências, também promove variantes linguísticas no vernáculo.  A palavra homicídio, por exemplo, que por muitos anos frequentou com exclusividade um artigo do Código Penal, compreendia a ação de matar um homem ou uma mulher. Uxoricídio, em sua etimologia específica, designava a conduta daquele que matava a esposa. Mais recentemente foi introduzida a palavra feminicídio, com significado abrangente e consentâneo com o pensamento jurídico da atualidade, compreendendo a morte de qualquer mulher, esposa, companheira ou não, atrelada, no entanto, à questão de gênero em contexto discriminatório envolvendo conteúdos históricos, culturais, econômicos, sociais e outros. O tipo penal do feminicídio é de construção recente, e não figura como crime autônomo e sim como apêndice do crime de homicídio, na forma qualificada. Impõe pena mais exacerbada que a do homicídio, além de revestido do mesmo caráter de hediondez e que tem por finalidade a proteção da mulher, no tocante à violência doméstica e familiar como, também, ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A título de curiosidade, a prática de homicídio simples prevê uma pena de 6 a 20 anos de reclusão, enquanto que no feminicídio a pena é de 12 a 30 anos, também de reclusão, sem contar ainda com os acréscimos em razão do estado gestacional da vítima, se for praticado diante de descendentes ou ascendentes, assim como em razão de descumprimento de medida protetiva. Pode-se dizer que a Constituição Federal de 1988, quando erigiu a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais, juntamente com a promoção do bem social sem preconceitos de sexo, trouxe um comprometimento diferenciado em relação às tutelas anunciadas. Inclinou seu olhar protetivo para a mulher, principalmente aquela que era considerada vulnerável e que necessitava de cuidados especiais, vez que exposta a tantos conflitos sociais, com sérios prejuízos e danos à saúde e à vida. A Lei nº 11.340/2006, conhecida por Maria da Penha, é exemplo, em razão da determinação constitucional prevista no artigo 226 § 8º. Apresenta claramente seus objetivos, as políticas públicas voltadas para o combate à violência doméstica e os mecanismos para atingir seus fins, além dos tipos penais específicos. A Lei Maria da Penha vem produzindo, de forma reiterada, inúmeras alterações em seu texto originário introduzindo, ao longo do tempo, verdadeiros tentáculos flexíveis, com a função de fechar o cerco protetivo às vítimas que se encontram em situação de violência doméstica e familiar. Dificilmente uma lei consegue tamanha façanha e, mesmo assim, não alcançou os resultados desejados. Basta ver o acentuado crescimento no número de feminicídios, apesar de toda advertência encartada a respeito. Assim, a cada nova investida, apresenta-se um acréscimo à lei para inibir a nova modalidade agressiva. A vulnerabilidade referida acima é a circunstancial, mais precisamente a proveniente de discriminação, em que a pessoa se vê impossibilitada de exercer seus direitos em igualdade de condições com as demais, necessitando, para tanto, de uma ação coadjuvante para desenvolver suas capacidades e competências. No caso específico relatado e decidido pelo Tribunal do Júri, a violência exigida para a prática do delito se espraiou e alcançou um encontro eventual entre um homem e uma mulher, sem qualquer relacionamento amoroso, sem qualquer convivência anterior. A negativa da mulher em ter relação sexual com o seu acompanhante - recusa legítima em razão da autonomia da vontade - por si só, traz à tona o menosprezo e a discriminação pelo fato de ser a vítima uma mulher. ___________________ 1 Disponível aqui.
domingo, 22 de maio de 2022

Uma questão de epigenética

A ciência, nas últimas décadas, em determinadas situações, vem progredindo de forma ascendente e ininterrupta, causando até mesmo impacto aos criadores de ficção científica. E é enriquecedor observar que o homem passa a ser o principal destinatário, tanto no tocante à ambicionada longevidade, como em relação a uma salutar qualidade de vida. Esta nova etapa da ciência trabalha com a velocidade da informação biológica, principalmente aquela que esmiuça os segredos até então não revelados das células humanas e as exterioriza para que novas patologias sejam ajustadas para o bem-estar da humanidade. Tem-se, desta forma, os determinantes anatômicos de cada pessoa, assim como também os determinantes sociais que, juntos, compõem a pessoa humana, tarefa importante para a distribuição equitativa das benesses da ciência. A corrente sanguínea passa a ser o caminho predileto para as células circundantes que navegam por todas as partes do corpo humano liberando a carga necessária de genes. Esta nova dimensão do progresso das ciências biomédicas aponta para uma avenida com rápida expansão para desvendar os mecanismos das mudanças hereditárias, tanto no fenótipo como na expressão dos genes.  É o momento da epigenética. O nosce te ipsum, inscrito de advertência no Oráculo de Delfos, nunca esteve tão presente como agora em que o homem está explorando seu interior na busca do código genético, que ainda não foi decifrado totalmente1, mas tudo indica que a soletração do genoma humano está próxima e o estudo visa apontar a diversidade encontrada na população mundial com a finalidade de ajudar no combate e na prevenção de doenças que ainda afetam a humanidade. Rousseau (1712-1778), sem qualquer conhecimento a respeito da epigenética, foi incisivo na sua obra "O Contrato Social", quando afirmou que "o homem nasce bom e a sociedade o corrompe". Sem qualquer intenção fez ver que o determinismo ou genótipo genético herdado dos pais pode ser influenciado pelo mundo exterior. Richard C., em sucinto pensamento em que amplia o conceito de hereditariedade, assim definiu o alcance da epigenética: "Nossa herança não se limita a nossos genes. Nosso legado extragenético inclui um ambiente social que começa com nossos pais, mas pode se estender além deles, a ponto de incluir toda uma cultura."2 Capra e Luisi, com muita razão, advertem: A epigenética é uma área de pesquisa em rápida expansão, com implicações importantes para a nossa compreensão do desenvolvimento, da evolução e da saúde humana. 3 Uma das vertentes da epigenética (epi em grego com o significado de "sobre", "acima de") é justamente a de estudar as mudanças hereditárias ocorridas na vida de uma pessoa. Ela nasce com sua herança genética que pode, em razão de eventos posteriores relacionados com o próprio ambiente, a socialização, provocar mudanças em todas as fases da vida. Pode-se até determinar que, nesta linha de raciocínio, há, por um lado, a herança genética, que compreende a cadeia causal que vai desde o DNA até as características biológicas e, por outro, a herança social que se desenvolve inicialmente com os nossos pais e depois se expande com o passar do tempo às demais pessoas, alcançando o ambiente social com todos os fatores intrincados externos, que vão acarretar influências em nossos genes durante toda a vida.  Um recém-nascido, por exemplo - que passou por um longo período de desnutrição - as sequelas irão acompanhá-lo de forma implacável. Assim, na realidade, o DNA permanece o mesmo, mas fatores não genéticos influenciam e induzem os genes do organismo a se expressarem de maneira diferente. Basta ver o caso dos gêmeos idênticos, aqueles que conservam o mesmo genoma e que levam vidas em ambientes separados, com o passar do tempo, ficam cada vez mais diferentes. Pode-se dizer, desta forma, do ponto de vista epigenesista, que as evidências apontadas nos mecanismos epigenéticos, com a destacável influência do meio, constituem uma transmissão indireta para as gerações futuras, deixando de prevalecer, isoladamente, a característica genética e sim também a adquirida. Razão assiste a Augusto Comte quando deu o nome de "física moral" ao estudo científico da sociedade, antes de nascer a sociologia. ________________ 1 Disponível aqui. 2 Richard C., Francis. Epigenética: como a ciência está revolucionando o que sabemos sobre hereditariedade. Tradução Ivan Weiz Kuck - Rio de Janeiro: Zahar, 2015, p. 99. 3 Capra Fritjof; Luisi, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. Tradução de Mayra Teruya Eichemberg, Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 249.
domingo, 15 de maio de 2022

