COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Conversa Constitucional >
  4. A longa caminhada rumo à liberdade: Cotas e cartórios no Brasil

A longa caminhada rumo à liberdade: Cotas e cartórios no Brasil

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Atualizado em 13 de junho de 2025 14:47

Nelson Mandela afirmou ser longa a caminhada rumo à liberdade.1 Referia-se à jornada emancipatória do povo negro na África do Sul e no mundo. Sabia o que dizia.

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte precisou de uma década para ter o seu célebre precedente cumprido. Em 1954, ela julgou o caso "Brown I" (Brown v. Board of Education) reputando inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas. Ano seguinte veio "Brown II" estabelecendo que as escolas deveriam ser dessegregadas "com toda a rapidez possível". Apenas em 1964, dez anos após o primeiro precedente, a Suprema Corte, julgando "Brown III" (Griffin v. County School Board), declarou que a "rapidez possível" havia se esgotado e que as escolas deveriam ser dessegregadas imediatamente.

No Brasil já se vão mais de dez anos. O STF, por unanimidade, em 2012, julgou improcedente a ADPF 186, que questionava a adoção do sistema de cotas raciais na UnB.2 Dois anos depois foi promulgada a lei 12.990, reservando aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da Administração Pública Federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Ano seguinte o CNJ publicou a resolução 203, regulamentando a lei no Poder Judiciário.

Na ADC 41, o STF declarou a constitucionalidade da referida lei 12.990 e, julgando a ADI 7654, prorrogou o prazo de 10 anos previsto para essa política. Em 2020 foi a vez do ministro Ricardo Lewandowski determinar a aplicação, nas eleições daquele ano, dos incentivos às candidaturas de pessoas negras na forma definida pelo TSE (ADPF 738). A cautelar foi referendada pelo plenário.

Agora em 2025 o país se debruça, no CNJ e no STF, sobre mais um capítulo dessa tão longa jornada: a possibilidade de uma Corte local tornar vivos esses precedentes e toda a legislação aplicável à espécie por meio de uma cláusula editalícia que vede a adoção de nota de corte para candidatos negros e pardos na primeira fase (prova objetiva) do concurso de remoção em cartórios.

O debate está posto porque o ministro Cristiano Zanin deferiu uma liminar a pedido de duas candidatas (uma negra e outra parda) suspendendo um concurso de delegação de serventias diante de questionamentos acerca da posição do CNJ que formou maioria (num julgamento interrompido por uma vista) entendendo que não estão, os Tribunais de Justiça, autorizados a criarem políticas de cotas raciais nos concursos de remoção em cartórios.

A mais influente peça mencionada na decisão liminar foi o parecer da Procuradoria Geral da República, assinado pela Subprocuradora-Geral Elizeta Ramos, no qual se enfatiza que "a autonomia do Tribunal pode se manifestar na escolha de critérios adequados para a promoção da igualdade material e superação do racismo estrutural".

Para a Procuradoria Geral da República, "tratando-se a matéria de política de ação afirmativa, é possível concluir que a resolução 81/2009 do CNJ determina um modelo mínimo a ser respeitado". Assim, a medida adotada pelo Tribunal "revela compatibilidade com a máxima efetividade das normas constitucionais".

A subprocuradora-Geral pontuou que o concurso de remoção em cartórios é idêntico ao de provimento e "possui o potencial de perpetuar uma desigualdade, tanto que essa forma de seleção já vêm sendo limitada por regras que garantem o acesso para pessoas negras". Logo, "não se revelaria razoável fundamentar a solução a partir de uma suposta redução da disparidade prévia entre os candidatos, sob o risco de reduzir a política de ação afirmativa apenas à superação de uma desigualdade econômica".

A conclusão do parecer é a seguinte: "Mesmo quando profissionais negros superam as barreiras iniciais e ingressam no sistema de justiça, os mecanismos de recrutamento e promoção podem ser influenciados por vieses implícitos e explícitos que impedem a diversidade almejada para cargos de destaque ou órgão de cúpula".

Como dito, a medida liminar concedida pelo ministro Cristiano Zanin se deu a partir da formação, no CNJ, de uma posição no sentido de que o §1º-A do art. 3º da resolução CNJ 81/2009 (que institui cotas raciais em cartórios) se limita ao ingresso inicial no serviço extrajudicial (por provimento), sem alcançar o concurso de remoção.

Para a maioria formada, "a autonomia administrativa alegada pelo Tribunal local não autoriza a adoção de medidas afirmativas sem respaldo em norma específica".

A posição rejeita a possibilidade de cotas raciais na remoção e ignora que candidatas negras e pardas - mesmo aprovadas em posições de destaque - enfrentam barreiras estruturais que as impedem de acessar as serventias extrajudiciais mais prestigiadas.

