Migalhas de Peso

Dez anos de Código Civil. Livres reflexões.

Identificando tendências, o professor aponta que no futuro devem os códigos reduzirem-se a princípios gerais. E finaliza com sua homenagem "a uma lei que, embora com imperfeições como toda obra humana, engrandece sobremaneira a cultura brasileira".

9/1/2012
Sílvio de Salvo Venosa

Sílvio de Salvo Venosa

Dez anos de Código Civil. Livres reflexões.

Quando completa dez anos desde a sua promulgação, a aplicação do Código Civil de 2002 nos leva necessariamente a meditar sobre vários de seus aspectos. Esse período coincide com a ascensão econômica de nosso país no contexto mundial e com a ebulição de uma crise desnecessária e inédita no Poder Judiciário em torno, principalmente, de gestão de poderes.

É importante acentuar que essa azáfama envolvendo assuntos administrativos fundamentais do Judiciário desenlaça um desânimo por parte dos magistrados na sua arte de julgar e em rebaixamento de sua moral. Isso nos leva a considerar que a figura do juiz, no Código Civil deste século, colocou o magistrado como peça fundamental na utilização do estatuto. Aproxima em muito a atividade do juiz brasileiro dos julgadores do sistema anglosaxão, com as denominadas cláusulas abertas, presentes em inúmeros artigos, convoca o julgador para aplicar a melhor solução que o caso concreto requer, dando-lhe um espaço amplo de escolha. Recorde-se o emblemático art. 421, que menciona que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Essa norma, aberta ou genérica, dentre as inúmeras desse gênero presentes no Código, deve ser preenchida pelo julgador no caso concreto. A função social avalia-se na concretude do direito. Esse quadro deve merecer deslinde que não coloque em risco a segurança jurídica, um dos pontos delicados das cláusulas abertas. Esse é o grande desafio do julgador. Assim, não se pode apontar aprioristicamente se um contrato atende ou não o interesse social. Quando o julgador concluir que um contrato, no todo ou em parte, desvia-se de sua função social, deverá extirpar sua eficácia ou, se for o caso, adaptá-lo às necessidades sociais, tal como o fará com as cláusulas abusivas. Nisso o direito pátrio, como acentuado, se aproxima muito do direito inglês e norteamericano.

Essa atividade jurisdicional, muito acentuada no presente Código, exige do magistrado, além de suas qualidades elementares, perspicácia social e elevada cultura, além de tranquilidade comportamental, nem sempre presentes nas atuais gerações. A tormentosa crise do Judiciário é mais um fator de inquietação para o jurisdicionado. A mais fundamental de todas as qualidades desse aplicador do Direito, a se manifestar palpitantemente nas cláusulas abertas, é a vocação. Magistrado que busca a carreira, apenas para galgar degraus de funcionário público, será sempre um mau julgador. Infelizmente as nossas faculdades de Direito, com níveis precários, com as exceções conhecidas, não dão o necessário realce ao futuro profissional dos acadêmicos e a esse aspecto vocacional, não só para a magistratura, mas para o vasto campo profissional que se abre ao bacharel. O magistrado, ademais, deve ser sempre um homem do seu tempo, antenado na sociedade que o cerca, uma pessoa do mundo, mundano na acepção mais técnica do termo. Muito foi feito nesse decênio em torno da correta aplicação das cláusulas abertas, mas o seu caminho, como tudo em Direito, será sempre um desafio.

Lembrando da forma como foi conduzida a promulgação do Código no início deste século, sem uma participação mais efetiva dos civilistas, várias lacunas foram observadas no estatuto e algumas incongruências que foram colocadas como um peso enorme para os julgadores. O projeto originário dessa lei remonta ao início dos anos 70 e muito necessitava ser adaptado à Constituição atual e aos novos anseios e conquistas sociais. A promulgação de um Código no século XXI se mostra surpreendente para o mundo ocidental, numa época em que se torna cada vez mais difícil colocar todo um ramo do direito de modo ordenado em uma única lei. A tendência é que os códigos se reduzam a princípios gerais, nos quais a parte geral do Código se mostra efetiva, como a base do direito brasileiro, e princípios obrigacionais. A tendência dos chamados microssistemas ou estatutos se faz cada vez mais acentuada, de forma a gravitar em torno de códigos, estes cada vez mais genéricos e sintéticos. São muitos os exemplos, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto das Cidades, dentre tantos. O Projeto do Estatuto das Famílias pretende extirpar todo o livro de família do Código Civil, a corroborar o que afirmamos. A tendência é que tenhamos um microssistema registrário, que abrangerá o Direito Imobiliário, e em outros campos do Direito Civil, como o do livro das sucessões. Esse caminho não é só do Direito Civil, mas também de outros campos, como o Direito Penal, cujo código se restringirá cada vez mais à parte geral.

Como se percebe, a problemática da codificação neste século nada mais tem a ver com o que ocorreu quando da elaboração dos primeiros códigos da história, em torno dos séculos XVIII e XIX. A era tecnológica nos trouxe outros desafios. Dentre estes, avulta a atividade hermenêutica da doutrina e a exegese dos tribunais, sob novas vestes. A lei e a doutrina manterão sua importância no direito de origem romano germânica, porém cada vez mais avultará a importância dos precedentes, da jurisprudência numa aproximação com os países de língua inglesa, onde ocorre justamente o oposto, em fenômeno que cada vez mais aproxima os dois sistemas, ambos procurando atingir o melhor ideal de justiça, por caminhos diferentes no curso de sua história.

Nesses dez anos do Código, período que ora se abre, que estas singelas reflexões sirvam de homenagem a uma lei que, embora com imperfeições como toda obra humana, engrandece sobremaneira a cultura brasileira, como também o fizera o Código de 1916.

_______________

* Sílvio de Salvo Venosa foi juiz no Estado de São Paulo por 25 anos. Aposentou-se como membro do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil, passando a integrar o corpo de profissionais de grandes escritórios jurídicos brasileiros.






_____________

Sílvio de Salvo Venosa

Sócio consultor de Demarest Advogados, Está no escritório desde março de 1996. Foi juiz no estado de São Paulo, tendo se aposentado como desembargador. Autor da coleção de direito civil, atualmente em 5 volumes, na 20ª edição e várias outra obras. Direito Empresarial. Lei do Inquilinato Comentada. Introdução ao Estudo do Direito - Primeiras Linhas, entre outras.

Veja a versão completa