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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
O Supremo Tribunal Federal, em julgamento virtual realizado em 12/4/23, acatando o voto do relator Ministro Alexandre de Moraes, pela maioria do colegiado, decidiu pela improcedência das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.838/MT e 4.624/TO, que questionavam o funcionamento dos Grupos de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (GAECOS). No estado de São Paulo a iniciativa primeira para a criação do GAECO foi na gestão do Procurador Geral de Justiça José Emmanuel Burle Filho, no ano de 1995, quando centralizou o combate às organizações criminosas em um único núcleo integrado por promotores de justiça da capital. Após, com os bons resultados alcançados, expandiram formando núcleos regionais.   É de se frisar que a ação julgada pela Corte Maior deu ênfase e reafirmou um tema que há muito tempo reclamava uma resposta do Judiciário, consistente no poder investigatório do Ministério Público. Inicialmente, deve ser acentuado que a Constituição Federal, com o espírito voltado para o alargamento das franquias democráticas, estabeleceu as funções do Ministério Público em seu art. 129, editado pelo Poder Constituinte Originário e em plena vigência, cujo caput consigna: "São funções institucionais do Ministério Público". Assim, tratam os incisos seguintes de deveres atribuídos a uma instituição, da obrigatoriedade de uma ação e da consequente autoridade do órgão ministerial para realizar todos os atos necessários para desempenhar a contento as tarefas determinadas constitucionalmente. Quando o Poder Público, para a realização de sua missão, outorga iniciativa a uma instituição, transformando-a em sua longa manus, confere a ela todos os poderes inerentes à realização das atribuições que lhe foram conferidas, desde o ato inicial até o final. Dentre as inúmeras funções atribuídas ao parquet, destaca-se, por estar intrinsicamente ligado ao cerne da discussão, o inciso IX do referido artigo: exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas. As exceções foram propositadamente especificadas. Resta claro, portanto, que preferiu o legislador pátrio deixar em aberto esse último inciso, para que lei posterior (federal) regulasse a matéria e elencasse as demais funções que não poderiam ser exaustivamente previstas neste inciso. Desta forma, verifica-se a existência de uma norma constitucional de eficácia limitada: este inciso IX somente tem aplicação se for complementado por uma lei, que passa a integrar e completar o texto constitucional, trazendo todos os elementos para que, a partir de então, se aperfeiçoe a norma, vez que terá todos seus elementos para plena eficácia. A complementação, por seu turno, se deu com duas leis: 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público - LOMP), aplicável a todos os MPs (federal e estaduais) e a lei complementar 75/93 (Ministério Público da União). Insta salientar, ainda, que existem leis complementares de cada Estado, que regulam, por sua vez, a organização e as funções específicas do MP estadual (no caso de São Paulo, é a lei complementar 734/93). Vale observar também que cabe também ao Ministério Público a instauração de inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes. Com efeito, constata-se que foi atendido o comando constitucional de complementação da norma, tendo em vista que as duas leis supracitadas enumeraram as demais funções do parquet e, dentre elas, existe a expressa previsão do membro do Ministério Público instaurar procedimento administrativo para apurar a prática de crimes. Frise-se que não se pretende, de forma alguma, substituir o trabalho das polícias. Muito pelo contrário, o que se faz é somar esforços para melhor apurar os delitos que crescem numa progressão assustadora, principalmente aqueles mais visados pelas organizações criminosas voltados para a prática de crimes de sonegação fiscal, sistema financeiro, ordem econômica, previdência social, lavagem de dinheiro, corrupção, dentre outros.  Não se busca a prevalência ou exclusividade de uma grei. Assim, muitas vezes se faz necessária uma complementação da atuação policial, tanto que o Código de Processo Penal permite que o MP requisite diligências indispensáveis ao oferecimento da denúncia (atente-se para o verbo requisitar, ou seja, é uma ordem, não podendo ser rejeitada), nos termos do art. 13, II do Código de Processo Penal. Por outro lado, o Ministério Público é também destinatário da notitia criminis e, qualquer pessoa do povo, na mais ampla legitimidade, quando se tratar de ação penal pública, poderá provocar a iniciativa do parquet, fornecendo a ele por escrito as informações sobre o fato e autoria, segundo a regra do art. 27 do Código de Processo Penal. Na mesma simetria, no campo da ação penal exclusivamente privada, o querelante dispensará o inquérito policial se tiver em mãos as provas para alicerçar a delatio criminis particular. Tal fato, por si só, faz ver que a intenção do legislador foi a de conferir ao cidadão a oportunidade de levar determinado fato delituoso ao órgão ministerial, que irá, de imediato, intentar a competente ação penal, desde que receba todas as informações necessárias para tanto. Os informes do particular substituem o procedimento investigativo policial. Se, no entanto, não encontrar presentes os requisitos da autoria e materialidade, o MP poderá realizar investigação para tanto ou ainda requisitar a instauração do inquérito policial, nos termos do art. 5º, II do estatuto processual penal.
A união homossexual, apesar de todos os percalços vencidos, foi ganhando espaço e se aninhando em diversas interpretações jurisprudenciais até ser reconhecida pela Justiça. É certa a afirmativa de que o costume de um povo reluta bastante para aceitar e se adaptar às inovações introduzidas por novas tendências ampliativas da família tradicional. Todo fenômeno social exige o tempo de assimilação, maturação e, posteriormente, aprovação popular e legislativa. Apesar de que, como lembra Tito Lívio, nenhuma lei se adapta igualmente bem a todos. A legislação brasileira, paulatinamente, vem fincando novas demarcações de conquistas visando conferir aos homossexuais igualdades incondicionais, inclusão, cidadania sem preconceitos e discriminação, quer seja por gênero quer seja por orientação sexual. Criou-se, desta forma, a união homoafetiva, com caráter de entidade familiar e os direitos decorrentes desse vínculo, distanciando-se do conceito primário de união socioafetiva, com o formato de uma sociedade negocial. A família, nos moldes da interpretação atual, apesar das variadas formas de constituição que permitem um alargamento em sua estrutura originária, conserva ainda a formatação de um núcleo doméstico, quer seja no relacionamento de casais heteroafetivos ou homoafetivos, cabendo, desta forma, na conceituação do artigo 226 da Constituição Federal, vez que já se solidificou o entendimento contrário a uma interpretação reducionista, estabelecendo restrições entre as entidades familiares. Tanto é que a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ, ambas julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, reconheceram plena a igualdade de direitos e deveres dos casais heteroafetivos e homoafetivos. Além do que, ainda na mesma linha de pensamento, o STF erigiu a união homoafetiva à categoria de entidade familiar. Tanto é que reconheceu o direito de homossexual à pensão por morte do parceiro. Uma Instrução Normativa do INSS confere tratamento isonômico na sociedade de fato entre heterossexuais com a estabelecida entre homossexuais. A Receita Federal, por sua vez, admitiu ao casal declarar o companheiro como dependente, para fins de dedução do imposto e muitas outras concessões que até então eram privativas do casal heterossexual. Incontestável que a Lei de Transplantes, antes ainda da vigência do Código Civil, não conferiu legitimidade ao companheiro homossexual para autorizar a doação de órgãos. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária dose de bom senso. Daí surge a necessidade de se fazer a busca pela verdade hermenêutica. Se o operador do Direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus (faça-se justiça ainda que o mundo pereça). Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que até mesmo originariamente não estavam contidas na mens legis. E a ciência hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. "Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma), afirmamos a existência de dois atos: um que dá à norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo".1 Se o falecido, em vida, deixou transparecer ao companheiro que tinha intenção de fazer a doação de seus órgãos, a decisão fica mais fácil. É indiscutível que em razão da convivência estável vários assuntos são discutidos e resolvidos e ninguém mais indicado que o companheiro para poder se manifestar a respeito. Transferindo-se as mesmas regras da união heterossexual para a homossexual, a figura do companheiro surge como legitimada e indiscutível sua titularidade.  É notório que ainda é tímida a veiculação da campanha de esclarecimento de doação de órgãos no Brasil para apontar as providências a serem tomadas pelos familiares. Muitas pessoas imaginam que a doação é ato voluntário do paciente, englobada no princípio da autonomia de sua vontade.  Uma vez que ficam proibidos o apelo público para doação para pessoa determinada, assim como o de arrecadação de fundos para o financiamento de transplante ou enxerto, os órgãos de gestão nacional devem fazer as campanhas de conscientização e esclarecimento a respeito da doação de órgãos, alertando a respeito da legitimação do companheiro homossexual. __________ 1 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo : Atlas, 2006, p. 72.
domingo, 9 de abril de 2023

A passagem da Páscoa

Enquanto o ritual da Semana Santa permanece inabalável, seguindo rigorosamente o protocolo canônico, os cristãos revivem a Paixão de Cristo e comemoram a proposta de uma vida harmoniosa para a humanidade. A Páscoa, pela sua simbologia hebraica, significa "passagem", compreendendo a libertação do povo israelita da escravidão do Egito. Mais especificamente na cerimônia cristã, é a passagem da morte para a vida, retratada na ressurreição de Cristo. Et resurrexit! A espiritualidade faz parte da essência do homem e enriquece sobremaneira a sabedoria humana. Não se trata de um quebra-cabeça a ser destrinchado, pois - apesar de seus momentos de angústia, aflição e desespero - a pessoa professa a fé e a esperança. Neste espaço deixa de transitar pelo seu universo vago e inicia conscientemente um novo ciclo, corrigindo a rota da sua vida. Enquanto as crianças se divertem com os ovos de Páscoa, os adultos firmam propósitos de carregar a esperança e com ela viver em sincronismo de espírito e corações, canalizando esforços para uma vida mais concentrada em objetivos viáveis. Para que a travessia seja mais vibrante recomenda-se que cada um possa mirar o infinito e caminhar de braços abertos para sentir o milagre da vida, tão belo quanto curto e, ao mesmo tempo, pedir colo a Deus em agradecimento à grandiosidade do espírito humano, vocacionado para o infinito e a eternidade. E, nesta linha de pensamento, com a sensibilidade peculiar de cada um, os parentes e amigos trocam cumprimentos voltados para o louvável progresso da humanidade. Quanto maior for a carga positiva dos votos, mais fecunda será a vida. É o efeito bumerangue em que se lançam os melhores cumprimentos que irão alcançar as pessoas destinatárias e, com sobras, atingem também o arremessador. O pouco que for extraído será significativo para cada um e para todos, fortalecendo o espírito corporativo e edificando o altruísmo coletivo. Se o homem tiver a consciência de sua finitude será um construtor da obra duradoura que poderá legar ao próximo, ressuscitando as potencialidades do espírito e não vivendo como pequenos personagens no país imaginário de Lilipute, do romance Viagens de Gulliver. Quando se diz Feliz Páscoa não representa um toque dado com a varinha mágica para canalizar e atingir um fim colimado. É, antes de tudo, um pacto de comprometimento social com apelo de construir a passagem humana pelas melhores veredas, buscando sempre a sintonia do homem com a humanidade e o encaminhamento para a perfeição. Daí que a guerra foge totalmente do padrão humano. Basta ver - e aqui se encontra a verdadeira solidariedade humana - com o início da pandemia, a humanidade, a uma só vontade, debruçou-se para, em tempo recorde, encontrar vacinas para a imunização global. Conseguiu e restabeleceu a saúde dos povos. É uma verdadeira ação fertilizante que corrige a rota existencial, fazendo com que nasça no indivíduo a necessária disposição de renovar-se e reeducar o olhar para apreciar as belas coisas que se apresentam no dia a dia, com estímulos necessários para avançar nesta aventura maravilhosa chamada vida. E, acima de tudo, imbuído do melhor espírito cristão. O renascer é o espírito que brota em cada um para que os novos passos sejam direcionados em busca de uma vida harmônica, em sintonia com o divino.
domingo, 2 de abril de 2023

O aborto e o sigilo médico

Uma mulher foi processada pela prática do crime de aborto perpetrado pela gestante (autoaborto), tendo sido inclusive pronunciada para ser julgada pelo tribunal do júri como incursa na sanção prevista no artigo 124 do Código Penal. Inconformada, a defesa impetrou ordem de habeas corpus junto à 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que, por unanimidade, trancou a referida ação penal em razão da nulidade das provas produzidas no processo.1 Em suscinto relato, a gestante passou mal e procurou auxílio de um hospital, oportunidade em que foi atendida por um médico que, inicialmente, suspeitou que ela tivesse ingerido medicamento abortivo. Daí que, após conclusão posterior, solicitou o concurso da Polícia Militar, além de entregar o prontuário da paciente à autoridade policial para comprovar seu relato e, por tanta informação, foi arrolado como testemunha acusatória na fase processual. O Código de Processo Penal faculta a qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de crime em que caiba ação pública, que é o caso do abortamento, poderá, verbalmente ou por escrito, comunicar o fato à autoridade policial, que irá instaurar inquérito, se procedente a notitia criminis. Assim, a vizinha da gestante teria legitimidade para fazer a narrativa do fato delituoso à autoridade. O médico que atendeu a gestante no hospital, não. A relação médico-paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. No instante em que a paciente foi atendida e que o médico constatou a presença de medicamento abortivo, tal fato, por si só, elege o profissional como depositário e guardador de seu segredo. Tais informações são imprescindíveis e devem ser utilizadas somente para providências em favor da paciente, permitindo a realização de exames clínicos, obstétricos e complementares, indicados para o caso. Tamanha é a importância do sigilo médico que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que o paciente tenha falecido, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. A preservação da confiança da paciente que procurou um atendimento médico de urgência, mesmo que o fato gerador seja considerado ilícito, jamais poderia ser quebrada, por se tratar de circunstância de caráter íntimo e direcionada para uma prestação de serviço mais eficiente e não pode provocar, em contrapartida, a exposição pública e submeter a pessoa que foi atendida a uma investigação penal. O Código de Ética Médica (resolução CFM 2217/2018), que contém as normas que devem ser seguidas pelos profissionais, em seu artigo 73 é taxativo ao afirmar que é vedado ao médico: "Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente." Tanto é que o Código Penal, em seu artigo 154, erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional da saúde, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Preserva a vida privada e a intimidade do paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão, nos moldes do peace of mind (paz de espírito) do direito americano. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada da paciente, acarretando não só a inconveniente investigação policial e posterior persecução judicial, como, também, a intranquilidade do espírito pela intromissão alheia. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 26 de março de 2023

