Migalhas Infância e Juventude

O depoimento especial na perspectiva dos 35 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente

A coluna aborda os 35 anos do ECA e a evolução do depoimento especial como direito fundamental de crianças e adolescentes nos processos judiciais.

8/7/2025

No ano de 2025, o ECA - Estatuto de Criança e do Adolescente, completa 35 anos de sua edição, não tendo sido poucas as mudanças, pelo menos para quem viveu em momentos anteriores e conheceu o Código de Menores, as alterações que ele provocou na vida social e privada da população brasileira.

Saímos de um sistema jurídico que regulava as situações que envolvessem tão somente as questões que envolvessem inimputáveis em conflito com a lei penal (adolescentes infratores) e pessoas, abaixo dos dezoito anos de idade, que estivessem em situação de vulnerabilidade social, por conta da incapacidade de seus responsáveis legais proverem suas necessidades mínimas de dignidade, a nominada situação de risco.

Com a edição do ECA, crianças e adolescentes, passaram elas, pessoas físicas individuais, a serem sujeitos de direito, estando expressos na legislação, e não mais na vontade de seus responsáveis legais ou agentes públicos que lhes atendessem, o que é melhor para elas.

Saímos de um sistema adultocêntrico (pelo menos quando estudamos o ECA), no qual as ideias e opiniões dos adultos tinham em relação a crianças e adolescentes, tiveram que ceder espaço para conceitos previamente previstos em lei.

A transposição entre sistemas tão distintos não é fácil, não basta tão somente a edição de leis para que isso ocorra, deve necessariamente haver uma mudança cultural para que não somente os agentes públicos, sejam eles do sistema judicial ou não, mas principalmente a sociedade incorpore essa nova ideia, para que ela possa ensejar uma melhoria na vida de todos.

Uma das grandes alterações previstas no ECA em relação a crianças e adolescentes, foi reconhecer, na esteira do que dispõe o art. 12 da Convenção dos Direitos da Criança, firmada pelo Brasil em 1989, o direito de que elas sejam ouvidas nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de organismo adequado, segundo as regras de processo da legislação.

Trata-se o direito de ser ouvido nos processos, de um direito fundamental reconhecido a crianças e adolescentes, e por ser um direito fundamental, não comporta uma interpretação restritiva, mesmo sem uma regulação específica nas normas processuais brasileiras, teve sua primeira aplicação em Porto Alegre, no ano de 2003, em uma Vara da Infância e da Juventude, em um processo em que uma criança, com poucos anos de idade, figurava como vítima de uma violência sexual praticada por um adolescente.

A criança naquela oportunidade foi ouvida de forma protetiva, em local diverso da sala de audiências, acompanhada de uma psicóloga, depoimento que foi viabilizado por sistema audiovisual, permanecendo o magistrado na presidência do ato processual.

O foco dessa primeira experiência não foi a busca do aprimoramento da prova judicial do processo, e com isso conseguir responsabilizar a pessoa apontada como agressora - uma forma juridicamente segura de aumentar as responsabilizações, como alguns doutrinadores chegaram a sugerir naquele momento -, mas sim garantir que o exercício de um direito fundamental não se transformasse numa violência institucional, o que ocorria anteriormente, quando uma criança era ouvida diretamente na sala de audiências, na presença de muitos adultos, que em regra lhe faziam perguntas diretas e inadequadas.

Essa primeira experiência no Rio Grande do Sul chamou a atenção de outros profissionais que trabalham na proteção dos direitos de crianças e adolescentes, tendo sido significativo que no ano de 2007, a CHILDHOOD FUNDATION, organização não governamental fundada por S.M. a Rainha Sílvia da Suécia, tenha se incorporado ao grupo de trabalho que buscou o seu aprimoramento, viabilizando não só que que profissionais brasileiros fossem conhecer as experiências de outros países que estão construindo projetos similares, como também trouxe profissionais estrangeiros para o desenvolvimento de um protocolo de escuta que atendesse à legislação processual brasileira.

Em 2010, o CNJ, então presidido pelo saudoso ministro Cezar Peluso, mesmo sem termos ainda uma legislação processual que regulasse a tomada de depoimentos judiciais de crianças e adolescentes, editou a RECOMENDAÇÃO 33, recomendando que todos os tribunais brasileiros aderissem a essa prática.

Em 2017, entre idas e vindas de projetos de lei tratando do assunto no Congresso Nacional, foi aprovada a lei 13.431, a qual regula o DEPOIMENTO ESPECIAL na forma como o conhecemos até os dias de hoje.

O ECA completa 35 anos de vigência este mês, o DEPOIMENTO ESPECIAL 22 anos, ambos vieram para ficar e dar mais qualidade de vida à população infanto-juvenil.

Levantamento sobre o DEPOIMENTO ESPECIAL no Poder Judiciário brasileiro, feito em 2025, apresenta dados positivos e negativos.

Positiva é a constatação de que, da primeira experiência em 2003, evoluímos muito na garantia de que crianças e adolescentes possam exercer o seu direito de falar nos processos que lhes dizem respeito, pois somos um dos países que possui o maior número de equipamentos instalados para esse trabalho, em todas as unidades da federação, com milhares de profissionais capacitados para essa tarefa.