Receita Humana

Após a edição da Resolução 2.294/21 do Conselho Federal de Medicina estabelecer que, na reprodução assistida, "os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, exceto na doação para parentesco de até 4º grau, de um dos receptores (primeiro grau - pais/filhos; segundo grau - avós/irmãos; terceiro grau - tios/sobrinhos; quarto grau - primos), desde que não incorra em consanguinidade", um casal gay, que há muito tempo planejava a constituição de família, aproveitou a abertura da norma do CFM e levou adiante o projeto parental. Para concretizar a recomendada engenharia genética foi necessário um ajuste familiar. Uma verdadeira receita humana.  A irmã de um deles doou os óvulos que foram fecundados pelo esperma de um dos companheiros, enquanto que a prima do outro cedeu temporariamente o útero para abrigar os embriões. Tudo bem sucedido, nasceram gêmeos. A notícia, que rapidamente foi veiculada pelas redes sociais1, causou impacto na comunidade, pois, até então, não se tinha notícia de uma criança de casal gay ter sido gerada por componentes reprodutivos da família de ambos. Torna-se um procedimento mais confiável e seguro para os pretendentes, pois a filiação pertence ao mesmo núcleo genético das famílias, além de representar uma significativa vantagem financeira. É interessante observar que a técnica utilizada não recebeu material genético de outras pessoas a não ser daquelas envolvidas e que pertencem às duas famílias. Desta forma, pela realidade da bioengenharia, não ocorrerá nenhum rompimento no processo evolutivo convencional. Os filhos guardarão o mesmo código genético dos pais e eventual mapeamento genético será bem sucedido para comprovar a sequência primária do genoma humano. Carregarão o genótipo, que contém toda a informação hereditária, e o fenótipo, encarregado das características físicas e comportamentais. A medicina reprodutiva vem trazendo cada vez mais resultados satisfatórios que vão se amoldando às necessidades dos casais homossexuais e, por outro lado, obrigando o Direito a encontrar uma situação de acomodação legal envolvendo famílias mono e biparentais, enquanto que a bioética deve fazer uma reflexão mais aprofundada a respeito da conveniência e dos benefícios a serem apurados pelas novas tecnologias, estabelecendo os limites aceitáveis. Com relação à parte legal, não há qualquer óbice. Apesar do vazio legislativo diante das novas realidades - e é compreensível porque o dinamismo da tecnologia é incessante e imediato enquanto que o da lei demanda muito tempo para sua formatação - há a respeito o Provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça, que traça normas a respeito do registro de nascimento de filhos gerados por todas as técnicas de reprodução assistida. Referido documento disciplina que o casal homossexual deve procurar o Cartório de Registro Civil munido com a documentação específica exigida. O Cartório lançará o registro da criança fazendo dele constar os nomes dos dois pais ou das duas mães no campo denominado "filiação". Tudo sem qualquer manifestação judicial. O pensamento bioético, por sua vez, não pode, de forma alguma, desconhecer os benefícios advindos da nova tecnologia impondo uma censura sem qualquer consistência e, principalmente, entender que o avanço científico irá prosperar cada vez mais, sem qualquer chance de recuo, desde que atenda às necessidades da espécie humana. A Bioética, desta forma, revestida do ideal humanista, até mesmo com uma inclinação utilitarista, não se apresenta como um anteparo do progresso técnico-científico e sim deve envidar esforços para direcioná-lo para acumular benefícios para as pessoas. Além de observar se foram eleitos os melhores e mais éticos meios para alcançar a finalidade do projeto familiar. _______________ 1 https://www.metropoles.com/distrito-federal/nascem-gemeos-de-casal-gay-do-df-que-fertilizou-ovulo-de-parente
domingo, 8 de maio de 2022