Quando é impossível a vida extrauterina

A 11ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, em votação unânime, autorizou a interrupção de uma gravidez em que se comprovou com laudo médico a má formação fetal, acarretando, consequentemente, a inviabilidade da vida extrauterina. Em primeiro grau, em decisão proferida em comarca do interior de São Paulo, foi negada a pretensão da gestante. O relator, desembargador Edison Tetsuzo Namba, foi incisivo em decidir que o questionamento não possibilita a aplicação do rol permissivo de abortamento previsto no artigo 128 do Código Penal, uma vez que referido tipo penal pressupõe a potencialidade de vida fora do útero, enquanto, pelo laudo médico apresentado, foi apontada a total impossibilidade de vida extrauterina. Feita tal leitura jurídica, concluiu pela aplicação, por analogia, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), já julgada pelo Supremo Tribunal Federal, conforme ponderação feita pelo arguto relator: No entanto, o caso é análogo ao referido julgado, no tocante à comprovada inviabilidade de vida longe do ventre materno, uma vez que as malformações do feto gestado pela paciente, agnesia bilateral (ausência de ambos os rins) e anidrâmnio (ausência do líquido amniótico), são incompatíveis à possibilidade de sobrevida.1 O tema é não só de alta indagação jurídica, mas também de interesse bioético. Busca-se, na realidade, conhecer o status do embrião na legislação brasileira. O embrião, como é sabido, carrega a tutela protetiva do princípio da dignidade da pessoa humana, dogma constitucional irretocável que, pela melhor hermenêutica, encarta a mais lata interpretação possível, embora não seja ele ainda considerado pessoa humana. Mas, o Código Civil, em seu artigo 2º, é taxativo em afirmar: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Nesta linha de raciocínio fica acentuado que o embrião, além de carregar a linha genética da família, compreendendo as características físicas e eventuais doenças, representa uma nova individualidade, com identidade sui generis norteada pela capacidade jurídica do nascituro. No Brasil há a proposta legislativa traduzida pelo PL 478, que tramita desde 2007, denominada Estatuto do Nascituro e, quando for levada a debate perante o Congresso Nacional, certamente provocará calorosas discussões a respeito da natureza jurídica do embrião e incitará inúmeras divergências religiosas, médicas, jurídicas, bioéticas e com outras disciplinas afinadas com a questão. No caso ora debatido o que se discute é se a gestante de feto com malformação congênita pode se valer da antecipação terapêutica do parto. A resposta imediata sugere que, em havendo demonstrativo probatório e inequívoco da deformidade que inviabiliza a vida extrauterina e, atendida a autonomia da gestante e do seu parceiro, a via escolhida vem revestida da legalidade para interromper a gravidez, independentemente do tempo de gestação. É interessante frisar que tal previsão foi incorporada no artigo 128, inciso III, do Anteprojeto do Código Penal em razão da decisão da Corte Maior, que permite o procedimento em caso de comprovação de feto anencefálico, ainda não incorporada ao estatuto penal, autoriza mais uma causa de abortamento, in verbis: Se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos atestado por dois médicos". O importante é que haja spes vitae, quer dizer, nascer com expectativa de vida, observando que às causas permissivas consistentes em salvar a vida da gestante e quando a gravidez for proveniente de estupro, não se aplicam tal exigência. __________ 1 TJ-SP autoriza interrupção de gravidez de feto sem chance de vida. Conjur.
A morte, pelo menos nos últimos tempos em que se quebrou a barreira de resistência a tal tema, passou a frequentar as conversas familiares de forma até natural. Nessa progressão vem se apresentando como uma conceituação diferenciada e tanto progrediu que tangenciou outro tema conexo, que é a doação de órgãos post mortem de parentes, visto que pelo preceito legal, são os únicos legitimados para tal mister. E é sobre o sentimento altruísta dos familiares, consistente em doar os órgãos e tecidos humanos, que se projeta este artigo. É muito difícil para o familiar decidir a respeito da doação de órgãos de um ente que faleceu, às vezes prematuramente. Em primeiro lugar, porque nunca pensou sobre tal possibilidade e, em segundo, porque carece de informações a respeito do ato. Na realidade, o sentimento que aflora de imediato é para que fique intocável o cadáver, de tal forma que ele represente sempre a imagem que sempre ostentou. Daí o dilema crucial em autorizar a retirada de órgãos. Se o familiar, em vida, deixou transparecer que tinha intenção de fazer a doação de seus órgãos, a decisão fica mais fácil. Os responsáveis pela autorização não se inibirão e, prontamente, assinarão o termo autorizativo. Do contrário, ocorrerá uma reunião familiar para decidir a respeito da doação. É sempre um momento difícil porque concorre com o evento morte, em que, por ironia, o paciente ainda registra batimento cardíaco, porém com a decretação da morte encefálica. Dá-se a impressão que é um apressamento da morte, uma modalidade de eutanásia. Na verdade, é a oportunidade única para se decidir a respeito da doação, pois o paciente já expirou em razão da falência do tronco cerebral. A vida se esvaiu e no leito há um corpo movido a uma propulsão biológica conduzida, por tempo limitado. A morte determina o divórcio inevitável da pessoa e da sua vida biológica. Morre a pessoa e assume o cadáver.  Nesta modalidade de doação a morte ocorre com a falência da atividade encefálica. Distante já o conceito de que a morte se dava com a parada dos batimentos cardíacos. Os romanos, por suas características sentimentais, cantavam o coração como o símbolo da vida e do amor, enquanto que os gregos, mais racionais, elegiam o cérebro como o administrador geral do corpo humano. E com razão eles. A volição, as ordens, a manipulação de todo sistema nervoso, dos órgãos sensoriais, são ditadas pelo cérebro. Denominavam nous o espírito infinito e independente que representava a inteligência, a mente ou o intelecto, figurando como governador dos seres viventes. No Brasil, em razão do alto índice de criminalidade urbana, compreendendo aí também as mortes provenientes do trânsito, é representativo o número de casos de morte encefálica, mas é decepcionante o número de doadores. Basta ver que o artigo 4.º da lei 9.434/97, que trata da doação de órgãos e tecidos humanos, admitia a possibilidade da doação presumida de órgãos e tecidos, bastando o cidadão fazer constar da sua Carteira Nacional de Habilitação se era ou não doador. E, quantas pessoas, mal informadas e temerosas, não se declararam doadoras. A lei 10.211/2001 alterou esta opção e prevalece agora somente a vontade do cônjuge ou parente até o segundo grau. Mas, mesmo assim, a população está carente de informação a respeito. Temos a lei que possibilita a doação dos órgãos, mas seu mecanismo não atingiu o destinatário, muito menos seu espírito de solidariedade. Pois bem. Decretada a morte encefálica pelos exames neurológicos realizados por dois médicos não participantes das equipes de captação ou transplante, sendo um deles neurologista ou neurocirurgião, é feita a comunicação à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Estado, que indicará o nome do receptor, devidamente cadastrado. Tal procedimento, conhecido por transplante ou transplantação é o ato cirúrgico pelo qual se insere num organismo denominado hospedeiro, um tecido ou órgão, colhido de um doador e evita a indicação de beneficiários por parte dos familiares. A doação, em sua essência, é ato que transcende a generosidade humana e pode ocorrer, por ironia do destino, que o órgão venha a ser transplantado em um inimigo do doador. No caso de morte de jovens se os pais concordarem, ocorrerá a retirada do coração, pâncreas, rins, fígado, pulmões, córnea e outros e a doação será feita a pessoas até então desconhecidas. O ato é nobre e se sustenta como referência de solidariedade a ser seguido. O corpo humano é repositório de órgãos que conseguem realizar a substituição com considerável margem de sucesso, proporcionando ao homem, desta feita, uma melhor qualidade de vida. O homem, ser pensante, pode ser lobo do próprio homem, mas o cadáver se apresenta como oferenda a quem necessitar de seus órgãos.
domingo, 12 de março de 2023

Lei Maria da Penha: sempre atual

No mês de março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher,  cabe aqui breve comentário a respeito da lei 11.340/06, conhecida por Maria da Penha que, inegavelmente, representa um relevante marco na legislação brasileira. Quando aprovada em 2006, de forma corajosa e até mesmo inédita em comparação com as demais, trazia em seu bojo um conjunto de ações e condutas voltadas contra a violência doméstica praticada no âmbito das relações familiares, com a entronização da mulher como a tutela específica, atendendo, desta forma, o regramento constitucional previsto no artigo 226 § 8º da Constituição Federal. Uma das propostas no conteúdo original da lei consistiu em restabelecer o conceito de lar. Até então as referências eram voltadas para a casa, residência, domicílio, moradia, indicativos de lugares físicos utilizados mais comumente na localização de pessoas. Lar vai muito além. É o território onde se abrigam pessoas que se consideram aparentadas, unidas por laços naturais, legais ou por afinidade, mas que têm em comum o respeito mútuo e a convivência harmônica. Não é a delimitação física, com estreitas divisórias, orientadas por nomes de ruas e números. É, sim, um espaço de convivência, amplo o suficiente para suportar o desenvolvimento natural e espiritual de seus moradores. É o templo sagrado (my home is my temple) onde serão edificados os sentimentos, a dignidade e o caráter de seus moradores que, posteriormente, poderão repassá-los à comunidade maior, que é a sociedade em que se vive. A lei em comento - atendendo a hermenêutica mais condizente com a realidade, ao contrário das demais - vem sendo atualizada e aprimorada com o intuito de fechar o círculo protetivo às vítimas que se encontram em situação de violência doméstica e familiar, compreendendo não só a violência física como também a psicológica. Resta evidente que a Lei Maria da Penha ainda continua gerando novos fatos sociais e produzindo consequências por vezes inusitadas, que propiciarão novas intervenções dos Poderes Legislativo e Judiciário para avaliar sua correta e eficiente incidência. Dificilmente uma lei conseguirá tamanha façanha. E o importante é que os novos regramentos que emendaram a lei original vão galgando pontos de conflitos até então desconhecidos e apresentando as soluções mais adequadas. Cabe aqui a observação pertinente no sentido de que os textos legais produzidos e inseridos na Lei Maria da Penha, além de mais ricos e adequados, são lidos com mais atrativos e, principalmente, em alguns casos ficam evidenciadas a existência de direitos difusos latentes. Daí que se  permite uma acomodação interpretativa satisfatória, sempre em favor da proteção à mulher no âmbito doméstico. Nesta esteira protetiva, o Governador de São Paulo sancionou a recente lei 17.626/2023 - do projeto apresentado pelo Deputado Estadual Marcio Nakashima-PDT - que dispõe sobre o pagamento de auxílio aluguel às mulheres vítimas de violência doméstica no Estado. O valor, no entanto, somente será definito após a regulamentação por parte do Poder Executivo. A novatio legis pretende alcançar as mulheres que, por conta da violência, abandonaram o lar e a ele não podem retornar por medo do agressor. Cria-se, desta forma, um auxílio que será destinado à mulher que comprovar sua renda familiar anterior à separação de até dois salários mínimos, ter em seu favor medida judicial protetiva expedida e comprovar a situação de vulnerabilidade, de forma a não conseguir fazer frente às despesas de moradia e alimentação, observando que a mulher que possuir dois ou mais filhos será priorizada na concessão do benefício. O auxílio pode ser concedido independentemente de outros benefícios sociais já conferidos por políticas públicas pertinentes. Tal medida representa, não só a proteção da mulher e de sua prole, como também, restabelece a intenção originária da lei em conferir-lhe o abrigo de um lar.
Machado de Assis, com sua sensibilidade descritiva aguçada, mestre da observação psicológica, romântico e parnasiano-realista, querendo satisfazer uma curiosidade a respeito da influência do sangue no ser humano, fez uma incursão na área do xenotransplante. Pela experiência narrada, Stroibus e Pítias, dois amigos filósofos e cientistas, descobriram que se a pessoa ingerir o sangue do rato irá tornar-se ratoneiro, da coruja, sábia, da aranha, arquiteta, da andorinha, viajante, da rola, fidelidade conjugal, do pavão, vaidade. Tomaram o sangue de rato. Foram presos na corte de Ptolomeu e condenados à morte por seguidos furtos de raras obras literárias da Biblioteca de Alexandria.1 É certo que a ficção científica nunca foi o campo preferido do Bruxo do Cosme Velho, mas faz ver que o homem sempre se interessou por aventuras biológicas relacionadas com o sangue. Tamanha verdade que a própria ciência médica entabulou os procedimentos envolvendo transplantes sanguíneos com inquestionáveis sucessos para a saúde humana. E assim é possível caracterizar o homem como proprietário de um imenso latifúndio chamado corpo humano e, ao mesmo tempo em que representa um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcionar a continuidade da humanidade. A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES) realiza a campanha Fevereiro Laranja, que tem com referência o Instituto de Câncer do Estado (ICESP), a respeito da conscientização das leucemias e a doação de medula óssea. Referida doação é sempre a título gratuito, em razão do disposto no artigo 199 § 4.º da Constituição Federal e da lei 9.434/97, em seu art. 1º. Percebe-se, pelo relato legislativo, que a pessoa não divide com o Estado a legitimidade de doar sua medula óssea e pode fazê-lo a quem lhe aprouver, prevalecendo sua autonomia. Observa-se que a solidariedade do povo brasileiro vem crescendo anualmente e, de forma espetacular, o número de pessoas cadastradas como doadoras de medula óssea. Em pouco tempo o Brasil atingiu patamar mundial relevante e é detentor de lugar de destaque no banco de doadores de medula óssea. A medula óssea é um tecido gelatinoso encontrado no interior dos ossos, local onde se alojam as células-tronco, responsáveis pela produção das células sanguíneas. Geralmente o doador é procurado na família. Se a busca não der resultado positivo, faz-se a consulta ao Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME) que, por sua vez, age articulado com o cadastro mundial, sendo as buscas realizadas simultaneamente no Brasil e nos bancos internacionais. Assim, quanto maior o número de pessoas inscritas, maior a possibilidade de se encontrar doador compatível. A margem de probabilidade de encontrar doador 100% compatível é muito difícil, pois depende em grande parte da miscigenação, que no Brasil é muito diversificada. Porém, com o surgimento de novas técnicas sobre histocompatibilidade, é possível o transplante com doadores parcialmente compatíveis. O Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea, órgão ligado ao Sistema Único de Saúde (SUS) e de administração direta do Instituto do Câncer (INCA), é responsável pela captação e identificação dos doadores, buscando, cada vez mais, ampliar o número de voluntários. O interessado deve procurar pelo hemocentro da cidade em que reside ou da região, ter entre 18 e 35 anos de idade e gozar de boa saúde. Antes a idade máxima era de 55 anos, mas a portaria MS- SAES 685/2021, reduziu para 35 anos, observando que as pessoas já cadastradas antes de junho de 2021, não são atingidas pela nova faixa etária. No ato é coletada uma pequena quantidade de sangue para a correta classificação. O material coletado irá determinar as características genéticas que são exigidas para a compatibilidade entre doador e receptor, por meio de um sistema que realiza o cruzamento de informações entre ambos, visando à realização do transplante. Em caso de compatibilidade, o doador será comunicado e, se concordar, será submetido a exames complementares. Daí a necessidade de se fazer a atualização constante do cadastro. Se o doador for considerado compatível com algum paciente que necessita do transplante, será convidado para participar do procedimento, que terá lugar em centro cirúrgico, após criteriosa avaliação médica. O ato médico é invasivo e se resume na retirada do sangue do interior dos ossos da bacia, mediante punções e, na sequência, faz-se a substituição da medula óssea doente pelas células normais coletadas.  A recomposição da medula se dá em menos de um mês aproximadamente, sendo que a pessoa pode doar mais de uma vez, respeitando o prazo de seis meses para nova retirada. Quando se tratar de doação feita por adolescente, é exigido um termo de autorização assinado por um dos pais ou pelo responsável legal. É, sem dúvida, um ato de indizível solidariedade, revelador de um sentimento humanitário digno de todo respeito e admiração, demonstrando que a natureza humana proporciona o bem-estar àquele que é saudável e acode o vulnerável com os recursos do corpo humano alheio. Tamanha doação não permite que a pessoa possa se cadastrar para servir um paciente específico, com exceção do procedimento aparentado, mantendo-se preferencialmente o anonimato entre o doador e o receptor. Na realidade a doação é um demonstrativo inequívoco da dignidade da pessoa humana, assim consagrado constitucionalmente, e representa um ato de comunhão, de alteridade, levando-se em consideração que a natureza humana tem como sustentáculo o altruísmo. O sangue que circula no corpo ou se aloja na medula óssea de uma pessoa, tem compatibilidade para se transferir para outro corpo e restaurar uma vida atingida por doenças que afetam as células, como as leucemias. É, por um lado, uma doação representando um gesto de extrema solidariedade, com rápida reconstituição do material doado e, por outro, a única chance de vida para o doente receptor. __________ 1 Conto Alexandrino, escrito em 1884. 
domingo, 12 de fevereiro de 2023

