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Conversa Constitucional

Fatos do cotidiano à luz da CF e a rotina do STF.

Saul Tourinho Leal
quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A aposentadoria do ministro Celso de Mello

Essa é a última semana de deliberações do Supremo Tribunal Federal ainda com a presença do ministro Celso de Mello. A sessão de ontem da Segunda Turma da Corte, e a grande emoção que ela despertou em todos os seus integrantes, mostra um pouco do impacto que essa aposentadoria irá gerar no Tribunal. De todas as formas de homenagem ao ministro, e elas são muitas e merecidas, vou deixar aqui apenas uma pequena mostra das tantas virtudes do ministro Celso de Mello e o farei com um retrato das audiências que muitos advogados e advogadas tiveram ao longo desses mais de trinta anos com ele. No gabinete, há uma mesa redonda. É ali, ao redor de uma mesa sem cabeceiras, onde não há espaço para lugares fisicamente mais elevados que separem as pessoas em mais ou menos importantes, que o ministro ouvia as partes. Ao som de música clássica, as audiências eram eruditas, cosmopolitas, repletas de informações históricas, com um singular conhecimento da jurisprudência e, acima de tudo, uma absoluta compreensão do caso. Ao redor daquela mesa, as partes se sentiam acolhidas e estimuladas a falar, pois sabiam que seriam ouvidas por um julgador justo e disposto a compreender as múltiplas questões envolvidas nas controvérsias constitucionais. Sempre foram audiências longas, regadas a um café muito forte, num ambiente mergulhado em livros de todos os tipos. Junto à porta de saída havia um quadro com um registro antigo das "Arcadas", a faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, de onde o ministro Celso de Mello é oriundo. "Eu já lhe falei sobre como o ministro Moreira Alves ia dar aula?", o ministro Celso perguntava, dando início a um percurso histórico sobre os professores a quem mais admirava. A memória era prodigiosa e os relatos precisos fascinavam os ouvintes. Qualquer que fosse o caso e a matéria nele envolvida, em algum momento haveria uma deixa para que o assunto migrasse para a vindicação por direitos fundamentais. Nesse momento, em particular, em razão do meu trabalho, surgia a deixa para que o Direito à Felicidade aparecesse. "Você chegou a pesquisar as cartas de Thomas Jefferson?", perguntava o ministro, antes de emendar uma nova incursão fascinante, dessa vez sobre o founding father estadunidense. Era tanta informação, tanto detalhe histórico, que ali surgia uma nova frente de estudo, em questões de minutos, de improviso. Jamais houve limite intelectual ao ministro Celso de Mello, desde o tempo que era promotor de Justiça em Cândido Mota, no interior de São Paulo. "Celso Jurista", seus colegas o chamavam. Essa força intelectual foi cultivada pelos integrantes do seu gabinete. Um time de notáveis. Interpretando a Constituição, o ministro Celso não se limitou a medir a temperatura de um dia. Ele foi, usando uma metáfora deixada por Ruth Bader Ginsburg, mais sensível e sentiu o clima de toda uma era. De seus longos votos (com itálico, negrito e sublinhado), conquistas foram entregues às presentes e futuras gerações. Assim como as linhas retas e curvas que pelas colunas do arquiteto Oscar Niemeyer dão sustentação ao edifício-sede do Supremo Tribunal Federal, o decano combinou a certeza do Direito com as múltiplas possibilidades da Justiça. E fez história. A sua independência, o seu compromisso com o Supremo, a sua dedicação aos casos, o seu respeito pela advocacia, o time por ele formado para ao seu lado atuar no gabinete por ele liderado..., tudo isso fará muita falta com a sua aposentadoria. Quanto mais o tempo seguir a marcha, mais vivo será o legado do ministro Celso de Mello. Um homem que viveu a verdade e percorreu o caminho.
segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A Corte Fux

Dia 11 de setembro de 2020, o ministro Luiz Fux, aos 67 anos, ascendeu ao posto de presidente do Supremo Tribunal Federal. Para Oliver Wendell Holmes Jr, um dos mais influentes juízes da história da Suprema Corte dos Estados Unidos, "a vida do Direito não tem sido a lógica, mas experiência"1. Na trajetória do ministro Fux, sobra experiência. 38 anos se passaram entre a posse como juiz de Direito no Estado do Rio de Janeiro e a presidência do STF, tendo sido desembargador do Tribunal de Justiça carioca e ministro do Superior Tribunal de Justiça. Algumas prognoses já foram lançadas quanto à Corte Fux. Thiago Prado e Paulo Celso Pereira, de O Globo, fizeram a sua aposta: "Ao assumir o STF, Luiz Fux mira uma Corte mais distante da política"2. Isadora Peron e Luísa Martins, no Valor Econômico, anotaram que "na presidência do STF, Fux quer evitar novas derrotas à Lava Jato"3. Já Matheus Teixeira, na Folha de São Paulo, estampou o seguinte: "À frente do STF, Fux deve priorizar economia e evitar pautas polêmicas como corrupção, drogas e aborto"4. Qualquer que seja a análise, é preciso reconhecer, antes, que a Suprema Corte de hoje é diversa da encontrada pelas 48 presidências anteriores.   Primeiro, os fatores exógenos. Para além da catástrofe da pandemia da Covid-19, há as tempestades políticas. Por isso, vale perguntar: há, por exemplo, um processo de impeachment aberto contra o presidente Jair Bolsonaro? Se a resposta for negativa - e ela é -, pelo menos essa tormenta o presidente Luiz Fux não deve enfrentar. Não até aqui.   O último ano da presidência do ministro Ricardo Lewandowski (2014-2016) foi impactado pelo processo de impedimento da então presidente Dilma Rousseff, já que além da judicialização da questão no STF, foi necessário que o ministro exercesse a sua competência de presidir as sessões do Senado Federal5. Mais tarde, caiu no colo da presidente Cármen Lúcia (2016-2018) o tumulto político gerado pela gravação de uma conversa do presidente Michel Temer com Joesley Batista6 e, na sequência, a pressão para que fossem pautadas as ações declaratórias de constitucionalidade voltadas à discussão sobre a prisão em segunda instância7, cujo destinatário era o ex-presidente Lula, ao tempo preso. Outro elemento de turbulência são as grandes operações policiais quando há acusações de violação de direitos, notadamente o devido processo legal. O então presidente Gilmar Mendes (2018-2010) se viu às voltas com a operação Satiagraha. A concessão de um habeas corpus ao banqueiro Daniel Dantas pautou o noticiário nacional8. Como consequência daquele tempo, a aprovação da Súmula Vinculante nº 11, a "súmula das algemas", reclamou tempo e energia da presidência9. O ministro Ayres Britto (2012-2012), nos sete meses à frente do STF, dedicou-se a dar início ao julgamento da Ação Penal nº 470, o "caso mensalão". Esse julgamento consumiu também a presidência do ministro Joaquim Barbosa (2012-2014). Os furacões penais ganharam ápice na presidência do ministro Dias Toffoli (2018-2020), que viu as ações da sua gestão serem engolidas pelo inquérito das fake news (Inquérito nº 4781)10. Hecatombes palacianas e mega-operações policiais tensionadoras do devido processo legal costumam sacodir as presidências do STF. A Corte Fux viverá isso? Há também os elementos endógenos. O desenho institucional atual do Supremo quanto ao seu funcionamento é diferente de antes. Houve a quebra histórica do poder de agenda exclusivamente entregue ao presidente para pautar temas no plenário. O ministro Luiz Fux será o primeiro a sentar na cadeira de presidente dividindo a tinta da sua caneta, nesse particular, com os outros dez ministros e ministras. Em março desse ano, em razão da pandemia do coronavírus, o então presidente Dias Toffoli anunciou a alteração do art. 21-B do Regimento Interno (Emenda Regimental nº 53/2020), consolidando tais alterações nas Resoluções nºs 642/19 e 669/2020. "Todos os processos de competência do Tribunal poderão, a critério do relator ou do ministro vistor com a concordância do relator, ser submetidos a julgamento em listas de processos em ambiente presencial ou eletrônico, observadas as respectivas competências das Turmas ou do Plenário", consta11. Foi a expansão da competência do plenário virtual, antes concentrado no exame da repercussão geral dos recursos extraordinários, mas que, agora, pode julgar o mérito de qualquer ação. Cada relator assumiu o papel de gestor do timing do julgamento dos seus próprios casos, inserindo-os no plenário virtual quando quiser. Outra peculiaridade da Corte Fux será a accountability interna. Na Suprema Corte dos Estados Unidos, cuja composição conta com nove ministros e ministras, quando um jovem assessor indagava ao justice Willian Brennan como havia sido possível um dado julgamento, o juiz levantava a mão, mexia os cinco dedos e dizia: "Cinco votos. Com cinco votos podem fazer qualquer coisa por aqui"12. Na Corte Fux será diferente. O presidente contará, a partir de 31 de outubro de 2020, além da necessidade de maioria dos votos, com o ministro Marco Aurélio como decano. O estilo será diferente do ministro Celso de Mello, decano atual. O ministro Nelson Jobim, que já presidiu o Supremo, se referia ao ministro Marco Aurélio como "aquele motorzinho de dentista"13. Haverá cobranças públicas persistentes.   Mas as mudanças recentes feitas pela presidência do ministro Dias Toffoli podem ajudar a evitar desgastes com os pares causados quase sempre por atuações individuais. Tramita no STF a proposta de emenda regimental que atribui ao relator a competência para decidir, em caso de urgência, as medidas cautelares, com a condição de submetê-las imediatamente ao Plenário ou à respectiva Turma para referendo, preferencialmente em ambiente virtual, sob pena delas não gerarem efeitos. Uma das alterações no Regimento Interno e na Resolução nº 642/2019, aprovada recentemente, foi a que estabelece a necessidade de submeter a referendo do Plenário a decisão do relator sobre pedido de tutela de urgência contra atos dos presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal14 ou do próprio STF15. É, para além da desconcentração de poder do presidente, um apelo à colegialidade. Mas há concentração também. Deu-se ao presidente a competência para despachar como relator, até eventual distribuição, as petições, os recursos extraordinários e os agravos em recurso extraordinário ineptos ou manifestamente inadmissíveis, inclusive os que, conforme a jurisprudência, não tenham repercussão geral. O presidente também atuará como relator, até eventual distribuição, nos recursos extraordinários e agravos com pretensão contrária à jurisprudência dominante ou à súmula do STF. Talvez a mudança recente mais significativa tenha sido a gestão dos temas com repercussão geral trazidos pelos recursos extraordinários. Até aqui, a média tem sido de aproximadamente 70% de reconhecimento da repercussão geral e 30% de rejeição16. Acontece que agora (i) é mais fácil votar o mérito das repercussões gerais; (ii) é possível reverter o conhecimento de repercussões gerais passadas; e (iii) o quórum para reconhecimento de natureza constitucional da matéria que será submetida à apreciação da repercussão geral subiu de quatro para seis votos17. Tirando o ano de 2007, quando o instituto da repercussão geral no Supremo era embrionário18, o ano de 2020 foi o ano de menor quantidade de temas reconhecidos. Apenas 30. Em 2011, foram 152. Isso diz muito e impacta a condução dos casos no STF.   Em 2012, ano do julgamento do "mensalão", a Corte julgou o mérito de apenas 7 temas. Em 2014, o ano recordista em apreciações, foram 47. Em 2020, até o dia 1º/9, foram 84. Nada igual jamais ocorreu. Tudo fruto da expansão do plenário virtual. Essa mudança é um divisor de águas para a gestão do contencioso estratégico no Supremo. Apenas para ilustrar, em maio de 2019 foi reconhecida a repercussão geral do Tema nº 1.049 (RE nº 1.156.197), de relatoria do ministro Marco Aurélio. Em agosto de 2020, pouco mais de um ano depois, o mérito da disputa já tinha sido apreciado. Esse será o tempo médio de tramitação de um tema com repercussão geral: um ano.        Outros elementos que devem ser considerados pelo contencioso estratégico perante a Corte Fux são as suspensões de segurança (ou de liminar) e as conciliações.  O art. 13 da lei 191/36, que, regrando o mandado de segurança, introduziu a suspensão entre nós, passou a permitir que pessoa de direito público (União, Estados, Municípios e suas autarquias e fundações públicas) requeira a suspensão da eficácia de decisões desfavoráveis, desde que demonstrados os pressupostos objetivos da grave lesão à ordem, saúde, segurança e, a partir de 1964, à economia pública19. A jurisprudência do STF permite que pessoas jurídicas de direito privado, quando no exercício de atividades públicas essenciais, gozem de legitimidade para defender esse interesse público primário, desde que haja fundado receio de que a execução de decisão coloque em risco o serviço essencial por elas prestado. Alessandra Baldini e Leonardo Santos Costa lembram ainda, citando precedentes, que o mesmo vale para partidos políticos20, agente público afastado de suas funções21, Defensoria Pública22, Tribunais de Contas e demais órgãos despersonalizados quando em defesa de suas prerrogativas23. A suspensão de segurança (e de liminar), de competência do presidente do STF, tem sido usada como um "super trunfo". É preciso se familiarizar com o instrumento. Quanto às conciliações, elas certamente comporão a Corte Fux e poderão ser ventiladas nos mais variados casos e em qualquer tipo de classe processual, atém por que, para além da predileção do presidente Fux pela iniciativa, o ministro Dias Toffoli, na véspera de deixar a presidência, aprovou a Resolução nº 697/2020, que dispõe sobre a criação do Centro de Mediação e Conciliação. Segundo o art. 3º, "a tentativa de conciliação poderá ocorrer nas hipóteses regimentais de competência da Presidência ou a critério do relator, em qualquer fase processual". Houve tentativa de conciliação pelo ministro Luiz Fux, por exemplo, nas ações diretas de inconstitucionalidade 5956, 5959 e 5964, que questionam a constitucionalidade da Medida Provisória nº 832 e da Resolução nº 5.820/2018, da ANTT, que estabeleceram a política de preços mínimos do transporte rodoviário de cargas (frete)24. Vale lembrar que das 33 audiências públicas convocadas na história do Supremo, 10 foram da iniciativa do ministro Fux. Foi quem mais as convocou25.  