A obesidade e a cirurgia bariátrica

É sempre interessante acompanhar o desenvolvimento da tecnologia voltada para a área médica e farmacêutica porque a cada instante ocorre uma nova intervenção na humanidade, sempre com a finalidade de encontrar soluções para minimizar os problemas relacionados com a saúde humana, quer seja para extirpá-los definitivamente quer para administrá-los diante de um patamar que confira razoável estado de saúde. É o que acontece com a obesidade que vem sendo alvo de atenção crescente em muitas pesquisas científicas. Estudos da Organização Mundial de Saúde, que elegeu a obesidade como a doença do século XXI, revelam que 30% da população mundial sofre com sobrepeso e obesidade e que um adolescente nestas condições tem mais de 70% de chance de se tornar um adulto obeso. E esse mesmo órgão, que definiu o anoréxico como o portador do IMC igual ou inferior a 18, classificou o obeso como o portador do IMC igual ou maior a 30.   Para se chegar ao peso permitido, basta tomar a altura e multiplicar por ela mesma. Em seguida, divida o peso pelo resultado da primeira operação. Da mesma forma que a anorexia, o excesso de peso provoca problemas graves para a saúde, pois, a exemplo do que acontece nos EUA, país que lidera o ranking do tecido adiposo, os jovens brasileiros se alimentam de produtos ricos em gordura e carboidrato, que ficam alojados no organismo. O crescimento desordenado da população obesa atinge graus de morbidade e passa a ser um problema de saúde pública, que deve acudir as doenças decorrentes da obesidade mórbida, tais como: cardiovasculares, diabetes, câncer, hepatite, apneia do sono, estresse e outras. Além do que a obesidade provoca muitas vezes atitudes constrangedoras e até mesmo vexatórias, pois é sabido que o homem em sua mutabilidade constante e premido sempre por novos conceitos, que nem sempre acompanham a ética e moral convencionais, procura apontar moinhos que venham obstaculizar sua passagem e se apresentam como inimigos de seus objetivos e, portanto, devem ser combatidos. É o caso do preconceito à obesidade. Todo indivíduo sabe que o controle do peso é um fator importante para gozar de boa saúde. Sandel já definiu com precisão, do ponto de vista utilitarista, que "a saúde não é um bem humano distintivo, e sim apenas um meio de maximizar nossa felicidade e nosso bem-estar."1 Não se trata da imposição de um padrão de beleza exigido pelas regras do mercado e da moda e sim de estabelecer as metas de um bem-estar físico e mental. Nesta linha de raciocínio, o Estado deve se fazer presente, na esfera de seus objetivos sociais, para construir políticas públicas específicas como desenvolver programas de proteção da saúde do cidadão, orientando-o a conter o ganho e o controle de seu peso, com medidas claras de nutrição saudável e balanceada, além de possibilitar com maior frequência o acesso à cirurgia bariátrica nos casos de obesidade grave, mais conhecida como redutora de estômago. Combate-se o mal sobre a causa e não sobre o efeito. Assim, todo indivíduo tem direito a um conjunto de serviços na área da saúde, desde que obedeça rigorosamente a regulamentação estatal. E a boa notícia, revestida da melhor roupagem ética e bioética, é que um medicamento (tirzepatide), ainda em fase experimental nos Estados Unidos, permite uma redução da obesidade quase nos mesmos moldes obtidos pela cirurgia bariátrica.2 Nos estudos até o presente realizados pela empresa Eli Lilly, ainda não publicados em revista científica, foi possível constatar que o obeso, não aquele qualificado para a cirurgia bariátrica indicada para pessoas com IMC acima de 40, tem condições de perder 22.5 kg de seu peso corporal. Trata-se de uma meta revolucionária no tratamento da obesidade, cujo paciente deverá fazer uso do medicamento por toda a vida, levando-se em consideração a condição crônica da doença. Se o medicamento for aprovado pela FDA (Food and Drug Administration), agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, poderá ser colocado no mercado em breve. O destaque que se dá é a respeito da seriedade dos estudos e, principalmente, dos benefícios já constatados para a saúde humana, encontrando respaldo bioético no princípio da beneficência. Referido princípio compreende a realização de toda conduta voltada para buscar dividendos de saúde, com a mínima chance de danos, além de envidar todos os esforços para potencializar os benefícios e restringir ao máximo a eventualidade de prejuízo. Enfim, procura buscar um equilíbrio entre a inovação científica e as mais recomendadas soluções para o bem-estar da pessoa, destinatária única da fruição dos melhores benefícios. Aguardam-se, portanto, os próximos passos e o valor que o medicamento será introduzido no mercado. Até por que, em razão dos investimentos que foram projetados na pesquisa, ao que tudo indica, o preço não será acessível à comunidade que mais necessita. Daí, em razão do princípio da isonomia ou da justiça distributiva, caberá ao interessado buscar o acesso judicial aos cuidados de saúde acionando o Estado para patrocinar a aquisição. _______________ 1 Sandel, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Tradução Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 61. 2 "Medicamento contra obesidade promete resultado próximo ao da bariátrica".
O conceito social da medicina não se resume exclusivamente na competência e na excelência do serviço prestado pelo profissional da ars curandi, mas envolve, também, relações interdisciplinares com outras ciências visando atender os reclamos advindos, não só da transformação social, como os resultantes dos incessantes avanços tecnológicos, que acarretam, inevitavelmente, implicações éticas, bioéticas, jurídicas, políticas e outras mais. No atual estágio da medicina - que antevê um futuro com considerável reestruturação nos cuidados médicos e na práxis dos profissionais - destaca-se a relevante função da Bioética. Assim é que as novas tecnologias, que a cada dia vão se acumulando na área da saúde - quer sejam experimentais ou não - vão produzindo realidades diferentes no mundo exterior, provocando reflexo imediato no homem, seu destinatário exclusivo. Kant já traçava que o homem é o fim em si mesmo e não é recomendável pelo ideal hipocrático promover a artificialização do ser humano e sim buscar um bom sinalizador para preservar a dignidade existente na pessoa individualizada, conforme preconiza a Constituição Federal. Daí que surge a Bioética com seu ideal humanista como um espaço de reflexão congregando pessoas com diversas formações, não para conter o progresso técnico-científico, que é necessário e salutar, e sim direcioná-lo para acumular benefícios para a humanidade, tendo sempre em relevo o primum non nocere. A Bioética, desta forma, proporciona debates a respeito de temas atuais e provocativos a respeito de realidades até então desconhecidas e inéditas. Tendo como foco as questões de Bioética presentes no dia a dia das instituições e dos profissionais de saúde, principalmente aquelas que causam inquietude acadêmica, o Conselho Federal de Medicina editou a Recomendação 8/2015, incentivando a criação, funcionamento e participação dos médicos nos Comitês de Bioética. Tais colegiados não se assemelham aos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), regulamentados pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional da Saúde, que cuida do respeito e dignidade devidos aos participantes de pesquisas científicas envolvendo seres humanos. O Comitê de Bioética, por sua vez, compreende um colegiado multiprofissional, envolvendo médicos e representantes de diversos setores da sociedade, com o objetivo de auxiliar na reflexão e na solução de questões relacionadas à moral e à Bioética que surgem na atenção aos pacientes. Daí que as funções prioritárias são: a) dispor sobre e subsidiar decisões sobre questões de ordem moral; b) sugerir a criação e a alteração de normas ou de documentos institucionais em assuntos que envolvam questões Bioéticas; c) Promover ações educativas em Bioética. Seria - guardadas as proporções, pois o Comitê de Bioética não impõe decisão e nem pode emitir juízos de valor sobre práticas profissionais - uma plataforma administrativa para receber e analisar os conflitos de ordem ética, moral, religiosa ou de qualquer outra procedência. Basta ver que o princípio da autonomia da vontade do paciente ganhou considerável espaço no Código de Ética Médica, como, por exemplo, a deliberação a respeito do final da vida que, às vezes, colide com condutas médicas amparadas pelo princípio da beneficência ou até mesmo vai contra a vontade do representante e dos familiares do paciente. Isto porque os fatos científicos muitas vezes se entrelaçam com contornos sociais aparentando uma certa colidência na regulação ética das práticas humanas e exigem uma atuação compartilhada de um grupo que tenha sólida formação em humanidades, para extrair uma postura que seja considerada adequada e recomendada ao caso. Pode-se dizer que aí reside a marca identitária da Bioética e seu papel interventivo diante de um dilema que exige uma convergência de respostas. É a ética cívica indispensável para uma sociedade que avança destemida para um futuro que se guiará pelos mais complexos progressos biotecnológicos na área da saúde.
domingo, 24 de abril de 2022