A inteligência humana e a artificial

O homem, pelo seu próprio comportamento e, em razão da inteligência de que é dotado, carrega uma característica investigativa e pesquisadora voltada para conhecer os mistérios que desafiam e rondam seu mundo exterior. Quer penetrar em todos os segredos da natureza, dominar os mares, ares, montanhas, árvores, animais e tudo mais, numa verdadeira operação de cabo de guerra em que, forçosamente, devem prevalecer sua conquista e superioridade. Mas, nem sempre consegue atingir seus objetivos. Nada pode fazer diante de um terremoto, de um tsunami, de uma tempestade, de uma erupção vulcânica, a não ser, preventivamente, precaver-se diante da iminência do perigo. A progressão científica caminha mais rapidamente do que a própria necessidade do homem, que é o destinatário final de todo o processo evolutivo. Daí que há necessidade de perscrutar se as novas tecnologias apontadas são necessárias, convenientes e oportunas para que a humanidade possa atingir seu postulado do bene vivere. Assim é, basta pausar e refletir, que as máquinas, graças à tecnologia dominada pelos humanos, foram evoluindo de tal forma que ingressaram no dia a dia das pessoas e passaram a fazer parte do comportamento humano, além de, devidamente programadas em verdadeiro instinto de imitação, começaram a executar tarefas desde as mais simples até as mais complexas, com o intuito de facilitar a vida humana. É a inteligência artificial que vem ocupando seu espaço com a tendência de ampliar cada vez mais seu rol de tarefas.  Quando se fala em inteligência artificial dá-se a impressão que o tema pertence a mais distante ficção científica, justamente por incorporar um mundo ainda não experimentado.  Mark Twain tinha razão quando afirmava que a principal diferença entre a ficção e realidade é que a ficção tinha que ter um conteúdo de credibilidade, enquanto a realidade gozava de pleno crédito.  Mas a realidade faz ver que já convivemos com a inteligência artificial, que apenas iniciou seus primeiros passos com algoritmos altamente inteligentes com suporte racional suficiente para resolver, com perfeição, os mais intrincados problemas que o ser humano demandaria muito tempo para equacioná-los, sem contar, ainda, com a grande margem de erros. A inteligência do homem não nasce pronta, vai se criando com o tempo pelos métodos convencionais de ensino e vai se alimentando da observação de tudo que vê ao seu redor, constituindo-se na soma de experiências de inúmeras áreas do saber, trilhando, desta forma, as chamadas inteligências múltiplas, percorrendo o caminho que leva à sabedoria. Apesar de a lucubração científica parecer distante, deve-se, desde já, começar a formatar raciocínios diferentes e, principalmente, coadjuvados por algoritmos de última geração, encontrar uma solução que seja mais  adequada para a convivência humana. As nações, na realidade, se preocupam em disputar a primazia e o poderio do progresso humano na busca de um super-homem, não se importando o bastante com o bem-estar da pessoa. Ocorre que, pela limitação do homem, até então não vencida pela ciência, o foco é utilizar uma máquina e programá-la para executar tarefas de várias ordens, copiando, no que for possível, os comportamentos humanos. Desta forma, receberá ela as atividades cognitivas semelhantes às do cérebro humano, que é formado por dois hemisférios bem definidos. Tanto é que, com tal pensamento, foi criado o computador "Deep Blue", com especialidade no jogo de xadrez, que em 1997 venceu Gary Kasparov, campeão mundial da categoria. Assim, as novas máquinas passaram a executar tarefas para as quais foram programadas. Com o aperfeiçoamento que lhes confere o homem e com a introdução dos modelos conexionistas, que copia o funcionamento do cérebro humano, fazendo a interação adequada com vieses cognitivos especializados para realizar determinadas tarefas, podem, muitas vezes, em poucos segundos, resolver problemas que o homem consumiria horas ou dias. Nesta linha de raciocínio, a máquina pode traduzir um difícil e complexo texto que causaria aflição além de enorme grau de dificuldade ao mais experiente profissional, porém, não irá compreender o seu significado. "As máquinas, esclarece eticamente De Masi, por mais sofisticadas e inteligentes que sejam, não poderão jamais substituir o homem nas atividades criativas"1. O avanço incansável na área da inteligência artificial, que cada vez amplia mais as interrogações a respeito de suas fronteiras, causa certa inquietação à humanidade. Pelo que se percebe e se anuncia, em pouco tempo, o corpo humano será dotado de sensores para, numa rápida leitura biométrica, fornecer informações a respeito de todos os estímulos, emoções, sensações que passam no interior da pessoa, fazendo revelações até mesmo desconhecidas pelo próprio ser humano. Sem falar ainda dos carros autônomos que transitarão pelas ruas sem a convencional figura do motorista; os drones que riscarão os céus para se incumbirem de entregas de produtos; os robôs que substituirão os serviçais e outros mais. Sem cogitar, ainda, da criação da memória afetiva para a máquina, que passa a ser programada para uma superinteligência artificial e, a partir daí, poderia disputar espaços com seu criador, destronando-o com facilidade, vindo a assumir o controle do universo. Os direitos fundamentais, que hoje são proclamados na Constituição Federal, deverão ser revistos porque, com a nova dimensão da Inteligência Artificial, a nascente tecnologia deverá tutelar os "neurodireitos", impedindo que a mente humana seja acessada e até mesmo manipulada, acarretando sérias consequências e prejuízos à pessoa. __________ 1 De Masi, Domenico. O ócio criativo - Entrevista a Maria Serena Palieri. Tradução de Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p. 107.
domingo, 5 de fevereiro de 2023

São Paulo e o uso medicinal da maconha

O governador de São Paulo, tendo em vista os parâmetros dimensionados para a saúde pública, sancionou a lei nº 17.618/2023, que libera a distribuição pelas unidades de saúde pública e privada conveniadas ao SUS (Sistema Único de Saúde), os medicamentos derivados da cannabis sativa.  Trata-se de fornecimento gratuito de medicamentos de derivado vegetal à base de canabidiol, em associação com outras substâncias canabinóides, incluindo o tetrahidrocanabidiol. O tema, que há muito tempo vem gravitando entre as autoridades da vigilância sanitária e os tribunais, vem sendo flexibilizado com permissões para a importação de remédios proveniente do canabidiol. A decisão governamental reflete rigorosamente a realidade científica atual que visa encontrar drogas e tratamentos recomendáveis, compatíveis e que carreguem benefícios para a humanidade. Percebe-se, após uma longa peregrinação, tanto pela via administrativa como judicial, que há uma tendência já exteriorizada para aprovar e liberar os produtos à base de canabis para combater determinadas doenças. A ciência, pelas suas regras investigativas e protocolos de pesquisas científicas rigorosamente sérias e recomendadas, não só apontou os benefícios como também recomendou a continuidade dos estudos com o canabidiol, por ficar evidenciado o benefício para o paciente. Os estudos até então realizados e muitos ainda em fase de desenvolvimento, demonstram benefícios para crianças e adolescentes diagnosticados com epilepsia, além de doenças neurológicas em adultos, como Alzheimer, Parkinson, esclerose múltipla, convulsões, depressão, alguns tipos de câncer e outras. Pode-se dizer, portanto, que o canabidiol tenha já atingido um patamar de segurança e tolerabilidade, com a recomendação de que sejam explorados outros avanços para a preservação da saúde humana. Nada mais justo do que acelerar o ritmo das pesquisas em busca de novas e melhores alternativas, com o intuito de aperfeiçoar a existente e proporcionar um plus, mesmo que seja de pouco ganho, mas para que possa abrir espaços para novas descobertas. Muitos países, principalmente aqueles que desenvolvem linhas de pesquisa nesta área, liberaram o uso medicinal da maconha, mormente na redução das crises convulsivas, com razoável margem de segurança e boa tolerabilidade, sem relatos de efeitos alucinógenos ou psicóticos. A novatio legis estadual, compreendida no âmbito de política pública de fornecimento de medicamentos de derivado à base de canabidiol, abrange a realização de estudos e referências internacionais que comprovadamente tenham condições de diminuir as consequências clínicas e sociais das patologias indicadas. Antes, porém, prevê a lei o fornecimento de informações para a comunidade a respeito do uso da medicina canábica, por meio de palestras, fóruns, simpósios, cursos de capacitação de gestores, assim como realizar parcerias público-privadas com entidades, de preferência sem fins lucrativos. É de se frisar que será da responsabilidade da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo definir as competências em cada nível de atuação. Pelos estudos científicos apresentados até o presente, tudo indica que a utilização dos medicamentos referidos vem conseguindo bons e satisfatórios resultados, necessitando, é claro, de pesquisas mais aprofundadas e que continuem demonstrando um imensurável ganho para a saúde humana. A ciência da Bioética ostenta o princípio da beneficência, entendido como sendo aquele que, dentre as opções apresentadas, seja apontada a que se traduz em maior ganho e benefício para o paciente. Primum non nocere significa que, em primeiro lugar, apresenta-se a proposta de cuidar bem, com zelo necessário, sem causar dano ao paciente. Maximizar os benefícios e minimizar os prováveis danos. Malum non facere significa que antes e, acima de tudo, todo o esforço da ciência deve ser concentrado em proporcionar o bem ao paciente, garantindo-lhe a segurança e a eficácia de um novo medicamento.
domingo, 29 de janeiro de 2023

Os pais e o calendário vacinal dos filhos

Percebe-se, até com muita facilidade, inclusive por meio das conversas habituais, que nos últimos anos ocorreu um considerável declínio no índice de imunização da população brasileira, compreendendo crianças e adultos. A situação se torna preocupante porque muitas doenças, que eram consideradas erradicadas, ganharam novo espaço e vão se infiltrando fazendo novas vítimas. Ficou mais que evidenciado durante o período pandêmico que, quando ocorreu o avanço da vacinação proporcionando uma cobertura mais ampla à população, despencaram de forma gradativa os índices de infecção e de mortalidade, atingindo um patamar de segurança com a alvissareira notícia da decretação do fim do status de pandemia da doença. Apesar do apelo das autoridades sanitárias - fazendo ver que as vacinas não se concentram unicamente no combate à pandemia da Covid-19 e suas variantes - e sim em muitas outras recomendadas pelo Plano Nacional de Imunização (PNI), criado em 1973, voltadas para a erradicação de doenças infectocontagiosas e imunoprevisíveis, com fornecimento gratuito, a cobertura vacinal vem experimentando considerável declínio. A vacina contra a poliomielite, a título de exemplo, conhecida também como paralisia infantil, é considerada doença contagiosa pela transmissão de pessoa a pessoa e acarreta sequelas gravíssimas, principalmente motoras pela infecção da medula e cérebro, sem qualquer chance de cura, já chegou a atingir a meta de 95% da população alvo e vem se desgastando ano após ano. Uma vacina, como é sabido, representa o resultado de longos anos de estudos e pesquisas obedecendo rigorosamente os protocolos científicos internacionais, tudo para atingir a almejada segurança e eficácia. A específica para o combate à poliomielite, em razão dos vários anos de imunização, já foi incorporada ao calendário vacinal e à vida dos brasileiros, pelos excelentes resultados alcançados. O grupo contrário à vacinação não encontra qualquer amparo científico que tenha sido comprovado e muito menos a adesão da Organização Mundial da Saúde, que já se manifestou reiteradas vezes a respeito da eficácia das vacinas e que considera o movimento como uma das ameaças mundiais à saúde. A vacinação, em razão do comando constitucional previsto no artigo 196 - que estabelece o dever de proteção e prevenção do gestor público - é uma questão que afeta diretamente a saúde pública, sinalizada por políticas adequadas visando à erradicação das doenças infectocontagiosas. Muitos pais, em razão de informações errôneas e equivocadas, deixam de realizar a cobertura vacinal dos filhos, em evidente flagrante de descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar. Ora, a rejeição vacinal por conta dos pais ou responsáveis legais, não encontra qualquer escusa legal. Pelo contrário, reflete um ato de irresponsabilidade e total falta de zelo pelos filhos, tendo em vista que o imunizante é recomendado e oferecido em várias unidades de saúde. Nenhuma justificativa, desta forma, socorre os responsáveis pelas crianças, que poderão, em um futuro próximo, em razão do dinamismo jurídico, ser acionados judicialmente pelos próprios filhos. Talvez o movimento antivacinal, que vem prosperando a cada ano, tenha desestimulado os pais a levarem seus filhos para a recomendada imunização, apesar da previsão imposta no § 1º do artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no sentido de ser obrigatória a vacinação dos menores de idade quando recomendada apela autoridade sanitária. Em caso de descumprimento, será imposta multa de três a vinte salários de referência, aplicada em dobro em caso de reincidência, consoante o artigo 249 da legislação menorista.  Assim, as autoridades da saúde, após elegerem as melhores políticas públicas para o país, elencando um rol de vacinas recomendadas para as diversas idades das crianças, provocaram uma vinculação de obrigatoriedade por parte dos responsáveis. Tanto é que, para o controle do Estado e dos pais, criou-se a caderneta de vacinação, exigida em muitas oportunidades. A não imunização, pela desídia dos genitores, não prejudica somente os filhos do casal. Exerce uma expansão difusa, abrangendo e colocando em risco toda uma comunidade. O filho não é propriedade exclusiva dos pais, como acontecia no Direito Romano que conferia ao poder familiar o direito de vida e morte sobre eles (jus vitae et necis). A autonomia de vontade dos pais sofre restrição porque o bem que está em jogo tem dupla proteção: uma, a individual, direcionada à saúde do próprio filho, conferindo a ele os cuidados necessários; a outra, de caráter difuso, é a voltada para a própria coletividade, que é o bem maior e o objetivo da realização da saúde pública. Pairando colidência entre o Estado e o indivíduo, deve prevalecer os interesses do ente que exerce maior cobertura protetiva. A vontade dos responsáveis não atinge a prole quando se tratar de tema em que há a obrigação legal cogente. Assim, por ser um dever inerente ao poder familiar, de nenhuma valia a escusa dos pais. Pode até ser que a recusa dos genitores tenha alguma fundamentação contrária à imunização, porém a decisão do casal não é suficiente para afrontar o comprometimento familiar erigido no texto legal. Em razão desta determinação legal, os pais devem tomar todas as providências e praticar as ações necessárias para conferir a efetivação dos direitos referentes à saúde da prole.
domingo, 22 de janeiro de 2023

