A infância é, por definição, um tempo de inocência, descoberta, crescimento gradual e formação da identidade e da personalidade. Um período em que o mundo é (ou deveria ser) desvendado sob a tutela e proteção de adultos, em um ambiente social sadio, permitindo que a maturidade seja alcançada no tempo e no modo certo. O conto de Peter Pan, o menino que se recusa a crescer, ecoa profundamente essa ideia de uma infância que deve ser preservada, um lugar seguro, à parte das complexidades e perigos do mundo adulto.
No entanto, a chegada do universo digital trouxe novos e complexos desafios a essa premissa. Crianças e adolescentes são hoje expostos a um ambiente que, embora fascinante, pode forçá-los a uma maturidade precoce, expondo-os a riscos e a uma exploração que lhes rouba a essência do crescer. É nesse contexto que se insere o ECA Digital - Estatuto da Criança e do Adolescente Digital, uma bússola jurídica para navegar por essa nova realidade, costurando a proteção que as novas gerações precisam para não se perderem na “Terra do Nunca”.
Era uma vez... um conto de falhas
Era uma vez um menino que se recusava a crescer. Seu nome era Peter Pan, e ele vivia na terra do nunca, onde o tempo parecia não passar. Um dia, ele entrou na casa de uma família, procurando sua própria sombra, quando conheceu uma menina e seus irmãos. Ela o ajudou a costurar a sua sombra e ele convidou a todos para conhecerem o lugar mágico onde morava, em que se permanecia, para sempre, criança.
O que parecia um convite à liberdade infinita - na sociedade plataformizada - pode se transformar em um conto de... falhas. Porque, no mundo digital, ser criança ou adolescente significa também estar exposto a perigos que não se veem de imediato, que estão disfarçados de fantasia e entretenimento, mas que, em verdade, colocam a vida e a segurança dos pequenos em xeque: há muitos piratas na Terra do Nunca.
A Terra do Nunca “Li e aceito”
Peter Pan, então, partiu para a Terra do Nunca. Um espaço mágico, sem regras claras, em que cada um a imagina de forma diferente e cheia de aventuras... mas também repleto de armadilhas. O mundo digital guarda grande semelhança: um território sem fronteiras, com poucos limites, lúdico e sedutor, capaz de estimular a criatividade e dar asas à imaginação de crianças e adolescentes. Mas a semelhança não termina aí. Por trás desse encanto, escondem-se perigos muito reais, quase sempre invisíveis aos olhos desatentos - inclusive dos responsáveis.
Se a arquitetura e os fluxos de ideias do mundo encantado dependiam apenas das linhas escritas por James Matthew Barrie em 1902 e da imaginação de quem as lia ou ouvia, na era da plataformização o cenário é outro. Isso porque a arquitetura digital não nasce da inocência criativa, mas da engenharia algorítmica de grandes empresas que, com seus produtos e serviços digitais, desenham caminhos e ciladas invisíveis, onde a personalização, além de prejudicar a cognição e condicionar o aprendizado dos menores, cria atalhos para que o Capitão Gancho os encontre com maior facilidade.
A sombra de Peter Pan: Perfis, identidade e adultização
Na clássica história, a sombra de Peter Pan é algo que se desprende dele e ganha vida própria, de modo que ele precisa recuperar. Essa sombra, que se solta e age por si, pode ser vista como a metáfora perfeita para os rastros digitais que a criança e o adolescente deixam na rede, utilizados, em rigor, para a formação de perfis para fins comerciais, de publicidade e outros, sem que haja a menor percepção dos envolvidos sobre as consequências.
Assim como a sombra do menino Peter, o perfil é uma parte essencial da identidade do indivíduo, mas que, uma vez solta, sai de seu controle. A identidade e a consciência de si de uma criança, em pleno desenvolvimento, podem ser moldadas e distorcidas pela forma como sua “sombra digital” é utilizada. Como no conto, muitas vezes será necessário que alguém (família, Estado, plataformas) “costure” essa sombra de volta, devolvendo à criança e ao adolescente - representada pelos seus responsáveis - o controle sobre sua própria identidade, sobre os modos de se desenvolver e sobre a proteção mental.