O tapa dado por Will Smith

Fato amplamente noticiado no Brasil - e no mundo - o tapa desferido pelo ator Will Smith no comediante Chris Rock, durante a cerimônia de entrega do Oscar. O motivo da desavença residiu na piada sobre a esposa de Will, que ensejou debates e reflexões de várias ordens, inclusive na área jurídica, sobre a conduta praticada pelo famoso ator. Nesse passo, a fim de estimular ainda mais o debate, poder-se-ia imaginar quais as consequências jurídico-penais do fato, na hipótese abstrata de aplicação do Código Penal brasileiro in casu. Prima facie, é imperioso compreender a extensão da consequência do tapa desferido por Will Smith. É que a subsunção do fato à norma dependerá da gravidade do resultado, vale dizer, da produção de lesão ou não. Com efeito, a primeira possibilidade que se revela é o tapa que não cause nenhuma lesão corporal na vítima - sequer uma vermelhidão na face - o que ensejaria a incidência do artigo 21 do decreto-lei 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais): Praticar vias de fato contra alguém, cuja iniciativa da ação penal é pública incondicionada, isto é, o promotor de Justiça não precisa da delatio criminis postulatória (representação do ofendido) para oferecer a denúncia. Todavia, caso o tapa desferido pelo autor do fato causasse lesão na vítima, passa-se a aplicação, em tese, do artigo 129 do Código Penal - crime de lesão corporal: Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. Aqui, diversas implicações precisam ser levadas em conta pelo estudioso do Direito, uma vez que o Código Penal disciplina a matéria sob diversos enfoques. Caso a lesão corporal seja de natureza leve, configura-se crime de ação penal de iniciativa pública, porém condicionada à representação da vítima. Ademais, considerando o máximo da pena privativa de liberdade cominada em abstrato, para o crime de lesão corporal de natureza leve, tem-se a incidência do rito especial previsto na lei 9.099/95.  Não se pode olvidar do § 4º do artigo 129 do Código Penal, no entanto, que dispõe que se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Deste modo, imprescindível se torna o questionamento: teria Will Smith agido impelido de forte emoção, após a injusta provocação da vítima? Ora, o suposto ofendido contou uma piada sobre a cabeça raspada da esposa de Will, que fora diagnosticada com uma doença cuja consequência é, justamente, a perda capilar. Então, seria possível concluir que esta piada configuraria a injusta provocação da vítima? E mais: essa injusta provocação da vítima faria incidir o artigo 129, § 4º, do Código Penal, ou o artigo 25 do mesmo Diploma Legal (legítima defesa): Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Caso se compreenda tratar-se de legítima defesa de terceiro, tem-se verdadeira causa de excludente de ilicitude, o que implica dizer que o fato é típico, porém não contrário ao Direito. Por outro lado, pode-se entender que o artigo incidente é o 129, § 4º, do CP, o que implica na diminuição obrigatória da pena a ser aplicada, na terceira fase da dosimetria da sanção. Finalmente, existe relevante doutrina brasileira, como a de Cleber Masson, que entende, corretamente, que se o intuito do agente, ao desferir o tapa, foi o de humilhar a vítima, aplica-se o artigo 140, § 2º, do Código Penal - crime de injúria real: se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes, a pena será de detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. Neste caso a acusação terá de provar que o dolo do agente seria o de ferir a honra subjetiva da vítima e não o de lesionar. Desafio interessante, sob o aspecto da distribuição do onus probandi. Quanto à tipificação das condutas, estas seriam as breves considerações a respeito da hipotética aplicação do nosso Código Penal, ao caso estudado. Mesmo assim, cabe uma última indagação: inobstante o crime em tese praticado, poder-se-ia concluir que não seria possível exigir que Will praticasse conduta diversa da realizada? Em outras palavras: haveria, in casu, excludente de culpabilidade, na modalidade inexigibilidade de conduta diversa? Qualquer pessoa que ouvisse a mesma piada sobre o cônjuge que possuísse a mesma doença, agiria da forma como Will agiu? Se a resposta for positiva, tem-se a aplicação da causa geral de exclusão da culpabilidade, que isenta o acusado da imposição de pena. Por outro lado, caso negativa, então Will poderia responder como incurso nas penas de algum dos artigos supracitados. Em apertada síntese, são considerações jurídico-penais brasileiras que, em um exercício de Direito Penal, seriam cabíveis ao estudo proposto.
domingo, 17 de abril de 2022