O baixo índice dos transplantes

Alguns temas são até considerados rotineiros e frequentam constantemente o noticiário relacionado com a saúde. Um deles, a doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante - não só pela nobre solidariedade compartilhada com terceira pessoa desconhecida, como também pelo benefício imensurável do procedimento - merece, mais uma vez, destaque especial. Pode-se afirmar que a doação, em sua essência, é um ato que transcende a dignidade humana. É indiscutível a importância da doação de órgãos para fins de transplante. Tanto é que, desde 1997, a lei 9.434, regulamentada pelo decreto 9175/2017, rege a matéria. Pinçando no estatuto legal as determinações mais frequentes, pode-se dizer que a doação de órgãos em vida pode ocorrer, desde que haja o consentimento de pessoa capaz ou, não o sendo, de seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo), ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou transplantes em cônjuge e parentes até o quarto grau. Em caso de qualquer outra pessoa, dependerá de autorização judicial, que será dispensada com relação à medula óssea. Sempre a título gratuito, em razão do disposto no artigo 199, § 4º da Constituição Federal e da lei 9.434/97, em seu artigo 1º. Se, no entanto, a pessoa doadora for juridicamente incapaz - mesmo após ter sido constatada a compatibilidade imunológica nos casos de transplante de medula óssea - além da autorização dos pais ou responsáveis, exige-se a autorização judicial, que se apresenta como um plus autorizador do ato. A doação post mortem será realizada com a autorização do cônjuge ou parente capaz na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo-se, para tanto, que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente. Percebe-se claramente que, em vida, o doador ou seu responsável, é o definidor a respeito da doação de órgãos. De nenhuma valia a assinatura de documento público ou privado com a intenção de manifestar a intenção de doação de órgãos após a morte. A legitimidade, para tanto, desloca-se para o cônjuge ou parentes, circunstância que demonstra severa limitação ao princípio da autonomia da pessoa. Com a decretação da pandemia - responsável por inúmeras limitações em todas as áreas de atuação do ser humano - inevitável fenômeno ocorreu no sentido de afetar os excelentes índices atingidos na realização de inúmeros transplantes até então. A redução fez cair drasticamente a oferta de órgãos pois os parentes, quando consultados no período pandêmico, não demonstravam interesse na doação, além do que os candidatos ao procedimento postergaram para outro momento em razão da inevitável diminuição de leitos hospitalares para acolhê-los. É certo e o momento é oportuno para retomar a conscientização da comunidade a respeito da doação de órgãos. A título de curiosidade e revelando constante preocupação, no período pandêmico ocorreu uma redução mundial de 16% nos transplantes. No Brasil atingiu 46% e no Estado de São Paulo, o mais populoso do país, comparando o período de 2019 com 2020, 36%. Desta forma, deve ser incrementada a comunicação entre os familiares, fontes inequívocas e reveladoras da vontade de doar, facilitando a decisão por parte das pessoas legitimadas a autorizar a doação post mortem.
A justiça, após a tramitação regular do processo, determinou que uma empresa aérea pagasse a importância de 20 mil - a título de reparação de dano moral - a passageiro portador de deficiência visual que foi proibido de embarcar com seu cão-guia em um voo regular no Brasil. Em razão da proibição, o usuário embarcou sozinho e ficou durante quatro dias sem o auxílio do animal.1 Aparentemente pode causar estranheza a negativa da companhia aérea porque, em condições normais, o animal pode viajar na cabine da aeronave, desde que seja considerado de pequeno porte e transportado com segurança no interior do kennel apropriado, acompanhado sempre de um responsável adulto. No caso relatado acima a situação é totalmente diferente e merece uma abordagem mais dilatada em razão da peculiaridade. O portador de deficiência visual no Brasil, compreendendo a cegueira e a baixa visão, passa por sérias dificuldades na locomoção em nossas cidades, muitas delas antigas, sem sinalização sonora ou no solo, com inúmeros obstáculos arquitetônicos que dificultam sua inclusão social. Daí as novas vias e logradouros públicos, em virtude das recentes legislações, pelo menos nos locais de grande circulação, vão implantando adaptações que venham melhorar a acuidade visual. Muitas vezes o portador de deficiência visual opta pelo uso da bengala, mas as calçadas irregulares, os degraus imprevisíveis e até mesmo os obstáculos de maior porte, como um orelhão, por exemplo, não são alcançados pelo tatear da bengala. E, inevitavelmente, ocorre a queda com graves ferimentos ou quebraduras. A relevância do cão-guia, isento de agressividade, de qualquer sexo, de porte adequado, treinado com o fim exclusivo de guiar pessoas com anomalia visual, ganhou tanto interesse que a lei 11.126, de 27/7/2005, regulamentada pelo decreto 5.904, de 21/9/2006, conferiu o direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de cão-guia. E, no caso específico em comento, o usuário preencheu os requisitos exigidos pela resolução 280/13 da ANAC, para a realização do check-in do animal. Isto quer dizer, em consonância com a cidadania plena apregoada pela Constituição Federal, que a pessoa usuária de cão-guia tem o direito de ingressar e permanecer com o animal nos veículos, compreendendo todas as modalidades de transporte interestadual e internacional com origem no território brasileiro, e nos estabelecimentos públicos e privados de uso coletivo. Nada mais é do que a celebração do princípio da isonomia. Muitas vezes este direito é contestado com infringência frontal à lei, principalmente por comerciantes da área de alimentação que desconhecem a determinação legal, ou mesmo a conhecendo, com receio de causar certo constrangimento aos seus clientes, permitem somente a entrada do portador de deficiência visual. Esquecem, no entanto, que o animal está executando um trabalho para o qual foi habilmente preparado e eventual proibição ou separação constitui discriminação e importa em violação dos direitos humanos, passível de danos materiais e morais fixados em ação própria perante o Judiciário, de acordo com o regramento civil. Nossos Tribunais, de todas as instâncias, de forma reiterada, vêm decidindo que a imposição de dificuldade de acesso a cão-guia nada mais é do que uma discriminação com nítida ofensa ao direito da pessoa portadora de deficiência visual e tem pleno cabimento a procedência de ação intentada por danos materiais e morais. O animal, preparado para uma missão tão nobre, passa a ser uma extensão do corpo da pessoa portadora de deficiência visual, integrando-se a ele como o L'Oeil qui Voit ou, como dizem os americanos, The Seeing Eye. Na realidade, apesar de se apresentarem como uma dupla, formam um só conjunto, com movimentos harmônicos e coerentes, num silêncio quase que indizível, num linguajar expressivo que se lê pelo leve contato corporal, e ao som de suave comando de voz caminham com mesma naturalidade do pacato cidadão. A tarefa do cão de assistência - o acólito inseparável - indiscutivelmente possibilita o resgate da dignidade da pessoa portadora de deficiência visual, para que ela possa ter a dimensão projetada não só pela lei, mas pela própria condição de ser humano, na realização de sua plena cidadania. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 8 de janeiro de 2023

A relevância da telemedicina

Quando da decretação do estado pandêmico - período que restringiu e em muito a locomoção e aglomeração das pessoas - o governo brasileiro autorizou, pela lei 13.979/20, excepcionalmente e em caráter emergencial, profissionais da saúde a utilizarem a área digital para atendimento opcional aos pacientes que necessitassem de tais serviços. Daí que - na sequência e ainda na vigência do Estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) - foi publicada a lei 13.989/20, que dispõe sobre o uso da Telemedicina durante a pandemia e conferiu ao Conselho Federal de Medicina a legitimidade para regulamentar a matéria. O Conselho Federal de Medicina, por seu turno, baixou a resolução nº 2314/2022, com a finalidade de disciplinar o exercício profissional médico, incluindo no atendimento as boas práticas recomendadas ética e legalmente. Define-se a Telemedicina como o exercício da medicina mediado por Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDICs), para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde, e inaugura os canais de teleatendimentos médicos: Teleconsulta, Teleinterconsulta, Telediagnóstico, Telecirurgia, Telemonitoramento ou Televigilância, Teletriagem e Teleconsultoria. No estertor do ano 2022, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei14.510/22, que altera a lei 8080/1990,  autorizando e regulamentando a também chamada telessaúde, que consiste na utilização da melhor tecnologia para a prestação de serviços de saúde a distância, com a transmissão segura de dados e informações de saúde, por meio de textos, de sons, de imagens da informação e da comunicação, envolvendo a transmissão de dados, informações, documentos e exames de pacientes, de forma sigilosa e segura. A modalidade, que surgiu de forma excepcional em decorrência da pandemia e vingou em seus propósitos, veio demonstrar que o conhecimento científico, proporcionado pela tecnologia de ponta, consegue utilizar as ferramentas disponíveis para ampliar o acesso integral, igualitário e universal da saúde às áreas desassistidas e carentes de atendimentos especializados. É certo que o atendimento remoto, em termos de facilidade para o profissional da saúde, não pode ser comparado com o presencial, em que terá melhores condições para emitir um diagnóstico e prescrever o tratamento, após realizar o exame no paciente. Mas não deixa de ser uma alternativa válida e com qualidade já demonstrada para diminuir as intermináveis filas de espera, assim como de proporcionar um atendimento especializado para os pacientes que dependem de uma opinião médica mais abalizada. Além do que é forçoso afirmar que a avaliação técnica a distância exige muito mais interação do médico com o paciente, além de prolongar o tempo da consulta para se alcançar uma decisão correta por parte do profissional A novatio legis alcança a prestação remota de serviços relacionados a todas as profissões da área da saúde e estabelece, com relação a elas, os princípios norteadores da dignidade e valorização do profissional de saúde, da autonomia do mesmo de ofertar assistência segura e com qualidade ao paciente no âmbito das atribuições legais de cada profissão, resguardando sempre a confidencialidade dos dados. Por outro lado, com relação ao paciente, determina a obrigatoriedade da apresentação do termo de consentimento livre e esclarecido assinado por ele ou por seu representante legal, o direito de recusar o atendimento na modalidade telessaúde, mas com garantia de atendimento presencial sempre que solicitado, além da promoção da universalização do acesso às ações e aos serviços de saúde. A lei que regulamenta a telemedicina em todo território nacional já impulsionou a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo a envidar esforços para a implantação da nova ferramenta, que poderá atingir considerável índice de resolutividade, com enfoque inicial à atenção primária à saúde, ofertando ao cidadão atendimento compatível com a dignidade prevista constitucionalmente.
domingo, 1 de janeiro de 2023

O amigo secreto

O amigo secreto está na vida de cada um de nós. Às vezes, de verdade, outras por diversão. Basta chegar nesta época de final de ano que, mais do que apressadamente, vem a formação dos grupos de amigos. A denominação, no entanto, para celebrar a amizade, não é a correta. Primeiro, porque se é amigo, não pode ser secreto porque é algo que transcende a própria pessoa e vai se alardeando por todos os ventos. Segundo, mesmo que fosse amigo, qual a necessidade de fazer tamanha revelação? Cai melhor a definição do amigo do dia, ou o amigo oculto, ambas, temporariamente. Isto é, um amigo, dentre tantos outros, pertencente a um determinado grupo, onde todos se conheçam, irá receber um presente de outro amigo, de forma aberta, transparente, sem segredo. Assim, neste clima de amizade, seja você quem for, agora é meu amigo, secreto ou não, pelo sorteio da vida. O meu presente consiste num cartão, desgastado pela tradição e escrito por inteiro, com as palavras ocupando todos os espaços, conforme você vai ler na sequência. Eu o enviarei como um bumerangue, que passa por você, despeja a carga nele contida, e retorna para mim. Seria egoísmo exagerado de sua parte ficar com tamanha fortuna. Para o ano que se inicia, deixe a porta aberta para a entrada das boas novas e receba os votos de alegria, paz, saúde e prosperidade, que serão solenemente entregues pelos elfos e duendes, com suas músicas e danças festejando a beleza da vida. Faça uma colheita de todos os seus pensamentos e recicle aqueles que se destacaram quando retirados com a pinça do joalheiro, para que sejam aperfeiçoados. Você vai perceber que a repetição de velhas fórmulas faz com que você se perca definitivamente no labirinto de sua memória e enterre cada vez mais a Rosa de Drummond. Não precisa rascunhar novo DNA e nem mesmo esmiuçar seu genoma. São imutáveis. Somente a vontade que existe dentro de você o torna superlativo. Explore seu potencial ainda envolto nos mistérios da vida e aposte todas suas fichas na paixão e emoção. Sem elas você não passa de um ser humano, meramente biológico, sem acesso à contemplação do belo. Ainda mais uma dica: abrace todas as fases de sua vida e viva-as intensamente. Se não guardar as cartas da juventude, não conhecerá um dia a filosofia das folhas velhas, profetizava Machado de Assis. Finalmente, não se esqueça e nem confunda utopia com esperança. Apesar de antagônicas, celebram o convívio das antíteses. Salta aos olhos a disparidade e confirma que a vida é feita de contrastes. Uma se lança na descrição imaginativa de uma situação ideal, porém, jamais a ser atingida. A outra é arejada pelo persistente sentimento de alcançar a plena realização de um projeto fincado em propósitos inabaláveis. Não passe a vida vendendo sonhos e nem os deixe gestando em banho-maria. Seja o verdadeiro protagonista do seu reality show. Proporcione a você mesmo a encenação do maior espetáculo do mundo: a vida!
domingo, 25 de dezembro de 2022

Votos natalinos à moda antiga

Depois de tempos conturbados pela pandemia provocada pela Covid-19 - atingindo praticamente toda a humanidade - o momento presente é mais uma pausa para reflexão de final de ano a respeito da fragilidade humana, desprovida ainda de condições para profetizar maus presságios que se avizinham e colocam em risco a vida de cada pessoa. Sunt lacrima rerum, assim se expressou Virgílio, em sua Eneida, com o significado de que nos grandes infortúnios até dos seres inanimados brotam lágrimas de compaixão. E uma das conclusões a se tirar do mal que afligiu toda a população é que, como preconizavam os gregos, somos mais vulneráveis quando nos sentimos fortes. Quando fracos não dimensionamos corretamente o perigo. Imprescindível para o momento é blindar o corpo contra a contaminação das mais variadas cepas. Percebe-se que a humanidade chegou ao fim de uma era e pisa no alvorecer de outra, ainda desconhecida. A reflexão projetada é justamente, por conhecer um passado nada auspicioso, dar vazão a uma nova cruzada de fazer inveja à criatividade de Aldous Huxley, no Admirável Mundo Novo e resgatar valores à moda antiga, como generosidade, honestidade, persuasividade, racionalidade e outros predicados recomendados para a boa convivência entre os humanos. É hora de sorver a doce sobrevida e cantar com os olhos grandes e sonhadores mirando o infinito, como se o mundo tivesse acabado de ser criado. A palavra generosidade vem revestida de um significado tão difuso que arrasta em sua conceituação outros predicados portentosos, como bondade, beneficência, benevolência, dadivosidade, desapego. É a prova de que o perfeito não pode ser inimigo do bom. Honestidade corresponde à probidade, à retidão de pensamentos e princípios e a etimologia da palavra vem atrelada à honra e à dignidade. É como se fosse uma lógica mecanizada e pronta para ser utilizada. Persuasividade é a arte do convencimento, de exercer influência para que as pessoas possam praticar aquilo que é certo para o coletivo. É o momento de debater, discutir, aceitando ou rejeitando argumentos. É aproximar-se do coração para encontrar a verdade. A racionalidade é a medida para ponderar e aceitar as coisas como elas são, com o intuito de ajustá-las ao bem comum. É como se fosse um oráculo misterioso que sussurra o caminho perfeito para a vida. Assim, que seu Natal e o ano que se aproxima sejam realmente novos e que os invasores patogênicos hostis e insidiosos com suas cepas modificadas não encontrem ambiente favorável em você e que seu sistema imunológico possa sufocar o vírus, extirpando-o definitivamente. Que você seja introduzido numa redoma de cristal à prova de contaminações. Não seja demasiado justo com as pessoas, como recomenda o Eclesiastes (Noli esse justum multum). Justiça em demasia é injustiça. Procure encontrar uma solução que seja mais benigna, mais tolerante, mais humana, enfim que seja compatível com o progresso, os costumes e a solidariedade que deve existir entre as pessoas. Que você possa acionar corretamente a senha da esperança, de vital providência. O homem, até a pouco tempo, estava encruado dentro do seu labirinto, com o mínimo contato com seus pares. Necessita de um prazo razoável para irmanar-se como siameses, libertar-se das amarras antigas e retomar o sentido do coletivo. Tudo para que seja definido um novo curso, um caminhar constante em grupo, sem estandardizar critérios e regras. Que você possa encontrar uma nova vertente em sua vida, deixando sempre o pensamento a fermentar para se transformar em uma referência na prática de boas ações de médio e longo prazos, forjando, desta forma, um paraíso igualitário, uma verdadeira epifania em que possa espalhar a harmonia e a poesia.
domingo, 18 de dezembro de 2022

