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A teletriagem no Brasil: Fundamentos, regulamentação e desafios jurídicos à luz da proteção de dados

Este artigo analisa a prática da teletriagem sob o viés jurídico-normativo, considerando sua evolução histórica, surgimento no ordenamento brasileiro e os desafios impostos pela proteção de dados pessoais sensíveis.

30/5/2025

Antes de adentrar especificamente no tema da teletriagem, é essencial compreender a origem e o significado do conceito de triagem, já que ele serve como base para a prática realizada a distância. Assim, iniciamos nosso estudo com uma breve curiosidade etimológica: qual é a origem da palavra “triagem”?

O termo tem raízes no francês trier, que significa “organizar” ou “separar”. Seu uso no contexto médico remonta à Revolução Francesa, quando o cirurgião-chefe da Guarda Imperial de Napoleão Bonaparte – Dr. Dominique-Jean Larrey - implantou um sistema para classificar os soldados feridos de acordo com a gravidade dos ferimentos. Essa prática permitiu estabelecer prioridades no atendimento, salvando vidas que, de outra forma, seriam perdidas sem tratamento imediato.1

Embora tenha surgido em contextos militares, a triagem só foi formalmente consolidada como prática durante a Primeira Guerra Mundial. A partir de então, seu uso se expandiu para além dos campos de batalha, tornando-se um procedimento essencial e rotineiro em unidades de saúde. Atualmente, é realizada por profissionais de enfermagem, que avaliam o estado geral do paciente e coletam informações clínicas para determinar a prioridade no atendimento e direcioná-lo ao profissional ou serviço mais adequado a sua condição.2

Com os avanços tecnológicos e a crescente necessidade de ampliar o acesso aos serviços de saúde, surgiu a telemedicina - prática médica mediada por tecnologias da informação e comunicação, que viabilizam a realização de atividades clínicas a distância, como atendimentos, monitoramento, diagnóstico, orientação e acompanhamento, por meio de plataformas digitais –, que desde a década de 80 passou a ocupar um papel central nas estratégias de cuidado à saúde.

Contudo, a prática foi regulamentada somente em 2002, através da resolução CFM 1.643, que, em seu art. 1º, definiu a telemedicina como o “exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em saúde.” Durante a vigência da respectiva resolução, a telemedicina era restrita a situações emergenciais ou quando solicitada por outro médico (art. 3º).

Com o passar dos anos, o CFM ampliou, de forma tímida, o escopo da prática, por meio das resoluções 2.107/14, 2.227/18 e 2.228/19 - todas posteriormente revogadas.

No entanto, foi durante a pandemia de Covid-19 que a telemedicina evidenciou, de maneira incontestável, sua importância, consolidando-se como uma alternativa segura, eficaz e necessária para o cuidado com a saúde.

A pandemia impulsionou um novo marco regulatório, com a publicação da resolução CFM 2.314/22 e da lei 14.510/223. O objetivo era claro: garantir acesso à saúde, minimizar aglomerações em unidades de atendimento e conectar pacientes e profissionais, especialmente em regiões remotas.

Dentro desse novo cenário, a telemedicina passou a ser exercida em diversas modalidades de teleatendimento médico, entre elas a  teletriagem, definida no art. 11 da resolução CFM 2.314/22 como “ato realizado por um médico, com avaliação dos sintomas do paciente, à distância, para regulação ambulatorial ou hospitalar, com definição e direcionamento do paciente ao tipo adequado de assistência que necessita ou a um especialista.”Ainda, nos parágrafos 1º e 2º, respectivamente: “O médico deve destacar e registrar que se trata apenas de uma impressão diagnóstica e de gravidade, o médico tem autonomia da decisão de qual recurso será utilizado em benefício do paciente, não se confundindo com consulta médica” e “Na teletriagem médica o estabelecimento/sistema de saúde deve oferecer e garantir todo o sistema de regulação para encaminhamento dos pacientes sob sua responsabilidade”.

Da leitura destes dispositivos, denota-se que a teletriagem é um procedimento síncrono, ou seja, realizado em tempo real, voltado à realização de um diagnóstico preliminar, para fins de auxiliar o médico no encaminhamento adequado do paciente, não podendo ser confundida com uma consulta médica.

Com efeito, “a participação humana do médico é indispensável para interpretar os dados fornecidos pelo paciente, compreender informações subentendidas e realizar avaliações aprofundadas, considerando fatores psicossociais, históricos de saúde e outros elementos que podem não ser captados por sistemas automatizados.” Os autores reforçam ainda que “a relação médico-paciente é essencial para estabelecer confiança, fornecer orientações personalizadas e criar um ambiente de cuidado holístico, aspectos insubstituíveis por chatbots”.5

Assim sendo, a teletriagem não pode ser automatizada – o médico, com sua expertise, deve avaliar os dados recebidos, considerando não apenas sintomas objetivos, mas também aspectos subjetivos, históricos e psicossociais, o que reforça a necessidade da participação humana qualificada no processo, sob pena de prejuízo tanto à análise clínica integral do paciente quanto a otimização do fluxo de atendimento.6

Nessa perspectiva, com todo esse avanço tecnológico, levantaram-se preocupações quanto a segurança dos dados dos pacientes, motivo pelo qual, visando proteger os usuários de eventuais vazamentos de dados, foram criadas algumas regras, com destaque para a já mencionada resolução CFM 2.314/22, que em seu art. 3º, §1º  determina que o atendimento por telemedicina — inclusive teletriagem — deve ser registrado em prontuário médico físico ou digital, assegurando a confidencialidade, privacidade e integridade das informações.