Abraço de Páscoa

Em algumas datas durante o ano, geralmente as motivadas por feriados religiosos, as pessoas param a desenfreada correria, fazem um pit stop quase que obrigatório e deixam transparecer os sentimentos que invadem seu interior, direcionados para a liturgia da comemoração. A Páscoa é uma delas. Com o significado hebraico de "passagem", na história compreendeu a libertação do povo israelita da escravidão do Egito. No ritual cristão, é a passagem da morte para a vida, retratada na ressureição de Cristo. E o povo brasileiro, com a sensibilidade que lhe é peculiar, tem por lema cumprimentar os parentes e amigos pensando no louvável progresso da humanidade. Quanto maior for a carga positiva dos votos, mais fecunda será a vida. É o efeito bumerangue em que se lançam os melhores cumprimentos que irão alcançar as pessoas destinatárias e, com sobras, atinge também o arremessador. Não adianta quixotear contra o tempo. "Nós somos os tempos, bradava Santo Agostinho, quais formos nós tais serão os tempos. Vivamos bem e os tempos serão bons." Aquilo que foi alcançado nada mais é do que o resultado da dedicação de cada um, devendo ser preservado no interior de uma concha protetora e mantido como um troféu, representando a conquista de um elevado projeto de vida. Daí é que nasce o criador, o idealizador, o vitorioso. Aquele que não entope de promessas os ouvidos carentes, mas preenche e sacia o vazio do coração e do corpo. O pouco que for extraído será significativo para cada um e para todos que o cercam, fortalecendo o espírito corporativo e edificando o altruísmo coletivo. Se o homem tiver a consciência de sua finitude será um construtor da obra duradoura que poderá legar ao próximo, ressuscitando as potencialidades do espírito e não vivendo como pequenos personagens no país imaginário de Lilipute, do romance Viagens de Gulliver. Quando se diz Feliz Páscoa não representa um toque dado com a varinha mágica para canalizar a atingir um fim colimado. É, antes de tudo, um pacto de comprometimento social com apelo de construir a passagem humana pelas melhores veredas, buscando sempre a sintonia do homem com a humanidade e o encaminhamento para a perfeição. Daí que a guerra foge totalmente do padrão humano. Basta ver - e aqui se encontra a verdadeira solidariedade humana - com o início da pandemia, a humanidade, a uma só vontade, debruçou-se para, em tempo recorde, encontrar vacinas para a imunização global. Conseguiu e restabeleceu a saúde dos povos. É uma verdadeira ação fertilizante que corrige a rota existencial, fazendo com que nasça no indivíduo a necessária disposição de renovar-se e reeducar o olhar para apreciar as belas coisas que se apresentam no dia a dia, com estímulos necessários para avançar nesta aventura maravilhosa chamada vida. E. acima de tudo, imbuído do melhor espírito cristão. Se cada um recitar o texto que lhe cabe no drama ou na comédia, representando o personagem que ambiciona ser, sem ziguezaguear em busca de identidades fictícias, vale lembrar a esperança cantada pelo Cavaleiro da Triste Figura: quando se sonha sozinho é apenas um sonho. Quando se sonha junto é o começo da realidade. Feliz Páscoa para a humanidade!
Uma mulher trans foi agredida pelo pai que rejeitou sua opção de gênero. O Ministério Público, tomando conhecimento do fato e visando conferir a ela maior proteção, pleiteou a aplicação de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, que foram negadas pelo juiz de primeiro grau, assim como pelo TJ/SP, que entenderam que referida lei limita sua aplicação unicamente à mulher biológica. A 6ª turma do STJ acolheu o recurso e decidiu que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada também para a proteção de mulheres transexuais. O ministro relator Rogerio Schietti Cruz foi incisivo ao afirmar: "Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias".1 A Constituição do Brasil é abrangente e insere em seu texto todas as pessoas como sujeitos de direitos e obrigações, abrigadas pelo princípio da isonomia, além de conferir a elas a expressão da cidadania retratada na dignidade da pessoa humana, erigida como dogma constitucional na estruturação do Estado Democrático de Direito. O sistema binário estabelecido na legislação - homem e mulher - no sentido de que cada pessoa deve assumir o sexo contido em seu registro, caiu por terra e os próprios tribunais reconhecem a identidade de gênero como uma construção social e consciente em que a pessoa se identifica subjetivamente a um gênero, fazendo aflorar, desta forma, a identidade trans. A Lei Maria da Penha, além de se apresentar como uma legislação fundamental para coibir a violência no âmbito das relações familiares - considerada uma das formas de violação dos direitos humanos - expandiu-se sobremaneira e alcançou outras tutelas não previstas originariamente em seu núcleo, aparentemente duro. Tanto é que, frequentemente, a norma protetiva vem recebendo ampla interpretação dos nossos tribunais extraindo dela a mens legis mais adequada.2 Desta forma, por alcançar também qualquer ação ou omissão baseada no gênero, basta ver que a tipificação do feminicídio, estendeu seus tentáculos e permitiu abertura suficiente para encampar o direito à diversidade. É certo que também foram relevantes para a conquista deste direito as decisões proferidas pelo STF na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 e na ADIn 4.277, em que houve reconhecimento dos direitos homoafetivos, e a posterior Resolução 175, do Conselho Nacional de Justiça, que instituiu o casamento homoafetivo e a conversão da união homoafetiva em casamento. O relator já mencionado fez a correta interpretação que é dada pelos tribunais, no sentido de que "gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres". Daí que se pode afirmar que é uma questão de autopercepção, totalmente desvinculada dos fatores externos. Sexo, por sua vez, é relacionado com as características biológicas definidoras das genitálias feminina e masculina. Assim, nesta conceituação, o sexo, por si só, não compreende e nem define a identidade de gênero. É interessante salientar ao tema que o STF, no âmbito da ADIn 4.275/DF, já reconheceu o direito da pessoa transgênero de, independentemente de cirurgia de redesignação sexual, a opção de retificar no cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, o prenome e o gênero com a finalidade de fazer adequação à identidade autopercebida, conforme dispõe a Resolução 73/18 da Corregedoria Nacional de Justiça. Desta forma, a decisão comentada em conferir os direitos previstos na Lei Maria da Pena às mulheres trans trilhou as diretrizes recomendadas pelas mais recentes jurisprudências a respeito do tema, no sentido de que a identidade de gênero é diferente daquela que foi designada pelo nascimento e resulta na autoidentificação do interessado e se traduz igualmente na realização de um direito fundamental de complementação da identidade da pessoa. É certo que a decisão alcança somente o caso julgado, mas nada impede que se torne um paradigma abrindo precedentes para as demais ações ainda em tramitação judicial. ____________ 1 Disponível aqui. 2 O Plenário do STF, recentemente, declarou constitucional o artigo 12, incisos II e III da Lei Maria da Penha e, por unanimidade, decidiu que a autoridade policial, compreendendo delegados de polícia e policiais, em caráter emergencial, podem determinar o afastamento do suposto agressor do domicílio ou do lugar de convivência com a vítima quando ocorrer situação de violência doméstica e familiar (ADIn 6.138).
domingo, 3 de abril de 2022

