Questão de Direito

Quando o imprevisível rompe o nexo: As enchentes no Rio Grande do Sul como típica hipótese de força maior

Enchentes no RS expõem a força maior em sua forma mais clara. O artigo mostra como o evento rompe o nexo causal e afasta a responsabilidade civil em contratos imobiliários. Direito e realidade se encontram.

27/6/2025

A responsabilização civil, sob qualquer de suas vertentes - contratual ou extracontratual -, não se dá de forma absoluta. O ordenamento jurídico brasileiro, como em praticamente todos os sistemas de tradição romano-germânica, estabelece hipóteses de exclusão da responsabilidade, dentre as quais se destaca a ocorrência de caso fortuito e força maior.

A riqueza e a imprevisibilidade dos fatos, no mundo real, são às vezes desafios para as classificações jurídicas. Por isso, apesar de se tratar de um tema clássico, nunca há monotonia. Se as coisas estão resolvidas “em tese”, as dificuldades se revelam por vezes bastante espinhosas quando se trata de resolver uma situação concreta.

Contudo, há hipóteses em que o próprio fato - pela sua natureza, extensão e gravidade - se impõe de maneira absolutamente clara. Este é exatamente o cenário das dramáticas enchentes que assolaram o Estado do Rio Grande do Sul nos últimos anos, sobretudo em 2024, fenômeno climático classificado, inclusive pelos órgãos públicos, como o maior desastre ambiental da história do Estado.

Este artigo tem por objetivo analisar esse evento climático específico, com enfoque especial sobre seus reflexos na execução dos contratos imobiliários de promessa de compra e venda.

1. A delimitação conceitual

A distinção entre caso fortuito e força maior tem sido progressivamente relativizada, uma vez que, do ponto de vista jurídico, ambos produzem o mesmo efeito: a exclusão da responsabilidade civil do devedor quando o fato é inevitável, imprevisível e alheio à sua esfera de atuação, rompendo, portanto, o nexo de causalidade.

O próprio art. 393 do Código Civil reflete essa aproximação conceitual ao empregar a conjunção “ou1”, tratando as expressões “caso fortuito ou força maior” como equivalentes no que se refere aos seus efeitos jurídicos.

Ainda assim, a análise cuidadosa da natureza do evento permanece essencial, justamente para enquadrá-lo corretamente e aferir suas consequências jurídicas.

A doutrina e a jurisprudência convergem no sentido de reconhecer que, para a configuração do caso fortuito ou da força maior, o evento deve preencher requisitos, entre eles:

No caso específico das enchentes no Rio Grande do Sul, não há qualquer margem para dúvida: trata-se de um evento de força maior em sua forma mais evidente e clássica2, pois:

Cabe aqui um ponto de especial destaque: a incidência dessa excludente é absolutamente compatível com as relações de consumo e com a aplicação do CDC no âmbito dos contratos imobiliários de promessa de compra e venda de imóvel. Isso porque, em situações dessa natureza, a força maior rompe o nexo de causalidade entre a conduta da construtora e o eventual atraso na entrega da obra, operando como verdadeira causa excludente de responsabilidade civil.

Aliás, a força maior é, ao fim e ao cabo, um verdadeiro “fato de terceiro3” nos termos do art. 12, § 3º, III4, do CDC, que, por disposição expressa, afasta a responsabilização civil.

2. O evento climático no Estado do Rio Grande do Sul

A tragédia climática que atingiu o Rio Grande do Sul em 2024/2025 extrapola qualquer parâmetro de normalidade. Trata-se de um evento de dimensões significativas, com declaração formal de calamidade pública em mais de 90% dos municípios, cidades inteiras submersas, populações isoladas, colapso da cadeia logística, indisponibilidade de transporte, insumos básicos, energia e água, com impactos diretos e indiretos sobre praticamente todos os setores da economia.

Na prática, é possível destacar exemplos concretos dos impactos diretos nas obras, tais como:

Importante destacar que não se trata de percepção isolada ou de tentativa argumentativa defensiva das empresas afetadas. Trata-se de fato notório5.

O próprio SINDUSCON-RS - Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Rio Grande do Sul emitiu nota oficial, na qual reconhece de forma expressa que os impactos das enchentes representariam, no mínimo, 90 dias de paralisação ou atraso nos cronogramas das obras no Estado. A FIERGS também proferiu à época estudo econômico, destacando, sob a perspectiva econômica, os impactos do evento climático.

Trata-se, portanto, de um evento que, em razão de sua gravidade, dimensão e caráter absolutamente excepcional, preenche de forma inequívoca todos os requisitos necessários à configuração da força maior.

