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Retificação de área e o provimento CNJ 195/25 - Do deferimento e do indeferimento do procedimento - Parte 6

Jean Mallmann comenta o provimento CNJ 195/25: Retificar área exige não só requisitos formais, mas análise jurídica do registrador. Indeferimentos devem ser fundamentados, com indicação clara das medidas para sanar exigências e garantir segurança jurídica.

6/10/2025

Dispõe sobre as diretrizes previstas nos §§ 7º e 8º do art. 440-AX do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo Prov. CNJ 195/25 - Provimento do IERI-e), relativas ao deferimento e ao indeferimento do procedimento de retificação de área no registro de imóveis.1

Conforme § 7º do art. 440-AX do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial: “O deferimento do pedido de retificação de área dependerá do cumprimento dos requisitos legais e do convencimento do oficial de registro de imóveis, na forma da Lei de Registros Públicos e da legislação processual”. Aqui a redação deixa claro que não basta a apresentação de documentos que cumpram formalmente com o procedimento, visto que a retificação de área se trata de um processo jurídico e que deve ter sua qualificação formal e material por parte da autoridade registrária.

Desse modo, a análise a ser feita pelo registrador não se esgota na verificação das formalidades legais, como, por exemplo, a apresentação de todos os documentos exigidos e a verificação se esses documentos seguem a forma legal (reconhecimento de firma na carta de anuência, memorial descritivo emitido pelo SIGEF, requerimento assinado pelos proprietários etc.). Se fosse só isso o cartório não passaria de um órgão estatal carimbador, chancelando qualquer pedido em razão do cumprimento de um check list. A qualificação formal é importante, mas a qualificação material é o que denota a juridicidade da atuação do profissional do Direito.

A qualificação material diz respeito ao conteúdo, à análise de fundo dos fatos jurídicos levados ao registro imobiliário, sendo conditio sine qua non para a execução do ato registral requerido. 

Esse juízo valorativo na retificação de área depende do conhecimento da ciência jurídica, a fim de que se possa compreender se é possível realizar a retificação de área de acordo com a integridade do direito, se ela é intra muros ou configura algum tipo de aquisição de parte de imóveis vizinhos, se existe alguma sobreposição com terras públicas, se se exige a certificação da poligonal no INCRA, se os documentos dos vizinhos demonstram que são eles os proprietários ou ocupantes legais, se respeita as divisas existentes etc. 

Além disso, também é essencial para a qualificação registral substantiva o conhecimento da práxis cartorial, que decorre exatamente do conhecimento prático de como se configura a circunscrição territorial (que é única para cada cartório de registro de imóveis justamente por esse motivo), evitando sobreposição de área, duplicidade de matrícula, modificação da localização do imóvel etc.

Um exemplo pujante desta análise jurídica que implica em qualificação material está na discussão quanto ao aumento ou diminuição da área. Tal situação deve ser analisado caso-a-caso pelo oficial de registro, visto que as diferenças podem ocorrer por conta de haver uma descrição muito precária do imóvel na matrícula ou, ao contrário, pode advir mesmo de uma tentativa de aquisição fraudulenta de área por parte do requerente. A linha aqui muitas vezes é tênue e pode ensejar que o registrador requisite a produção de provas, como laudo técnico, ata notarial ou até mesmo uma vistoria in loco.

Conquanto alguns registradores utilizem por analogia o critério de 1/20 (um vigésimo) ou 5% (cinco porcento) como percentual máximo de aumento ou diminuição da área, previsto no regramento da compra e venda ad corpus (art. 500, § 1º, do CC),2 não nos parece que esse critério seja válido, visto que sua aplicação se dá por meio de uma analogia in malam partem, que prejudica o usuário do serviço. Outrossim, o emprego deste critério está em desacordo com a própria finalidade do procedimento de retificação de área, que é definir a descrição física real (ou factual) do imóvel, ou seja, aquilo que existe de forma exata, verdadeira, concreta, constatada em campo. 

Em áreas rurais é perfeitamente possível que as antigas descrições dos imóveis - feitas com marcação em léguas, braças, alqueires paulistas, baianos, goianos ou mineiros, dentre tantos outros, mediante uso de corda, de teodolito, ou de um cavalo que marche ao passo até o fumo se acabar3 - possa ser, sim, superior a esse tamanho.

De outro lado, o § 8º do multicitado art. 440-AX do Código Nacional de Normas prevê que:

Art. 440-AX. [...]

§ 8º. Em caso de indeferimento, deverá ser expedida nota devolutiva fundamentada na qual o oficial de registro de imóveis indicará as razões da formação de seu convencimento e, sempre que possível, informará os meios de o requerente cumprir as exigências legais, podendo requisitar a apresentação de declarações, laudos, arquivos eletrônicos ou outros documentos complementares, especialmente, como meios de prova e de análise da conformidade dos trabalhos técnicos.

A primeira parte do dispositivo possui redação semelhante àquela constante do art. 371 do CPC.4 Essa inspiração não é por acaso - ao contrário, é proposital -, visto que o registrador é o “juiz do caso”, atuando na esfera extrajudicial, e sua qualificação registral, como vimos, no âmbito destes procedimentos especiais, depende da comprovação dos fatos alegados pelo requerente. 

Não há aqui uma menor exigência de conhecimento técnico-jurídico por parte do registrador do que aquele conhecimento esperado do magistrado na análise de uma ação demarcatória. Pelo contrário, sendo do metiér do registrador de imóveis a análise do direito de propriedade em sentido amplo, é de se esperar justamente um maior rigor técnico e uma análise jurídica ainda mais especializada.

Com efeito, o convencimento do registrador na seara extrajudicial - assim como ocorre com o juiz na esfera judicial - é ponto nodal para o deferimento ou o indeferimento dos pedidos levados a registro. Aplica-se aqui, além do disposto para o procedimento especial de retificação de área, as normas do processo civil. 

Importante destacar a atividade colaborativa exigida do registrador na sua atuação como autoridade registrária. Sempre que possível, o registrador “informará os meios de o requerente cumprir as exigências legais”, motivo pelo qual a nota devolutiva não apenas deve constar as exigências, como também fundamentar juridicamente elas, apontando a base legal, e, sempre que possível, apontar o caminho para a solução das exigências pelo requerente.

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1 Este é o sexto artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis.

2 Art. 500. [...] § 1º. Presume-se que a referência às dimensões foi simplesmente enunciativa, quando a diferença encontrada não exceder de um vigésimo da área total enunciada, ressalvado ao comprador o direito de provar que, em tais circunstâncias, não teria realizado o negócio.

3 De acordo com famosa citação literária de Ulisses Lins de Albuquerque, no final do século XIX e início do século XX media-se a terra assim: “O medidor enchia o seu cachimbo, acendia-o e montava no cavalo, deixando que o animal marchasse ao passo; quando o cachimbo se acabava, acabado o fumo, marcava uma légua” (ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de. Um sertanejo e o sertão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957).

4 Art. 371, CPC. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.