A morte anunciada de Alain Delon

Gostaria de agradecer a todos que me acompanharam ao longo dos anos e me deram grande apoio, espero que futuros atores possam encontrar em mim um exemplo não só no local de trabalho, mas na vida de todos os dias, entre vitórias e derrotas.1 O ator Alain Delon, ícone do cinema francês e imortalizado em razão de seu desempenho em inúmeros filmes, publicou a mensagem acima de despedida, não das telas, que já havia abandonado em 2017, mas da própria vida. Anunciou que, em razão de uma doença que o obriga a inúmeras limitações, decidiu praticar o suicídio assistido, na Suíça, país em que tal prática é permitida desde 1942, a ser organizado pelo seu filho Anthony Delon. A finitude da vida, um tema que vem rompendo com preconceitos estigmatizados, ganha corpo e passa a frequentar a conversa do dia a dia e, apesar de não possuir uma legislação ordinária a respeito no Brasil, conta com resoluções do Conselho Federal de Medicina para disciplinar o procedimento ético do final da vida humana. Basta ver as regulamentações feitas a respeito da ortotanásia, dos cuidados paliativos e das diretivas antecipadas, seguindo o roteiro do princípio da dignidade da pessoa humana, preconizado na Constituição Federal. A morte surge, desta forma, como tema central e até mesmo natural, apesar de o homem resistir a travar discussão a respeito.  O anseio das pessoas é ter uma morte rápida, sem sofrimento e, logicamente, após ter exaurido a vida em sua intensidade. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente e, principalmente, quando a pessoa for abandonada à morte amarga (amarae morti ne trada nos). Nenhuma dúvida paira a respeito da higidez mental do ator francês quando verbalizou sua vontade. Sua decisão foi rapidamente propagada pelo mundo, detonou sentimentos favoráveis e contrários e tocou o cerne da finitude humana, criando um labirinto de dúvidas e incertezas. A respeito do tema pode-se dizer que há inúmeros argumentos favoráveis e contrários à opção da escolha do processo de morrer. Em países onde a prática é legalizada, como na Suíça, por exemplo, um dos requisitos é o sofrimento intolerável, sem qualquer perspectiva de alívio. No Estado de Oregon, nos Estados Unidos, a lei permissiva do suicídio assistido estabelece as seguintes condições: a) o paciente deve ter um prognóstico de vida de seis meses ou menos; b) o requerimento do paciente deve ser feito por escrito e repetido depois de quinze dias de período de espera; c) o paciente deve ser racional e mentalmente competente. Sua capacidade de julgamento não deve estar afetada por depressão clínica ou outras desordens mentais; d) deve-se obter uma segunda opinião médica; e) o paciente deve ter capacidade para ingerir por si mesmo, sem ajuda, a medicação. O direito de autodeterminação se faz presente no suicídio assistido.  A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente. O morrer com dignidade compreende, em situação de sofrimento interminável, transferir a um profissional da saúde não o direito à sua própria vida, mas sim a renúncia ao direito de continuar vivendo em situação angustiante. Já advertia Camus: "Matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos".2 No Brasil, é terminantemente proibida a prática do suicídio assistido em razão da norma incriminadora disposta no artigo 122 do Código Penal, que pune a modalidade de prestar auxílio ao suicida, compreendendo aqui o fornecimento ou a viabilização dos meios necessários para a prática do ato. Não se confunde com a eutanásia, que é o ato pelo qual o agente pratica um ato específico para colocar fim à vida humana, em razão da irreversibilidade da doença. Na realidade, no suicídio ajudado, a pessoa solicita a um terceiro a colaboração quanto ao meio de atingir seu objetivo, sendo que a ação é do próprio interessado. Pessini, bioeticista com refinada agudeza de espírito, foi incisivo: "No suicídio medicamente assistido, envolve a participação de um médico, na provisão, mas não na administração direta para ajudar a pessoa a abreviar sua vida".3 Muitas são as cunhas que cabem neste tema. Embora não se cogite a prática no país, é importante a comunidade tomar conhecimento de outra perspectiva de final de vida. ___________ 1 Disponível aqui. 2 Camus, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005, p. 19. 3 Pessini, Leo. Eutanásia - porque abreviar a vida? São Paulo: Editora Loyola, 2004, p.127.
domingo, 27 de março de 2022

De quem é o embrião?

Uma ação judicial intentada recentemente chamou a atenção da comunidade jurídica pelo teor da pretensão deduzida. Um casal manteve um relacionamento em união estável por cerca de dois anos, período em que produziram embriões em uma clínica especializada em reprodução humana, já que ambos pretendiam a procriação. Nesta oportunidade celebram um pacto por eles assinado no sentido de que, finda a união, os embriões seriam descartados.1 O casal veio a se separar e a mulher, algum tempo após, pediu ao ex-companheiro autorização para usar os embriões, pleito que, no entanto, foi-lhe negado. Diante da recusa invocou a tutela jurisdicional justificando que o termo de consentimento assinado pelo casal durante a união estável foi em atendimento à resolução 2294/21, do Conselho Federal de Medicina e não em virtude de alguma lei que regulamentasse a matéria. Até mesmo para o mais dinâmico operador do direito a causa gera certa perplexidade, pois apresenta-se mais próxima da ficção científica do que da realidade jurídica. Abre-se, diante da inédita postulação, espaço para reflexão a respeito das novas tecnologias que produzem desafios não só para a justiça, mas para a própria humanidade. O Direito, como é sabido, cuida da aplicação e interpretação da lei e essa, por sua vez, deve ter o dinamismo ancorado nas mutações científicas e sociais para solucionar as questões com base nos pilares de sustentação do pensamento moral da sociedade. O tema é não só de alta indagação jurídica, mas também de interesse bioético. Busca-se, na realidade, conhecer o status do embrião na legislação brasileira. E o avanço da engenharia genética reprodutiva foi tão acentuado que, num repente, a fecundação intraútero, que até então era o critério norteador do início da spes vitae, desloca-se para a manipulação humana extracorpórea com a consequente formação de embriões. É uma nova realidade que se apresenta em razão da evolução da embriologia e da engenharia genética. O casal estéril poderá atingir a procriação com a utilização de componentes genéticos de ambos, de um só ou de nenhum deles. O embrião produzido artificialmente em placa de Petri, acomodado no interior de tubo de nitrogênio, guarda profunda diferença daquele fecundado naturalmente. A falta do locus apropriado ou do habitat natural para o alojamento demonstra, por si só, a impossibilidade de se atingir a spes hominis, pois no gélido interior que habita, não há qualquer chance de progressão reprodutiva. Não há dúvidas de que o tema abre um enorme espaço para considerações éticas e jurídicas. O certo é que o Código Civil, promulgado em 2002, ainda sedimentado em um noviciado legislativo a respeito do tema, limitou-se a traçar algumas normas a respeito da presunção que cerca os filhos nascidos durante a constância do casamento e, nesse rol, acrescentou também: os havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; os havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; e os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. Silencia-se, no entanto, com relação à destinação dos embriões criopreservados. Supletivamente, por outra banda, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 2.294/2021, estabelecendo as normas técnicas e éticas do procedimento. No item V, nº 3 - quando trata da criopreservação de gametas ou embriões - é taxativo ao afirmar: "No momento da criopreservação, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los." A Resolução citada é um documento dirigido à comunidade médica para avaliar eticamente a conduta do profissional, com validade interna corporis, inferior, portanto, à lei, que tem o alcance erga omnes. Assim, em tese, o documento assinado pelo casal, representa, de forma inequívoca a vontade manifestada por eles, no sentido de prevalecer o descarte embrionário, em caso de dissolução da união estável. Tal interpretação abarca também qualquer iniciativa da mulher que cedeu seu material genético de pleitear a cessão dos embriões à clínica responsável pela criopreservação, pois, com base no documento ali arquivado, terá sua pretensão indeferida. O embrião pertence aos genitores e ambos devem se manifestar a respeito do destino a ser dado em caso de não utilização. Resta aguardar a decisão da Justiça. _____________ 1 Disponível aqui.
domingo, 20 de março de 2022