Essa sombra digital representa também a ligação dos jovens com a realidade, o vínculo com o mundo humano e, crucialmente, com o tempo e o crescimento. A adultização precoce promovida pela exposição a conteúdos adultos na internet é uma forma de “perder a sombra”, de se desconectar do ciclo natural da vida, impondo-lhes uma visão de mundo e comportamentos que ainda não são compatíveis com seu estágio de desenvolvimento biopsicossocial.
O ECA Digital busca justamente garantir que esse elo não seja quebrado, protegendo a infância de ser forçada a um amadurecimento que ainda não lhe pertence, e garantindo que o tempo de crescer seja respeitado.
Meninos perdidos na rede: Hipervulnerabilidade digital
Os meninos perdidos habitam a Terra do Nunca sem casa, sem guia, sem proteção. No mundo digital, isso se repete em crianças e adolescentes que vagam por redes e plataformas, entregues à própria sorte. Eles são livres apenas na aparência: por trás da fantasia de autonomia, tornam-se alvos fáceis para os ganchos invisíveis da manipulação algorítmica, da exploração comercial, do abuso sexual e da violência online.
A hipervulnerabilidade digital de crianças e adolescentes em ambientes online é, portanto, o ponto central que justifica a urgência da nova legislação. Ausentes de mediação parental ou institucional, eles se submetem a uma assimetria informacional, técnica e neurocognitiva e à arquitetura algorítmica persuasiva das plataformas, o que os expõe a riscos como:
a) Exploração comercial, quando a publicidade predatória e a perfilização detalhada que visa à venda de produtos e serviços permite que seja direcionada e invasiva;
b) Direcionamento a conteúdos ilícitos ou impróprios para a idade, podendo ter impacto negativo no desenvolvimento psíquico e emocional, bem como a existência de desafios cujas consequências podem ser danosas, incluindo automutilação, sufocamento e morte
c) Oversharenting e coleta de informações pessoais e sensíveis, sem o consentimento ou base legal adequada e com finalidades que podem ir muito além do que a criança ou o responsável imaginam;
d) Manipulação comportamental pela utilização de algoritmos que viciam e induzem a comportamentos específicos, minando a autonomia e a capacidade de escolha do menor, bem como seus processos de aprendizado;
e) Cyberbulling, expondo jovens a humilhações, intimidações e agressões virtuais que podem causar danos psicológicos e físicos, tanto com relação a si quanto a terceiros;
f) Exposição a predadores e golpistas, quando crianças e adolescentes são alvos de aliciamento, grooming, fraudes e outras práticas ilícitas, com o objetivo de obter vantagens sexuais, financeiras ou de manipulação.
Dados esses fatores, é possível perceber que a hipervulnerabilidade do consumidor criança se agrava sem filtros adequados, procedimentos de verificação de idade e outras medidas de proteção - que cabem a quem desenvolve, fabrica, oferta, comercializa e opera produtos ou serviços de tecnologia da informação de acesso provável por ou direcionados para crianças e a adolescentes.
Capitão Gancho: Do convés aos cliques
Se antes o Capitão Gancho e seus piratas se escondiam em navios e ilhas remotas e mágicas, hoje eles se disfarçam na forma de interfaces atraentes, anúncios personalizados, conteúdos que parecem inofensivos e predadores disfarçados de pares ou de pessoas de confiança. O aliciamento online e a exploração de trabalho infantojuvenil sem autorização, por exemplo, são alguns dos muitos desafios que evidenciam que um espaço de educação, cultura e aprendizado (como pode ser a internet) pode rapidamente se transformar em hostilidade existencial.
