"Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la" - Edmund Burke
A palavra anistia carrega peso político e de memória.
Na história do Brasil, a lei da anistia de 1979 (lei 6.683), sancionada no final da ditadura militar, foi a aplicação mais marcante do instituto. A lei que permitiu o retorno de exilados, a libertação de presos políticos e a reintegração de servidores cassados. Ao mesmo tempo, o perdão alcançou agentes da repressão acusados de tortura e execuções - uma escolha que dividiu opiniões e até hoje desperta controvérsia.
Quase meio século depois, o país volta a discutir anistia em outro contexto: os atos de 8 de janeiro de 2023, quando milhares de manifestantes invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, na tentativa de contestar o resultado das eleições presidenciais.
Em paralelo, avança o julgamento, no STF, sobre a "trama golpista", que envolve o ex-presidente Jair Bolsonaro e integrantes do seu governo, acusados de incentivar as mobilizações que culminaram no 8 de janeiro e de tentarem reverter a vitória de Lula em 2022.
Diante desse contexto, a ideia da proposta de anistia no Congresso Nacional ganhou novo fôlego.
Nesta sexta-feira, 5, veio a público uma minuta que prevê o instituto com alcance amplo, irrestrito e até "futuro", reabrindo a disputa entre a ideia de pacificação nacional e a crítica de que se repetiria um erro histórico ao relativizar crimes de lesa-pátria.
À espera do que virá nos próximos meses, no vaivém entre Congresso e STF, ficam perguntas que ainda pesam. O que a anistia de 1979 ensinou, ou deixou de ensinar? E por que, no Brasil, crimes contra o Estado Democrático de Direito tantas vezes ganham contorno "passional", com perdão tratado quase como certo?
Há 46 anos
A lei 6.683/1979, sancionada em 28 de agosto, foi concebida sob a lógica da transição controlada.
De um lado, permitiu o retorno de exilados, a libertação de presos políticos e a reintegração de servidores afastados por razões ideológicas. De outro, estendeu o perdão a agentes do regime acusados de tortura, execuções e desaparecimentos forçados.
A amplitude deu ao instituto um caráter ambivalente. Para parte da sociedade, simbolizou a redemocratização; para outra, cristalizou a impunidade ao blindar perpetradores de crimes de lesa-humanidade.
O dilema da "anistia para os dois lados" permaneceu como ferida aberta, alvo de contestações em organismos internacionais e de tentativas legislativas de reinterpretar seu alcance.
Como descreve o historiador Carlos Fico em artigo na Revista Anistia Política e Justiça de Transição, a negociação ocorreu no interior da própria "abertura", desenhada como operação de Estado-maior para desmontar o regime sem expor sua cúpula à punição.
A estratégia perseguia dois objetivos explícitos. Evitar o chamado "revanchismo", isto é, a responsabilização de agentes do aparato repressivo. E dividir a oposição, atraindo lideranças para a normalização institucional.
Dessa lógica emergiu a fórmula elástica dos "crimes conexos", que estendeu o perdão a condutas praticadas "por motivação política".
Na prática, o guarda-chuva blindou torturas e outras ilegalidades de agentes do Estado ao mesmo tempo, em que alcançou opositores.
No Congresso, o projeto tramitou em comissão mista e recebeu centenas de emendas. No art. 1º, coração da lei, o MDB apresentou 65 propostas. Apenas 11 excluíam, de forma expressa, os torturadores, enquanto a maioria preservava o texto do governo, sinal de adesão ao núcleo do pacto em troca do retorno de exilados e da libertação de presos políticos.
Em plenário, surgiu a emenda Djalma Marinho, que buscava uma anistia geral e irrestrita.
A iniciativa quase prevaleceu, com 202 votos a favor e 206 contra, e, mesmo que tivesse passado na Câmara, a tendência seria cair no Senado, onde o governo mantinha ampla vantagem graças aos chamados "senadores biônicos", escolhidos indiretamente durante a ditadura.
No balanço, triunfou a anistia possível. Um arranjo negociado, com recorte temporal de 1961 a 1979 e exceções (como terrorismo, sequestro e atentado pessoal), que conciliou a volta dos perseguidos com a preservação penal de agentes da repressão.
Esse foi o preço do pacto de transição que ainda hoje alimenta o debate entre memória, Justiça e democracia.
O agora
Após levantamento nas bases oficiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, considerando proposições apresentadas entre 2023 e 2025, foi possível identificar 13 projetos em tramitação sobre anistia.
No Senado são cinco iniciativas, todas favoráveis à anistia de envolvidos em atos antidemocráticos. Na Câmara, são oito proposições, seis pró-anistia e duas restritivas, voltadas a impedir ou limitar a medida.
Câmara
Na Câmara o quadro é mais heterogêneo. Há projetos de anistia penal direta, de anistia político-eleitoral, e pacotes combinados que, ao mesmo tempo, alteram o CP e o CPP para estreitar a interpretação dos crimes contra a democracia e concedem anistia.
