Hoje continuo a análise da teoria do risco do negócio, que é a base da responsabilidade objetiva estabelecida no CDC.
Muito bem. Em produções massificadas, seriadas, é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito1. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número muito maior de consumidores.
Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem de correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. Aliado a isso está o indelével fato de que produções desse tipo envolvem dezenas, centenas ou milhares de componentes físicos que se relacionam, operados por outra quantidade enorme de mãos que os manuseiam direta ou indiretamente2. A falha é inexorável: por mais que o fornecedor queira, não consegue evitar que seus produtos ou serviços cheguem ao mercado sem vício/defeito.
Mesmo nos setores mais desenvolvidos, em que as estatísticas apontam para vícios/defeitos de fabricação próximos de zero, o resultado final para o mercado será a distribuição de um número bastante elevado de produtos e serviços comprometidos. E isso se explica matematicamente: supondo um índice percentual de vício/defeito no final do ciclo de fabricação de apenas 0,1%3 aplicado sobre alta quantidade de produção, digamos, 100.000 unidades, ter-se-ia 100 produtos entregues ao mercado com vício/defeito.
Logo, temos de lidar com esse fato inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito.
Dessa maneira, nada mais adequado do que controlar, como fez o CDC, o resultado da produção viciada/defeituosa, cuidando de garantir ao consumidor o ressarcimento pelos prejuízos sofridos. Note-se que a questão do vício/defeito envolve o produto e o serviço em si, independentemente da figura do produtor (bem como de sua vontade ou atuação).
São o produto e o serviço — e não o fornecedor — que causam diretamente o dano ao consumidor. Este só é considerado na medida em que é o responsável pelo ressarcimento dos prejuízos. Nesse ponto temos, então, de colocar outro aspecto relevante, justificador da responsabilidade do fornecedor, no que respeita ao dever de indenizar: é o da origem do fundo capaz de pagar os prejuízos.
É a receita e o patrimônio do fabricante, produtor, prestador de serviço etc. que respondem pelo ônus da indenização relativa ao prejuízo sofrido pelo consumidor. O motivo, aliás, é simples: a receita abarca “todos” os produtos e serviços oferecidos. “Todos”, isto é, tanto os produtos e serviços sem vício/defeito quanto aqueles que ingressaram no mercado com vício/defeito. O resultado das vendas, repita-se, advém do pagamento do preço pelo consumidor dos produtos e serviços bons e, também, dos viciados/defeituosos.
Vejamos um exemplo. Vamos supor uma produção de 100 mil liquidificadores/mês e um vício/defeito no final do ciclo de produção de apenas 0,1%.
Como resultado, tem-se que o mercado receberá 100 mil liquidificadores. E o produtor aferirá uma receita advinda da totalidade dos liquidificadores. Acontece que apenas 99.900 consumidores adquirirão efetivamente liquidificadores em perfeito estado de funcionamento. Os outros 100 arcarão com o ônus de ter comprado os liquidificadores com vício/defeito.
Nesse ponto, é preciso inserir outro princípio legal justificador do tratamento protecionista dos consumidores que adquiriram os produtos com vício/defeito. É o princípio constitucional da igualdade4. Não teria, nem tem cabimento, que os 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito e que pagaram por eles o mesmo preço dos demais 99.900 consumidores não tivessem os mesmos direitos e garantias assegurados a estes últimos.
Para igualá-los é preciso que: a) recebam outro produto em condições perfeitas de funcionamento; b) ou aceitem o valor do preço de volta; c) ou, ainda, sejam ressarcidos de eventuais outros prejuízos sofridos.
É dessa forma que se justifica a estipulação de uma responsabilidade objetiva do fornecedor.
Continua na próxima semana.
1 Usarei inicialmente o termo “vício” conjugado com “defeito” (vício/defeito) porque o CDC se utiliza dos dois, que são conceitos diferentes. Em outra oportunidade, mais à frente farei a distinção entre ambos.
2 Inclusive com a contribuição dos robôs e dos sistemas de automação
3 Um número bastante ínfimo e apenas hipotético. Dependendo do setor, os índices reais podem ser superiores.
4 Art. 5º, caput, da Constituição Federal.