Até o momento, a jurisprudência do TJ/RS tem se consolidado no sentido de reconhecer a excepcionalidade do evento e sua aptidão para afastar a responsabilidade civil, justamente pela caracterização de força maior6.

3. O contexto da incorporação imobiliária e a insuficiência do prazo de tolerância legal

No campo específico da incorporação imobiliária, há um dado normativo que merece especial destaque.

O art. 43-A da lei 4.591/1964 - que regula as incorporações imobiliárias - estabelece de forma expressa a possibilidade de prorrogação do prazo de entrega por até 180 dias, justamente para absorver as situações que envolvem riscos ordinários à atividade construtiva.

Contudo, a própria ratio legis desse dispositivo evidencia que sua aplicação se limita aos riscos previsíveis do setor.

Não se destina, portanto, a abranger eventos de difícil previsibilidade e caráter absolutamente excepcional, seja quanto ao seu alcance territorial, à sua intensidade ou à sua duração - e, sobretudo, eventos inevitáveis, como é o caso da catástrofe climática que assolou o Estado do Rio Grande do Sul.

Portanto, não se pode confundir as hipóteses para as quais o prazo de tolerância previsto no referido dispositivo legal foi concebido - destinadas a acomodar riscos ordinários da atividade - com eventos de força maior, que excedem completamente qualquer expectativa razoável, rompem o nexo de causalidade e afastam, de forma plena, qualquer alegação de mora ou inadimplemento contratual.

4. As consequências jurídicas

Ignorar a configuração de força maior no cenário analisado neste artigo - as enchentes no Estado do Rio Grande do Sul - não apenas afronta a dogmática da responsabilidade civil, como também compromete valores estruturantes do direito privado contemporâneo, tais como a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o equilíbrio contratual.

Decisões judiciais que, em contextos como este, insistam em desconsiderar o impacto dos fatos supervenientes na execução contratual não apenas fomentam a judicialização abusiva, como também introduzem um indesejável grau de insegurança jurídica, punindo, de forma manifestamente injusta, aquele que, tanto quanto o credor, é igualmente vítima de uma situação absolutamente extraordinária.

5. Conclusão

A correta compreensão e aplicação do instituto da força maior são fundamentais para a preservação do equilíbrio contratual, da segurança jurídica e da boa-fé objetiva. No caso das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, não há qualquer margem para dúvida: trata-se de um evento absolutamente extraordinário, imprevisível e inevitável, que preenche, de forma incontestável, todos os requisitos necessários para afastar a responsabilidade civil por atrasos na entrega de empreendimentos imobiliários diretamente relacionados ao evento climático - seja sob a ótica das relações civis e empresariais, seja sob a ótica da relação de consumo.

Esse efeito exonerativo opera de maneira plena, inclusive quando os atrasos superam o prazo de tolerância previsto no art. 43-A da lei 4.591/1964, que, como visto, foi concebido para acomodar riscos ordinários da atividade, e não situações excepcionais de força maior. Trata-se de um clássico rompimento do nexo de causalidade entre a atividade desenvolvida e o atraso, decorrente de uma circunstância absolutamente alheia à vontade e ao controle das partes.

Negar a incidência da força maior nesse contexto não é apenas juridicamente incorreto - é, sobretudo, desconsiderar a realidade, adotando uma visão insensível diante da maior tragédia climática da história do Estado do Rio Grande do Sul e de uma das maiores já registradas no país.


Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

2 Em razão da subcategorização do caso fortuito em fortuito interno e externo, é possível, na prática, que se encontre situações que típicas hipóteses de força maior sejam enquadradas como fortuito externo. Faz-se, pontualmente, esse esclarecimento, com a devida ressalva de que o presente artigo não tem por objetivo aprofundar a análise dessa subcategorização, mas se limita à análise de uma hipótese concreta, típica e clássica de força maior, as chuvas que atingiram o Estado do Rio Grande do Sul.

3 Nesse sentido, destaca-se trecho do voto do Min. Antonio Carlos Ferreira, proferido quando do julgamento do REsp 1853361/PB, em 05.04.2021: “Desse modo, afasto o nexo de causalidade entre a conduta da recorrida e o dano suportado pela recorrente, e para tanto relembro a lição de Clóvis Bevilácqua, citada em julgado da lavra do em. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: "a força maior é 'o fato de terceiro, que criou, para a inexecução da obrigação, um obstáculo, que a boa vontade do devedor não pode vencer', com a observação de que o traço que os caracteriza não é a imprevisibilidade, mas a inevitabilidade" (REsp 264.589/RJ, QUARTA TURMA, julgado em 14/11/2000, DJ 18/12/2000, p. 207)”.

