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A publicidade nas ações civis públicas: A égide do interesse público e o enfrentamento à corrupção

A ação civil pública é instrumento de controle e combate à corrupção, onde a publicidade processual prevalece e o sigilo só se admite em casos excepcionais.

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Atualizado às 09:59

Resumo: A ação civil pública de improbidade administrativa e de ressarcimento ao erário configura mecanismo de controle social e enfrentamento à corrupção, constituindo-se como regra a publicidade processual, diante da supremacia do interesse público, e cabendo a decretação do sigilo tão somente como exceção, devidamente fundamentada e delimitada.

Palavras-chave: improbidade administrativa; publicidade processual; supremacia do interesse público; enfrentamento à corrupção.

Nos idos dos seus trinta e sete anos de existência, a atual CF/88 brasileira é reconhecida como marco fundamental no combate à corrupção, mediante o fortalecimento de instituições democráticas e criação de mecanismos de controle jurídico e social.

Nesse cenário, a ação civil pública exsurge como instrumento estratégico de cumprimento de função constitucional, máxime diante da consagração da publicidade e da transparência como pilares dos atos jurisdicionais e administrativos, a rigor do que entabulam os arts. 5º, inciso LX ("a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem"), e 37, caput ("A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Município obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência."), da Carta Magna.

A temática é tão crucial para a salvaguarda do Estado Democrático de Direito que o Brasil se tornou signatário da Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, também conhecida como Convenção de Mérida, resultando na promulgação do decreto 5.687/06, com marcante influência, aliás, na posterior reforma da lei de improbidade administrativa pela lei 14.230/21.

Os anseios sociais e a luta institucional pelo resgate da credibilidade da Administração Pública estão refletidos em mudanças de paradigmas normativos e adoção de mecanismos mais eficazes contra a corrupção, o que indubitavelmente guiou o recente discurso do ministro Edson Fachin, em sua posse como presidente do STF, no dia 29/9/25, quando proclamou que "A resposta à corrupção deve ser firme, constante e institucional. O Judiciário não deve cruzar os braços diante da improbidade" (disponível em: noticias.stf.jus.br/postsnoticias/ministro-edson-fachin-assume- stf-e-defende-aumento-do-dialogo-entre-poderes).

Dessa conjuntura deflui o questionamento ainda presente em nossos órgãos Judiciários quanto à decretação de sigilo nas ações civis públicas de improbidade administrativa e ressarcimento ao erário, o que se revela, como veremos, diametralmente oposto ao espírito constitucional de enfrentamento à corrupção.

Com efeito, nos moldes já grifados, a CF/88 assegura a publicidade nas searas judicial e administrativa, excetuando-a quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (art. 5º, XXXIII) e à proteção da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 5º, X), nos termos do seu art. 37, § 3º, inciso II ("A lei disciplinará as formas de participação do usuário na Administração Pública direta e indireta, regulando especialmente: . II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII") e, ainda, em consonância com o regramento do seu artigo 93, IX ("todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação"), cuja redação foi conferida com o advento da EC 45/04.

No plano infraconstitucional, a lei de acesso à informação (lei 12.527/11) preconiza a publicidade como princípio geral, afigurando-se o sigilo como exceção, a teor do seu art. 3º, incisos I ("observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção") e II ("divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações"). Aliás, mesmo em caso de restrição do acesso à informação, o art. 31, § 4º, adverte que "não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância".

O CPC, em seus arts. 11 e 189, igualmente encrava, como regra, a publicidade dos atos processuais e, como exceção, a sua tramitação em segredo de justiça.

Impende mencionar, aliás, que o CNJ consagrou este entendimento na resolução 215/15, proposta pelo então conselheiro Gilberto Martins, para a regulamentação da lei de acesso à informação no Poder Judiciário, com a determinação da publicidade como regra para as sessões dos órgãos jurisdicionais, excepcionando a restrição do acesso de modo fundamentado e apenas para determinados atos instrutórios do processo administrativo disciplinar ("Art. 22. As sessões dos órgãos colegiados do Poder Judiciário são públicas, devendo ser, sempre que possível, transmitidas ao vivo pela internet, observada a regulamentação de cada órgão ou tribunal, bem como a disponibilidade orçamentária. § 1º Por decisão fundamentada, determinados atos instrutórios do processo administrativo disciplinar poderão ser realizados na presença, tão somente, das partes e de seus advogados, ou apenas destes, desde que a preservação do direito à intimidade não prejudique o interesse público da informação").

Nesse viés, é imperioso reconhecer que o ordenamento pátrio confere poder de controle à sociedade e às instituições democráticas e demanda atuação transparente dos poderes públicos, implicando a ponderação entre princípios e a mitigação de interesses privados, diante da supremacia do interesse público - primado do Regime Jurídico-Administrativo.