E quanto à sua filosofia judicial? Certa feita, no Tribunal Superior Eleitoral num debate com o ministro Gilmar Mendes, o ministro Fux registrou: "o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é"26. Essa linha hermenêutica é chamada de realismo jurídico. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy explica que o realismo jurídico "levou ao limite a premissa de que juízes primeiramente decidem e depois engendram modelos de dedução lógica"27. A corrente relaciona-se com o pragmatismo e com o law and economics (Direito e Economia ou Análise Econômica do Direito - AED)28. Nada obstante seja pragmática, é importante dissipar qualquer fantasia de que a Corte Fux será indiferente a temas moralmente controvertidos. O presidente e o time de juristas que compõe o seu gabinete compreendem que esses temas chegam às Supremas Cortes por encontrarem na jurisdição constitucional o ambiente habilitado a ouvir as súplicas por proteção adicional, pelos direitos fundamentais, de grupos vulnerabilizados. O ministro Luiz Fux votou favoravelmente às minorias, às vítimas ou às partes suplicantes nos seguintes casos: (i) cotas raciais nas universidades públicas (ADPF 186); (ii) cotas sociais - ProUni - nas universidades públicas (ADI 3330); (iii) cotas raciais no serviço público (ADC 41); (iv) proteção aos ritos religiosos de matrizes africanas que se valem do sacrifício de animais (RE 494.601); (v) uniões homoafetivas (ADI 4277 e ADPF 132); (vi) autorização a transexuais e transgêneros a alterarem o nome no registro civil sem a realização de cirurgia de mudança de sexo (ADI 4275); (vii) doação de sangue por homens que tenham tido relação sexual com outros homens; (viii) equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo (ADO 26 e MI 4733); (ix) constitucionalidade da Lei Maria da Penha (ADI 4424 e ADC 19)29; (x) interrupção da gravidez de fetos anecéfalos (ADPF 54); (xi) Marcha da Maconha (ADPF 187);  e (xii) inconstitucionalidade das leis que vedam a adoção de políticas de ensino que se referissem a "ideologia de gênero", "gênero" ou "orientação de gênero" (ADPF 460). Além do mais, é indiferente à história o fato de um presidente do Supremo querer ou não tratar de temas controvertidos. Esses temas se impõem à Corte. As causas chegam e negligenciá-las não é garantia de paz. Antes pelo contrário. É como o ministro Marco Aurélio afirmou para a ministra Cármen Lúcia a respeito da sua opção de não pautar as ações declaratórias de constitucionalidade relativas à prisão em segunda instância: "Em termos de desgaste, a estratégia não podia ser pior"30. Apesar da postura altiva quanto à vindicação legítima de proteção de direitos fundamentais, a Corte Fux se guiará pela "deferência ao Poder Legislativo" em tudo o que seja de competência típica desse Poder31. Vale lembrar o que o ministro Fux anotou no julgamento da constitucionalidade do Código Florestal (lei 12.651/2012): "(...) no âmbito do Parlamento, mais de 70 (setenta) audiências públicas foram promovidas com o intuito de qualificar o debate social em torno das principais modificações relativas ao marco regulatório da proteção da flora e da vegetação nativa no Brasil. Consectariamente, além da discricionariedade epistêmica e hermenêutica garantida ao Legislativo pela Constituição, também militam pela autocontenção do Judiciário no caso em tela a transparência e a extensão do processo legislativo desenvolvido, que conferem legitimidade adicional ao produto da atividade do Congresso Nacional"32. Quando se pesquisa na jurisprudência do STF o uso, nos acórdãos, da expressão "deferência ao Legislativo", aparecem três menções do ministro Roberto Barroso, duas dos ministros Gilmar Mendes e Rosa Weber e apenas uma dos ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia. Com o ministro Luiz Fux, são oito, quase o triplo do segundo. Essa deferência se desdobra em outras duas vertentes: (i) o reconhecimento da capacidade institucional dos entes especializados; e (ii) a autocontenção. Quanto à expressão "capacidade institucional", eis a radiografia de utilização nos acórdãos: Celso de Mello (13); Dias Toffoli e Edson Fachin (6); Roberto Barroso e Gilmar Mendes (5); Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia (3); Alexandre de Moraes e Marco Aurélio (1). Já o ministro Luiz Fux: 30. Quando a palavra é "autocontenção", o resultado é o seguinte: ministro Edson Fachin (6); ministro Roberto Barroso (5); ministro Marco Aurélio (4); ministros Alexandre de Moraes e Rosa Weber (3); ministro Dias Toffoli (2); ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia (1). O ministro Fux utilizou a expressão em 18 ocasiões.      Exemplo é o voto na ADI 4923, sobre o novo Marco Legal da televisão por assinatura (lei 12.485/2011): "1. A revisão judicial de marcos regulatórios editados pelo legislador requer uma postura de autocontenção em respeito tanto à investidura popular que caracteriza o Poder Legislativo quanto à complexidade técnica inerente aos temas a que o Poder Judiciário é chamado a analisar pela ótica estrita da validade jurídica". Deferência também aos marcos regulatórios das agências especializadas33. Essa será a Corte Fux. O presidente não é mais senhor das pautas do plenário e os novos desenhos normativos tentam resgatar a colegialidade. Com tecnologia, julga-se com celeridade. Uma Corte consciente do seu papel na preservação dos direitos fundamentais, mas capaz de ser deferente ao Legislativo ou aos órgãos especializados em certos casos. Uma presidência pragmática e aberta à conciliação. Essa é a expectativa. __________ 1 A frase é famosa, mas a citação vem de Mark Tushnet, no seu "The logic of experience: Oliver Wendell Holmes on the Supreme Judicial Court". Virginia Law Review 63, no. 6 (1977): 975-1052. 2 Clique aqui. 3 Na presidência do STF, Fux quer evitar novas derrotas à Lava Jato. 4 À frente do STF, Fux deve priorizar economia e evitar pautas polêmicas como corrupção, drogas e aborto. 5 Art. 27 da lei 1.079/50: "No dia aprazado para o julgamento, presentes o acusado, seus advogados, ou o defensor nomeado a sua revelia, e a comissão acusadora, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, abrindo a sessão, mandará ler o processo preparatório o libelo e os artigos de defesa; em seguida inquirirá as testemunhas, que deverão depor publicamente e fora da presença umas das outras". 6 Julho de 2017, no site do STF: "A defesa do presidente da República, Michel Temer, apresentou petição no Inquérito (INQ) 4483, nesta quarta-feira (19), pedindo para ter acesso aos sete arquivos de áudio recuperados de gravadores usados pelo empresário Joesley Batista para gravar conversa com o presidente. (...) A defesa diz na petição, dirigida à presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, por conta do período de férias forenses, que já havia feito pedido semelhante ao relator do caso, ministro Edson Fachin, juntamente com o pleito de acesso aos gravadores usados. (....)".  7 ADC's 43 e 44. No julgamento do Habeas Corpus 152.752, cujo paciente era o ex-presidente Lula, o ministro Marco Aurélio, insatisfeito com o fato de a presidente Cármen Lúcia não pautar as ADC's, afirmou: "Vossa Excelência, sei bem, é toda poderosa, no tocante à feitura da pauta dirigida!". A presidente respondeu: "Não, não sou toda-poderosa, sou apenas a Presidente, que tenho a pauta, Ministro". 8 O presidente Gilmar Mendes concedeu duas liminares no Habeas Corpus 95.009 para o banqueiro Daniel Dantas, preso por determinação da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo. O pleno do STF as referendou. 9 "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado". 10 Num placar de 10 x 1 - vencido apenas o ministro Marco Aurélio -, o plenário, julgando a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 572, reputou válido o inquérito sobre fake news. 11 STF mantém realização de sessões presenciais e amplia possibilidades de julgamento por meio virtual. 12 Em: The Constitucionalist. Também na obra de Peter Irons, "A people's history of the Supreme Court. The Men and Women whose cases and decisions have shaped our Constitution", publicado pela Penguin Books. Página 416. 13 A expressão foi retratada pelo jornalista Rodrigo Haidar, no perfil que fez do ministro Marco Aurélio por ocasião dos seus vinte anos no Supremo. 14 Em dezembro de 2016, o ministro Marco Aurélio, julgando um pedido cautelar na ADPF 402, determinou o afastamento do senador Renan Calheiros da presidência do Senado Federal. A decisão foi derrubada pelos seus pares em seguida. 15 Emenda Regimental nº 54. 16 Dados e gráficos extraídos do próprio STF. 17 "Art. 324. (...) § 1º Somente será analisada a repercussão geral da questão se a maioria absoluta dos ministros reconhecerem a existência de matéria constitucional". 18 Em 30/11/2007, foi aprovada a Emenda Regimental nº 22, acrescendo o art. 21 ao Regimento Interno do STF: "O Relator comunicará à Presidência, para os fins do art. 328 deste Regimento, as matérias sobre as quais proferir decisões de sobrestamento ou devolução de autos, nos termos do art. 543-B do CPC". 19 Texto complexo sobre a evolução da suspensão de liminar: "Quem é mais legítimo para propor suspensão de liminar?", de Alessandra Gomes F. Baldini e Leonardo P. Santos Costa, publicado aqui. 20 Suspensão de Liminar nº 178-MC (ministro Luiz Fux). 21 Suspensão de Liminar nº 1313 (ministro Dias Toffoli). 22 Suspensão de Liminar nº 866 (ministro Dias Toffoli). 23 Suspensão de Segurança nº 5182 (ministra Cármen Lúcia). 24 Há conciliações lideradas pelo ministro Fux em vários casos: ACO's 347, 652, 1966, 2536, 2865, 3033, 3034, 3038, 3040, 3233 e 3270; MS's 30.952, 34.123 e 35.398; e RCL's 19.537, 16.535, 17.320 e 17.320.  25 ADI 4103 (Lei seca - proibição da venda de bebidas alcoólicas nas proximidades de rodovias); ADI's 4679, 4747 e 4756 (Novo marco regulatório para a TV por assinatura no Brasil); RE 586224 (Queimadas em canaviais); ADI 4650 (Financiamento de campanhas eleitorais); ADIs 5062 e 5065 (Alterações no marco regulatório da gestão coletiva de direitos autorais no Brasil); ADIs 4901, 4902, 4903 e 4937 (Novo código florestal); ADI 5956 (Tabelamento de fretes); ACO 3233 (Conflitos federativos sobre questões fiscais dos Estados e da União); REEE 1037396 e 1057258 (Responsabilização civil de provedores por conteúdo ilícito gerado por terceiros); ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305 (Juiz das Garantias).  26 "Gilmar Mendes e Luiz Fux batem boca em sessão do TSE", por Breno Pires, O Estado de São Paulo. 27 O realismo jurídico norte-americano é intrigante. 28 A jornalista Luísa Martins, do Valor Econômico, ao fazer uma matéria sobre a presidência do ministro Luiz Fux, anotou: "Futuro presidente do Supremo Tribunal Federal é um entusiasta da "análise econômica do direito".  29 Nesse julgamento, o ministro Luiz Fux criticou abertamente o machismo estrutural brasileiro: "É a denominada vitimologia machista, a mulher é culpada por ter apanhado". 30 Habeas Corpus nº 152.752, de relatoria do ministro Edson Fachin. 31 Aliomar Baleeiro, que presidiu o Supremo, anotou: "Cúpula de todos eles, o Supremo carrega por precípua missão a de fazer prevalecer a filosofia política da Constituição Federal sobre todos os desvios em que o Congresso Nacional e o presidente da República, Estados, Municípios e particulares se tresmalhem, quer por leis sancionadas ou promulgadas, quer pela execução delas ou pelos atos naquela área indefinida do discricionarismo facultado, dentro de certos limites, a ambos aqueles Poderes. O traçado desses limites, quer quanto ao legislador quer quanto ao executor, nunca foi, não é, nem será nunca uma linha firme, clara e inconfundível. Há uma terra de ninguém nesta faixa fronteiriça". O Supremo Tribunal Federal. Esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 103. 32 ADC 42 e ADI's 4901, 4902, 4903 e 4937. 33Exemplo: "1. A capacidade institucional na seara regulatória, a qual atrai controvérsias de natureza acentuadamente complexa, que demandam tratamento especializado e qualificado, revela a reduzida expertise do Judiciário para o controle jurisdicional das escolhas políticas e técnicas subjacentes à regulação econômica, bem como de seus efeitos sistêmicos. 2. O dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas adotadas por entidades reguladoras repousa na (i) falta de expertise e capacidade institucional de tribunais para decidir sobre intervenções regulatórias, que envolvem questões policêntricas e prognósticos especializados e (ii) possibilidade de a revisão judicial ensejar efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa. (...)". AgReg. no RE 1.083.955, de relatoria do ministro Luiz Fux.
terça-feira, 1 de setembro de 2020

Qual o legado da Corte Dias Toffoli?