Edição genética alimentar

Como se fosse um prenúncio feito com certo rigorismo científico e levando-se em consideração o crescimento incessante da população mundial, a escassez de alimentos já se alinha como um fenômeno global preocupante. De um lado, a título de reprise necessária, a pandemia, que como um tsunami assolou os continentes com todas as graves sequelas na saúde, no trabalho, na economia e na própria produção alimentar. De outro, a inconveniente guerra envolvendo a Rússia e a Ucrânia, que vai dinamitando uma das terras mais férteis do leste europeu, além de provocar a retirada de uma população estabilizada e produtiva em grãos de alimentos, um verdadeiro celeiro mundial. Além de todos estes transtornos - acrescentando a eles os problemas climáticos sazonais que prejudicam o plantio e colheita de alimentos - a pobreza vai se expandindo por todas as partes do mundo e se apresenta hoje como realidade incontestável, no sentido de que a pessoa deixou de consumir o mínimo exigido para a recomendada nutrição. A Europa, que durante muito tempo teve o domínio da equilibrada produção alimentar para seus habitantes, além dos entraves já enumerados, vê-se diante de um quadro totalmente desfavorável, pois a produção agrícola, em razão da falta de chuvas, dos custos elevados dos insumos, fertilizantes, pesticidas e do combustível para as máquinas agrícolas, caiu sensivelmente e não vê, a curto prazo, uma solução de continuidade no oferecimento alimentar. Quando a natureza, os fenômenos climáticos e outras circunstâncias abatem de forma crucial e impedem a necessária produção alimentar, a única opção que se abre é buscar uma solução substitutiva na ciência. Assim é que na Europa retornou à tona o debate a respeito da edição genética, que por um tempo já frequentou calorosos debates e não foi bem recebida. A edição genética que se propõe é bem diferente das técnicas dos OGMs (Organismos geneticamente modificados). No primeiro caso, o procedimento é realizado com a inclusão ou exclusão de genes na mesma espécie ou em espécies semelhantes buscando, na realidade, um melhoramento mais acelerado e aprimorado das plantas. No segundo, ocorre a modificação genética em laboratório, com a inserção de um material genético de outro organismo, visando aumentar a produção, melhorar o conteúdo nutricional e proporcionar maior resistência e durabilidade. Seria, de uma forma menos científica, o encontro de DNAs entre organismos que jamais teriam chances de cruzamento. Analisando do ponto de vista produtivo, pode-se até concluir que a inovação traz dividendos consideráveis, com um custo menor e uma distribuição mais abrangente de alimentos, com sérios propósitos de se combater a fome que assola a humanidade. No caso da edição genética, mesmo não ocorrendo a manipulação dos genes, há necessidade da realização de estudos que ofereçam segurança na produção de alimentos. Abre-se, desta forma, uma densa nuvem nebulosa e provoca incerteza a respeito de futuros danos que possam causar à vida humana. Pode até ser que no presente não tragam qualquer malefício à saúde, porém, ao longo do tempo, com a utilização prolongada, poderão comprometê-la. Daí que a Comissão Europeia se propôs a regulamentar para o próximo ano a utilização de algumas tecnologias relacionadas com a edição genética. A ciência da Bioética - espaço de reflexão envolvendo os pensamentos de várias pessoas com sólida formação em humanidades a respeito da utilização de novas tecnologias que possam ser consideradas oportunas e convenientes para que o homem possa manter sua identidade e dignidade - traz sua contribuição para a questão levantada. O princípio bioético da beneficência primum non nocere, ou da não maleficência malum non facere, é destinatário de todas as produções científicas que possam trazer benefícios à saúde humana, incluindo aqui até mesmo sua base alimentar. E o sinal verde para a utilização é proclamado pelos órgãos responsáveis pela saúde humana, podendo ser citada a Organização Mundial de Saúde (OMS), que faz a avaliação e o aconselhamento necessário, justamente para que o homem possa fazer uso com as garantias precisas. A Bioética, desta forma, amparada pelo mais ajustado pensamento científico e com suporte também no princípio da precaução, recomenda as cautelas necessárias para preservar o homem e a natureza contra os riscos potenciais das novas tecnologias. Daí tem como tarefa precípua realizar ações articuladas com a sociedade elegendo como prioridade um estado de equilíbrio e bem-estar humano.
O Superior Tribunal de Justiça confirmou decisão de primeiro grau em que um homem, após receber informações de quem seria seu provável pai, que já tinha falecido, ingressou com uma ação de investigação de paternidade. Os parentes do investigado, no entanto, recusaram-se a fornecer material genético para a realização do exame indireto. Diante da recusa, foi determinada judicialmente a exumação dos restos mortais do investigado. A lei 14.138/21 modificou o artigo 2º, § 2º da lei 8560/93 que, com o acréscimo feito, ficou com a seguinte redação: "Se o suposto pai houver falecido ou não existir notícia de seu paradeiro, o juiz determinará, a expensas do autor da ação, a realização do exame de pareamento do código genético (DNA) em parentes consanguíneos, preferindo-se os de grau mais próximo aos mais distantes, importando a recusa em presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório". A exumação cadavérica, apesar de não constar taxativamente da lei de investigação de paternidade, dela faz parte como previsão genérica, compreendida na utilização de todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos para provar a verdade a respeito dos fatos alegados. No processo em tela, apesar da recusa dos parentes, que estabelece uma presunção relativa, o juiz da causa achou por bem, em razão da precariedade probatória até então apresentada, determinar a realização do exame de DNA. Além do que, neste tipo de ação que perquire direito fundamental à identidade biológica, o juiz deve esgotar todo o processo de cognição, ampliar ao máximo os poderes instrutórios e probatórios para ir ao encontro da verdade real, consubstanciada no tão aclamado suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu). A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite a exumação para fins de realização do exame de DNA, quando se tratar de ação de investigação de paternidade, conforme faz ver a presente ementa: "Agravo regimental. Processual Civil. A suscitação de uniformização de jurisprudência não vincula o magistrado, sendo faculdade sua determinar o processamento. A exumação de cadáver, em ação de investigação de paternidade, para realização de exame de DNA, é faculdade conferida ao magistrado pelo artigo 130 do Código de Processo Civil. (art. 370 do CPC de 2015). Agravo improvido".1 O Direito não é um compêndio matemático em que se projetam fórmulas preexistentes para se buscar um resultado considerado lógico e coerente com os cálculos aplicados. Nem pode ser. Lida com o comportamento humano e, consequentemente, vem delimitado pela dialética jurídica e social.   O desenvolvimento de novas técnicas científicas traz uma enorme contribuição ao direito na medida em que, com bases seguras e alicerçadas em estudos de confiabilidade, consegue esclarecer não só crimes até então insolúveis, mas, também, muitas outras questões, como, por exemplo, a prova da paternidade. O exame de DNA forense ganhou tanta projeção que a justiça assenta nele sua decisão, sem fiar-se em outras provas antes consideradas relevantes para o deslinde da questão. Não só na justiça, como também na vida das pessoas. Hoje é possível fazer a leitura do DNA, mesmo que não seja completa, mas que garimpe informações importantes para que o interessado conheça seu código genético e, principalmente, para evitar a ocorrência de doenças de que tenha predisposição genética. Nesta linha de pensamento, no sentido de se encontrar uma resposta que corresponda corretamente à verdade perquirida no processo de investigação de paternidade, o exame de DNA é recebido com bons augúrios, por introduzir dispositivos da mais avançada tecnologia. Pode-se dizer que, tanto no juízo cível como no criminal, o demonstrativo probatório correspondente ao material genético apresenta-se como uma prova inconcussa e até mesmo inquestionável com relação à margem de certeza. O Direito, apesar de suas rigorosas regras probatórias, abre suas comportas e recebe de bom grado a contribuição científica, incorporando-a definitivamente em seus procedimentos para atingir a justiça adequada. __________ Disponível aqui.
domingo, 27 de novembro de 2022

Alimentos para o nascituro

É interessante observar que algumas leis refletem a necessidade momentânea de uma pessoa em determinado momento da vida. As leis, com seu comando, visam atingir todas as pessoas, porém, algumas delas, em razão de circunstâncias temporais especiais, merecem um plus diferenciador para atender suas necessidades. É o caso, por exemplo, da licença maternidade que confere à mãe o direito de se afastar de suas atividades pouco antes do parto ou após o nascimento do bebê, pelo período de 120 dias, de acordo com a legislação trabalhista. Idêntica regra tem aplicação nos casos de adoção. Em casos graves, em que a mãe ou o recém-nascido fiquem internados em hospital por prazo superior a duas semanas, o marco inicial da licença será contado após a alta hospitalar que ocorrer por último, de acordo com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (ADIn 6327), tudo visando a melhor proteção da criança. Assim, sem gravidez e não sendo caso de adoção, afasta-se a possibilidade da licença. Nesta linha de raciocínio encontra-se a lei 11.804/08, que confere à mulher não casada e que também não vive em união estável e não tenha condições financeiras de suportar os custos de uma gravidez não programada, o direito de acionar judicialmente o suposto pai pleiteando alimentos para o filho. Referida lei é conhecida como "alimentos gravídicos'. Parece que a terminologia utilizada não é adequada e nem mesmo guarda coerência como o benefício que se almeja. Na realidade, o embrião, como ente concebido e não nascido, é o destinatário da proteção legal. Mas é de se atentar também que o termo embrião não se apresenta como adequado. Em razão dos avanços da engenharia genética e da reprodução assistida, os embriões poderão ser produzidos in vitro e criopreservados posteriormente, conforme regramento estabelecido pela resolução 2320/22, do Conselho Federal de Medicina. O correto e a terminologia mais adequada parece ser a utilizada pelo Código Civil, em seu artigo 2º:  A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Nascituro, desta forma, é aquele que foi concebido e vai nascer e, consequentemente, necessita da devida proteção, diferentemente do embrião criopreservado. Oportuno mencionar que no Brasil há uma proposta legislativa traduzida pelo PL 478, denominada Estatuto do Nascituro, que tramita desde 2007 e que, quando for levada para debate perante o Congresso Nacional, certamente provocará intensas discussões envolvendo desde a concepção, do início da vida humana, dos direitos reprodutivos da mulher, compreendendo aqui com ênfase o tema aborto, como também o próprio processo de reprodução humana. Retornando à lei em questão, em apertado resumo, a gestante deverá ingressar com o pedido judicial em desfavor do futuro pai. O juiz decidirá, no âmbito de uma cognição sumária, com base nos indícios de paternidade, a obrigação alimentar do suposto pai, que poderá contestar, mas em restrito núcleo cognitivo também. Os alimentos fixados permanecerão até o nascimento com vida, quando serão convertidos em pensão alimentícia e, a partir deste marco, poderão ser revistos por uma das partes. A palavra da mulher é de vital importância para o esclarecimento, mas deve aflorar com a credibilidade necessária. Basta ver que nos crimes sexuais, em razão de serem praticados solus cum sola in solitudinem (o só com a só, na solidão), a versão ofertada pela vítima, na maioria das vezes, vem a ser o sustentáculo da acusação e da posterior condenação.   Prevalece, desta forma, uma paternidade calcada em indícios, que são, na terminologia jurídica, circunstâncias que gravitam em torno do fato principal, possibilitando a construção de hipóteses visando esclarecer a autoria e outros aspectos probatórios. Indicium nada mais é do que a indicação, informação, revelação, mesmo que seja provisória, mas que venha revestida do fumus boni iuris. A obrigação alimentar do suposto pai, limitada ao tempo da gravidez, compreende toda a assistência médica e psicológica, realização de exames, prescrições preventivas e terapêuticas e as despesas referentes ao parto, além de outras que poderão ser fixadas em razão da peculiaridade do caso. Percebe-se, desta forma, em ambos os casos, a nítida tutela voltada para a proteção da criança intraútero e a recém-nascida.
domingo, 20 de novembro de 2022