O último desejo e os cuidados paliativos

Izabel, paciente internada em um hospital do Ceará no programa de cuidados paliativos, recebeu diagnóstico de que - apesar de todo o esforço da equipe médica que a submeteu a três quimioterapias sem ter chance de receber um transplante de medula óssea - sua doença era irreversível. Diante do grave quadro, manifestou sua vontade de reencontrar o mar. Para tanto, contando com a iniciativa do programa de tratamento paliativo, realizou as necessárias transfusões de sangue e plaquetas para suportar a viagem de ambulância que a levaria para o mar. Ali chegando, buscou junto à inesquecível brisa um demonstrativo de entusiasmo misturado à gratidão e proferiu: "Todas as minhas memórias de praia são maravilhosas. O mar sempre me dá paz e harmonia. Reencontrar minha família, ainda mais na praia, foi uma das melhores coisas que aconteceu na minha vida."1 O relato é pertinente para abordar o tema a respeito dos trabalhos desenvolvidos pelos profissionais da área de cuidados paliativos. Apesar de o termo carregar o significado de atuação final, na realidade o tratamento dispensado visa conferir ao paciente de doença grave as melhores condutas terapêuticas para o controle da moléstia. A Organização Mundial de Saúde redefiniu em 2002 a conceituação dos cuidados paliativos como "uma abordagem que aprimora a qualidade de vida, dos pacientes e famílias que enfrentam problemas associados com doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, por meios de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual". Cuidados paliativos, nesta visão, descartam qualquer apressamento da morte, mas sim provocam o surgimento de um cuidar cauteloso para conferir ao paciente a continuidade da sua dignidade. O estertor da morte é suavizado, de acordo com a intenção demonstrada pelo paciente in vita ou nas diretivas antecipadas de sua vontade. Seria, a título de exemplo, tomar o paciente pelas mãos e com ele caminhar na sua toada, com segurança e lentamente, levantando-o, quando suas forças minarem, até o umbral que interrompe o ciclo vital. É, portanto, uma tarefa especializada, que exige muito mais do que a solidariedade humana. Daí, muitas vezes, como sói acontecer, nem mesmo os parentes poderão executá-la a contento. Levando-se em consideração a inevitabilidade da morte, o homem, com o interesse em fazer preservar a dignidade que deve permear todos os ciclos de sua vida, elegeu agora sua finitude como sendo aquela que merece a atenção adequada. Tanto é verdade que a ars moriendi, em busca de uma morte que seja digna e compatível com o ser humano, abraçou a conceituação da ortotanásia contida no Código de Ética Médica no sentido de que, "nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal".2 A parte legal dos Cuidados Paliativos vem regulamentada pelas Resoluções na sequência apontadas: A resolução 1805/06 do CFM dispõe que, quando se tratar de fase terminal de enfermidades graves, o médico poderá limitar e até mesmo suspender os procedimentos fúteis e desnecessários para o prolongamento da vida do paciente, mas, por outro lado, deve garantir a ele os cuidados necessários para aliviar o sofrimento, respeitando sempre sua vontade ou a de seu representante legal.  A resolução 2068/13 aprova a Medicina Paliativa como área de atuação de especialidade. A resolução 41/18 MS, por sua vez, dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos, à luz dos cuidados continuados integrados, no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS). A dor, o medo, a depressão, a insegurança, a ansiedade, o isolamento são circunstâncias que habitam a frágil vida do doente terminal, seja em decorrência de câncer, HIV/AIDS, Alzheimer e outras moléstias em estágio de irreversibilidade. A mente do enfermo, que ainda opera em meio a tanto tumulto, necessita buscar refúgio para se amparar, ou um colo para depositar suas últimas esperanças. Este espaço é geralmente ocupado pela figura do cuidador especializado, que irá entronizá-lo em uma espécie de redoma, aproximando-o do convívio dos familiares e amigos, da sua opção espiritual, de atender a realização de seus desejos quando possíveis, para que fique conectado com a dignidade da vida. Não só. Os cuidados alcançam também os familiares dos pacientes que recebem orientações para lidar com a doença e o apoio para o enfrentamento do luto. Hoje, nota-se o surgimento de algumas clínicas e hospitais especializados nesta função caritativa e que prezam pela qualidade do atendimento, por meio de um corpo clínico com aderência na área e equipamentos necessários para atendimento rotineiro dos pacientes. Tal desiderato faz ver que não basta somente o sucesso da ciência em proporcionar a tão ambicionada longevidade. É preciso que haja a qualidade de vida compatível com a ambição humana. E, quando vencidas todas as etapas, a pessoa defrontar-se com a terminalidade de uma doença, que tenha ela um serviço de saúde adequado em que possa receber o conforto e a atenção, refletindo, desta forma, a merecida dignidade de seus últimos dias. Justificada e plenamente louvável a iniciativa da equipe de cuidados paliativos do hospital do Ceará. ____________ 1 Disponível aqui. 2 Artigo 41, parágrafo único da Resolução CFM 2.217/2018.
O tema aborto vem frequentando com certa assiduidade as discussões travadas a seu respeito e a conclusão é que recrudesce cada vez mais a polêmica, justamente por ser incandescente e envolver posições inquebrantáveis.  Aparentemente os argumentos são repetitivos, porém, na realidade, a reiteração é justamente para buscar o amadurecimento a respeito de sua conveniência ou rejeição definitiva.  