Em seu discurso de posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, em 13 de setembro de 2018, o ministro Dias Toffoli trouxe a criatividade e a inovação tecnológica para o centro da equação jurisdicional: "Precisamos ser criativos. Criatividade - esse é o graal da sociedade contemporânea", afirmou Sua Excelência. Então, explicou: "Novas ferramentas tecnológicas - julgamentos virtuais, comunicação processual por meio de redes sociais, programas de inteligência artificial, arquitetura de computação em nuvem". Ao final, fez um apelo: "Adaptemo-nos às novas tecnologias e às novas mídias. O virtual agora é real".1 Próxima semana, dois anos após aquele dia no qual a criatividade e a inovação tecnológica deram as caras num discurso presidencial, o ministro passará o bastão para o ministro Luiz Fux. O que podemos dizer dessa temporada à frente do Supremo Tribunal Federal? Num exame contemporâneo, qual teria sido a ação que possivelmente dará um lugar na história das presidências do Supremo ao ministro Dias Toffoli? Depende. Antes de tudo, ninguém é ingênuo o suficiente para imaginar que o inquérito das fake news será dissociado historicamente dessa presidência. Não será. Muita gente entende - e eu estou com essas pessoas - que o art. 43 do Regimento Interno do STF2 não foi recepcionado pela Constituição de 1988 nos moldes compreendidos pelo presidente quando da fundamentação da criação do referido inquérito3 e, principalmente, englobando todas as múltiplas medidas adotadas em iniciativas do seu relator, o ministro Alexandre de Moraes. Mas a minha opinião não vincula o Supremo, tampouco integra qualquer ata de sessão. Para além dos fundamentos apresentados, apenas o livro de memórias do ministro Dias Toffoli saberá dizer um dia como nasceu exatamente o Inquérito nº 4781. A respeito desse nascimento, veio à mente um breve trecho de uma reportagem jornalística exibida no documentário Sérgio4, baseado na obra "Chasing the Flame: Sergio Vieira de Mello and the Fight to Save the World", de Samatha Power, ganhadora do Prêmio Pulitzer, sobre o ícone brasileiro morto num ataque terrorista em Bagdá. O trecho mostra um jornalista contando a história que explicaria a decisão do então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, de partir para a guerra no Iraque após o atentado às Torres Gêmeas. Uma delegação da ONU teria saído de Genebra até Washington para indagar diplomaticamente o presidente americano sobre o respeito aos protocolos internacionais para qualquer incursão forçada no Iraque. Todos ficaram aguardando a resposta. Decidido a responder, Bush, um homem experimentado, disse que o problema era grave demais para ser gerido ao som das valsas dos salões de Genebra. "Dançaremos à moda do Texas", teria dito. E partiu para a guerra. O Supremo partiu para a guerra. Foi a forma que encontrou para lidar com uma horda de lunáticos que saíram das sombras para intimidar a Corte. Acontece que a força e o poder não podem suplantar as regras jurídicas. O Supremo existe exatamente para preservar essa regra básica do Estado de Direito. Dobrar-se aos loucos é enlouquecer-se com eles. Mesmo assim, se em qualquer exegese há texto e contexto, então precisamos rememorar um pouco alguns fatos ensejadores dos contextos a partir dos quais os textos - no caso, o Regimento Interno do Supremo - podem ter sido interpretados em momentos de tensão institucional extrema. O primeiro deles se deu bem antes, quando o deputado Federal mais votado da história do Brasil, o filho do presidente da República, disse, numa aula de Direito gravada, que para fechar o Supremo bastava "um soldado e um cabo".5 Tripudiava, o parlamentar, da falta de salvaguardas institucionais para a Suprema Corte defender a si mesma de investidas de terceiros contra a sua própria independência. Depois, no julgamento do Supremo ao qual farei menção a seguir, relatos sórdidos vieram à tona, com registros de ministros sendo perseguidos nas ruas, em aeroportos e aviões, tendo suas casas vilipendiadas, seu lares amedrontados e suas vidas e a das suas famílias ameaçadas abertamente nas redes sociais por estruturas organizadas e financiadas com o propósito de intimidar os ministros e ministras do Tribunal.6 Por fim, posteriormente, vem ao conhecimento de todos a matéria de Monica Gugliano na Revista Piauí, cujos disparates retratados podem ser resumidos no seguinte trecho: "Agitado, entre xingamentos e palavrões, o presidente saiu logo anunciando sua decisão: '- Vou intervir!' - disse. Bolsonaro queria mandar tropas para o Supremo porque os magistrados, na sua opinião, estavam passando dos limites em suas decisões e achincalhando sua autoridade. Na sua cabeça, ao chegar no STF, os militares destituiriam os atuais onze ministros".7 Para Carlos Maximiliano, jurista de incomum talento que integrou o Supremo Tribunal Federal, a interpretação serve para "revelar o sentido apropriado para a vida real"8. Parece ter sido a partir dessa "vida real" que a exegese do art. 43 do Regimento Interno se deu. "Eu sou eu em minhas circunstâncias"9, explicou Ortega y Gasset. Talvez as circunstâncias tenham feito o Supremo entender que não daria para resolver questões dessa magnitude com mais uma nota de repúdio publicada no site da Corte.   Dia 18 de junho de 2020, chegou o momento de a decisão do presidente Dias Toffoli de abrir o inquérito ser julgada pelos seus pares. Nove deles, de um total de dez, disseram, na prática, que, se estivessem no lugar do presidente, teriam feito o mesmo que Sua Excelência. Num placar de 10 x 1 - vencido apenas o ministro Marco Aurélio -, o plenário, julgando a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 572, reputou válido o inquérito sobre fake news. O resto fica de insumo para os historiadores e para as conversas de bares.  Esse é um dos espólios da presidência do ministro Dias Toffoli. Não há dúvida. Mas não é o único. Uma presidência dura, em regra, dois anos. Esse foi o tempo em que o ministro esteve à frente do Supremo Tribunal. Presidência nenhuma se constitui como samba de uma nota só. Há tantas ações, tantas iniciativas, tantas decisões, tantos episódios..., que apenas o desconhecimento da engrenagem de uma Suprema Corte é capaz de estereotipar um período de dois anos como sendo absolutamente entregue a uma única iniciativa. Por isso, seria importante perceber, ainda a tempo, algum outro elemento da presidência do ministro Dias Toffoli. Antes, vale identificar e lembrar um breve resumo das cerca de dez queixas que, pelo menos na última década, se tornaram as mais comuns nas rodas de profissionais com experiência na defesa de terceiros perante o Supremo Tribunal Federal em julgamentos do plenário. As críticas eram as seguintes:  1) Os julgamentos demoram muito. São anos de idas e vindas entre votos, discussões, vistas, revisões, mudanças de composição, novos votos e a conclusão; 2) Os votos são muito extensos, com longas remissões históricas, teóricas ou contextuais. É possível fundamentar uma decisão sem precisar de 200 páginas para isso; 3) Há muitas redundâncias no processo deliberativo. Deveria haver a leitura do voto do relator, da eventual divergência e, no máximo, concorrências pontuais com algum fundamento adicional. Não é preciso onze longos votos dizendo a mesma coisa com palavras diferentes; 4) Desrespeita-se advogados e partes quando acontece dos patronos viajarem muitas vezes até Brasília, cruzando o país, chamados pelo Tribunal em razão de casos anunciados na pauta e, após horas a fio esperando no plenário, vir a notícia de que os casos não serão julgados e que sequer é sabido quando voltarão à pauta; 5) Não há espaço na pauta do plenário para todos os casos que aguardam julgamento. Muitos deles, mesmo liberados pelos relatores, não são apreciados; 6) O presidente não deveria ser o senhor absoluto da agenda do plenário. Esse poder deveria ser compartilhado de algum modo com os demais colegas da Corte; 7) As sessões não começam no horário, o intervalo é longo e às vezes elas terminam antes das 18h; 8) A regra de divisão do tempo de sustentação oral dos amici curiae pode ensejar situações como a de patronos terem de expor seus argumentos por apenas dois minutos, um minuto ou até mesmo menos de um minuto; 9) Quando casos pautados no plenário não são julgados e simplesmente desaparecem do radar presidencial para que possam retornar à pauta, todo o trabalho anteriormente feito pelos patronos nas audiências é perdido; 10) Muitas vezes a temperatura das discussões no plenário sobe tanto que a impressão que sem tem é a de que já não é mais o caso que está sendo julgado. Dediquei a última década da minha carreira a repetir essas queixas. Repetia não por falta de assunto, mas porque era, de fato, o que sentia na pele todos os dias sendo um advogado que milita no Supremo. Essas críticas, feitas por muitos advogados e advogadas, eram justas. Merecidas.  Tudo seguia do mesmo jeito até que, em março desse ano10, em razão da pandemia do coronavírus, o presidente, ministro Dias Toffoli, anunciou a alteração do art. 21-B do Regimento Interno (Emenda Regimental nº 53/2020), consolidando tais alterações nas resoluções nºs 642/19 e 669/2020. "Todos os processos de competência do Tribunal poderão, a critério do relator ou do ministro vistor com a concordância do relator, ser submetidos a julgamento em listas de processos em ambiente presencial ou eletrônico, observadas as respectivas competências das Turmas ou do Plenário", consta do art. 21-B do RISTF. Foi o anúncio da expansão do chamado plenário virtual, o ambiente hospedado pelo site do Supremo onde é possível haver deliberações no espaço digital sem a presença física e síncrona de todos os ministros, como há nas deliberações físicas do plenário. Foi um choque para nós. Como serão as sustentações orais? Quando disponibilizarão os votos dos ministros? Por que apenas cinco dias úteis se ainda há a sexta-feira disponível para a continuidade do julgamento? Como manter a figura do voto por omissão, se ele, em julgamentos de mérito, é claramente inconstitucional? Onde ficarão disponibilizados os vídeos das sustentações orais? O Conselho Federal da OAB se manifestou formalmente. Num ofício enviado para a presidência do STF, a entidade expôs todas suas preocupações com a operacionalização dos julgamentos virtuais de precedentes célebres que sempre foram apreciados fisicamente no plenário da Casa, jamais num ambiente digital. O receio era de comprometimento do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.11  As preocupações surtiram efeito. Meses depois, na última sessão administrativa do semestre, foram aprovadas quatro propostas de emendas ao Regimento Interno e uma Resolução para a alteração da Resolução nº 642/2019, corrigindo todas as falhas do sistema de votação virtual, incluindo o fim do "voto por omissão". Vídeos de sustentações orais passaram a ser vinculados ao processo com acesso público por qualquer pessoa através do site do Supremo. Os votos passaram a ser disponibilizados em tempo real. O julgamento passou a contar com mais um dia útil para que os advogados e advogadas façam o seu trabalho de persuasão dos julgadores. Por fim, caso o ministro não vote, o seu silêncio será computado como ausência, não como voto.12 Hoje, o atual modelo de processo deliberativo virtual dos julgamentos de mérito de casos cuja competência constitucional é do plenário do Supremo deu respostas a todas as dez críticas mais comuns feitas na última década e anteriormente expostas por mim. As respostas são as seguintes:   1) Os julgamentos virtuais têm dia e hora para começar e se encerrar. A não ser que haja vista ou destaque, o caso começa no primeiro instante de uma sexta-feira e termina no último instante da sexta-feira seguinte; 2) Os votos passaram a ser objetivos, relatando suscintamente o caso e partindo diretamente para a fundamentação; 3) A regra tem sido a apresentação dos votos escritos do relator e da divergência, podendo haver um aporte adicional de fundamentos em direção à mesma conclusão de um dos votos; 4) Os advogados não precisam mais cruzar o país para ficarem sentados no plenário do STF aguardando a notícia de que seus casos, mesmo pautados, não serão julgados. O julgamento virtual não é mais uma esperança. É uma realidade; 5) Acabou a escassez. O plenário virtual suporta qualquer quantidade de casos; 6) O presidente deixa de ser o senhor absoluto da inserção em pauta dos casos que serão apreciados pelo plenário. Cada relator assume o papel de gestor do timing do julgamento dos seus próprios casos, inserindo-os no virtual quando quiser; 7) Não há atrasos nas sessões virtuais; 8) Acabou a disputa por segundos de tempo de sustentação oral dos amici curiae. Todos podem mandar as suas sustentações com o tempo integral de 15 minutos; 9) O caso pautado, a não ser que haja vista ou destaque, será julgado; 10) Não há desarmonia no plenário virtual. Os julgadores estão focados nos casos. Evidentemente que a nova realidade traz com ela novas queixas. A minha sustentação oral é mesmo assistida? Como pode, uma Suprema Corte, fixar dezenas de precedentes na mesma semana? Há condições de reflexão verdadeira com esse volume de casos de plenário apreciados ao mesmo tempo? E as questões de ordem ou os esclarecimentos? São efetivos? E se os julgadores quiserem fazer perguntas aos patronos? Como fazer? O fato de ser uma sessão virtual sem interação física entre os ministros priva o caso da atenção que ele merece? Todas essas são questões que devem ser respondidas pela nova presidência do Supremo e os advogados e advogadas não renunciarão a um centímetro que seja de devido processo legal, contraditório e ampla defesa na jurisdição constitucional. Mas uma coisa é aperfeiçoar algo que foi construído, outra é passar décadas queixosos dos mesmos problemas sem ver nada mudar. Agora mudou. E mudou para valer.   