Ainda recentemente, a 6ª turma do E. TRF da 3ª. Região julgou ação de improbidade proposta com objetivo de investigar enriquecimento sem causa por parte de agente publico Federal, auditor fiscal, compatibilizando a necessária publicidade dos atos e decisões judiciais, inclusive sessão de julgamento, com o necessário sigilo aos documentos instrutórios do feito. (TRF 3ª Região, 6ª turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 0022691-31.2014.4.03.6100, relatora desembargadora Federal GISELLE DE AMARO E FRANCA, julgado em 17/02/2025, Intimação via sistema DATA: 18/02/2025)

A exceção à publicidade se daria apenas na presença de relevante interesse social a ser resguardado.

É evidente, destarte, que o arcabouço jurídico normativo desenha o compromisso das instituições brasileiras na preservação dos princípios que informam a Administração Pública e no atendimento aos anseios sociais de responsabilização dos ímprobos e de resgate dos prejuízos ao erário, do que se depreende que a decretação de sigilo nas ações civis públicas - salvo na hipótese de verdadeiro interesse social - não se coaduna com a mens legis, sob pena de esvaziamento da publicidade e transparência.

Sob tal prisma, o pretório excelso tem posicionamento convergente ao reconhecimento da publicidade como primado democrático, inclusive para fins de compartilhamento de provas. Exempli gratia, fixou tese no Tema 990, no julgamento do RE 1.055.941, de relatoria do ministro Dias Toffoli, que: "É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional".

No julgamento de agravo regimental na suspensão de segurança 3.902, de relatoria do ministro Ayres Britto, a Suprema Corte registrou que: "Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo 'nessa qualidade' (§ 6º do art. 37). (.) é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano".

E mais, no Tema 562, no julgamento do RE 685.493, sob relatoria do ministro Marco Aurélio, fixou a tese de que "Ante conflito entre a liberdade de expressão de agente político, na defesa da coisa pública, e honra de terceiro, há de prevalecer o interesse coletivo".

No mesmo esteio, vale colacionar o entendimento perfilhado pelo STJ, quanto à mitigação do direito privado ao sigilo, como no AgRg no RMS 66.563/SP, de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, em que reconheceu: "é admissível a sua mitigação [do direito ao sigilo] sempre que haja a necessidade de se harmonizar possível violação de outros direitos fundamentais ou se interesses constitucionalmente protegidos (.)", e no RMS 60.698/RJ, sob relatoria do ministro Rogério Schietti, em que frisou que "o direito ao sigilo não possui, na compreensão da jurisprudência pátria, dimensão absoluta (.)".

É oportuno citar, neste ponto, o filósofo Norberto Bobbio, na obra "O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo" (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986), para quem "a exigência de publicidade dos atos de governo é importante não apenas, como se costuma dizer, para permitir ao cidadão conhecer os atos de quem detém o poder e assim controlá-los, mas também porque a publicidade é por si mesma uma forma de controle, um expediente que permite distinguir o que é lícito do que não é".

Ante todo o exposto, é possível concluir que, incutida no bojo do regime democrático, a ação civil pública, mormente quando envolva desvios de recursos públicos, consubstancia ferramenta de controle social e de enfrentamento à corrupção, de tal forma que a publicidade dos atos processuais não poderia ser elidida pela mera presença de direitos privados, ainda que referentes à intimidade, devendo prevalecer o coletivo e subsistir a indisponibilidade do interesse público. Assim, a decretação do sigilo deverá ser excepcionalíssima e, quando presente, justificada e delimitada, sendo a publicidade o sol que ilumina os atos e decisões judiciais.

Mairan Gonçalves Maia Júnior

Mairan Gonçalves Maia Júnior

Professor visitante do Instituto de Direito Europeu e Comparado da Faculdade de Direito da Universidade de Oxford, Reino Unido. Estágio Pos-doutoral realizado no Instituto Max-Planck de Direito Internacional Privado e Comparado, em Hamburgo, Alemanha. Professor Livre-Docente em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor em Direito, na área de Direito Civil e Mestre em Direito, na área de Direito das Relações Sociais, títulos obtidos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Assistente-Doutor, sendo Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação, no núcleo de Direito Civil, dessa Universidade. Professor dos Cursos de Especialização em Contratos e Processo Civil da PUC/COGEAE. Pesquisador no Max-Planck-Institut für Europäische Rechtsgeschichte, Frankfurt, Alemanha. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará, graduado em Administração de Empresas, com habilitação em Administração Pública pela Universidade Estadual do Ceará (1987). Desembargador Federal do TRF da 3ª Região. Juiz do TRE-SP (2025-2027). Presidente do TRF da 3ª Região (2020-2022). Vice-Presidente do TRF da 3ª Região (2016/2018). Diretor Presidente da Escola de Magistrados do TRF da 3ª Região (2012/2014). Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, (2007/2009). Juiz Federal (1992-1999), Juiz do Estado de São Paulo (1992).

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