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Greve e serviços públicos essenciais

Seria fundamental um diagnóstico correto do processo de negociação (ou falta de) para aperfeiçoar o modelo e prevenir potenciais erros futuros. Não se trata de uma caça às bruxas, mas de aprendizado na crise.

12/6/2018
Fábio Medina Osório

No Direito Administrativo existe um princípio clássico, o da supremacia do interesse público sobre o privado. Apesar de muitos questionamentos, esse princípio ainda existe e deve ser prestigiado pelas autoridades públicas por meio do exercício do poder de polícia. Também no âmbito dos serviços de inteligência do Estado e de suas atividades investigatórias, o Poder Executivo deve perseguir o interesse público primário como um princípio estruturante nas democracias contemporâneas.

Há instituições que mesmo não integrando o Poder Executivo detêm atribuições investigatórias e praticam atos administrativos típicos, até com poder de polícia, como é o caso do Ministério Público.

Nesse contexto, as pessoas têm direito à prestação de serviços públicos ou essenciais adequados e contínuos (artigo 9.º, § 1.º, da Constituição Federal). A lei 7.783/89 (Lei de Greve) definiu os serviços e atividades essenciais, sem prejuízo de que outras normativas pudessem posteriormente incidir para novas inserções.

O legislador, ao regulamentar o direito de greve, tratou de enquadrar as necessidades inadiáveis da sociedade, tais como assistência médica e hospitalar, distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos, transporte coletivo, tratamento e abastecimento de água, produção e distribuição de energia elétrica, gás, combustíveis, telecomunicações, processamento de dados ligados a serviços essenciais.

Existe uma cláusula geral para conceituar, no artigo 11, § único, da Lei de Greve, que são "necessidades inadiáveis da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde, ou a segurança da população". O legislador valeu-se de uma técnica que remete a conceitos jurídicos indeterminados: "perigo iminente", "sobrevivência", "saúde", "segurança". Não pode haver paralisação total de serviços que adentrem essas zonas legais e cabe, num primeiro momento, ao Poder Executivo ou ao próprio Ministério Público realizar essa interpretação.

O que vimos recentemente no Brasil? Uma desorganização total em face do exercício do direito de greve por determinado segmento. O país mergulhou no caos. Importante, pois, buscar diagnósticos e análises acuradas.

Não há dúvida que o transporte de carga é um serviço essencial à sociedade brasileira, pois se trata do principal componente do sistema logístico das empresas que prestam os mais variados tipos de serviços e fornecem produtos, empresas que compõem a indústria nacional e os mais diversos segmentos.

No Brasil predomina a matriz do transporte rodoviário, embora a malha rodoviária seja de péssima qualidade (asfalto mal conservado ou até produto de superfaturamentos, falhas de construção, estradas e obras inacabadas, malha não pavimentada, pistas esburacadas).

No índice de eficiência logística do Banco Mundial, o Brasil aparece em patamar ruim. Em 2016 apareceu na 55.ª posição entre 160 países.

Pouco se falou, no entanto, sobre um detalhe, nesta greve: os transportadores rodoviários remunerados são obrigados por lei a se cadastrar no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTRC) e obter o respectivo registro. Há rigorosa lista de exigências para o desempenho dessa atividade econômica, o que parece contrastar com a realidade (condições de trabalho ruins, frota de caminhões talvez envelhecida). Em tese, os grevistas estavam todos devidamente identificados.

Esse mercado exigiria maior intervenção regulatória dos poderes públicos, é evidente. Há, por certo, omissão histórica no tratamento desse assunto. O transporte rodoviário tem sido abandonado, aparentemente, à sua própria sorte, assim como nossas rodovias.

A lei 11.442/17 disciplina o transporte rodoviário de cargas em vias públicas no Brasil e confere competências à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para cassar registros de motoristas e disciplinar com rigor o segmento. O transportador é responsável pelas ações ou omissões de seus empregados, agentes, prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados para a execução dos serviços de transporte, como se essas ações ou omissões fossem próprias. Ministério Público do Trabalho poderia também intervir numa greve abusiva, se fosse o caso. Não se teve notícia pública de sua intervenção.

Quais são atualmente os transportadores, motoristas e veículos cadastrados no Brasil? Esse cadastro está completo ou pode ser aperfeiçoado em seu espectro regulatório? Há controles adequados? Qual a idade da frota? Como foi a atuação do Ministério Público do Trabalho nesse episódio da greve? E de cada uma das instituições competentes para resolver o problema? Era necessário chegar ao extremo da paralisação?

Ao que parece, representantes dos motoristas e transportadoras já haviam emitido sinais de insatisfação anteriormente, dadas as causas conhecidas da crise instalada. Desde quando foi detectado o movimento?

Seria fundamental um diagnóstico correto do processo de negociação (ou falta de) para aperfeiçoar o modelo e prevenir potenciais erros futuros. Não se trata de uma caça às bruxas, mas de aprendizado na crise.

A infraestrutura de transportes é essencial para o desenvolvimento de um país. A crise decorrente da greve escancarou muitas das fragilidades brasileiras, mas principalmente uma das razões por que somos menos competitivos no cenário internacional: a predominância do transporte rodoviário, com uma frota possivelmente antiga, estradas velhas e falta de controles dos poderes públicos.

Os custos logísticos na economia brasileira são altos e as condições de trabalho dos caminhoneiros, provavelmente, precárias. Esse debate carece de um aprofundamento em múltiplas direções. Há prejuízos bilionários suportados pela sociedade brasileira. Será que a negociação final resguardou o interesse público?

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*Fábio Medina Osório é sócio do escritório Medina Osório Advogados.

Fábio Medina Osório

Advogado sócio do Medina Osório Advogados. Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri, Espanha. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ex-Ministro da Advocacia-Geral da União. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo Sancionador da OAB. Presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE).

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