A expansão do plenário virtual, operada na presidência do ministro Dias Toffoli, não apenas cumpre o que anunciado em seu discurso de posse, mas, indo além, cria algo absolutamente novo em termos de jurisdição prestada por Supremas Cortes ou Cortes Constitucionais. É algo original, pioneiro, corajoso. O sucesso de uma ideia é feito desses elementos. Não para passar sem críticas, mas para inovar sem medo. Houve uma histórica ressignificação da tribuna do Supremo. Apesar de formalmente qualquer advogado poder ocupá-la, materialmente nunca foi fácil fazê-lo. Eu me lembro bem daquela tribuna. O primeiro obstáculo de acesso físico é um degrau escondido sob o carpete claro que cobre o piso. Logo que ele é vencido, há o fino microfone. Um pouco mais abaixo, um pequeno espaço, semelhante a uma escrivaninha, para que o patrono ou a patrona possa colocar suas anotações, os autos do processo, livros ou quaisquer outros materiais de suporte à sustentação. Há um copo com água. À direita, cinco julgadores. À esquerda, outros cinco. O Presidente fica no meio. Ali é o santuário da advocacia. É a realização, perante a Suprema Corte, do art. 133 da Constituição, que diz ser o advogado "indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". Agora, aquela tribuna está em qualquer aparelho com áudio e vídeo conectados à internet. Isso, num país continental de mais de um milhão de advogados. A quebra desse paradigma empoderará muitos profissionais ansiosos por justiça que, antes, terminavam afastados da vindicação por direitos fundamentais perante a Corte Suprema pelo fato de não conseguirem suportar os variados custos de uma disputa no Supremo. Essas novas lideranças já começam a surgir. E elas estão suplicando por justiça constitucional absolutamente conscientes do poder transformador da Constituição Federal. Exemplo é o advogado autodeclarado indígena Luiz Henrique Eloy Amado, o Eloy Terena, de 32 anos, nascido em uma aldeia da etnia terena em Aquidauana/MS. No recente julgamento do referendo da cautelar concedida nos autos da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 709, ele representou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e fez a defesa oral de Paris, onde cursa pós-doutorado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da França. O STF, por maioria, confirmou a determinação para que o governo federal adote medidas de contenção do avanço da Covid-19 nas comunidades indígenas. Eloy Terena deu início à sua sustentação afirmando que aquela era uma ação histórica. "Porque pela primeira vez, no âmbito da jurisdição constitucional, os povos indígenas vêm ao judiciário, em nome próprio, por meio de advogados próprios, defendendo interesse próprio".13 Em qual Corte Constitucional do mundo isso seria possível, dessa forma? Em qual Suprema Corte esse jovem advogado assomaria a tribuna sem quaisquer requisitos adicionais, na condição de patrono do ente plural representativo dos indígenas, por videoconferência ou tendo encaminhado um vídeo, numa disputa nacional histórica travada no âmbito da jurisdição constitucional? No Brasil isso é possível. E nós celebramos essa abertura.   A tribuna, que é o santuário da advocacia, agora está em todas as mesas profissionais, nas salas de advogados, nos escritórios ou no canto improvisado de um apartamento pequeno, no Brasil ou no exterior. Onde quer que haja um advogado ou uma advogada habilitada num processo constitucional com previsão de defesa oral, lá estará o Supremo, com seus onze ministros e ministras abertos a ouvir. O inquérito das fake News foi a guerra que a Suprema Corte decidiu - ou se viu obrigada - a viver. Muitos de nós, olhando à distância, dizemos que teríamos feito diferente. Mas, entre dez ministros, nove disseram que teriam feito, com uma ressalva aqui e outra acolá, a mesma coisa. Há tempos de guerra e tempos de paz. Há quem diga que, às vezes, para se conseguir a última, é preciso percorrer a primeira. Mas quanto à expansão dos julgamentos virtuais e à introdução das sessões por videoconferência, pelo contrário, não há guerra com ninguém. O que há é emancipação. E é a emancipação do outro que imortaliza presidentes. Earl Warren, presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1953 a 1969, sofreu maus bocados com as investidas da John Birch Society, que pedia seu impeachment em todos os lugares. Ele, ao seu modo, seguiu tocando a marcha em frente. Quando Warren morreu, Mae Taylor, aos 66 anos, tendo trabalhado na equipe de limpeza do Capitólio, do outro lado da rua, foi se despedir de um homem que jamais conhecera. "Devemos muito a ele, ele queria direitos iguais para todas as pessoas".14 O presidente Dias Toffoli não é Earl Warren. Cada presidente tem a sua personalidade, o seu estilo e é responsável pelos seus acertos e desacertos. Mas o fato é que ele fez algo raro e, como anotou o ex-presidente dos Estados Unidos John Adams, "os fatos são coisas teimosas". O ministro Toffoli transformou uma promessa lançada na folha de um discurso de posse em realidade. Criatividade e inovação tecnológica. Dois anos depois, já de partida da presidência, ninguém pode dizer que ele não cumpriu o prometido. A expansão do plenário virtual tornou o Supremo ainda mais aberto. Mesmo com todas suas imperfeições, essa abertura, no âmbito da jurisdição constitucional, eleva o semelhante que suplica por acesso à justiça à luz da Constituição. Ela emancipa. Esse é, para mim, o maior legado da Corte Dias Toffoli. Por ele, o ministro será sempre lembrado. __________ 1 O discurso de posse está disponível aqui.  2 "Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. § 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente. § 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal".  3 A Portaria GP nº 69, de 14 de março de 2019, determinou a abertura do Inquérito nº 4781 no âmbito do STF, para investigar a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares.  4 Documentário de 2009, dirigido por Greg Barker, disponível na plataforma Netflix.  5 Disponível aqui.  6 O julgamento da ADPF nº 572 pode ser visto aqui.  7 Disponível aqui.  8 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1965, p. 22.  9 A frase consta na primeira obra do filósofo espanhol, Meditaciones del Quijote, de 1914.  10 Ver aqui.  11 No Ofício nº 42/2020-PCO, endereçado à Presidência da Suprema Corte, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil havia anotado: "O deslocamento do ambiente decisório - a despeito de simplificar e facilitar debates - não pode ignorar as regras constitucionais referentes ao controle de constitucionalidade. Não há modalidade de julgamento por omissão, tampouco existe voto por presunção no plenário físico, de maneira que o mesmo entendimento deve ser aplicado às sessões virtuais".  12 Ver aqui.  13 Para ter acesso à íntegra da sustentação oral, acesse. 14 No original: "Mae Taylor, who was sixty-six and had worked on the cleaning staff of the Capitol, just across the street, came to say goodbye to a man she had never met. 'We owe a lot to him, he wanted equal rights for all people', she told a reporter. 'America is a better place because he lived'". Obra de Peter Irons, "A people's history of the Supreme Court. The Men and Women whose cases and decisions have shaped our Constitution". Penguin Books, p. 420.
segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Que força é essa, mulher?

Que força é essa, mulher, que vi nos Estados Unidos, quando, em 1955, o doloroso e incompleto processo de libertação racial da nação ganhou o reforço de Rosa Parks, a costureira negra corajosa que se recusou a ceder seu assento no ônibus ao senhor branco que o reclamava com base nas injustas Leis Jim Crow? Daquela força na cidade de Montgomery, uma rama de igualdade floresceu como Rosa. Em Nazaré do Piauí, no nosso país, dois séculos antes foi preciso Esperança para tentar realizar essa mesma aspiração. Tendo aprendido a ler, Esperança Garcia passou a denunciar maus tratos e abusos contra quem, como ela, era escravizado. Apenas a centelha de uma coragem infinita é capaz de acender numa mulher escravizada essa retidão de caráter a ponto de acreditar no Direito e na Justiça mesmo em condições tão hostis. Ela foi a nossa primeira advogada. Antes, em 1694, Dandara, a guerreira negra no Brasil colonial, se atirou de uma pedreira ao abismo, após ter sido capturada. Ela jamais aceitaria retornar à escravidão. Perdeu a vida e, apenas com a morte, recuperou, noutro plano, a sua dignidade. Esse tipo de poder infinito está espalhado por todos os lugares, como flores levadas pelas correntes dos ventos, em qualquer era, semeando os campos femininos com essa inclinação persistente para a integridade e a coragem. Na Checoslováquia comunista, Milada Horáková, advogada e política checa, foi executada sob acusação de conspiração e traição, aos 48 anos de idade. Enquanto a corda percorria o seu pescoço, antes do golpe final do cadafalso, Milada disse: "Perdi essa luta, mas eu sigo com honra". O tempo não apaga histórias imortais. E elas são muitas. A Constituição sul-africana de 1996 abriu espaço para a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação. Por intermédio da Comissão, a história de Phila Ndwandwe foi conhecida. Phila foi morta a tiros pelas forças de segurança do governo do apartheid, depois de ser mantida nua, sob tortura, durante semanas na tentativa de fazer com que delatasse seus companheiros. Não delatou. Ela manteve a sua dignidade confeccionando calcinhas e usando uma sacola plástica azul, vestimenta que foi encontrada envolvendo sua pélvis quando da exumação do seu corpo. "Ela simplesmente não falava", testemunhou perante a Comissão um dos policiais envolvidos em sua morte. "Meu Deus..., ela era corajosa!". A artista plástica sul-africana Judith Mason chorou ao ouvir os depoimentos dos assassinos de Phila. "Quem dera eu ter podido fazer um vestido para você". A artista juntou sacolas plásticas azuis descartadas e as cozeu, fazendo um vestido. Na saia da veste, pintou a seguinte carta: "Irmã, uma sacola plástica talvez não seja a armadura completa de Deus, mas você estava lutando com unha e dentes e contra poderes superiores, contra os senhores da escuridão, contra a maldade espiritual em lugares sórdidos. Suas armas era seu silêncio e um pouco de lixo. Achar aquela sacola e vesti-la até ser exumada foi algo tão frugal, sensato, um ato de esposa zelosa, um ato simples..., em algum nível, você envergonhou seus captores, e eles não acrescentaram a seus maus tratos um segundo desnudamento. Mesmo assim, mataram você. Só sabemos sua história porque um homem com um riso constrangido lembrou-se de como você foi corajosa. Há testemunhos de sua coragem por toda parte; sopram pelas ruas e perambulam nas ondas e se enroscam nos espinheiros. Esse vestido é feito de alguns deles. Hamb kahle. Umkhonto (descanse em paz)".1 Que força é essa, mulher? Ela reverbera um elo universal. Há mais testemunhos. Lembrem-se da estreia da carreira de advogada de Ruth Bader Ginsburg, defendendo a igualdade entre os sexos perante as leis dos Estados Unidos. Ela, muito jovem, ocupava a tribuna num Tribunal inteiramente masculino quando um dos julgadores interrompeu o seu argumento: "A palavra 'mulher' não aparece uma única vez sequer na Constituição dos Estados Unidos!". Ruth respondeu: "Nem a palavra 'liberdade' originariamente aparecia, Excelência". Era preciso mudar. Ganhou o caso. Mulheres de todas as cores. Adultas, jovens ou mesmo crianças. Da cidade ou da zona rural. Estudadas ou não. Dos lugares mais impossíveis, em qualquer época. Pouco importa. Elas sempre estiveram lá. E continuarão estando. É seu destino. Nas montanhas do vale do Swat, no nordeste do Paquistão, Malala, com 15 anos, desafiou talibãs e insistiu em frequentar a escola, o que era considerado um acinte, por ela ser mulher. Em 2012, num ônibus escolar, um homem armado chamou-a pelo nome, apontou-lhe uma pistola e disparou três tiros. Uma das balas atingiu sua cabeça. Malala sobreviveu. Esse ano, ela postou uma foto em suas redes sociais. Formava-se em Oxford. Esse tipo de gana conduziu no passado a história de Linda Brown, do Kansas, Estados Unidos, em seu triunfo pessoal com efeitos coletivos arrebatadores. Linda não compreendia a razão de seus longos percursos diários para a escola, principalmente quando soube que havia um colégio a quatro quarteirões da sua casa. A criança tinha a pele negra e em seu país a educação era separada pela cor da pele. A escola perto de casa era para brancos. A questão chegou à Suprema Corte, que a apreciou em 1954. Foi o caso Brown v. Board of Education, que serviu de estopim judicial para o início do longo desmantelamento da segregação racial naquele país. Que força é essa, mulher? Quem olhar com a sabedoria da sensibilidade verá um espontâneo pendor para a liderança e uma liderança cristalizada pelo exemplo. O exemplo de Madre Teresa de Calcutá. O exemplo de Irmã Dulce. De Mãe Menininha do Gantois. O exemplo da coragem sem limites de Anita Garibaldi, cujo nome está no Livro dos Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Liberdade e da Democracia, em Brasília. O exemplo das mulheres para quem o Banco Grameen foi criado, enxergando no microcrédito o sopro de ar para uma Bangladesh sufocada pela pobreza. 