4 (…). § 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: (...). III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

5 “A propósito dos fatos notórios, já os antigos praxistas ensinavam que notória non eget probatione. São notórios os acontecimentos ou situações de conhecimento geral inconteste, como as datas históricas, os fatos heroicos, as situações geográficas, os atos de gestão política etc”. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Volume I. 65ª edição, 2024, p. 808. 

“(...) independem de prova os fatos notórios que, por serem do conhecimento geral, ordinariamente também o juiz os conhece; inexistindo dúvida, que é o fundamento lógico-jurídico de toda a necessidade de provar, por esse motivo a lei os dispensa de prova (art. 374, inc. I)”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Volume III. 7 ed. São Paulo: Malheiros, p. 69.

6 AGRAVO DE INSTRUMENTO. (...) ENCHENTE DE 2024. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE POR DANOS IMPUTADA À PARTE RÉ EMPRESA FEDERAL. MULTIPLICIDADE DE CAUSAS. INEFICIÊNCIA DO SISTEMA DE CONTENÇÃO DE CHEIAS DO MUNICÍPIO. CASA DE BOMBAS. PATRIMÔNIO DE EMPRESA PÚBLICA. DESNECESSIDADE DE TRANSFERÊNCIA DA POSSE. (...). 2. Impossibilidade de alteração da classe processual de Procedimento Comum para Ação Civil Pública ante a ausência de imputação responsabilidade pela parte autora à parte ré por danos decorrentes das enchentes de maio de 2024 na cidade de Porto Alegre e limitação do objeto à ação gestão de manutenção da Casa de Bombas de Empresa Pública pelo Ente Municipal. 3. Multiplicidade de causas apontadas para que ocorresse a tragédia do mês de maio de 2024 e os enormes prejuízos até hoje suportados pela população de Porto Alegre e de todo o Estado do Rio Grande do Sulque passam pela ineficiência do sistema de contenção de cheias do Município de Porto Alegre. 4. Impossibilidade de presunção de responsabilidade da Trensurb por danos decorrentes da enchente de maio de 2024 e pelos alagamentos subsequentes verificados na região próxima à casa de bombas da empresa ré. 5. Desnecessidade de transferência da posse de bem (casa de bombas) pertencente à empresa federal para o município. Possibilidade de formalização de Termo de Cooperação entre as partes, matéria de conveniência administrativa. 6. Dado parcial provimento ao agravo de instrumento para reconhecer a impossibilidade de conversão do feito em Ação Civil Pública e determinar a tramitação da ação como ação de Procedimento Comum. (TRF4, AG 5042939-18.2024.4.04.0000, 3ª Turma, Relator para Acórdão ROGERIO FAVRETO, julgado em 29/04/2025)

APELAÇÕES CÍVEIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PASSO SANTANA IGREJA QUEIMADA, ZONA RURAL DO MUNICÍPIO DE PEDRO OSÓRIO, ENTRE OS DIAS 21/03/2024 ATÉ 04/04/2024. INTERRUPÇÃO DO SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. DEMORA NO RESTABELECIMENTO. CICLONE EXTRATROPICAL. MARÇO DE 2024. FORÇA MAIOR. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE CIVIL. 1. A demandada, na qualidade de concessionária de serviço público essencial, tem o dever de fornecer energia elétrica de forma adequada, eficiente, segura e contínua (art. 22 do CDC), respondendo objetivamente pelos danos que decorram de defeito na prestação do seu serviço. Incumbe à parte autora a demonstração da ocorrência do evento danoso, bem como do nexo de causalidade entre os danos e a alegada falha na prestação do serviço (arts. 37, §6º, da CF e 14, caput, do CDC) e a ré, por sua vez, comprovar ausência de defeito na prestação do serviço, a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (§ 3º, do art. 14, do CDC) ou, ainda, a ocorrência de caso fortuito ou força maior (art. 393, do CC). 2. Comprovada a ocorrência de fenômeno climático chamado de ciclone extratropical, que atingiu todo o Estado do Rio Grande do Sul em meados de março de 2024, trazendo chuva intensa, tempestades e ventos de mais de 100km/h, o que configura evento de força maior, excludente do nexo de causalidade e do consequente dever de indenizar. A propósito, tratam-se de fatos notórios, que independem de prova, nos termos do art. 374, I, do Código de Processo Civil (Apelação Cível, Nº 50004154220248210115, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Thais Coutinho de Oliveira, Julgado em: 27-03-2025

Veja a versão completa

Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.