Seguindo essa linha, o art. 2º da lei 14.510/22 estabelece o princípio da responsabilidade digital que, em suma, determina que todos os profissionais e instituições que atuam com telessaúde têm o dever de garantir a segurança e a rastreabilidade das informações tratadas digitalmente, que reforça “a governança de dados (plano ex ante no qual se insere o compliance) e que amplia as zonas de incidência da responsabilidade civil também para os parâmetros regulatórios preventivos”7.

Tanto a resolução 2.314/22 quanto a lei 14.510/22 devem ser interpretadas à luz da LGPD, que obriga a adoção de boas práticas de governança e proteção de dados, observando os princípios da finalidade, adequação e necessidade (art. 6º, incisos I a III)8.

Ainda, o marco civil da internet (lei 12.965/14), em seu art. 7º, inciso III, assegura a inviolabilidade e o sigilo das comunicações privadas, permitindo sua quebra apenas mediante ordem judicial. Esse dispositivo legal impõe uma importante limitação às plataformas digitais utilizadas: elas não podem acessar, monitorar ou armazenar o conteúdo das interações médicas, reforçando a exigência de que plataformas digitais utilizadas em atendimentos por telemedicina adotem medidas robustas de segurança da informação, sob pena de responsabilização civil e administrativa.9

A Constituição Federal, no art. 5º, X, garante o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, todos diretamente aplicáveis à relação entre paciente e profissional de saúde. A proteção desses direitos é condição de validade do modelo digital de atendimento.

Mesmo diante de toda essa proteção legal, é indispensável que o paciente autorize o atendimento por telemedicina, incluindo o registro, a transmissão e o eventual compartilhamento de dados clínicos e imagens. Esse consentimento deve ser colhido de forma livre, informada e inequívoca, e obrigatoriamente registrado no SRES - Sistema de Registro Eletrônico de Saúde, configurando requisito essencial para a validade e a legalidade da prática médica remota (art. 15 da resolução CFM 2.314/22).

Em harmonia com essa exigência, o art. 7º da LGPD (lei 13.709/18) determina que o tratamento de dados pessoais sensíveis — como os referentes à saúde — deve estar amparado por uma base legal válida, sendo o consentimento do titular uma das principais hipóteses legais, desde que manifestado de forma inequívoca e previamente informada.10

Por fim, no que se refere ao ciclo de vida dos dados, conforme dispõe o art. 16 da LGPD, esses dados devem ser eliminados ao término da finalidade que justificou seu tratamento, salvo nas hipóteses em que a conservação for exigida por obrigação legal ou regulatória, como ocorre, por exemplo, com prontuários médicos. A inobservância desses preceitos pode caracterizar tratamento indevido de dados, sujeitando o agente de tratamento (profissional de saúde, instituição ou plataforma tecnológica) às sanções administrativas previstas nos arts. 52 a 54 da LGPD, que incluem advertência, bloqueio dos dados, suspensão de atividades e multa de até 2% do faturamento da empresa infratora, a depender da gravidade da infração.

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1 SCHAEFER, Fernanda. Telemedicina: conceituar é preciso. In: SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico (coord.). Telemedicina: desafios éticos e regulatórios. 2 ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2024. p. 8-9.

2 STEEL, Robertson. Evolution of triage systems. Disponível aqui. Acesso em: 10/5/25.

3 BRASIL. Lei nº 14.510, de 27 de dezembro de 2022. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para autorizar e disciplinar a prática da telessaúde em todo o território nacional, e a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015; e revoga a Lei nº 13.989, de 15 de abril de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 20/5/25.

4 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 2.314, de 05 de maio de 2022. Define e regulamenta a telemedicina, como forma de serviços médicos mediados por tecnologias de comunicação. Disponível aqui. Acesso em: 20/5/25.

5 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Proteção de dados pessoais e decisões automatizadas na área da saúde: desafios em relação à teletriagem médica. In: VII Encontro Virtual do Conpedi, 2024, Florianópolis - SC. Direito e saúde [recurso eletrônico]. Florianópolis: Conpedi, 2024. v. 20. p. 352-368.

6 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Teletriagem e proteção de dados pessoais na área da saúde: definição, viabilidade e principais desafios. In: SARLET, Gabrielle Bezerra Sales; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth; MELGARÉ, Plínio (org.). Proteção de dados: temas controvertidos. Indaiatuba: Foco, 2024, v. 2, p. 161-174.

7 SCHEFER, Fernanda. Telessaúde e responsabilidade digital na lei 14.510/22. Migalhas de Responsabilidade Civil, 14 fev. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20/5/25..

8 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 2.314, de 05 de maio de 2022. Define e regulamenta a telemedicina, como forma de serviços médicos mediados por tecnologias de comunicação. Disponível aqui. Acesso em: 20/5/25.

9 BRASIL. Lei 12.965/14, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 20/5/25.

10  BRASIL. Lei 13.709/19, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Disponível aqui. Acesso em: 20/5/25.

Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima , professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira , professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD. Coordenadora do MBA em Direito e Tecnologia, oferecido pelo Centro de Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina (CIAAM+) da USP. https://ciaamplus.com.

Evandro Eduardo Seron Ruiz , professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca , professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.

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