97% dos mutuários do banco são elas, as mulheres, seriamente comprometidas em adimplirem suas dívidas mesmo que não haja documentos nem contratos de empréstimos. Livres dos agiotas, elas conquistaram pão e asas. Passa da hora de mudar. Precisamos menos de um Juízo Final que nos machuque como um pai cruel e mais de uma mãe justa como é a Mãe Natureza. Necessitamos menos de alter ego e mais de alma mater. Que a justiça seja feita menos de martelos e mais de balanças, menos de poder e mais de autoridade. É fundamental que eles, os Códigos, não fiquem entregues a si mesmos, mas submetidos aos domínios derradeiros delas, as Constituições, como a Constituição de 1988. Uma Constituição que abriu o portal dos direitos fundamentais com seus 78 incisos do art. 5º, mas que, como primeiro deles, escolheu aquele cuja redação diz: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Uma Constituição que reconhece que quando o bebê chora de fome, pouco importa se a mãe desfruta de liberdade ou não. Ela assegura às presidiárias "condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação". Uma Constituição que traz como um dos objetivos fundamentais promover o bem de todos, sem preconceitos de "sexo" e quaisquer outras formas de discriminação. Uma Constituição que ao dispor sobre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, assegura a "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei" e proíbe "qualquer diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo". E uma Constituição que determina que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos "igualmente pelo homem e pela mulher". Mas não bastam as leis, tampouco as Constituições. A transformação definitiva não ocorrerá sem o insubstituível elemento humano, vocês, que não falam apenas em nome próprio, mas por intermédio das procurações metaforicamente dadas pela sua linha ancestral, as bisavós, avós e mães de cada uma. Que falam para o amanhã, para filhas, netas e bisnetas. Vocês são as advogadas do passado, do presente e do futuro. Uma travessia como essa jamais será fácil. O terreno costuma ser extremamente escorregadio. Acham que foi fácil para a advogada e política britânica Margaret Thatcher? Mais diligente do que o seu gabinete masculino, Thatcher obteve dele, no final da sua longa temporada como Primeira-Ministra, apenas inveja e traição. Essa é uma luta que visa a reconstruir as bases do edifício acinzentado do poder contemporâneo para que, a partir da nova formatação desses pilares, possa o edifício inteiro se tornar mais vivo, mais colorido e mais funcional. Mas o poder não cede passagem. Ele é renitente. Vocês são as desbravadoras em suas embarcações e ele o mar revolto sob os lances das tempestades, com monstros marinhos argutos dando botes a todo instante. Por isso, saibam que não chegarão lá com timidez. Não. Passem com coragem e uma grande dose de atrevimento. Cruzem esse limite artificialmente imposto com bravura e resignação. Passem em marcha, de mãos dadas, com cânticos ou em silêncio. Protejam-se. Passem unidas, em harmonia, guiadas por um propósito emancipador. Passem sem pedir licença, sem pedir desculpa, sem pedir perdão, sem baixar a cabeça nem desviar a vista. Passem com suas mentes e seus corpos, ao seu modo, do seu jeito. Apenas passem. Lembrem-se de Conceição Evaristo, que alertou para o grave fato de que não há apenas a "pedra" no meio do caminho. Há ainda "pau, espinho e grade": "'No meio do caminho tinha uma pedra',Mas a ousada esperançade quem marcha cordilheirastriturando todas as pedrasda primeira à derradeirade quem banha a vida todano unguento da corageme da luta cotidianafaz do sumo beberragemtopa a pedra pesadeloé ali que faz paradapara o salto e não o recuonão estanca os seus sonhoslá no fundo da memória,pedra, pau, espinho e gradesão da vida desafio.E se cai, nunca se perdemos seus sonhos esparramadosadubam a vida, multiplicamsão motivos de viagem." Passem não apenas por vocês. Passem por nós também. A ideologia machista nos prometeu honra e orgulho. Entregou vergonha, dor e sofrimento. Alcoolismo, pânico, trauma, doença, vício e resistência. Atraso mental, moral e comportamental. Não me refiro às imperfeições daqueles que aqui estão para evoluir. Dos tropeços de um percurso que é mesmo difícil. Dos erros humanos reparáveis, tampouco dos ânimos inerentes a quem tem os córregos do corpo irrigados por sangue, não por água. Somos seres sociais e emocionais. Haverá ruídos sempre. Atos falhos, incoerências, inconsistências, medo ou egoísmo. Tudo isso é vida humana. Não é disso que falo. Falo do machismo. Dessa ideologia impregnada em quase todos os lugares, como manchas que transformam uma linda peça de roupa num rebotalho sem valor. Uma construção velha repleta de cômodos escondidos, difíceis de serem identificados para que possam ser limpos, reformados ou demolidos. Um machismo cujo maior escândalo, o estatístico, deu à luz à Lei Maria da Penha e ao crime de Feminicídio. A realidade trágica fez o Estado reconhecer que as mulheres precisariam de armaduras institucionais para se protegerem das investidas covardes. Mas não recuamos, não reconhecemos o fracasso que o machismo é. Chegamos ao ponto de, em nome dele, tirarmos a vida de mulheres a quem dizíamos amar. Quando não, ceifamos a vida dos novos amores das mulheres cujos corações não nos ofereciam mais morada. Para o machismo, "não" não é "não". Que ímpeto é esse? O machismo acabou conosco. Tornou os ambientes decisórios menos diversos, menos holísticos e pouco interessantes. Excludentes e concentradores. Mais do mesmo. Disse ainda que seríamos mártires. Terminamos em calabouços sombrios, presos, alijados do banquete de uma vida social abundante e repleta de possibilidades. No limite, sua perspectiva extrema gerou assediadores, agressores, estupradores e assassinos. Nada de honra, nem orgulho. Apenas ultraje. Muito antes, ele já havia prometido que faria de nós heróis, que venceríamos guerras, que seríamos aplaudidos e lembrados. E pelo menos nas duas grandes guerras, lá estávamos matando pessoas, inimigos e amigos, homens e mulheres, idosos e crianças. Do outro lado do front, estavam elas, as mulheres, que não deram causa a nada daquilo, e, mesmo assim, foram compulsoriamente mergulhadas nos hospitais e seus equivalentes, para curarem e repararem tanto mal. A cura pela qual Ana Néri voluntariamente perseverou, em nosso nome, muito antes, na Guerra do Paraguai. Cura. Há muitas formas de vivê-la. Em Jerusalém, no Museu do Holocausto (Yad Vashem), foi agraciada com a rara honraria de "Justa entre as Nações", Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, que, na sua condição de funcionária do Consulado brasileiro na Alemanha, ajudou judeus a entrarem ilegalmente no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, salvando todos eles. Salvar vidas é algo nobre. Curar pessoas é divino. Matá-las, não. Vocês são o fio de água no chão árido, a linha que percorre a pele fechando feridas abertas. E esse poder de realizar a alquimia da cura está aí para quem quiser ver, nessa terrível pandemia. Quais nações animam puro orgulho? Alemanha, Nova Zelândia, Taiwan, Islândia, Dinamarca, Finlândia e Noruega. Quem as governa? Sim, elas. Que força é essa, mulher? Os homens não podem se enxergar como inimigos do descortino dessa jornada. Se buscam um nome masculino para tomarem como alguma referência nessa conversa, que se inspirem em John Stuart Mill, autor da obra "Sobre a sujeição das mulheres". Ele afirmava que a igualdade de direitos, deveres e oportunidades entre homens e mulheres, notadamente no campo da educação, da propriedade e da participação política, contribuiria para a ampliação da felicidade de toda a coletividade. Mill chegou a integrar o Parlamento Britânico e a propor leis nesse sentido. Era um liberal e um democrata. Essa foi a mensagem desse homem, em 1869. No século XXI, qual é a sua mensagem, meu irmão? Precisamos de novos marcos filosóficos, de premissas que libertem, não que aprisionem. Propostas teóricas que advirtam, plantando entre nós o "nunca mais". Necessitamos ter em nossas cabeceiras obras escritas por quem viveu a verdade e percorreu o caminho, por quem fala sobre o que sentiu na pele. É dessa experiência que vem a autoridade, um elemento muito mais valioso do que o poder. Obras como a de Hannah Arendt, judia que escapou do holocausto liderado por um homem que se dizia forte. Hannah advertiu sobre a origem do totalitarismo. Trabalhos como o de Djamila Ribeiro, que escreve sobre aquilo o que vive, não apenas sobre o que conhece de ouvir dizer. Djamila adverte sobre o mal do racismo. Ainda assim, mesmo inspiradas por mulheres que entregaram suas razões e seus sentimentos para uma caminhada sem igual, a verdade é que essa jornada jamais terá fim. Um edifício ajuda a explicar a afirmação acima. Do lado de fora do plenário da sede da Corte Constitucional da África do Sul, em Joanesburgo, há um painel com luzes vermelhas de neon e uma mensagem em língua portuguesa: "A luta continua". Inspirada no mote político em busca por independência vindo de Moçambique, a expressão do letreiro mostra para as pessoas que entram e saem da Corte Constitucional, local destinado a ouvir súplicas por justiça, que não há descanso na jornada de vindicação por direitos. Encerrando-se um ciclo, outro se inicia. Também é assim nessa aventura histórica. Na realização da vossa emancipação, não há descanso. A luta sempre continua. Mas esse não pode ser um problema insuperável para quem chegou até aqui. Siga edificando. Você é forte. Forte demais. Ela, a força, está contigo. Sempre esteve. ____________ 1 Sachs, Albie. Vida e direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 14.
segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Rede de Ódio

Estreou semana passada, na Netflix, "Rede de Ódio", obra polonesa desse ano dirigida por Jan Komasa e escrita por Mateusz Pacewicz. Não é um filme. É uma profecia. Ele começa com a cena de uma bela sala repleta de alunos atentos a seus laptops, em suas mesas, dedicados aos estudos na faculdade de Direito de Varsóvia. Tomasz Giemza, contudo, está sozinho, disperso e aflito. O jovem estudante tem que dar explicações à professora de Direitos Humanos, Hoff-Studnicka, e a outro professor do departamento. A acusação é grave: plágio. Confrontado, ele tenta convencê-los da sua própria interpretação sobre o incidente. É um jovem manipulador, mas, ali, seus truques retóricos não têm poder algum. "Plágio não é interpretação", diz a professora. "Você violou a lei na faculdade de Direito", encerra o professor. Tomasz é expulso. Assunto encerrado. Em seguida, aparece a jovem Gabriela Krasucka, a "Gabi", seu eterno amor, filha de Robert e Zofia, que têm Tomasz como um sobrinho pela ligação com seus pais, que eram moradores de uma vila distante onde a família Krasucka costumava passar as férias. A família paga a faculdade e não faz a menor ideia da sua recente e vexatória expulsão. Gabi estava atrasada para o jantar. Ficou presa por conta de uma manifestação. No trajeto, escuta gritos: "Mortes aos inimigos da Pátria!". Em seguida, lê uma faixa: "Europa branca ou nenhuma Europa!". Quando chega, todos já estão à mesa. Zofia, Robert e Tomasz. "É difícil imaginar que no século XXI os fascistas viriam para as ruas", desabafa Robert, dando início à noite. O apartamento elegante, com música de bom gosto aclimatando a ambiência da sala decorada, tem uma mesa bem-posta. Taças de vinho branco harmonizam o camarão preparado por Zofia. Tomasz tem dificuldade de cortá-lo. Mastiga e engole a cauda, que deveria ser deixada de lado. Com um gole d'água, faz um bochecho. Gabi olha, constrangida. Há sete anos Tomasz espera dela uma resposta ao seu convite para serem amigos na rede social. Quando ele parte, os três zombam da sua falta de habilidade à mesa. A lembrança que ele havia dado para a família - um pote de geleia de morango -, é doada para a empregada Oksana: "Ela é gulosa, gosta de coisas doces", diz Robert. Os três gargalham. Perguntada por Zofia se conhece o dormitório da universidade onde Tomasz reside, Gabi responde: "Por quê? Eu sei como é. Homens suados, sopa instantânea e uma longa fila na porta do banheiro". A gargalhada se repete. Depois, noutra cena, o manipulador Tomasz está saindo de uma boate e encontra Beata Santorska. Ele sabe quem ela é. Insatisfeito com seu emprego de moderador de rede social, com salário atrasado, Tomasz vê no encontro uma grande oportunidade. Ele estava disposto a tudo. Havia tocado o fundo do seu poço particular. Beata foi demitida da agência de publicidade onde trabalhava. Perdeu o primeiro filho. Criava, sozinha, uma criança. Expulsa do seu nicho de mercado, restou-lhe o comando da Best Buzz, uma agência de assassinato de reputações. Destruiria pessoas, violaria a lei e infringiria a ética. Não titubeou em aceitar. "Eu lhe mostro o que um millennial é capaz de fazer", diz Tomaz. O primeiro job dizia respeito à FitAneta, celebridade fitness das redes sociais que ganhava dinheiro com produtos detox. A Best Buzz havia sido contratada para organizar uma campanha de perda de popularidade para reduzir o perfil público da jovem. Tomasz propõe a estratégia: espalhar que o suco dela é prejudicial. A cúrcuma (açafrão-da-terra) excederia o limite de betacaroteno (pigmentos amarelo-alaranjados de frutas e vegetais), o que faria com que as pessoas ficassem com partes do corpo amareladas. Não tendo percorrido os níveis mais elevados de educação formal, Tomasz descobriu tudo na internet. Assim montou seu plano. Era o que lhe