Filiação socioafetiva

Após a Constituição Federal de 1988, o conceito de família experimentou um alargamento necessário visando, de forma aprumada com a realidade, acomodar os vários núcleos que se formaram em torno do conceito original, restrito por demais. O padrão atual abandonou o rigorismo, ampliou os espaços e abriu as vertentes para compreender não só os dados biológicos, como, também, os introduzidos pelo socioafetivo, podendo ser a família constituída por um só indivíduo ou pela união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, nos moldes já decididos pelo Supremo Tribunal Federal (ADIn 4277/ADPF 132,) assim como a adoção de crianças por casal homoafetivo. Enfatiza o estatuto menorista que toda criança ou adolescente deve ser criado ou educado no seio da família natural e deixa transparecer que a adoção é uma medida excepcional. Exige a inscrição no cadastro das pessoas interessadas, cumprimento de estágio de convivência com a criança, salvo se já for detentor da tutela ou guarda judicial e outros requisitos para sua efetivação judicial. Quando se fala a respeito da adoção, o tema transcende o humano e até mesmo os limites estabelecidos pela lei, justamente pela sublime motivação que o reveste. Desde os primórdios da civilização, sempre despertou a atenção pela sua característica de relação afetiva, na qual uma criança é recebida por uma família, geralmente carregada de uma sensibilidade extremada na busca de tal vínculo, e proporcione a ela um acolhimento caloroso com o propósito de se iniciar uma nova história de vida. Vigora a regra adoptio naturam imitatur (a adoção imita a regra da própria natureza), que prevalecia no Direito Romano. O que se leva em consideração nos casos de adoção é justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar. A adoção de Milton Nascimento, por exemplo, denominada de intuitu personae, não mais vigente na lei menorista, permitia que a mãe ou o pai entregasse a criança, geralmente para um casal de sua confiança, para criá-la e exercer o poder-dever de sustento e educação, fazendo nascer um longo estágio de convivência, com total distanciamento dos pais biológicos. Os antigos tratavam este procedimento de "pegar para criar". Há ainda muitos casos no Brasil em que casais convivem com filhos na relação socioafetiva, sem o devido registro, mas com a prova maior que é o tempo de convivência demonstrado por um período de longos anos, sem se preocupar com a regularização da guarda legal, com a inscrição no cadastro único criado pela lei menorista. Não há nenhuma dúvida de que a criança, que de fato vive razoável tempo com um casal, já pode ser considerada como um filho. Seria um excesso de preciosismo, desnecessário até, exigir-se como conditio sine qua non a inscrição dos candidatos no cadastro único criado pela lei. A lei preocupa-se, e com razão, de cuidar de casos em que não ocorreu a convivência anterior e não com aqueles em que já há uma definição afetiva devidamente estabelecida. Daí que a adoção intuitu personae continua ainda presente na nova legislação, mesmo que obliquamente.  As mães criadeiras no período colonial do Brasil, que recolhiam as crianças abandonadas na roda dos expostos, cuidavam de amamentá-las e viam nascer o afeto que muitas vezes dificultava a separação. O Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser visto em sua dimensão maior, em conjunto com os princípios que norteiam sua aplicação, dentre eles a efetivação do interesse e da proteção dos infantes, ultrapassando e em muito, nos casos de guarda de fato, a regra seca estabelecida na obrigatoriedade de inscrição em cadastro de adoção. Tanto é que o Supremo Tribunal federal já decidiu e este respeito e proclamou: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais".1 Assim, neste diapasão, o vínculo socioafetivo vem consolidado pelos vários anos de convivência no âmbito de um relacionamento familiar harmônico e a figura do pai e da mãe não é mais vista pelo prisma daqueles que geraram o filho e sim daqueles que o criaram. ______________ 1 https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE898060.pdf
domingo, 13 de novembro de 2022

A criopreservação do corpo humano

A tecnologia vai se desenvolvendo com tanta intensidade que atinge não só as expectativas humanas com relação aos benefícios direcionados para uma vida com longevidade e qualidade, como, também - talvez até como se fosse um destino apocalíptico - alça marcos imaginários que se descortinam, aparentemente, como uma ficção científica. Os limites temáticos costumeiros, e que se encontram na linha de desdobramento das pesquisas feitas em laboratório, atingem seu ápice e obrigam, necessariamente, o início de uma nova investigação científica. Isto porque o conhecimento científico é dinâmico e cumulativo. Tal constatação pode ser vista no passado com a publicação, em 1932, da obra "O Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, que causou reações extremadas por antecipar a tecnologia reprodutiva, como se fosse uma aposta ou até mesmo uma promessa no progresso da reprodução assistida. Nesta mesma linha de novas descobertas, o presidente executivo da empresa Tesla e da Space X, Elon Musk, lançou interessante desafio consistente em desenvolver implantes cerebrais com a finalidade de permitir a comunicação entre o humano e a máquina. Tal procedimento visa possibilitar que as pessoas portadoras de severos distúrbios neurológicos possam receber impulsos com a finalidade de restaurar as funções motoras e sensoriais, podendo até mesmo recuperar a visão de um cego. Deixou a entender também que, pelas projeções do mundo cibernético, existe o temor de que os seres humanos possam ser ultrapassados pela inteligência artificial.1 E a motivação do presente artigo está ligada à iniciativa de um laboratório localizado em Scottsdale, no Arizona, Estados Unidos, que abriga cerca de 200 corpos congelados. São aquelas pessoas que sofriam doenças irreversíveis e que optaram pela criopreservação dos corpos com a esperança de que, em um futuro próximo, quando a medicina descobrir a cura de suas doenças, possam retomar à continuidade da vida. A criogenia já é utilizada com sucesso na preservação de órgãos destinados para transplantes e também de embriões humanos depositados em tanques de nitrogênio líquido a uma temperatura de 196 graus negativos. Os laboratórios que trabalham com o procedimento criônico - responsável pela preservação dos corpos humanos falecidos, com o intuito de reanimá-los em um tempo futuro não definido - vão apostando na proposta e abrindo novas frentes com boas perspectivas de aceitação e trabalho. O tema da criogenia despertou a atenção da Rede Globo de Televisão e foi palco da novela O Tempo Não Para, lançada em 2018. Relata a história de 13 pessoas da mesma família que acabaram congeladas após o naufrágio de um navio que se chocou com um iceberg, no ano de 1886. Cerca de 132 anos após, um grande bloco de gelo se aproxima da praia do Guarujá/SP, quando os corpos congelados vão despertando cada um à sua maneira. Já que o clima é de ficção - Mark Twain tinha razão quando afirmava que a principal diferença entre a ficção e realidade é que a ficção tinha que ter um conteúdo de credibilidade, enquanto a realidade gozava de pleno crédito - Machado de Assis, que viveu neste período (1839/1908), poderia ter sido passageiro do navio atingido pelo iceberg e se encontrar no rol dos criopreservados. Com toda certeza, ao despertar, logo após desviar das manobras de um skatista, o bruxo do Cosme Velho iria assistir a uma transformação total da humanidade e não teria a sensibilidade aguçada para dar continuidade à sua extensa obra. Talvez, no entanto, tivesse uma única vantagem, qual seja: a de combater suas frequentes crises de epilepsia, que eram tratadas à época tanto pela medicina tradicional quanto pela homeopatia. Ambas sem sucesso. No mundo novo, quem sabe - ainda sem a cura definitiva - teria maior chance com o uso medicinal do canabidiol. A realidade da natureza humana é que cada um tem seu tempo, seu lugar, sua hora. A morte é o fator determinante e com ela cessa o caminhar terreno. Os romanos já preconizavam: Mors omnia solvit (a morte apaga tudo).   Inúmeras são as complicações para sustar temporariamente a morte e, após, retomar a vida como se fosse um sincronismo habitual. O eventual ganho da longevidade, se vingar, além da complexidade do procedimento, é temporal e não há ainda evidências científicas de benefício para o homem. A humanidade, pelo menos no momento presente, não está preparada para assimilar tal tecnologia que, além de desafiar a vida, desafia a própria morte. _____________ 1 https://www1.folha.uol.com.br/tec/2019/07/elon-musk-quer-simbiose-entre-homem-e-tecnologia-com-implante-cerebral.shtml
domingo, 6 de novembro de 2022

O mapeamento genético e o Novembro Azul

Os homens são mais arredios do que as mulheres para a realização de qualquer exame médico preventivo. Talvez seja pela sua própria natureza ou até mesmo pela desinformação a respeito das doenças mais prováveis para o mundo masculino. Assim, a título de orientação, o Ministério da Saúde editou o programa da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, buscando a população masculina na faixa etária dos 20 aos 59 anos de idade, com a finalidade de chamar a atenção e despertar o interesse pela própria saúde, além de propiciar a ele os serviços, preventivos ou não, dos agravos com maiores taxas de ocorrência. Os exames recomendados para verificar a saúde da próstata são a análise sanguínea do PSA e o toque retal, para homens a partir de 45 anos ou os que atingiram 40 quando há histórico de câncer na família e, também homens negros, que são mais propensos a desenvolver esse tipo de câncer. A Constituição Federal garante em seu artigo 196: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação." E ainda determina que as ações e serviços, assim como as políticas públicas apropriadas, compreendam o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais. Daí que determinação constitucional alicerçou a criação do Outubro Rosa, embalado pela tradicional fita rosa, iniciado no Brasil em outubro de 2002, como sendo uma campanha para chamar a atenção das mulheres para o diagnóstico precoce de câncer na mama e do colo de útero. Novembro Azul, enlaçado pela fita azul, veio a reboque do primeiro, com a finalidade de alertar os homens da importância do diagnóstico preventivo do câncer de próstata. O nome é relacionado com o dia 17 de novembro, considerado o Dia Mundial de Combate ao Câncer de Próstata. Na Austrália, em 2003, surgiu o movimento Movember, que é a junção da palavra "moustache", que significa bigode, com "november", referente ao mês de novembro, dedicado à saúde do homem. Daí que os símbolos da campanha passaram a ser, no Brasil, o bigode e a fita de cor azul. Com o arsenal tecnológico de hoje à disposição da medicina científica, exames de última geração vêm explorando e conseguindo ótimos resultados para se obter a leitura do genoma humano, descoberta que possibilita a correção de eventual enfermidade genética que acompanha seguidas gerações. A Terapia Gênica Humana (TGH) é de vital importância para solucionar o problema de milhões de pessoas vitimadas pelas doenças de cunho genético. Moser, com razão, concluiu: "Esta virou uma espécie de melodia que soa aos ouvidos de todos como esperança de vitória definitiva sobre um mal que atormenta a humanidade de todos os tempos."1 Pois bem. Como é sabido, a atriz Angelina Jolie, em razão do mapeamento genético que resultou positivo para a potencialidade do câncer que vitimou sua mãe - cerca de 87% de desenvolver a mesma doença, sem apresentar no presente qualquer início da moléstia - submeteu-se a uma mastectomia dupla (retirado dos seios). Pode se imaginar, no mesmo caminho, a situação de um homem que carrega histórico familiar favorável ao desenvolvimento de câncer de próstata e se submeta a um mapeamento genético, conclusivo pela potencialidade da doença, unicamente pelas informações genéticas, sem apresentar, no presente, qualquer início da moléstia. A pergunta que se faz é se justifica a intervenção médica preventiva com a confiança no provável desenvolvimento das células cancerosas? Quer dizer, a cirurgia será realizada em um paciente saudável no momento e que não apresenta a doença e nem mesmo os sintomas, mas há possibilidade de desenvolvê-la. Trata-se de um questionamento eminentemente bioético. O exame realizado é resultado de um refinamento científico de vários anos de pesquisa e acompanhado por outras provas médicas conclusivas e irrefutáveis. A tecnologia revela novos contornos que trazem benefícios para o homem, no sentido de proporcionar-lhe uma vida com melhor qualidade, evitando doenças incuráveis e sofrimentos dolorosos, sem qualquer ofensa ao princípio da dignidade humana. Indiscutível a nova realidade que se avizinha e com ela extensas nuvens precisam ser dissipadas. O procedimento invasivo, se optado pelo paciente, será realizado ainda sem a manifestação da doença e, no caso de prostatectomia radical, além da possível aplicação da radioterapia, carregará o receio da impotência sexual e da incontinência urinária. É, realmente, uma decisão que irá marcar uma nova etapa na prevenção médica da humanidade, tendo como sustentáculo os princípios da autonomia da vontade do paciente e beneficência, ambos da Bioética. __________ 1 Moser,Antônio. Biotecnologia e bioética: para onde vamos? Perópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 225.
O cenário das pesquisas relacionadas com a utilização do canabidiol como uso medicinal - um dos princípios ativos da maconha - vem ganhando credibilidade por parte da comunidade científica. Os estudos até então realizados e muitos ainda em fase de desenvolvimento, demonstram benefícios para crianças e adolescentes diagnosticados com epilepsia, além de doenças neurológicas em adultos, como Alzheimer, Parkinson, esclerose múltipla, convulsões, depressão, alguns tipos de câncer e outras. A ciência, pelas suas regras investigativas e protocolos de pesquisas, em vários estudos científicos rigorosamente sérios e recomendados, não só apontou os benefícios como também recomendou a continuidade de estudos com o canabidiol, por ficar evidenciado o benefício para o paciente. A Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas, acatando também a recomendação da Organização Mundial da Saúde, aprovou a reclassificação da cannabis sativa da listagem de narcóticos considerados impróprios e perigosos para o homem e abriu espaço para sua utilização médica, exclusivamente.1 Nesta linha de raciocínio a própria ANVISA já autorizou e registrou o medicamento Mevatyl, à base de cannabis, indicado para o tratamento de adultos com espasmos relacionados à esclerose múltipla, além de conceder inúmeras autorizações para a importação do canabidiol. O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, editou a resolução 2324/2022, revogando a anterior 2.113/2014, que autorizava o uso compassivo do canabidiol para crianças e adolescentes com epilepsias refratárias aos tratamentos convencionais. Na nova norma aprovou o uso do canabidiol exclusivamente para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa. Neste caso, o paciente ou seu representante legal, deve assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), dando ciência sobre os riscos e benefícios potenciais do tratamento. Além do que o médico fica proibido de prescrever canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista na resolução em destaque, salvo em estudos clínicos autorizados pelo Sistema CEP/CONEP. A limitação imposta causou estranheza no meio científico que se manifestou contrariamente por entender rigorosa por demais a norma administrativa, que colidiu com a autonomia do médico e cerceou o acesso à saúde do paciente, além de causar eventuais danos aos que se encontram em tratamento por outras causas. Na relação linear entre médico-paciente, cabe ao profissional, após detalhado diagnóstico, apresentar as opções mais adequadas para o tratamento com a avaliação de eventual risco e pretendido benefício e, ao paciente, no âmbito da sua autonomia da vontade, acatar ou não a proposta ofertada. O termo de consentimento, prudentemente recomendado, é o demonstrativo inequívoco da autonomia da vontade da pessoa. Elaborado com linguagem clara e acessível, compreende a anuência do paciente ou de seu representante legal, livre de vícios, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre os métodos, riscos e benefícios previstos, tanto os atuais como os potenciais, individuais e coletivos, assim como aponta o responsável pelo acompanhamento do tratamento. Talvez a decisão do Conselho Federal de Medicina, por demasiado apego ao princípio da precaução - compreendendo a observância de padrões seguros e confiáveis para o ser humano - editou a norma de conduta ética em debate. A limitação, ao mesmo tempo que referenda, restringe o uso somente para os estudos clínicos autorizados pelo Sistema CEP/CONEP, não observando que a indicação terapêutica do canabidiol já atingiu um considerado número de prescrição na modalidade "off label". Não se pode olvidar que aumenta de forma induvidosa o número de estudos realizados mundialmente envolvendo o canabidiol. Em um cenário em que a ciência é fator predominante e as pesquisas vão produzindo cada vez mais resultados satisfatórios para a saúde humana, não se pode desprezar os dividendos que estão sendo colhidos. Tem total aplicação na discussão a aplicação do princípio da beneficência da Bioética, que visa envidar o melhor esforço possível para buscar soluções que sejam adequadas, convenientes e proporcionais para o paciente, conferindo a ele um considerável ganho à sua saúde, com o mínimo risco possível. Quer dizer, extremar os possíveis benefícios e minimizar eventuais danos. Desta forma, abrindo-se uma linha de pesquisa envolvendo o canabidiol e que tenha já atingido um patamar de segurança e tolerabilidade, recomenda-se que sejam exploradas todas as possibilidades de se buscar um resultado que seja compatível com os objetivos propostos. __________ 1 Disponível aqui.
No atestado de óbito da rainha Elizabeth 2ª consta que ela faleceu aos 96 anos de idade em razão de velhice, "old age" em inglês, e, segundo informações do Palácio de Buckingham, morreu serenamente. A mesma causa mortis ficou constando do registro de óbito do duque de Edimburgo, seu esposo.1 Volta à baila novamente a velhice como causa mortis a constar de documento oficial. É sabido que a Organização Mundial da Saúde, na contramão de direção do alinhamento mundial, tinha incluído a velhice como doença na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), com o código MG2A, com vigência a partir de 2022. Salientou, no entanto, a OMS que se tratava de uma substituição na nomenclatura, consistente em retirar o rótulo senilidade, já existente (CID10), e substitui-lo por velhice, sem a intenção de transformar esse último em doença.  A realidade, no entanto, como é sabido, a CID é um dispositivo de classificação de doença. Assim, para uma pessoa no Brasil que viesse a falecer e tivesse mais de 60 anos de idade, a causa mortis poderia ser apontada como velhice, encobrindo, desta forma, o diagnóstico da doença responsável pelo óbito, como, por exemplo, as cardiológicas, neurológicas, oncológicas e muitas outras. E pior. Acarretaria uma diminuição de pesquisas das doenças relacionadas com os idosos, como o Alzheimer e o Mal de Parkinson. Diante de tantos argumentos contrários a OMS retirou o código velhice da 11ª revisão do Código Internacional de Doenças e reiterou que, na realidade, a intenção não era transformar a velhice em doença, com capacidade de provocar a morte. As explicações científicas não trazem justificativas convincentes de que a velhice vem a ser sinônimo de doença, principalmente no momento atual em que se vivencia o crescimento plausível da longevidade, sabendo-se que as gerações infantis de hoje ultrapassarão a faixa dos 100 anos, como resultado de inúmeras pesquisas científicas desenvolvidas com essa finalidade. Além do que vai evidenciar ainda mais o preconceito em razão da idade e dar azo ao ageísmo, pois qualquer cidadão que no Brasil entrar na faixa de 60 anos de idade, parâmetro biomarcador preconceituoso, mesmo que seja saudável, passa a ser considerado um doente, tanto na convivência familiar como na comunitária, não potencial, mas por ficção etária. Mas, pode até ser, em sentido contrário, fazendo uma leitura mais voltada para o futuro, que a OMS pretendeu dar uma justificativa aos óbitos ocorridos entre idosos que não ostentam qualquer doença. É até mesmo compreensível tal pensamento, pois a longevidade, que já não é mais uma ambição remota e sim uma realidade incontestável, permite tal conclusão.  Basta ver a lei 13.466/2017, que confere prioridade especial aos maiores de 80 anos de idade no atendimento à saúde e outros direitos, com preferência aos demais idosos. O país está cada vez mais sendo habitado pelos idosos. E, em razão de uma longevidade saudável, com boa qualidade de vida, o longevo pode não registrar nenhuma das doenças catalogadas pelo CID. É interessante observar que na certidão de óbito da rainha, no item 10, quando trata da causa da morte, há alternativas suficientes para agrupar doenças ou comorbidades que contribuíram para o falecimento. O médico, no entanto, que provavelmente acompanhava a paciente há muitos anos, limitou-se a preencher o item 1, letra "a", com "Old Age". E, certamente, assim agiu porque não encontrou qualquer causa ou concausa que justificasse o evento morte.          Dizer que referida certidão não representa a verdade é temeroso, levando-se em consideração que a constatação médica encontrou na velhice a única causa da morte. Há, no entanto, evidente contradição com a interpretação da OMS. Verdadeira antinomia. Um imbróglio de difícil explicação. Faz lembrar o exemplo clássico oferecido por Eco com relação à frase "Eu estou mentindo", que não pode ser verdadeira e nem falsa: "Se fosse verdadeira, significaria que estou dizendo a verdade e, portanto, é verdade que estou mentindo; se fosse falsa, então não seria verdade que estou mentindo e, portanto, seria verdade que estou dizendo a verdade, logo eu estaria, na verdade, mentindo."2                 __________ 1 Disponível aqui. 2 Eco, Umberto. Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana, 2001/2015. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2018, p.215.
domingo, 9 de outubro de 2022

