A busca por eficiência, segurança e equilíbrio na execução de dívidas com garantia imobiliária é um antigo desafio no Brasil. Regras claras e aplicadas de modo previsível são essenciais se queremos um mercado imobiliário com crédito abundante, acessível e barato.
1. De onde viemos
Ao longo do século XX, o credor hipotecário nunca encontrou um bom caminho para a recuperação do seu crédito: ou percorriam uma longa e excruciante execução em juízo, ou se arriscavam pela polêmica e jamais bem compreendida excussão extrajudicial.
O resultado foi o crescente anacronismo dessa garantia milenar e sua paulatina substituição pela AF - alienação fiduciária, trazida pela lei 9.514/1997, mais eficaz por seu procedimento extrajudicial radicalmente distinto do sistema geral previsto no CPC.
A nova garantia mergulhou no caldeirão cultural do Brasil, provocando, como era de se esperar, discussões judiciais tonitruantes e interpretações contra legem. A principal controvérsia resumia-se a esta pergunta: a lei 9.514/1997 prevalece sobre o art. 53 do CDC, pelo qual são nulas “as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas” nas alienações fiduciárias em garantia?
Foram anos de incerteza, até que o STJ, atento à relevância social e econômica da garantia, julgou, em 2022, o Tema 1.095, com tese vinculante pela qual a “lei 9.514/1997, por se tratar de legislação específica”, afasta a aplicação do CDC1:
Em 2023, outro passo importante rumo à segurança jurídica: o STF, ao julgar o Tema 982, fixou tese de repercussão geral pela qual declarou ser "constitucional o procedimento da lei 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal".
Ainda em 2023, a lei 14.711/232, além de atualizar diversas regras aplicáveis à lei 9.514/1997, finalmente modernizou a hipoteca, tornando similares os procedimentos extrajudiciais das duas garantias, e mantendo certas diferenças3.
Embora os avanços tenham sido notáveis, eles não foram suficientes para aplacar uma importante discussão: na execução das garantias, a arrematação do imóvel por menos do que 50% do seu valor caracteriza preço vil e invalida o leilão extrajudicial?
Se para você a resposta é óbvia, saiba que uma parte do Judiciário discorda. Antes e depois do Tema 1.095 do STJ, os julgamentos a esse respeito não foram uniformes nem mesmo no próprio STJ:
- Em 2021, a 3ª turma, por unanimidade de votos, decidiu que, em leilão extrajudicial, caracteriza preço vil o lance não alcança 50% do valor de avaliação do imóvel4;
- Em 2023, a 3ª turma, por unanimidade de votos, entendeu que “o art. 27, §2º, da lei 9.514/1997 há de ser interpretado com as limitações até então impostas pela jurisprudência à semelhante questão, orientação corroborada pelo arts. 891 e 903, § 1º, I do CPC de 2015, segundo os quais: a) não será aceito lance que ofereça preço vil, considerando-se vil, não tendo sido fixado preço mínimo, o preço inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação (art. 891); b) a arrematação poderá ser invalidada quando realizada por preço vil ou com outro vício (art. 903)”, decidindo assim, a partir de critérios extraídos do CPC, pela caracterização de preço vil e consequente anulação de leilão extrajudicial de alienação fiduciária de imóvel5.
- No mesmo ano, contudo, por decisão monocrática, reconheceu-se como válido lance correspondente ao valor da dívida, mesmo inferior a 50% do valor de avaliação do imóvel, com fundamento no “Princípio da Especialidade, a demandar a aplicação da lei 9.514/1997, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário”, em deterimento das regras gerais do CPC6;
- Em 2024, a 3ª turma, por unanimidade de votos, decidiu que a “partir da vigência da lei nº 14.711/23, não há mais dúvidas de que, em segundo leilão, não pode ser aceito lance inferior à metade do valor de avaliação do bem, ainda que superior ao valor da dívida (acrescido das demais despesas), à semelhança da disposição contida no art. 891 do CPC/15”7;
- Em 2025, a 3ª turma, mais uma vez por unanimidade de votos, decidiu que “muito embora o art. 27, § 2º, da lei 9.514/1997 autorize a venda do imóvel em segundo leilão pelo valor da dívida, a arrematação não poderá ser realizada por preço vil, assim considerado aquele inferior a 50% do valor de avaliação, sob pena de causar um prejuízo exagerado em desfavor do devedor fiduciante”, afirmando que esse piso deve estar previsto no edital8.
Para superar tamanha insegurança jurídica, pavimentando a melhoria do sistema, o primeiro passo é termos as coisas claras, entendendo o singular mecanismo da execução extrajudicial dessas garantias.
- Clique aqui e confira a coluna na íntegra.