A lei entende que a coexistência entre os riscos e os benefícios do ambiente digital não é mais um problema a ser avaliado, mas sim um fato que exige uma resposta jurídica séria. O “gancho” do Capitão, uma arma física, se tornou invisível e volátil, agindo nos bastidores da internet para enganar, explorar e lucrar. A regulação busca tirar esse gancho das sombras, exigindo que as plataformas se tornem corresponsáveis pela segurança dos seus usuários mais vulneráveis, mais transparência, prestação de contas, procedimentalização e responsabilidade.
A Sininho da regulação - o advocacy digital de Felca
Para a Terra do Nunca, somente se pode voar com o auxílio do brilho mágico da Sininho. Na jornada do mundo virtual, o advocacy ganha uma nova cara, digitalizado, onde figuras como Felca assumem o papel desse pó mágico. Com sua publicação viral, o youtuber expôs de forma clara e corajosa a exploração de crianças e adolescentes por meio de monetização e impulsionamento de conteúdos e, pelo seu alcance, conseguiu catalisar um movimento social que deu visibilidade a um problema urgente.
Seu “brilho”, portanto, serviu para guiar a atenção pública e de legisladores, forçando a sociedade e o Congresso a confrontar de forma mais célere o lado nocivo da internet e abrindo o caminho para que a regulação, um caminho que já estava sendo trilhado há alguns anos, pudesse - finalmente - alçar voo em busca de um ambiente mais seguro para crianças e adolescentes: nasceu o ECA digital.
ECA digital: O narrador da história
O ECA Digital não é apenas um conjunto de artigos; ele é o novo “narrador” da história - ainda sendo escrita - da infância e da juventude na era digital no Brasil. Ele dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais, aplicando-se a todo produto ou serviço de tecnologia da informação direcionado a eles ou de acesso provável.
Podemos sintetizar seus principais pontos em:
a) Proteção prioritária e absoluta: a Lei reafirma a doutrina da proteção integral, estabelecendo que a segurança e o bem-estar de crianças e adolescentes devem ser a prioridade absoluta na concepção e operação de produtos digitais.
b) Melhor interesse: toda e qualquer decisão que envolva o tratamento de dados, questões operacionais e financeiras, ou a oferta de serviços digitais devem ser guiadas pelo que é mais benéfico para o menor, superando interesses comerciais.
c) Dever de segurança e mitigação de riscos: as plataformas são obrigadas a adotar medidas efetivas para mitigar riscos, coibir a prática de crimes e remover conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes.
d) Proibição de práticas abusivas: proíbe-se a publicidade direcionada a menores, a coleta abusiva de dados e o uso de técnicas de manipulação que possam prejudicar o desenvolvimento psíquico e emocional.
e) Corresponsabilidade das plataformas: as empresas não podem mais alegar mera neutralidade. Elas se tornam corresponsáveis pela segurança dos seus usuários, devendo agir preventivamente e de forma rápida.
f) Poderes de regulação e fiscalização: o texto prevê a criação de uma autoridade administrativa autônoma, com poderes de fiscalização e sanção, para garantir a aplicação efetiva da lei.
g) Supervisão parental: as plataformas devem disponibilizar configurações e ferramentas acessíveis para apoiar o “cuidado ativo e contínuo” dos pais e responsáveis legais. Tais mecanismos devem permitir o gerenciamento de contas, a restrição de compras e a visualização do tempo de uso, com a configuração-padrão no nível mais alto de proteção disponível.
... e viveram felizes para sempre?
A aprovação do ECA Digital não é um ponto final, mas sim um marco no início de uma jornada contínua pela segurança digital. O desafio agora é a implementação técnicas das medidas impostas e a fiscalização efetiva da lei, garantindo que o que foi escrito no papel se torne realidade nas telas.
No final das contas - e dos contos -, o objetivo não é banir a Terra do Nunca digital, mas sim torná-la um lugar onde a magia da tecnologia possa coexistir com a segurança e a inocência da infância e da juventude. É um esforço para garantir que, ao invés de crescerem precocemente para se adaptarem a um mundo adulto, os jovens possam, finalmente, viver felizes para sempre em um universo digital que lhes é seguro.