Rejeição vacinal

Constata-se facilmente, não só pela informação oficial do Ministério da Saúde, como também pelas notícias que circulam nos canais de comunicação, que os últimos anos apresentaram um declínio no índice de imunização da população de crianças e de adultos e, inevitavelmente, muitas doenças que eram consideradas erradicadas no Brasil, ganharam um canal aberto e vão fazendo novas vítimas, enquanto que o estoque vacinal fica disponível e sobrando nas unidades de vacinação. Basta ver, a título de exemplo, durante o período pandêmico, quanto maior o avanço da imunização no combate às variantes de fácil propagação, mais incontestável o resultado positivo com a cobertura de toda a população. E não resta nenhuma dúvida de que as vacinas foram as responsáveis pela batalha contra a Covid-19, apesar de muita desinformação a respeito. E a notícia mais alvissareira é que a Organização Mundial da Saúde já cogita decretar o fim do status de pandemia conferido à doença. A inquietação que se desenha no presente, e ao que tudo indica não conscientizou ainda a população, é que governo de São Paulo, preocupado com a baixa procura vacinal, prorrogou até 31 de outubro de 2022 a campanha de vacinação contra a poliomielite, visando alcançar crianças a partir de 2 meses a 1 ano de idade, índice que não superou a margem de 50% do público-alvo. E o pior é que o Plano Nacional de Imunizações (PNI) - que tem como objetivos o controle e a erradicação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis e que já chegou a atingir a meta de 95% da população alvo - vem se desgastando ano após ano. A poliomielite, conhecida também como paralisia infantil, é considerada doença contagiosa pela transmissão de pessoa a pessoa e acarreta sequelas gravíssimas, principalmente motoras pela infecção da medula e cérebro, sem qualquer chance de cura. Talvez o movimento antivacinal, que vem prosperando a cada ano, tenha desestimulado os pais a levarem seus filhos para a recomendada imunização, apesar da previsão imposta no § 1º do artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente de ser obrigatória a vacinação dos menores de idade, nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. O grupo contrário à vacinação não encontra qualquer amparo científico que tenha sido comprovado e muito menos a adesão da Organização Mundial da Saúde, que já se manifestou reiteradas vezes a respeito da eficácia das vacinas e que considera o movimento como uma das ameaças mundiais à saúde. Uma vacina, como é sabido, representa o resultado de longos anos de estudos obedecendo rigorosamente os protocolos científicos internacionais, tudo para atingir a almejada segurança e eficácia. A específica para o combate à poliomielite, em razão dos vários anos de imunização, já foi incorporada ao calendário vacinal e à vida dos brasileiros, pelos bons resultados alcançados. A vacinação, em razão do comando constitucional previsto no artigo 196 - que estabelece o dever de proteção e prevenção do gestor público - é uma questão que afeta diretamente a saúde pública, sinalizada por políticas adequadas visando à erradicação das doenças infectocontagiosas. Ora, o descumprimento do encargo vacinal por conta dos pais ou responsáveis legais não encontra qualquer escusa legal. Pelo contrário, reflete um ato de irresponsabilidade e total falta de zelo pelos filhos, tendo em vista que o imunizante é oferecido em várias unidades de saúde. Nenhuma justificativa, desta forma, socorre os responsáveis pelas crianças, que poderão, em um futuro próximo, em razão do dinamismo jurídico, ser acionados judicialmente pelos próprios filhos. Tem aqui total aplicação o pensamento desenvolvido pela Bioética que, apesar de não carregar regras ou normatização de qualquer natureza, colabora com os princípios da beneficência e o da justiça, no tocante à imunização da coletividade. Com relação ao primeiro deve-se buscar o resultado mais satisfatório para a vida humana, proporcionando dividendos de saúde, evitando-se ao máximo a ocorrência de qualquer risco ou dano à pessoa, nos exatos termos do primum non nocere. Ou, em outras palavras, extremar os prováveis benefícios e minimizar os possíveis danos. Já o segundo vem consagrado pela distribuição igualitária das vacinas e sem discriminações, cujo critério equitativo, sem prioridades de ordem econômica, conduz à igualdade de tratamento que deve imperar no relacionamento humano. Quer dizer, se cientificamente for comprovado que uma vacina produziu resultado promissor para a preservação da saúde de uma pessoa, igualmente deve se estender às demais. Daí que a Organização Mundial da Saúde considera a vacina como um bem público global, com acesso irrestrito a toda comunidade mundial.
domingo, 25 de setembro de 2022

Furto por necessidade e furto insignificante

Tramita pela Câmara Federal o projeto de lei 4.540/21, de autoria da deputada Talíria Petrone e outros deputados, apensado ao PL 1244/11 para uma decisão em conjunto pelas comissões,  que visa alterar o artigo 155,§ 2º do Código Penal para nele acrescentar que não haverá prisão quando ocorrer o furto por necessidade e o furto insignificante, mesmo em se tratando de agente reincidente, cabendo ao juiz aplicar uma pena restritiva de direitos ou multa, além do que, eventual ação penal será de natureza exclusivamente privada, mediante iniciativa da vítima.1 A proposta cria duas modalidades diferentes de furto. A primeira, por necessidade relacionada diretamente com a situação de pobreza ou extrema pobreza do autor que pratica a subtração para saciar sua fome ou para atender necessidade básica de sua família, conduta já conhecida dos meios judiciais como furto famélico, abrangida pelo estado de necessidade, que justifica a excludente. A segunda, relacionada com o furto insignificante, incide diretamente sobre o valor da res furtiva com relação ao patrimônio do ofendido. O parâmetro aqui pode até causar distorções pois tem como base o valor do patrimônio alheio. Trata-se de uma proposta que visa estabelecer uniformização legislativa a respeito de fatos praticados até com certa frequência e que, apesar de carregarem baixa repercussão social, refletem uma realidade atrelada a uma crise social e econômica. É certo que o Direito vive do fato social e cuida das condutas humanas previamente ajustadas nas regras legislativas Bem dizia Maximiliano que o Direito "nasce na sociedade e para a sociedade; não pode deixar de ser um fator do desenvolvimento da mesma. Para ele não é indiferente a ruína ou a prosperidade, a saúde ou a moléstia, o bem-estar ou a desgraça".2 O projeto merece ser criteriosamente discutido pela sociedade, contando até mesmo com a manifestação popular, que é a vertente mais legitimada para corretamente direcionar uma decisão. A realidade brasileira merece ser estudada com mais acuidade. Os teóricos do Direito no século 18 profetizavam que não é o tamanho do castigo imposto que atua como freio da criminalidade e sim a virtual certeza de que a punição não virá. A proposta legislativa tem como sustentáculo o pensamento de que o abrandamento da lei é a medida mais eficaz para o tratamento da baixa lesividade. Quer dizer, quanto menor for a intervenção penal - provocando até mesmo certa descriminalização do furto em algumas modalidades - maior e mais benéfica será a resposta social. Vários abrandamentos legislativos foram feitos como, por exemplo, na Lei dos Crimes Hediondos, que tinha por objetivo uma punição exemplar para aquele que praticasse um delito grave e acabou levando a população a uma frustração coletiva pelo esfacelamento das cláusulas mais rígidas. A atenuação pretendida já carrega um entendimento da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que elencou os requisitos de ordem objetiva para aplicação do princípio da insignificância, nos chamados crimes de bagatela, com a mínima repercussão penal e social: a) conduta minimamente ofensiva do agente; b) ausência de risco social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica. O projeto de lei apresentado, apesar da preocupação social demonstrada, no entanto, estende o benefício até mesmo para o infrator reincidente. Tal abertura não coaduna com a realidade da política criminal brasileira, que apresenta alto índice de insegurança diante de uma escalada estarrecedora de crimes de conteúdos diversos. O contumaz se sentiria prestigiado pela própria lei a praticar várias condutas irrelevantes, mesmo que separadamente sejam consideradas de valores ínfimos. Concede-se a ele uma espécie de carta de alforria e abre-se um espaço sem qualquer juízo de reprovabilidade e sim de incentivo para prosseguir na empreitada delituosa. O resultado é previsível: fragilizar o sistema penal com o enfraquecimento das poucas medidas protetivas da sociedade. O atalho pretendido pode desembocar no abismo. Melhor seria a criação de políticas públicas salutares voltadas para a construção de um cenário animador com a inclusão da população nos parâmetros da cidadania, com o consequente acesso ao trabalho, educação, saúde e tudo o mais que integra a dignidade da pessoa humana. O Código Penal, que carrega um olhar vetusto e corroído pelo tempo, merece sim uma remodelagem, tanto para captar qualquer lampejo da sensibilidade necessária como, também, para distinguir aquele que, aproveitando do flanco aberto na legislação, faz do crime um verdadeiro meio de vida. __________ 1 Disponível aqui. 2 Maximiliano, Carlos. Hemenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.  137.
domingo, 18 de setembro de 2022

O corpo e o cadáver

A corporeidade - assim entendida como um princípio individualizante - tem por função imprimir ao homem sua realidade singular, revelando-o como pessoa articulada com as demais. Faz dele o detentor de um enorme latifúndio chamado corpo humano, que funciona como instrumento não só deambulatório mas também com inúmeras funções mais para realizar seus objetivos e, ao memo tempo, abriga, em seu interior, as vidas psíquica, volitiva e inteligente. Tanto é que, dessa unidade intrínseca, faz fluir a dignidade da pessoa humana, compreendida na tutela voltada para a saúde física, mental e psíquica. Ocorre que, como é inevitável, toda esta construção ruirá com a ocorrência da morte e o corpo humano transmuda-se em cadáver e, como tal, tem as proteções também definidas. O Estado, responsável pelo corpo que carregava a vida humana, continua sua missão, agora com o cadáver. Criou, para tanto, o tipo penal de vilipêndio a cadáver ou suas cinzas, no artigo 212, inserindo como vítimas os parentes e amigos próximos que guardam sentimentos de respeito e admiração pelo falecido. A responsabilidade familiar pelo cadáver vem desde a Roma antiga, época em que prevalecia fortemente a religião doméstica e somente os parentes mais próximos poderiam participar do funeral, uma vez que os mortos eram enterrados no fundo da casa, local onde se realizavam os cultos aos mortos e ao fogo, que deveria permanecer aceso para representar a imortalidade da alma. "O vivo, esclarece Coulanges, não podia passar sem o morto, nem este sem aquele. Por esse motivo, poderoso laço se estabelecia unindo todas as gerações de uma mesma família, fazendo dela um corpo eternamente inseparável".1 Percebe-se, nesta linha de pensamento, que os parentes são os responsáveis pelo cadáver, cabendo ao Estado realizar somente as ações referentes às escolhas feitas por eles em vida. A legitimidade familiar conferida legalmente conserva uma motivação de cunho eminentemente íntimo, resultante da convivência de muitos anos, em razão da revelação feita em vida por aquele interessado na doação de órgãos e do próprio cadáver. O primeiro questionamento que se faz é a respeito da doação de órgãos, tecidos e partes do cadáver, regulamentada pela lei 9.434/97. Na modalidade post mortem, referida Lei estabelece que a doação de órgãos só poderá ser realizada com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central.  Assim, se a pessoa nada exigiu em vida, seu sepultamento será realizado no cemitério local, com a observância das normas estabelecidas pelo poder público. Quando optar pela cremação do cadáver somente poderá ser feita se houver manifestado para a família em vida a vontade de ser incinerado, ou no interesse da saúde pública, além do caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária, conforme disciplina a lei 6015/73. Há casos em que a pessoa em vida deixa um documento revelando que pretende doar seu corpo post mortem para uma instituição de ensino com a finalidade de realizar estudos científicos. A esse respeito, o próprio CC/02 (art. 14) considera válida a disposição do próprio corpo, no todo ou em parte, após a morte, desde que tenha por objetivo motivação científica ou altruística. Mas, mesmo assim, a palavra final ainda será da família. Pode até ser que seja encontrado um cadáver sem qualquer identificação e, mesmo identificado, apesar das diligências feitas, não sejam encontrados seus parentes ou o representante legal. Neste caso, obrigatoriamente, será publicada a notícia do falecimento em jornal da cidade pelo prazo de 10 dias, na tentativa de encontrar os parentes. Resultando infrutífera, o cadáver será destinado às escolas de medicina para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico, consoante determina a lei 8.501/92. Por isso que as faculdades de medicina realizam todos os anos cultos e celebrações ao Cadáver Desconhecido, projetando uma perfeita reflexão humanística em nome daquele que, de forma altruísta e solidária, doou seu corpo para a formação científica dos futuros médicos. A rainha Elizabeth II, monarca mais longeva da história, morreu aos 96 anos e seu corpo foi exposto à visitação pública por vários dias e será enterrado na Capela familiar de Saint George, mausoléu escolhido por ela porque lá se encontram os restos mortais dos seus pais, da sua irmã e de seu marido. É conhecida a dedicatória de Machado de Assis na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas: "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas". Mário Quintana, por sua vez, conhecido como o poeta das coisas simples e encantado pela vida, como que querendo afugentar a morte e eliminar o pensamento a respeito do cadáver, mandou escrever na lápide de seu túmulo: "Eu não estou aqui". _____ 1 De Colulanges, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jean Melville. Editora Martin Clarete, 2003, p.38.
domingo, 11 de setembro de 2022