bastava. Na reunião na Best Buzz, ele mostra a mão maquiada. "Vamos criar a hashtag '#FiqueiAmarelo', plantar informações e fazer uma bola de neve disso". Beata topa. A garota fitness é rapidamente destruída. Quando vê um vídeo dela desesperada, Beata vibra e agradece a Tomasz. Eles tinham liga. Fariam, a partir dali, o mal, juntos. Gabi reaparece. Era o aniversário de Natália, sua irmã. O buffet da recepção orgulhosamente anuncia que a comida é "vegetariana e sem glúten". Na recepção, ela diz que o jovem Staszek Rydel, que trabalha na fundação de sua mãe, havia estagiado no MoMa, Museu de Arte Moderna, em Nova Iorque. Pergunta a Tomasz se ele conhece o MoMa. "A Mãe? Claro!". Não fazia ideia. Gabi percebe. Rapazes tocam piano e violoncelo. Zofia avisa que Robert fará um discurso. Todos se aproximam. "Tribalismo, nacionalismo, autoritarismo....", discursa Robert, segurando a taça de champanhe. Ele enaltece a filha aniversariante, Natália, seu orgulho. Frisando que ela era uma estudante de Oxford, confere à moça a grave missão de lutar por um futuro melhor. "Uma filha assim é uma benção para seus pais", finaliza. Aplausos. Já Gabi, a irmã, é apresentada como "uma menina muito talentosa e sensível". "Um dia ainda vai nos surpreender", fecha Robert. Sem mais. Nada mais. Gabi havia passado o ano anterior afundada em depressão e terapias, lutando contra a dependência química. Na noite na qual Tomasz conheceu Beata, ela havia capotado num sofá, drogada. Tomasz a resgatou e a levou para casa a salvo. No aniversário, Gabi chama Tomasz para um quarto, uma espécie de depósito. Lá, mostra-lhe droga e o convida a usar. Robert, o pai, vê. Nada diz. Depois, para Gabi e Zofia, responsabiliza Tomasz, chama-o de mentiroso compulsivo. "Isso é de família!", bufa. Tomasz ouvia tudo, chorando escondido. Gabi não revela a verdade. Deixa Tomasz levar a culpa. Depois disso, se afasta dele completamente. Na Best Buzz, Beata mostra o site do candidato a prefeito de Varsóvia, Paweł Rudnicki, o bem-intencionado gay liberal contrário aos populistas nacionalistas. Esse será o segundo job. Rudinicki precisa ser destruído e o caminho é conhecido: as redes sociais. Beata ordena a compra de 80 perfis falsos de jovens entre 20 e 25 anos. Tomasz inicia a campanha de desinformação, associando o candidato à "islamização da Europa" e à "vinda em massa de refugiados". Ele cria a página "Parem a Islamização!". Um fluxo inimaginável de vídeos, fotos e posts ganha impulsionamentos. A campanha não apanha apenas radicais estúpidos. Pessoas esclarecidas também se permitem alienar. Tudo é monitorado, estudado, capitalizado e serve de base para as novas estratégias da agência. O candidato lamenta os ataques anônimos, mas diz que "tentativas de censura na internet prejudicam o debate e violam a liberdade de expressão". Melhor para Tomasz. Certo dia, ele pede comida por delivery. Quando vai à porta do apartamento, vê que o entregador estrangeiro está com um grande hematoma no rosto. Tinha sido agredido. Havia um marginal de um lado do computador manipulando anonimamente as pessoas, e, nas ruas, bandidos dispostos a, pela violência, dar asas ao seu próprio radicalismo. Tomasz vê que sua campanha estava dando certo. Num dado momento, Beata lhe entrega o audiolivro "A Arte da Guerra". Nele, diz-se que para vencer uma guerra é preciso ter um espião, um agente duplo que seja manipulado segundo a vontade do líder. Tomasz precisa encontrar o seu. Ele começa a procurar num clube de tiro. Não encontra. Junto com os homens com quem lá estivera, vai ao bar. Vê o candidato Rudnicki na televisão. Pergunta a um dos colegas o que acha. "Eu lhe daria um tiro na cara", responde. Tomasz completa: "Viado idiota! Puta esquerdista!". Todos riem. Aparece Stefan Guzek Guzkowski, o "Guzek". "Um idiota, um anormal", alerta um dos jovens. Guzek queria viralizar os vídeos que fazia. No passado, havia escondido explosivos num porão, tendo sido apanhado pela polícia, mas sem consequências. Agora, passava o dia inteiro, todos os dias, no computador, jogando MMO (no qual jogadores, de seus computadores, interagem entre si). Ele lidava com a sua baixa autoestima e com uma vida sem sentido exibindo-se nas redes sociais atirando com armamento pesado. Num dos vídeos, elogia uma AK-47 e pede um like ao final. "É o colapso da nossa civilização", diz, diante de uma manifestação pacífica em Varsóvia. Em seguida: "Querem enterrar o velho continente cristão". Ao final, pede: "Precisamos de grandes homens, de grandes feitos". Guzek não fazia nada de grandioso na vida. Mesmo assim, em seu quarto escuro no pequeno apartamento onde vivia com a avó, entendia que ele seria o grande homem que salvaria o continente europeu e a civilização. "Na Europa, abundam hordas islâmicas que ameaçam os valores fundamentais sobre os quais o nosso mundo foi construído", afirmou. Numa cena, tenta medicar a avó doente. Ela o despreza. Depois, estapeia o rosto de Guzek com grande violência. Ele volta para o quarto. Coloca as mãos sobre a cabeça, desesperado. Era tudo o que Tomasz precisava. Ele, valendo-se do anonimato, cria um personagem sedutor no jogo e passa a conversar com Guzek. Elogia seus feitos, credencia-o como homem eleito para salvar a Europa e passa a lhe dar pequenas missões desestabilizadoras da candidatura de Rudnicki. Na exposição Neuropea, realizada na fundação de Zofia, Guzek tenta formular uma pergunta ao candidato Rudnicki. Robert - enfiado num elegante cachecol -, intervém. Guzek, sem ter talento sequer para articular ideias, argumentos e perguntas, é retirado do ambiente. "Porco comunista! Fora o comunismo!", grita. Tudo é gravado e espalhado na internet. Beata vibra uma vez mais. E ganha dinheiro com isso. O cliente, um candidato opositor, faz uma nova encomenda: um escândalo social. A missão cabe a Tomasz. Ele droga Rudnicki, o atrai para um bar gay, beija-o e, ao vê-lo dançando com outros homens, parte. Guzek filma e espalha nas redes sociais. "Pervertido", escreve. O vídeo viraliza e desestabiliza novamente a campanha. Tomasz cria, pelas redes sociais, eventos antagônicos para o mesmo dia, hora e local. Um contra e o outro a favor do candidato. Atrai centenas de pessoas para ambos. Ninguém fazia a menor ideia de onde aquela iniciativa havia partido. Mas, no dia e hora marcados, estavam lá, manipulados pelas fabricações virtuais da Best Buzz. Chega a hora de Tomasz dar a última missão para Guzek. Tudo é arquitetado por meio dos jogos de computador. Guzek não sabia quem era Tomasz. Mesmo assim, recebe a missão do personagem do jogo. A ele caberia salvar a civilização e impedir a Europa de tombar diante das "forças do mal". Para isso, a solução: armas de fogo. Num momento de hesitação, porém, escuta de Tomasz, que queria convencê-lo a não desistir: "Para eles - as elites -, você será sempre um Zé Ninguém! Um Zé Ninguém!". Posteriormente, Guzek retruca: "O que vocês sabem sobre como é viver nesse buraco? Voltar para casa e não ter nada, exceto quatro paredes?". Chorava. Tomasz tinha uma vida familiar colapsada, havia perdido a mãe, sido expulso da faculdade, foi um moderador medíocre de rede social e teve de suportar o desprezo de Gabriela, o amor da sua vida. Beata, demitida da agência de publicidade da qual fazia parte, perdera um filho e tentava criar, sozinha, outro. Passara a ganhar dinheiro destruindo pessoas. O limitado Guzek era maltratado pela avó, desprezado por todos e vivia uma vida vazia, tentando, sem êxito, ser notado na internet. Do outro lado, a família Krasucka, cujas virtudes intelectuais eram eclipsadas por uma certa empáfia, defendia valores elevados enquanto negava a verdade de que tinha em casa uma filha dependente química que precisava de ajuda, dividia as irmãs dando mais afeto a uma em detrimento da outra, e agia com preconceito contra Tomasz, mesmo ajudando-o materialmente. Essa era a matéria-prima da rede de ódio. Por anos, radicais nacionalistas armados ou jovens simplesmente perturbados diziam que seus países sucumbiriam à matança vinda de fora, de inimigos externos. Pediam que as pessoas se armassem para combater o mal estrangeiro. Mas, na verdade, eles próprios é quem matariam seus concidadãos. Eram eles os assassinos. Foi assim na Noruega, em 2011, quando o militante nacional da extrema-direita Anders Behring Breivik matou 77 pessoas (69 jovens integrantes do Partido Trabalhista Norueguês em Utøya e 8 pedestres em Oslo).1 No Brasil, também em 2011, na Escola Tasso da Silveira, no Município do Rio de Janeiro, o brasileiro Wellington Menezes de Oliveira matou doze alunos, com idade entre 13 e 16 anos. Foi o Massacre do Realengo.2 O mesmo em 2019, em Christchurch, Nova Zelândia, quando Brenton Tarrant, militante de extrema-direita, assassinou pelo 51 pessoas que frequentavam a mesquita Al Noor e o Centro Islâmico Linwood.3 No filme, Guzek é mais um desses. Ele vai à convenção eleitoral de Rudnicki e, munido de uma submetralhadora roubada por Tomasz do clube de tiro, promove uma matança em seu país, contra os seus próprios concidadãos. Esse é, no filme, o resultado de uma jornada que se iniciou com um jovem de má índole, frustrado, sozinho num dormitório, diante do computador. Ele enxergava naquela tela o portal aberto para que, alheio a qualquer responsabilidade ética ou jurídica, fizesse o que quisesse para conquistar a atenção que jamais obteve seguindo as regras do jogo. Aliado a uma empresária inescrupulosa, Tomasz criou o seu próprio gabinete do ódio, para amealhar prestígio, poder e dinheiro. Ele queria ir à forra. E foi. O filme convida à reflexão. A Constituição brasileira pressupõe a ideia de consciência, cuja liberdade está assegurada no art. 5º, VI. Garante ainda a convicção filosófica ou política (inciso VIII do art. 5º). Mas como construir a sua consciência, a sua convicção, a partir da mentira ou do delírio? Como erguer um conjunto ordenado de ideias de base racional a partir das quais você tomará uma decisão, se, a matéria-prima dessas ideias, é pura alienação repassada por meio das múltiplas fontes de informação das quais você se abastece diariamente? O filme também coloca em xeque o trabalho de agências como a Best Buzz. Fala de assassinato de reputações nas redes sociais. É daí que vêm alguns dos cancelamentos?4 É de onde partem as campanhas para dislikes? Os comentários odiosos? As hastags alavancadas? Essa é uma atividade lícita? O que tem de intelectual nesse tipo de trabalho? De artístico? De científico? De comunicação? Uma Best Buzz poderia fazer o que fez no filme, independentemente de censura ou licença, em nosso país? O mesmo se diga do processo eleitoral. Segundo o art. 14, § 10, da Constituição, nenhum mandato eletivo pode ser obtido com base em fraude. Mas a mentira nas redes sociais é a grande fraude do nosso tempo. No filme, fica claro que a legitimidade do processo eleitoral ao qual o candidato Paweł Rudnicki se submeteu era uma quimera. O eleitor de Varsóvia votaria segundo a sua consciência e a sua convicção. Mas a consciência e convicção seriam formadas a partir do que chegaria até eles vindo de Tomasz, que não mostrava a cara, não jogava limpo e tinha lado na disputa. O seu jogo era sujo e dessa sujeira emergiria o resultado da eleição para prefeito da cidade. Rede de Ódio é mais do que um filme. É um aviso, uma antevisão, uma profecia. Mostra a tendência de que muitos fatos da vida contemporânea deixem de ter qualquer espontaneidade. Eles perderam a sua própria verdade. É como se nada mais fosse real. Seja a ascensão e queda de celebridades das redes, seja a glória e o fracasso de candidatos na internet, sejam os eventos agendados online, seja a competição entre empresas concorrentes no ambiente virtual, seja o valor de companhias no mercado..., tudo pode ser muito facilmente manipulado por interesses não revelados, diretamente influenciados por aspirações desconhecidas, em prejuízo dos cidadãos ou dos consumidores, da democracia ou da livre concorrência, com consequências verdadeiramente perigosas. Há dinheiro envolvido. Também há busca por prestígio e poder. Somos todos apenas marionetes nesse grande teatro? É isso o que nos restou? O filme mostra jovens excitados, em desprezo à ética e ao Direito, brincando com nossas vidas e com conquistas granjeadas ao longo dos séculos, a partir da internet, como se vivessem um game, mas, nele, os personagens somos nós. Gente inescrupulosa, cansada do fracasso e percebendo a disposição dos voluntários, arregimentam seus exércitos, organizam os procedimentos, precificam os feitos e criam um novo mercado: a rede de ódio. Estamos em perigo. Contudo, pelo menos no filme, não nos damos conta disso. O game precisa continuar e quem quer que se oponha a isso será destruído na velocidade de um clique. Que fim lamentável é esse reservado a todos nós. Que seja apenas no filme. Oxalá. _____________ 1 A obra definitiva a respeito é "One of Us: The Story of a Massacre in Norway - and Its Aftermath", da extraordinária jornalista norueguesa Åsne Seierstad. Há tradução para a língua portuguesa da Editora Record. Baseado na obra, há o filme "22 de julho", na Netflix, do diretor inglês Paul Greengrass. 2 A imprensa brasileira tem vasto material a respeito. Apenas para ilustrar: clique aqui . Caso haja interesse em ler a carta deixada pelo assassino: clique aqui. 3 O assassino australiano se declarou culpado. Disponível em: clique aqui. 4 A BBC Brasil, numa longa matéria de Mariana Sanches, explica a cultura do cancelamento. Disponível em: clique aqui. John McDermott, do The New York Times, também escreveu a respeito: clique aqui.
