Migalhas de Responsabilidade Civil

Sobre a assunção de responsabilidades e o combate à exclusão digital dos vulneráveis: O que podemos aprender a partir das fraudes contra aposentados e pensionistas do INSS?

A coluna aborda a exclusão digital de idosos e as fraudes bilionárias em descontos indevidos no INSS, destacando a omissão estatal e o risco da judicialização em massa.

17/6/2025

A vulnerabilidade digital tornou-se assunto que adquiriu repercussão mundial1 em razão dos novos paradigmas tecnológicos que passam a repercutir praticamente em todos os seguimentos da sociedade na atualidade, provocando os setores público e privado a renovadas formas de atuação em prol da inclusão digital dos vulneráveis.

Trata-se de fenômeno que desafia os diferentes âmbitos da sociedade a compreender, antes de tudo, as causas e as consequências dessa exclusão2.

A vulnerabilidade digital pode ser identificada sob enfoques técnicos, científicos, fáticos e informacionais, atingindo os mais variados grupos sociais3, densificando-se, proporcionalmente, na mesma velocidade em que as tecnologias se desenvolvem4, trazendo um vertiginoso incremento de danos nunca antes vivenciados.

Para além dos novos danos experimentados, os segmentos sociais mais frágeis ainda sofrem com notórios obstáculos para acessar os meios extrajudiciais e judiciais de proteção de seus direitos, o que os torna presas fáceis para todo o tipo de atividades ilícitas lucrativas.

A temática ganha proporções ainda mais dramáticas quando se analisa a vulnerabilidade das pessoas idosas diante das novas tecnologias5. Nada obstante a vigência de alguns importantes estatutos protetivos - tais como o Estatuto da Pessoa Idosa (lei 10.741, de 2003), a lei de Política Nacional do Idoso (lei 8.842, de 1994) e a própria Constituição Federal -, as dificuldades de compreensão e manuseio dos recursos tecnológicos acabam por obstaculizar a plena fruição de seus direitos individuais e sociais.

Por isso, para muito além de se garantir aos idosos a prioridade de tratamento, impõe-se “que as políticas públicas devem ser pensadas primeiramente para atendê-los e que no sistema de saúde, de justiça, nas relações entre os particulares e entre esses e o Poder Público, o idoso assume uma posição privilegiada de sujeito de direitos”.6

Um ótimo (apesar de repugnante) exemplo de como a vulnerabilidade digital e a hipossuficiência multicausal afeta cruelmente os idosos no Brasil pode ser inferido do recente escândalo dos desvios bilionários perpetrados por entidades associativas contra milhões de aposentados e pensionistas do INSS.

Para apurar a fraude, foi deflagrada pela Polícia Federal a operação “Sem Desconto”, que investiga um esquema de descontos em folha de pagamento não autorizados, em prol de entidades associativas, de aposentadorias e pensões pagas pelo governo federal.

O que se sabe, até então, é que algumas entidades de classe (associações e sindicatos) formalizavam Acordos de Cooperação Técnica com o INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, mediante os quais se lhes autorizava a realização de descontos automáticos (em folha) de aposentadorias e pensões, a título de taxas mensais associativas.  

Ocorre, no entanto, que a imensa maioria dos descontos foram feitos sem autorização dos aposentados e pensionistas, mediante a falsificação de documentos de filiação e autorização. Assim, as cobranças indevidas eram descontadas diretamente dos benefícios previdenciários daqueles, calculando-se um prejuízo estimado em R$ 6,3 bilhões, entre os anos de 2019 e 2024.7

Diante da descoberta da fraude e da repercussão nacional, o governo federal vem orientando os aposentados ou pensionistas a acessar o aplicativo “Meu INSS” e, preferencialmente, por meio da plataforma digital, reportar a ausência de consentimento e os danos sofridos.8

Ou seja, exige-se de uma classe notoriamente vulnerável e desassistida que, por uma via digital a que muitos não tem acesso ou não conseguem manipular que: i) constate se vem sendo vítima dos descontos indevidos; ii) verifique se autorizou ou não o desconto; iii) solicite a devolução dos valores decontados e, iv) aguarde a entidade associativa se manifestar sobre o referido desconto.

Como se percebe, o idoso vulnerável é duplamente penalizado: sofre com as consequências dos desvios de seus benefícios e não possui, muitas vezes, sequer acesso adequado para formalizar as pretensões de reparação.

Para além de despertar uma verdadeira comoção nacional e chamar a atenção para o tema da vulnerabilidade digital, o escândalo das fraudes contra os aposentados e pensionistas do INSS ainda suscita relevante debate jurídico, concernente à responsabilidade civil do Poder Público pelos danos a eles causados.9

Nesse sentido, a turma nacional de uniformização dos Juizados Especiais Federais está debatendo a fixação de tese jurídica específica (Tema 326, ainda pendente de julgamento), que objetiva avaliar “se o INSS é civilmente responsável nas hipóteses em que se realizam descontos de contribuições associativas em benefício previdenciário sem autorização do segurado, bem como, em caso positivo, quais os limites e as condições para caracterização dessa responsabilidade.”10

O entendimento jurisprudencial que vem se consolidando aponta no sentido da responsabilidade objetiva da autarquia (INSS) pelos descontos indevidos efetuados em benefícios sociais, ainda que decorram de fraudes cometidas por terceiros. Bons argumentos, para tanto, abundam.