A linha interpretativa do CNJ não deixa de trazer certo desconforto histórico. É que o órgão nasceu ungido por propósitos institucionais nobilíssimos. Em sua fundação, o então presidente do Conselho (e do STF), Nelson Jobim, afirmou o seguinte: "O que este conselho não pode se permitir é a indiferença, ou seja, não ter nenhum significado nas suas funções".3

Firme nesse propósito, o atual Corregedor Nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell, foi a voz que liderou uma divergência no caso em discussão no CNJ, entendendo que, sim, o Tribunal de Justiça do Estado poderia criar políticas de cotas, uma vez que essas iniciativas integram a autonomia dos tribunais e estão protegidas pela Constituição Federal.

O conselheiro Guilherme Feliciano, embora divergindo, anotou: "a ação dos tribunais nessa direção - ampliando ações afirmativas, de modo a atingir suas finalidades de forma mais célere e eficaz -, merece, primacialmente, o apoio deste Conselho".

Esse debate, além de histórico, é global. Os Estados Unidos tiveram Harriet Tubman4, Rosa Parks5 e Linda Brown6, corajosas mulheres negras que mudaram o curso da história por meio da vindicação por direitos.

No Brasil, em 1770, numa fazenda no Piauí, a mulher escravizada Esperança Garcia7 formulou um requerimento dirigido ao governador da Capitania demandando melhor tratamento para as pessoas que, como ela, eram escravizadas.

Hoje, mulheres negras e pardas se elevam e o fazem com amparo na Constituição (art. 5º, caput), no § 1º-A do art. 3º da citada resolução CNJ 81/2009, no Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/10) e na lei 12.290/14 (20% de vagas para negros em concursos). Ignorar o avanço de iniciativas normativas como as resoluções CNJ 512/23 e 525/23 - que reconhecem desigualdades raciais e de gênero no Judiciário - é algo que enfraquece a coerência do sistema de equidade à luz da Constituição.

Esse é um debate que não pode ocorrer com qualquer déficit hermenêutico. É como disse Peter Häberle: "não há norma jurídica que não seja norma jurídica interpretada".8 Ou Martin Luther King, que, tendo ouvido um governador elogiar as leis do seu Estado, retrucou: "Não me interessam as suas leis, quero saber dos seus juízes".9 E, por fim, Carlos Drummond de Andrade, que escreveu: "As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei".10

O jurista, o ativista e o poeta pensam igual: A justiça se faz pela boa hermenêutica.  

Estamos diante de uma pauta que chega na hora certa. O STF responderá quanto à possibilidade, ou não, de os Tribunais de Justiça veicularem políticas de cotas raciais nas serventias extrajudiciais, incluindo os concursos de remoção. Uma vez mais quem estarão ali, vindicando justiça, são elas, as mulheres (uma negra e uma parda).

Como nota final, vale a lembrança de que do lado de fora do plenário da sede da Corte Constitucional da África do Sul, em Joanesburgo, há um painel com luzes vermelhas e uma mensagem em língua portuguesa dizendo "A luta continua".

Inspirada na busca por independência vinda de Moçambique, a expressão do letreiro mostra para as pessoas que entram e saem da Corte, local destinado a ouvir súplicas por justiça, que não há descanso na jornada em busca da realização dos direitos fundamentais.

No Brasil, a luta continua, agora, nos concursos de remoção em cartórios. Encerrando-se um ciclo de reconhecimento de direitos, outro se inicia, afinal de contas, como bem lembrou Nelson Mandela, "é longa a caminhada rumo à liberdade".

____________

1 Long Walk to Freedom é o título da autobiografia de Nelson Mandela, publicada em 1995.

2 Eis trecho do voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF nº 186: "Uma criança negra que vê um negro ocupar um lugar de evidência na sociedade projeta-se naquela liderança e alarga o âmbito de possibilidades de seus planos de vida".

3 Disponível aqui.

4 Nascida escravizada, escapou e liderou 19 missões para resgatar 300 pessoas em sua condição.

5 Em 1º de dezembro de 1955, recusou-se a ceder o seu lugar no ônibus a um homem branco, tornando-se o estopim do movimento "boicote aos ônibus de Montgomery". Foi o início da luta antissegregacionista.

6 Ainda criança, foi o polo ativo no caso Brown v. Board of Education (de 1954), pelo qual a Suprema Corte reputou inconstitucional as divisões raciais entre estudantes brancos e negros em escolas públicas pelo país.

7 Nasceu em uma fazenda de propriedade dos jesuítas. Aos 9 anos de idade, quando a Ordem foi expulsa do Piauí pelo Marquês de Pombal, foi levada como escrava para a casa do capitão Antônio Vieira de Couto.

8 Mendes, Gilmar. Apresentação. In: Haberle, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: constituição para e procedimental da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1997, p. 09.

9 A citação é do ministro Ayres Britto. Jornal do Commércio/RJ - Direito & Justiça, Qua, 25 de Julho de 2012.

10 Constante da obra A Rosa do Povo (1945), de Carlos Drummond de Andrade, o poema "Nosso Tempo", de onde a frase foi extraída, é tido como o mais intenso na reflexão sobre a sociedade da década de 1940.