Negativo é que os números de escuta de crianças e adolescentes nos processos não para de crescer, ano a ano, o que evidencia ser a violência contra crianças e adolescentes uma endemia em nossa sociedade.

Estado

Salas de depoimento instaladas até 2024

Profissionais capacitados até 2024

Depoimentos realizados em 2019

Depoimentos realizados em 2020

Depoimentos realizados em 2021

Depoimentos realizados em 2022

Depoimentos realizados em 2023

Depoimentos realizados em 2024

AC

22

33

NI

NI

NI

NI

72

182

AL

03

21

NI

NI

NI

NI

NI

NI

AM

23

29

NI

NI

NI

NI

NI

474

AP

15

65

NI

NI

NI

NI

NI

332

BA

113

364

39

12

28

438

426

NI

CE

35

121

680

217

280

1.010

1.794

2.356

DF

11

09

1.309

1.050

1.262

1.689

1.417

1.389

ES

13

93

NI

NI

45

NI

456

400

GO

118

797

267

66

271

NI

1.285

2.483

MA

84

236

NI

NI

NI

140

402

754

MT

81

533

NI

NI

NI

NI

164

988

MS

58

488

1.131

534

1.107

1.366

1.695

2.153

MG

298

696

NI

NI

NI

1.567

2.562

4.193

PA

79

254

NI

NI

NI

NI

1.235

NI

PB

11

35

340

116

429

528

765

1.136

PR

154

481

1.277

930

1.926

2.439

3.389

4.871

PE

07

245

829

370

461

937

1.332

1.453

PI

59

318

NI

NI

NI

531

675

896

RJ

48

239

399

198

622

1.000

1.451

1.899

RN

29

84

NI

NI

NI

174

521

NI

RS

166

466

1.983

1.116

1.663

2.676

3.840

4.318

RO

23

94

202

185

 

558

178

727

RR

09

115

100

70

127

271

242

354

SC

114

416

905

1.255

1.684

3.212

4.075

4.566

SE

06

96

314

112

258

400

456

639

SP

339

2.143

6.009

3.456

3.405

8.300

6.530

7.067

TO

26

161

22

43

275

723

531

577

Total

1.944

8.632

15.706

9.730

13.843

27.959

35.493

44.207

Essa trajetória de avanços não seria possível sem a atuação firme e articulada das Coordenadorias da Infância e Juventude dos tribunais, por força da resolução 94/09, do CNJ.

Essas estruturas permanentes desempenham papel estratégico nos Tribunais de Justiça, voltado à formulação e implementação de políticas judiciárias voltadas à infância e juventude, assumindo, entre outras funções, a articulação para instalação das estruturas necessárias para a efetivação do depoimento especial, o apoio e a formação de magistrados, entrevistadores forenses e servidores, e o diálogo interinstitucional para o fortalecimento da rede de proteção de crianças e adolescentes vítimas e testemunha de violência.

Um exemplo inspirador dessa articulação entre estratégias e ações concretas ocorreu recentemente na Paraíba. Entre 2 e 13 de junho de 2025, o TJ/PB realizou a Semana da Escuta Protegida, capitaneada pela Coordenadoria da Infância e Juventude local e pelo Centro de Inteligência, Inovação e Governança do TJ/PB, que resultou na tomada de 224 depoimentos especiais, zerando o estoque na Paraíba de audiências atrasadas, instituindo o Núcleo Especializado de Depoimento Especial e apoiando a Escola da Magistratura da Paraíba na formação de entrevistadores forenses.

Com efeito, supera-se definitivamente a visão equivocada de que o depoimento especial teria como objetivo central aumentar as responsabilizações criminais. O foco foi, e continua sendo, assegurar às crianças e adolescentes o pleno exercício de um direito fundamental: o de serem ouvidas de forma segura, respeitosa e acolhedora

Atualmente, o Colégio de Coordenadores da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça tem se debruçado sobre estratégias voltadas ao aprimoramento da sistematização dos dados relacionados ao depoimento especial. Como o apoio do COLINJ, foi possível coletar junto às Coordenadorias da Infância dos Tribunais e organizar os dados apresentados neste trabalho, conquanto se reconheça a importância de que o CNJ estabelecer mecanismos e ferramentas que permitam identificar, com precisão e regularidade, o volume e a qualidade desses atendimentos em todo o país, de modo a subsidiar a construção de políticas judiciárias eficazes e baseadas em evidências.

Por fim, é importante reconhecer que a escuta protegida foi construída no Brasil por juízes da infância e juventude, em diálogo constante com profissionais do serviço social, da psicologia e da pedagogia. São esses profissionais que, desde a primeira experiência em Porto Alegre até os dias atuais, vêm garantindo que o depoimento especial seja, antes de tudo, um instrumento de proteção e promoção de direitos.

Ao completar 35 anos de vigência, o Estatuto da Criança e do Adolescente segue inspirando inovações institucionais como essa, que conferem efetividade concreta aos seus princípios e valores. O depoimento especial é mais do que uma técnica de escuta - é a expressão viva de um novo paradigma de justiça, centrado na dignidade, escuta e protagonismo de crianças e adolescentes.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.