Muito embora, nos mencionados casos, seja possível imputar a responsabilidade civil do Poder Público também por omissão (na medida em que desatendeu notório dever de vigilância, deixando de fiscalizar adequadamente os convênios firmados com as entidades associativas e prevenir possíveis fraudes), parece clara a imputação de responsabilidade civil também por ação - na medida em que as fraudes só foram viabilizadas em virtude da autorização concedida às associações e sindicatos para a utilização da ferramenta dos descontos em folha.

De todo modo, a imputação da responsabilidade civil ao Poder Público pelos desvios de valores bilionários dos aposentados e pensionistas parece ser um imperativo derivado da necessidade da facilitação ao integral e tempestivo ressarcimento, a uma classe sabidamente vulnerável (hipossuficiente), de verbas de caráter indiscutivelmente alimentar.

Todavia, o que se revela mais intrigante em todos os casos de fraudes por via dos descontos em folha de benefícios previdenciários pagos pelo INSS talvez não seja exatamente a discussão sobre a viabilidade da responsabilização do Poder Público (que parece óbvia), muito menos sua natureza jurídica.

O cenário dessas fraudes, acima de tudo, escancara a necessidade de se compreender e discutir a respeito da forma pela qual, uma vez admitida a responsabilidade do Poder Público, passe a providenciar o integral e tempestivo ressarcimento de todas as vítimas pela via administrativa, sob pena de provocar, mais uma vez, a profusão da judicialização de demandas ressarcitórias (individuais e coletivas), retroalimentando, assim, uma litigância absolutamente desnecessária e lesiva, tanto às vítimas quanto ao próprio Estado.

Vale lembrar, aliás, que as demandas envolvendo o INSS - usualmente fundadas na intempestividade das deliberações administrativas ou no  indeferimento da concessão de benefícios previdenciários - constituem uma das maiores causas da judicialização no Brasil.

Em recente estudo denominado “Projeto de redução da litigância contra o Poder Público”11, coordenado pelo STF em parceria com o CNJ - Conselho Nacional de Justiça, foram diagnosticados os temas mais suscitados na litigância em face do Estado. No levantamento empírico da pesquisa, apurou-se que as ações previdenciárias representam impressionantes 87,43% das demandas ajuizadas contra o governo Federal, isto é, o grande tema “Previdenciário” foi identificado como o principal tema da litigância preponderante, com 5.336.429 processos.12

E, pelo andar da carruagem, tais números só tendem a crescer.

Enquanto o governo federal patina na assunção de suas responsabilidades e demora imensamente na tomada de decisões justas, estratégicas e econômicas - que passam, necessariamente, pela disponibilização a todos os aposentados e pensionistas de modelos indenizatórios adequados (simples, céleres e acessíveis) pela própria via administrativa -, a litigância esfrega as mãos. Mais uma vez.

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HELBERGER, N.; SAX, M.; STRYCHARTZ, J.;MICKLITZ, H.-W. Choice Architectures in the Digital Economy: Towards a New Understanding of Digital Vulnerability.  Journal of Consumer Policy, dez.2021, p. 1-26.

2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Plínio Dentzien (trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

3 MARQUES, Claudia Lima; MUCELIN, Guilherme. Vulnerabilidade na era digital: um estudo sobre os fatores de vulnerabilidade da pessoa natural nas plataformas a partir da dogmática do Direito do Consumidor. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 11, n.13, 2022. Disponível aqui.

4 HOFFMANN-RIEM,  Wolfgang. Teoria  geral  do  direito  digital:  transformação  digital,  desafios  para  o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

5 SANTOS, Romualdo Baptista dos. A responsabilidade digital na Lei da Telessaúde. O que é isso? Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível aqui.

6 RIBEIRO, Ana Cecília Rosário. Mútuo bancário e vulnerabilidade do consumidor idoso analfabeto. Tese doutoral defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Rogério José Ferraz Donnini. São Paulo, 2016.

7 Ministério da Justiça e Segurança Pública. Policia Federal. PF e CGU investigam descontos irregulares em benefícios do INSS. Entidades investigadas descontaram de aposentados e pensionistas o valor estimado de R$ 6,3 bi, entre 2019 e 2024. Disponível aqui.

8 Ministério da Previdência Social. INSS. Confira como pedir a restituição de descontos indevidos no benefício do INSS. Disponível aqui.

9 BRAGA NETTO, Felipe. Novo Manual de Responsabilidade Civil. 5° ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2025.

10 CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Turma Nacional de Uniformização. Tema 326. Disponível aqui.

11 Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). Redução da litigância contra o poder público : relatório final – fase 1 : resumo executivo.  Coordenação da obra:  Luís Roberto Barroso, Patrícia Perrone Campos Mello, Lívia Gil Guimarães. -- Brasília: STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação: CNJ, 2025. 40 p. Disponível aqui.

12 Ibid. p. 16.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.