O ambiente, quando propício e de alta fermentação coletiva, colabora para a busca de uma decisão que seja satisfatória à população. Além do mais não é um assunto voltado para uma área específica e sim regido pela interdisciplinaridade, em que várias vozes da saúde, psicologia, sociologia, religião, direito, ética e outras tantas falam ao mesmo tempo trazendo suas colaborações. Nos últimos anos alguns países da América Latina - Uruguai, Guiana, Cuba, Porto Rico, Argentina e agora Colômbia, até então considerados conservadores a respeito do tema - passaram a romper as estruturas sólidas que os amarravam a um conservadorismo fincado em tradições e, graças aos movimentos feministas, conseguiram aprovar a descriminalização do aborto. Paradoxalmente, nos Estados Unidos, alguns estados firmaram posição em insistir na proibição. Na realidade, já existia tal possibilidade quando o ato fosse praticado para salvar a vida da gestante, proveniente de estupro ou de má-formação do feto. Recentemente o Senado da Argentina aprovou lei que foi regulamentada pelo Executivo (Lei 27.610/2020) estabelecendo a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação. Após esse período, prevalece a regra anterior consistente em salvar a vida da gestante ou quando a concepção for fruto de estupro. A proposta fazia parte dos compromissos eleitorais do presidente Alberto Fernández. Na regulamentação legal ficou disciplinado que toda gestante poderá ter acesso ao aborto, que será realizado pelo sistema de saúde, de forma gratuita e segura. As gestantes menores de 13 anos terão acesso ao programa desde que acompanhadas por um dos pais ou do representante legal. Adolescentes entre 13 e 16 anos necessitarão da autorização se o procedimento comprometer sua saúde. Já as maiores de 16 anos terão autonomia plena e decidirão por sua própria conta. No Uruguai a lei existe há mais tempo (lei 18.987/2012). É permitido o aborto, em qualquer circunstância, até a 12ª semana de gestação. Em caso de estupro ou se for para salvar a vida da gestante ou até mesmo de má-formação do feto, pode ocorrer em qualquer período. A gestante será entrevistada por uma equipe multidisciplinar que, dentre outras ponderações, sugerirá a ela a possibilidade de levar adiante a gravidez para entregar posteriormente a criança para adoção. A Colômbia, em recente decisão apertada proferida pela Corte Constitucional (cinco votos a favor e quatro contra), descriminalizou a modalidade e permitiu a realização do aborto até a 24ª semana de gestação e, acima desse período, em qualquer tempo, quando se tratar das hipóteses de estupro, má-formação do feto ou risco de morte da gestante. Por se tratar de uma decisão judicial, há necessidade da intervenção do Congresso para a regulamentação da matéria, mas é certo que nenhuma colombiana poderá ser julgada pela prática do crime abolido. No Brasil aborto é o produto da concepção eliminado pelo abortamento. É considerado crime pelos tipos penais dos artigos 124 e 126 do Código Penal, com exceção de duas hipóteses: gravidez decorrente de estupro ou quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Em ambos os casos, não há necessidade de obtenção de autorização judicial, como é comentado amiúde. E há também uma terceira hipótese, ainda não formatada em lei, que é a permissão do procedimento quando se tratar de feto anencefálico, tema que foi discutido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 54 (arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). Essa mesma Corte de Justiça, cumprindo sua missão constitucional, palco de relevantes decisões que repercutem sobremaneira na vida brasileira, abriu suas portas para o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442), intentada pelo PSOL, arguindo a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação A fundamentação do pedido apega-se aos direitos da dignidade, da liberdade e da procriação da mulher, conflitantes que são com o regramento penal proibitivo. A primeira indagação que se faz, até mesmo como preliminar para o debate, reside na discutida competência da Corte Suprema para analisar a questão. Questionou-se, ainda no âmbito das audiências públicas, a respeito do ativismo judiciário que, no caso, estaria invadindo a competência do Legislativo, retirando do Congresso o conhecimento da matéria, locus apropriado para expressar a soberania do povo. O Judiciário, por este prisma, não está jungido da legitimidade para fazer nascer um novo direito positivo. A manifestação originária, de pura índole constitucional, fonte que emana todo poder conferido pelo povo, deve ser exercida pelo Congresso Nacional, legitimado que é para discutir e estabelecer regras a respeito de tema tão abrangente, com ampla participação da sociedade, inclusive com a coleta de consulta pública. A restrita área do Judiciário, por onde caminha a pretensão deduzida, figurando como manifestação derivada, irá culminar em uma decisão interpretativa de princípios, de veio nitidamente hermenêutico, sem a chancela popular a respeito da legalização ou não do aborto. Não se pode olvidar e nem mesmo deixar de citar parte do memorável voto do então Ministro Cezar Peluso, do STF, na ADPF 54, em 2012, que despenalizou o abortamento de fetos anencéfalos, em tão curto, mas bem postado parágrafo: "Essa tarefa é própria de outra instância, não desta Corte, que já as tem outras e gravíssimas, porque o foro adequado da questão é do Legislativo, que deve ser o intérprete dos valores culturais da sociedade e decidir quais possam ser as diretrizes determinantes da edição de normas jurídicas. É no Congresso Nacional que se deve debater se a chamada 'antecipação do parto', neste caso, deve ser, ou não, considerada excludente de ilicitude." 1 Neste caminhar alguns passos já foram dados visando patrocinar a descriminalização do aborto. A 1ª turma do STF,2 analisando pedido de revogação de prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto, com votos dos Ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, entendeu que o aborto praticado nos três primeiros meses de gestação não é crime. É certo que a decisão não foi proferida pelo Plenário da mais alta Corte de Justiça do país, mas, de qualquer forma, abre um precedente para que outros juízes, invocando o mesmo entendimento, venham a descriminalizar o aborto. A fundamentação legal teve como base de sustentação a autonomia da vontade da gestante, a proteção da sua integridade física e psíquica, seus direitos sexuais e reprodutivos, além da igualdade de gênero. São direitos de última geração na avaliação de Bobbio e que, inegavelmente, tutelam a mulher na sua função procriativa, observando que, no caso presente, trata-se de gravidez proveniente de prática sexual consentida. Por outro lado, evita-se a criminalização exclusivamente contra as mulheres pobres que não podem se socorrer a um procedimento que seja seguro e fornecido pelo Estado. A evolução dos costumes traz consigo novas realidades que muitas vezes desmontam a estrutura de valores até então solidamente fincados no universo social e determina uma profunda mudança comportamental. Virar as costas e seguir adiante de nada adiantará porque o novo embrião, que se encontra em gestação, vem ganhando corpo e, ao que tudo indica, após o parto, será coberto pelo manto da legalidade. ___________ 1 https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334. 2 HC 124.306, de 2017.