Setembro Amarelo

No dia 10 de setembro é comemorado o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Amarelo para representar a cor que Mike Emme, jovem norte-americano de 17 anos, que cometeu suicídio, pintou seu Mustang 68. Em seu velório, os pais e amigos distribuíram cartões amarrados com fitas amarelas e com mensagens de apoio para quem estivesse enfrentando o mesmo problema. Referido mês foi escolhido para alavancar no Brasil a campanha de conscientização a respeito do suicídio. O Código Penal Brasileiro, mirando a vida humana como o bem jurídico prevalente, com relação ao suicídio, traçou três modalidades de seu cometimento no artigo 122. A primeira delas é pela instigação, compreendendo aqui o ato de incitar, estimular na pessoa a ideia pré-existente, para que ela venha realmente concretizar seu intento. A segunda, pelo induzimento, manifestado pelo ato de incutir, fazer a pessoa se interessar e estimulá-la a alimentar a ideia suicida. Nesta situação a mente da pessoa está inicialmente in albis e nela é plantada a semente para colocar um fim à própria vida. A terceira, consistente em prestar auxílio, compreende toda ajuda material para que o suicida atinja seu propósito. Visando oferecer políticas públicas direcionadas ao tema, o governo editou a lei 13.819/2019 instituindo a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio a ser implementada pela União, em colaboração com os Estados, Municípios e Distrito Federal. Compreendem na lei a violência autoprovocada, o suicídio consumado, a tentativa de suicídio e todo ato de automutilação, com ou sem ideação suicida. Traz ainda, dentre outros objetivos, a promoção à saúde mental, a prevenção à violência autoprovocada e o acesso às pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, notadamente àquelas com ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio, envolvendo entidades da saúde, educação, comunicação, imprensa e polícia, entre outras. No caso específico do suicídio, os objetivos da campanha cingem-se na promoção da saúde mental com a finalidade de: a) garantir  o acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, especialmente daquelas com histórico de ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio; b) abordar adequadamente os familiares e as pessoas próximas das vítimas de suicídio e garantir-lhes assistência psicossocial; c)  informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e a relevância das lesões autoprovocadas como problemas de saúde pública passíveis de prevenção e promover a articulação intersetorial para a prevenção do suicídio. Uma das formas de comunicação será o serviço telefônico ou qualquer outra forma de comunicação destinada ao serviço gratuito e sigiloso de pessoas em sofrimento psíquico, observando que o atendimento deverá ser prestado por profissional com qualificação adequada. Fica bem delineado o espírito educativo e preventivo da lei quando se refere à assistência às pessoas em sofrimento psíquico e, principalmente, quando elege os profissionais da psicologia e da psiquiatria como os qualificados para a prestação da assistência necessária e adequada. O zelo pela saúde mental da comunidade é de vital importância. É sabido que pessoas portadoras de sofrimento psíquico se perdem em seus próprios pensamentos, persistem em suas ideias errôneas, indolentes, não sabem para onde ir e não se abrem para assimilar novas perspectivas de vida, a não ser os reiterados choques de negatividade. Daí a necessidade da participação de profissional qualificado e que tenha condições de romper o modelo de vida desgastado e introduzir a reflexão necessária e construtiva para enfrentar e acertar as contas com o passado turbulento das pessoas em sofrimento mental. A saúde psíquica do cidadão, a exemplo da definição de saúde da Organização Mundial da Saúde, integra todos os cuidados de saúde, independentemente das condicionantes sociais, ambientais, econômicos e outras, visando sempre a atingir o bem comum. Desta forma, detectada a vulnerabilidade em razão do sofrimento psíquico, o próprio Estado deve garantir políticas públicas de atendimento preventivo com as condições necessárias e acessíveis a todos os que se encontram sob o mesmo quadro clínico mental, com absoluta proteção da confidencialidade das informações. Tamanha é a importância da atenção voltada às pessoas com sofrimento psíquico que os casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada, compreendendo o suicídio consumado, suicídio tentado ou qualquer ato de automutilação, com ou sem ideação suicida, são de notificação compulsória, de caráter sigiloso. Assim os estabelecimentos públicos e privados de saúde devem notificar as autoridades sanitárias, ao passo que os estabelecimentos públicos e privados de ensino farão a notificação ao Conselho Tutelar. Com tal aparato, as medidas devem atingir resultados que sejam considerados satisfatórios ao minorar a mortalidade em razão do suicídio, em cumprimento à obrigatoriedade imposta ao Estado pelo artigo 196 da Constituição Federal.
domingo, 4 de setembro de 2022

O neurodireito e sua tutela legal

Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudônimo George Orwell, escreveu a obra de ficção social 1984, publicada em 1949, em que narra a história de um funcionário público do Ministério da Verdade de um governo totalitário com a função de alterar atos e fatos e adequá-los ao regime político adotado. Assim o cidadão, pela política de controle, não tinha como se manifestar contrariamente e o seu pensamento era monitorado pelo Big Brother, ditador que impunha as regras doutrinárias do governo. Orwell jamais imaginaria que sua obra de ficção iria antecipar o progresso científico, notadamente na área da cognição humana e sua consequente tutela pela legislação. O Cogito, ergo sum, de Descartes, nunca foi tão valorizado e aplicado como no momento presente - na medida em que representa a atividade mental do ser humano - revelando sua forma de pensar, suas emoções, seus sentimentos e seus projetos. É uma atividade inerente ao próprio processo de viver e se encaixa perfeitamente no âmbito da manifestação do pensamento inviolável e na liberdade de consciência, assim considerados como garantias fundamentais na Constituição Federal. O incessante caminhar da tecnologia exige uma tutela especial à atividade cognitiva, responsável que é pela autogeração e pela perpetuação das redes vivas. Com toda razão esclarecem Capra e Luisi: Desse modo, a vida e a cognição são inseparavelmente conectadas. A mente - ou mais precisamente, a atividade mental - é imanente na matéria em todos os níveis da vida.1 Esta introdução se faz necessária para discutir as novas tecnologias existentes para introdução no corpo humano, por meio de próteses, chips e implantes, de minúsculos computadores que possam gerar senhas, aprovar transações em moedas digitais, abrir portas, medir e controlar o batimento cardíaco, a pressão corporal e inúmeras outras especialidades. Enfim, criam uma nova realidade com a introdução do dado neural, que vem a ser a informação obtida, direta ou indiretamente, da atividade do sistema nervoso central e cujo acesso é realizado por meio de interfaces cérebro-computador invasivas ou não-invasivas. Desta forma, mais parecendo uma ficção científica - que relata um futuro distópico na convivência das máquinas sencientes com os seres humanos já limitados pelo infindável mundo informático - abre-se uma interface entre cérebro-computador para que qualquer sistema eletrônico, óptico ou magnético, colete dados do sistema nervoso central e os transmita a um receptor informático. Desta forma, com a inserção de dispositivos na mente humana, o homem poderá ter seus pensamentos e memórias devassados, ficando como refém da própria tecnologia. De nada adiante ficar estarrecido e nem mesmo contrariar tamanha tecnologia porque não só vingará, como progredirá nesta direção. Por mais significativos que sejam os progressos científicos em áreas ainda pouco exploradas, eles serão considerados pela ciência como ensaios ainda incipientes. Daí que a biotecnologia avança a passos largos e sem qualquer indício de recuo e, rapidamente, atingirá os objetivos propostos. A não ser que o homem, seu destinatário natural, acenda o farol vermelho e estanque todo esforço concentrado por não ter mais interesse, o que é difícil na atualidade, ante os benefícios já auferidos. As propostas de facilitação da vida humana pela inserção de dispositivos tecnológicos são por demais interessantes e atrativas, um verdadeiro encantamento, dando a sensação de domínio da ciência em favor do homem. Mas há necessidade de precaução e muita cautela a respeito de possíveis danos à identidade individual do titular dos dados, causando até mesmo irreparáveis prejuízos à saúde, à autonomia e à organização psicológica da sua vida. A nova tecnologia vai conectar o sistema nervoso a um computador para captar todos os dados ali existentes, incluindo, dentre eles, os mais íntimos e sigilosos. Tais dados pertencem ao patrimônio mental da pessoa e, pela regra convencional, somente ela terá o permitido acesso. A pessoa retém em seu cérebro - e ali fica depositado durante a vida todos os registros importantes - quer sejam relacionados  à vida pessoal, social, familiar e à intimidade mais preservada que jamais serão exteriorizados, tudo a critério do titular das informações que, se quiser, elegerá, sob o crivo da sua avaliação, qual ou quais os itens podem ser disponibilizados para terceiros. Ora, com a coleta de dados neurológicos, quebra-se o freio e ocorre uma indevida invasão à intimidade do cidadão. E, de sobra, cai também a regra do Digesto, de Ulpiano: Cogitationis poenae non patitur (Ninguém pode ser punido pelos seus pensamentos). O Senado Federal do Chile, recentemente, aprovou por unanimidade a proposta de inclusão dos neurodireitos ou os direitos do cérebro em sua Constituição Federal - com fulcro nos princípios da dignidade da pessoa humana e da autodeterminação - e deve ser o primeiro país do mundo a exercer tutela a respeito da matéria.2 A intenção é preservar a integridade física e mental do indivíduo para que ninguém, nem mesmo o Estado, possa - por meio da tecnologia - aumentar, diminuir ou perturbar a integridade individual, sem o consentimento do seu titular. A ciência é dinâmica e cada vez mais irá expandir para criar uma nova realidade para a humanidade que, por sua vez, adotando-a, merece receber a tutela protetiva necessária, com restrita obediência aos limites éticos, bioéticos e jurídicos. Daí que, visando tutelar este novo avanço tecnológico, foi apresentado um projeto de lei no ano de 2021, de autoria do deputado federal Carlos Gaguim, que modifica parcialmente a lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), para nela incluir a definição de dado neural e regulamentar a proteção do cidadão com relação às informações que se encontram armazenadas no cérebro humano. __________ 1 Capra, Fritjof; Luisi, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas : tradução Mayra Teruya Eichemberg, Newton Roberval Eichemberg - São Paulo : Cultrix, 2014, p. 316.   2 Disponível aqui.
A família, como base da sociedade, goza de especial tutela no § 7º do artigo 226 da Constituição Federal, que assim dispõe: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. O planejamento familiar, inserido na lei 9.263/1996, explicita um conjunto de ações de regulação da fecundidade, limitação do aumento da prole pela mulher e pelo homem e vem atrelado às políticas públicas gestadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no que diz respeito à atenção à mulher, ao homem ou ao casal, compreendendo, dentre outras finalidades a assistência à concepção e contracepção; atendimento pré-natal; assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato; controle das doenças sexualmente transmissíveis e o controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis. Quando se fala em políticas públicas de saúde, seu conteúdo original reside na própria Constituição Federal que atribui ao Estado o dever de garantir a saúde da população, com a consequente participação de órgãos que atuem de forma direta e preventiva, com atendimento integral e assistencial para a redução dos riscos e doenças. Por se tratar de uma lei com mais de vinte anos de vigência, o tempo - que flui em sua inexorável ampulheta - os costumes e a própria tecnologia têm o condão de provocar a revisão legislativa em busca de um ajuste com relação à dinâmica social, que é mutável por natureza. Assim é que o PL 7.364/2014, de autoria da Deputada Federal Carmen Zanotto (Cidadania/SC), encampou o desafio de alterar a Lei de Planejamento Familiar e, dentre as mudanças propostas, reduz de 25 para 21 anos a idade mínima entre homens e mulheres para se submeterem a procedimento voluntário de esterilização - laqueadura de trompas e vasectomia -, faixa etária não exigida daqueles que tiverem pelo menos dois filhos vivos, sendo terminantemente proibida para menores de idade. Outra alteração proposta no Projeto, de salutar pertinência e que vai ao encontro dos protocolos médicos recomendáveis, consiste em realizar no próprio ato cirúrgico do parto a esterilização da mulher, que na lei a ser revogada exigia procedimentos distintos. A contrapartida legal, no entanto, é que a manifestação de vontade da mulher deverá ser ofertada no prazo de sessenta dias, a contar da data do seu propósito e a laqueadura. O ponto fulcral reside na ausência do consentimento expresso do outro cônjuge ou companheiro no ato da intervenção médica. Prevalece aqui, em toda sua extensão, a autonomia da vontade da pessoa interessada em se submeter ao procedimento. Revela, de forma inequívoca que, não obstante haja o casamento ou a união estável entre o casal, nenhum deles terá domínio absoluto sobre a vida sexual e procriativa do outro. A autonomia procriativa vem ganhando corpo e reafirma que a pessoa é proprietária de um patrimônio chamado corpo humano, detentora de seus atos, administradora deste inesgotável latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e a torna sujeito de direitos e obrigações, além de exteriorizar a dimensão do preceito constitucional da dignidade da pessoa humana. A vontade determinada e livre, corolário do principium individuationis, que é o resultado de uma operação coordenada pelo cérebro, forma a ação ideomotriz, que nada mais é do que a realização de condutas selecionadas pela pessoa para o exercício da sua vida social, resultado de sua coerência ética. Poder-se-ia até afirmar que desperta a consciência da finalidade do ser humano, delineia com clareza seus objetivos e o habilita a praticar atos que julga necessários e convenientes para sua vida. O Projeto foi aprovado pela Câmara dos deputados e pelo Senado Federal e segue para apreciação do Presidente da República, que poderá sancioná-lo ou vetá-lo parcial ou totalmente.