Duas proposições isoladas buscam vedar a anistia e reinterpretar a lei 6.683/79 a fim de excluir do alcance perdões a crimes cometidos por agentes de Estado.
Senado
No Senado predominam propostas de anistia penal relacionadas aos arts. 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado) do CP, além de iniciativas de anistia político-eleitoral para reabilitação de direitos políticos. Todos os PLs identificados foram apensados para tramitação conjunta e hoje estão na Comissão de Defesa da Democracia.
Alcance amplo
Nesta sexta-feira, 5 de setembro de 2025, passou a circular na imprensa minuta de anistia de alcance muito abrangente.
O rascunho fixa marco temporal retroativo a 14 de março de 2019 e inclui expressamente os eventos de 8 de janeiro de 2023.
O escopo cobre não apenas os crimes do Título XII do CP (crimes contra o Estado Democrático de Direito), mas também manifestações verbais ou escritas em ruas, internet, redes e imprensa, apoio logístico e financeiro e um rol de condutas associadas.
Nos efeitos, a minuta vai além da esfera penal. Extingue investigações e processos, afasta efeitos civis e administrativos e reverte inelegibilidades relacionadas ao período, propondo um fechamento total do ciclo 2019–2025.
Os beneficiados vão de executores a apoiadores e financiadores, sempre que a ajuda esteja associada às manifestações ou aos crimes do Título XII.
O documento também faz referência a elementos colhidos em inquéritos com base no art. 43 do regimento interno do STF e a relatórios da Justiça Eleitoral.
Além dos crimes contra a democracia, o perdão alcança condutas conexas, como dano ao patrimônio, incitação ou apologia, associação ou organização criminosa e milícia privada, quando ligadas ao contexto político-eleitoral do recorte temporal.
É, em síntese, uma aposta maximalista de virar a página, com impacto institucional amplo e debate jurídico previsível sobre limites constitucionais, conexidade e proporcionalidade.
O que isto sinaliza?
A comparação com 1979 não é automática, mas é difícil fugir dela.
Naquele momento, a anistia ajudou a encerrar um ciclo autoritário e, ao mesmo tempo, empurrou para o silêncio parte da responsabilização.
Hoje, o debate reaparece com outra moldura institucional e com marcos legais que tipificam crimes contra o Estado Democrático de Direito.
A pergunta é se, em nome da pacificação, o país está disposto a reduzir a memória do que foi uma tentativa de subversão da ordem constitucional.
A resposta depende menos de retórica e mais de instituições com memória longa. Congresso, STF, TSE, Ministério Público, Polícia Federal, arquivos públicos e comissões da verdade compõem um patrimônio que não é apenas material.
São rotinas, precedentes e decisões que ensinam, punem e previnem. Quando atentados à institucionalidade são tratados como episódios "passionais", esse patrimônio é rebaixado e o efeito pedagógico das regras se enfraquece.
Defensores de uma anistia ampla falam em pacificação e em distinguir participantes de baixa ofensividade de quem planejou, financiou ou instigou os ataques. Críticos alertam para a relativização de um ataque frontal à democracia e para o risco de normalização de novas investidas.
Se a lei registra os crimes e o Judiciário desenha balizas, resta saber se a política aceitará esses limites. É nesse ponto que o debate contemporâneo encontra um traço cultural que ajuda a explicar nossas escolhas.
Cultura cívica
O Brasil hierarquiza a gravidade das ofensas de modo assimétrico. Delitos contra a vida costumam receber repúdio imediato e punição severa, enquanto atentados às instituições, que garantem os demais direitos, muitas vezes caem na zona cinzenta do debate público.
Vê-se com nitidez a ofensa individual e relativiza-se a agressão ao arranjo democrático que protege a todos.
Uma hipótese histórica ajuda a entender o descompasso. O país, na história recente, por sorte, não acumulou experiências de guerras externas nem mobilizações prolongadas em defesa do território ou da CF. Sem essa pedagogia cívica de longo curso, consolidou-se a ideia de que rupturas institucionais são apenas episódios políticos, negociáveis no ciclo seguinte.
Esse traço se somou a uma justiça de transição incompleta, que preservou zonas de silêncio e enfraqueceu o valor simbólico de instituições como Congresso, STF e Justiça Eleitoral.
Os marcos legais recentes avançaram ao tipificar crimes contra o Estado Democrático de Direito. Para funcionarem, contudo, é preciso memória institucional ativa - arquivos abertos, decisões consistentes, ritos e precedentes - e uma pedagogia pública que trate ataques às sedes dos Poderes como o que são, agressões de máxima gravidade.
Sem essa cultura de responsabilização, episódios de ruptura seguem descritos como "excessos" ou "manifestações", e a porta permanece entreaberta para a repetição do erro.
Referência
FICO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado "perdão aos torturadores". Revista anistia política e justiça de transição, v. 4, p. 318-333, 2010.