terça-feira, 21 de julho de 2020

Fracassocracia

Não se fracassa persistentemente em algo sem que haja, para além da vocação para a derrota, certa engenharia de procedimento. É preciso cometer, de forma planejada, os mesmos erros, sempre. Se o sucesso tem um método, o fracasso também tem. Na edição de 18/7/2020, O Globo trouxe entrevista de Joel Birman à jornalista Maria Fortuna. Médico pela UFRJ onde leciona psicanálise, com consultório há mais de 40 anos, doutor em Filosofia pela USP e dono de um Jabuti (2013) pela obra "O sujeito na contemporaneidade", Birman disse: "O brasileiro hoje, diante do mundo, aparece como um ser violento, xenófobo, agressivo, racista, homofóbico, ressentido."1 Não foi o primeiro alerta. Em maio, Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek, José Serra, Rubens Ricupero e Hussein Kalout publicaram o artigo "A reconstrução da política externa brasileira". Referindo-se ao governo, destacaram "o desapreço por questões como a discriminação de raça e de gênero" e "os preconceitos de uma minoria obscurantista e reacionária".2 Antes, em 2019, Ricupero já havia chamado a atenção, em entrevista a Jamil Chade, no Uol, para o seguinte: "Hoje em dia, o que caracteriza um governo admirado, merecedor de prestígio internacional, é seu comportamento nos domínios que integram o conjunto de aspirações da humanidade: direitos humanos, meio ambiente, promoção de igualdade entre mulheres e homens, tolerância e respeito pelas minorias, combate à desigualdade social e racial. Cada sociedade será julgada em última instância pela maneira como trata seus membros mais frágeis e vulneráveis".3 A partir de constatações como essas, intelectuais brasileiros enxergam a consolidação entre nós de uma "caquistocracia", que seria, na expressão de Michelângelo Bovero, "o governo dos piores".4 No meu modo de ver, o que temos experimentado, desde o dia 1º de janeiro de 2019, é algo diverso. O compromisso inarredável não é o de ter os piores nas posições de poder do governo. A profissão de fé é, na verdade, o fracasso. Vamos começar pela primeira crítica a essa atmosfera: o racismo. A escravidão, catapultada pelo tráfico de africanos pelo globo, foi um modo de produção, além de indigno, alheio aos princípios de democracias liberais com economias dinâmicas reconhecedoras dos direitos fundamentais. Não enxergava a dignidade da pessoa humana como um valor intrínseco de cada um. Era um absurdo moral. Tampouco conferia o status de cidadania aos escravos. Portanto, um vandalismo político. Para Adam Smith, em 1776, que a tinha como um jogo de soma negativa5, a escravidão não estimulava o nascimento de um mercado consumidor emergente. Logo, era também uma contradição econômica, pois negligenciava a necessidade de cooperação e confiança. Pilhagem desumana, apenas. A barbárie dos mais fortes sobre os mais fracos. Nos Estados Unidos, resultou numa guerra onde os vitoriosos foram os anti-escravagistas que, triunfando sobre o Sul, impuseram a 13ª Emenda à Constituição, pondo fim a essa história. A colonização de nações europeias sobre o continente africano foi outro fracasso. Mais um tipo de pilhagem que gerou disfuncionalidades sociais, violações de toda ordem, concentração de riqueza e ressentimentos políticos eternos. Uma tragédia em nome da "civilização". A segregação racial nos Estados Unidos, por meio das Leis Jim Crow, foi atirada ao chão pela Suprema Corte a partir da década de 1960. Já o apartheid sul-africano partiu o país em pedaços, social e economicamente, além de expor as vísceras de um regime político não apenas repulsivo, mas insustentável. Uma vez derrubado e humilhado, o apartheid cedeu espaço para eleições que consagraram Nelson Mandela, alguém que havia lutado - com palavras, livros e armas -, contra aquele mal completo. Alguém duvida que, além da indignidade que impôs, o racismo fracassou? Em 2015, um estudante jogou fezes e urina na estátua de Cecil Rhodes, na Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul. Eu estava lá. A presença do colonizador racista britânico causava vergonha e o fato de o seu dinheiro ter servido para ajudar a fundar a universidade pouco importou. A estátua simplesmente tinha que sair dali. E saiu, retirada pela própria instituição. Esse ano, foi a vez da estátua de Cecil Rhodes ser retirada do espaço de destaque que ocupava em Oxford, Inglaterra, de onde fora aluno e para quem deixara um pedaço da sua fortuna. A decisão foi tomada graças a uma votação envolvendo os funcionários da instituição.6 Uma vez mais o dinheiro doado por Rhodes foi indiferente à desonra que o seu racismo hoje representa. Numa democracia liberal moderna alicerçada na ideia de direitos fundamentais, o racismo não merece qualquer espaço de glória. No Brasil, o racismo não é apenas um vício moral. É um crime. O mesmo se diga da homofobia. Julgando a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e o Mandado de Injunção nº 4733, o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do decano, o ministro Celso de Mello, definiu que as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se à Lei nº 7.716/1989, constituindo, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, "in fine").7 Quanto mais civilizada é a nação e mais progresso alcançou a alma coletiva, maior abertura há para o reconhecimento dos mistérios que envolvem a sexualidade humana. No Brasil, a comunidade LGBTI+ é articulada, tem pauta bem definida, acumula vitórias perante o STF e tem avançado em sua justa luta por reconhecimento e conquista de espaços de poder. Tanto o racismo como a homofobia são violadores da Constituição. Dois dos princípios que regem as nossas relações internacionais são a prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao racismo (art. 4º, II e VIII). O racismo, no qual a homofobia se inclui, constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, XLII da Constituição e Lei nº 7.716/1989). Somos, a partir do Preâmbulo constitucional, uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. "Construir uma sociedade livre, justa e solidária" e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" são objetivos da nossa República (art. 3º, I e IV), cujo um dos fundamentos é exatamente a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Mesmo a liberdade partidária é condicionada ao respeito aos "direitos fundamentais da pessoa humana" (art. 17). Até o pacto federativo ganha exceção quando os direitos da pessoa humana estiverem em risco. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para assegurar a observância desses direitos (art. 34, VII, "b"). Ou seja, o racista ou o homofóbico não é um sujeito chato que deve ser ignorado. Ele é, no Brasil, um criminoso que precisa ser exposto, investigado, denunciado, condenado e chamado a cumprir a sua pena, nos termos da lei e da Constituição. Quanto à violência, à agressividade e o ressentimento encontrados por Joel Birman na imagem internacional do brasileiro atualmente, parece haver nesse movimento um "militarismo romântico" baseado na ideia de que "a guerra é nobre, enaltecedora, virtuosa, gloriosa, heroica, empolgante, bela, santa, emocionante".8 O romantismo é a forma de ver a vida pelo passado, em desprezo ao presente e sem antever traços do futuro. É como o filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen. Uma fuga infantil. Em março de 2019, em entrevista ao jornal chileno La Tercera, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, referindo-se à Venezuela, afirmou que "o uso da força será necessário em determinado ponto", apesar de o Brasil não "querer uma guerra".9 Voltou atrás posteriormente, sob a justificativa de que "a guerra custa caro".10 Como assim, guerra? O Preâmbulo da Constituição reafirma que somos uma sociedade fundada na harmonia social comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, solução pacífica essa que reaparece no inciso VII do art. 4º como um dos princípios regedores das nossas relações internacionais. A Constituição se refere à paz como algo a ser defendido (art. 4º, VI) e celebrado (arts. 21, II; 49, II; e 84, XX). Quando a ONU nos entregou a liderança da MINUSTAH ("Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti"), no Haiti, sabia que não era uma missão de guerra, mas de paz e, nessa tarefa, somos um dos melhores do mundo. Cumprimos o nosso papel e o fizemos com graça. Em 19 de agosto de 2004, na capital haitiana, Port-au-Prince, aconteceu o "Jogo da Paz". A Seleção Brasileira de Futebol participou de uma partida com a Seleção Haitiana. Repetiu-se a lógica de Nelson Mandela, segundo a qual o esporte há de ser usado para unir, não para separar. Basta lembrar a final da Copa do Mundo de Rugby, em 1995, quando o capitão da seleção sul-africana, François Pienaar, ao ouvir que o time contava no estádio com 16 mil sul-africanos dando apoio, fez uma correção: "Não. Nós tivemos 43 milhões de sul-africanos nos dando suporte".11 Referia-se a toda a população do país. A estratégia da paz pelo esporte já havia sido adotada para conseguir um cessar-fogo na guerra de Biafra, na Nigéria, em 1969, quando o Santos, liderado por Pelé, jogou um amistoso na cidade de Benin e interrompeu um conflito que durava dois anos.12 Então, se somos da paz, como explicar essa agressividade? Esse culto messiânico às armas de fogo? Qual a fonte de inspiração dos delírios relativos à guerra? O art. 5º da Constituição assegura, no inciso XVI, que todos podem reunir-se em locais abertos ao público, desde que pacificamente e sem armas. O inciso seguinte dispõe ser plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar. Segundo o inciso XLIV, é crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. O art. 17, § 4º, por sua vez, veda "a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar". Somos da paz. E somos uns dos melhores nisso. Também veio à tona nos textos que abrem essa coluna a advertência quanto a algum flerte com episódios de xenofobia. Acontece que os líderes xenófobos foram derrotados. Genocídios nasceram da xenofobia. Massacres também. Ufanismos nacionalistas excluíram o capital humano essencial à prosperidade das nações. Comunistas, nazistas, fascistas..., todos eles depositavam suas fichas ideológicas num nacionalismo extremo, isolacionista e profundamente opressor. Esses xenófobos, além de derrotados, foram capturados e presos. Eles não são heróis, são criminosos condenados por um tribunal internacional - o Tribunal de Nuremberg. O nazista Adolf Eichmann foi enforcado em Ramla, Israel, depois de julgado e condenado. Foi esse o final decadente de gente da sua estirpe. Quem é capaz de aplaudir personagens como esses? Enquanto isso, Nova York, nos Estados Unidos, seguia inspirando o mundo com a Estátua da Liberdade dando boas-vindas aos imigrantes. Abrir-se é manter-se firme na crença kantiana: "democracia, comércio, cidadania universal e direito internacional como meio para implementar a paz".13 A vitória não é xenófoba. O fracasso é. No Brasil, o caput do art. 5º da Constituição garante aos estrangeiros a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O inciso LII dispõe que "não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião". Estrangeiros podem assumir cargos, empregos e funções públicas (art. 37, I), podem ser admitidos em nossas universidades como professores, técnicos e cientistas, (art. 207, § 1º) e podem adotar as nossas crianças (art. 227, § 5º). Eles são bem-vindos. Ainda segundo a Constituição, uma das competências da União é manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais (art. 21, I). Na Corte Internacional de Justiça, em Haia, há Cançado Trindade e, antes, havia Francisco Rezek. Na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Flávia Piovesan. A Organização Mundial do Comércio (OMC) era até bem pouco tempo dirigida por Roberto Azevêdo, diplomata brasileiro. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) foi, de 2012 a 2019, dirigida por José Graziano. A projeção que muitos nomes brasileiros granjearam na cena mundial inspira orgulho. Coube a um brasileiro e a um chinês encaminharem a proposta que resultou na criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), agência internacional especializada, fundada em 1948, subordinada à ONU. Geraldo Horácio de Paula Souza, médico sanitarista, e Szeming Sze, médico e diplomata, fizeram história. Um ano antes, em 1947, o mundo teve de lidar com a catástrofe do Holocausto após a Segunda Guerra Mundial. O fato de os judeus não terem para onde ir tocava a própria autodeterminação dos povos, deixando exposta uma vulnerabilidade permanente. Foi quando a ONU decidiu aprovar uma resolução criando o Estado de Israel. Quem esteve à frente do processo foi Oswaldo Aranha, representante do Brasil na Assembleia Geral. Coube a ele presidir a sessão da aprovação da Resolução nº 181. Em sua autobiografia, Shimon Peres, que exerceu as mais elevadas posições em Israel, registrou: "Nós podíamos ouvir Oswaldo Aranha, o presidente da Assembleia Geral, chamando para a votação da resolução. Nós ouvíamos com toda a atenção, ao lado de comunidades judaicas de todo o mundo".14 Em homenagem a Aranha, foi construída uma praça em Jerusalém, além de terem atribuído o seu nome a uma rua em Tel Aviv.15 Alguém tem dúvida do quão vitoriosos nós somos no tabuleiro da diplomacia? Que país conseguiu ir tão longe valendo-se dos meios que dispúnhamos e dispomos? Não nos esqueçamos que a maior liderança individual da história da ONU foi um brasileiro, Sérgio Vieira de Mello. Sérgio ajudava a construir e a reconstruir nações. Fez isso no Timor Leste. Morreu em Bagdá, Iraque, vítima de um ataque terrorista. É uma tradição de longa data. Em 1907, o mundo parou pela Convenção sobre a Resolução Pacífica de Controvérsias Internacionais, a "Segunda Convenção de Haia". Nela, Ruy Barbosa defendeu que selecionar para o Tribunal Internacional que ali se desenhava países com maior poderio militar estimularia uma corrida armamentista que desembocaria em guerra, o que contrariaria os objetivos daquela Conferência de Paz. Impressionou as potências. Saiu aclamado mundialmente como a "Águia de Haia". Logo, como é possível a uma nação que deu tanto ao mundo na defesa da paz e dos direitos humanos atualmente determinar, pelo Itamaraty, por exemplo, que seus diplomatas sabotem uma iniciativa da ONU que ajudaria no combate à mutilação genital feminina em garotas na África?16 Querem nos transformar no que, exatamente? A nossa democracia é aberta ao mundo e muito maior do que obsessões cruéis. A República rege-se nas suas relações internacionais pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e pela concessão de asilo político (art. 4º, IX e X da Constituição). Buscamos a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações (art. 4º, parágrafo único). Os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte (§ 2º do art. 5º). Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos podem ser aprovados pelo Congresso Nacional de modo a equivalerem às emendas constitucionais (§ 3º do art. 5º). Por fim, o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão (§ 4º do art. 5º). Fomos juridicamente empoderados para a cooperação internacional, não para o isolacionismo. Não podemos negar essa vocação. Há ainda a nossa originalidade. Quando o mundo buscava uma solução para os ciclos de hiperinflação, entregando-se ingenuamente aos planos do Fundo Monetário Internacional, criamos o real17, graças à experiência acumulada ao longo de tanto tempo e às custas de muitos fracassos que serviram de aprendizado, não como referencial a ser imitado. O real não é uma moeda, é um tesouro nacional. Na Índia, as notas da rupia estampam a face de Mahatma Gandhi. O rand sul-africano traz o rosto de Nelson Mandela. Todas as cédulas de libra têm a Rainha Elizabeth II. O real brasileiro não copiou nenhum desses modelos. Quem aparece nas nossas cédulas são o beija-flor-de-peito-azul, a tartaruga-de-pente, a garça-branca-grande, o mico-leão-dourado, a onça pintada e a garoupa. Ao contrário de festejar políticos ou heróis, adotamos os animais, especialmente os que correm o risco de serem extintos. Homenageamos os nossos bichos. Tempos depois, quando o desafio global era o combate à fome e não se sabia ao certo qual a melhor resposta estatal a esse drama, montamos o Bolsa Família18, citado pela FAO como um dos responsáveis pela saída do país do Mapa Mundial da Fome, em 2014. Fizemos o que nenhum outro país em desenvolvimento fez. Recentemente o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, disse que o Brasil, que já foi exemplo mundial em questões de meio ambiente, voltou, no governo do presidente Jair Bolsonaro, a ser um "pária internacional".19 Meses antes, o diretor-geral para as Américas da consultoria Eurasia, Christopher Garman, afirmou que a questão ambiental é o principal risco para o Brasil em 2020.20 Não são "ongueiros" ambientalistas que estão pedindo respeito à natureza. É o dinheiro. O mercado global. Esse chamamento mundial à responsabilidade ambiental apenas rememora a liderança assumida pelo nosso país desde 1992. Ocorreu no Brasil a convocação para uma nova ética universal relativa à produção e ao consumo. Na reunião - Rio-92, Eco-92 ou Cúpula da Terra -, há quase 30 anos, representantes de 178 países reuniram-se para decidir que medidas tomar para conseguir diminuir a degradação ambiental e garantir a existência de outras gerações. Eles reconheceram o conceito de desenvolvimento sustentável. A Eco-92 foi realizada por nós, em nosso país. Uma nação que conduziu algo dessa magnitude e alterou por completo a lógica global de produção e consumo não pode se entregar a discussões mesquinhas, tais como se devemos transformar a Amazônia em pasto para bois ou não. Chega a ser bárbaro, de tão estúpido que é. O art. 225, § 4º, da Constituição reconhece a Floresta Amazônica brasileira como patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. Fiéis a esse compromisso, mantivemos de pé, na Amazônia, uma zona de livre comércio, a Zona Franca de Manaus, que gera meio milhão de empregos diretos e indiretos. Produzimos tecnologias. Com os empregos, ajudamos a preservar a floresta. Quem foi capaz, em qualquer parte do mundo, de erguer, numa floresta, algo assim? O desenvolvimento econômico indiferente ao compromisso ambiental é mais uma ideia fracassada. O mundo não quer esse tipo de produção. O mercado reclama uma ética alicerçada no desenvolvimento sustentável. Quem nega isso ficará para trás. Segundo a Constituição, um dos princípios da ordem econômica é a defesa do meio ambiente (art. 170, VI).21 O Capítulo VI é dedicado ao "meio ambiente". Segundo o art. 225, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.22 Preocupado com o que o país tem feito contra o meio ambiente, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, acaba de convocar audiência pública para que integrantes do governo, entidades de proteção ambiental, especialistas e outros interessados contribuam para um relato sobre o quadro ambiental no Brasil. A decisão foi tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 60, apresentada por quatro partidos - PT, PSOL, PSB e Rede Sustentabilidade. Segundo o ministro, "o quadro descrito na petição inicial, se confirmado, revela a existência de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental, a exigir providências de natureza estrutural. Vale reiterar: a proteção ambiental não constitui uma opção política, mas um dever constitucional". Há mais ideias derrotadas de volta ao palco dos acontecimentos. Veja-se, por exemplo, os pedidos de intervenção militar feitos por simpatizantes histriônicos. Esquecem eles que o general João Baptista Figueiredo, esmagado por algo que lhe era estranho - a democracia - saiu pelos fundos do Palácio do Planalto recusando-se a transmitir a faixa presidencial ao eleito, em 1985. Assumiu a presidência com inflação em 40,81% e entregou a 215,27%. Em entrevista ao jornalista Alexandre Garcia, pediu que o povo o esquecesse.23 O povo obedeceu. Não foi difícil. Percebam que são derrotas atrás de derrotas. O mesmo se diga quanto ao culto retórico à tortura. Segundo o art. 5º, III, da Constituição, "ninguém será submetido a tortura". Indo além, a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura (art. 5º, XLIII). Ressuscitar, mesmo que retoricamente, esse tema, é perseverar numa visão obtusa da vida que foi suplantada pelo humanismo. Há mais tragédias. Até o fechamento dessa coluna, eram mais de 80 mil brasileiros mortos pelo Covid-19. Como é possível assistirmos a essa falta de liderança nacional que temos visto na condução das políticas de combate à pandemia do coronavírus, se a nossa experiência conquistada nesse tipo de desafio nos credencia a sermos o farol do mundo? O Ministério da Saúde já havia estabelecido, em 1985, o Programa Nacional de DST e AIDS -PNDST /AIDS (Portaria nº 236) e criado o Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, visando estimular políticas públicas de prevenção e assistência aos portadores da enfermidade, em sintonia com os princípios e diretrizes do SUS. Em julho de 1996, na Conferência Internacional de Aids, em Vancouver, Canadá, foi anunciado a descoberta do chamado coquetel. Em novembro, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 9.313, obrigando o Estado a fornecer medicamentos de combate a AIDS. No ano 2000, na Conferência Internacional de Aids de Durban, África do Sul, a comunidade internacional reconhecia o acerto da política brasileira, indicando "o protagonismo e a liderança do país nas discussões sobre acesso universal, propriedade intelectual e patentes de medicamentos".24 "Protagonismo e liderança". Com essas ferramentas montamos um programa universal e gratuito de combate aos males do HIV. Mas, hoje, cá estamos nós ouvindo uma homilia pregada no Palácio do Planalto - às vezes no Alvorada - sobre a hidroxicloroquina. Para entender a obsessão, é importante ir ao ano de 2016. Foi da iniciativa do então deputado federal Jair Bolsonaro, o Projeto de Lei nº 4.510/2016, que dispunha sobre o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes com neoplasia maligna (câncer), sem autorização da Anvisa. A Associação Médica Brasileira ajuizou no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5501, contra a Lei nº 13.269/2016. A Advocacia-Geral da União, o Conselho Federal de Medicina e o Instituto Nacional do Câncer também eram contrários à lei. O Supremo deferiu a liminar. Para o relator, ministro Marco Aurélio, "a esperança depositada pela sociedade nos medicamentos, especialmente naqueles destinados ao tratamento de doenças como o câncer, não pode se distanciar da ciência. Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia das substâncias. O direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano". O ministro Roberto Barroso fez uma indagação e advertiu que, nesses casos, "o Estado poderá ser responsabilidade pelos danos causados". Eis a sua colocação: "O que acontecerá se a substância produzir efeitos colaterais adversos ou tóxicos no organismo de pacientes? E se portadores da doença, impulsionados pela medida estatal de liberação, abandonarem os tratamentos médicos convencionais para utilizarem a pílula e, posteriormente, for comprovada a sua inocuidade? Certamente, o Estado poderá ser responsabilizado pelos danos causados." Já a ministra Carmen Lúcia justificou assim o seu voto: "para que não se amplie e não se veja nisso, na pílula do câncer, mais uma pílula de engano para quem já está sofrendo com o desengano a que a doença pode conduzir". O arremate veio com o ministro Ricardo Lewandowski: "o Estado contemporâneo, esse Estado que nós conhecemos, o Estado de Direito, é o Estado que se organiza em bases racionais, e ele é limitado a partir de regras legais de caráter objetivo. Então, não me parece admissível que hoje o Estado, sobretudo num campo tão sensível como é o campo da saúde, que diz respeito à vida, e à própria dignidade da pessoa humana, possa agir irracionalmente, levando em conta razões de ordem metafísica, ou fundado em suposições, enfim, que não tenham base em evidências científicas". Se antes era a fosfoetanolamina, agora é a cloroquina. O fracasso tem método. Em maio desse ano, o Supremo apreciou sete ADIs contra a Medida Provisória nº 966/2020, que trata sobre a responsabilização dos agentes públicos durante a crise de saúde pública. Ela prevê, entre outros pontos, que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados com as medidas de enfrentamento à pandemia e aos efeitos econômicos e sociais dela decorrentes.25 No julgamento, o ministro Luiz Fux, que está na iminência de assumir a presidência do STF, vaticinou: "O erro grosseiro previsto na norma é o negacionismo científico. O agente público que atua no escuro o faz com o risco de assumir severos resultados". É o que os estudiosos chamam de "signaling", uma sinalização judicial de postura a ser adotada caso o comportamento potencialmente inconstitucional persista. Não há outra conclusão a se chegar, quanto ao percurso histórico do Brasil em muitas frentes de ação, que não seja a de que o nosso sucesso, local e globalmente, é estrondoso. Isso porque muitas de nossas figuras públicas depositaram nas luzes da razão e do conhecimento suas esperanças. Fizemos a nossa parte com cooperação e empenho. Por isso, é inaceitável que estejamos na condição que estamos. Mais do que um regime de governo, a fracassocracia é um plano que, para vingar, precisa da perseverança dos que, dispostos a segurar a sua alça, querem a todo custo implementá-lo. Como eu anotei no início, se o sucesso tem um método, o fracasso também tem. Mas essa perseverança destrutiva só será possível se nós nos omitirmos. E isso não acontecerá. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Smith, Adams. A riqueza das nações (1776). São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 281. 6 Disponível aqui. 7 O precedente seguiu a linha jurisprudencial firmada no julgamento do Habeas Corpus nº 82424 (DJ 19/3/2004), o "caso Ellwanger", cuja redação para o acórdão soube ao ministro Maurício Corrêa. Eis um trecho seminal: "8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma". Outro trecho: "Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem". 8 Pinker, Steve. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu. Tradução Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 269. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 Evidentemente, há certa propaganda nesse feito. De todo modo, vale conferir. 13 Pinker, Steve. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu. Tradução Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 342. 14 Peres, Shimon. No room for small dreams. Courage, imagination, and the making of modern Israel. Weidenfeld & Nicolson, 2017. 15 O Brasil também esteve presente na primeira Missão de Paz da ONU - a Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF-1), que em 1948 monitorou a assinatura do Acordo de Armistício entre Israel e seus vizinhos árabes. Desde então participou em mais de 50 dessas operações. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui. 19 Armínio Fraga participava de uma live organizada pelo CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável) que contou com presença do ex-ministro da Fazenda, Pedro Malan. 20 Disponível aqui. 21 É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; e preservar as florestas, a fauna e a flora (art. 23, VI e VII). Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 24). A função social é cumprida quando a propriedade rural atende à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (art. 186, II). Compete à lei federal estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos ao meio ambiente (art. 220, § 3º, II). 22 Dispõe ainda a Constituição que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao meio ambiente (art. 5º, LXXIII). Uma das funções institucionais do Ministério Público é promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do meio ambiente (art. 129, III). 23 Disponível aqui. 24 Green, Duncan. Da pobreza ao poder: como cidadãos ativos e estados efetivos podem mudar o mundo. Tradução de Luiz Vasconcelos. São Paulo: Cortez; Oxford: Oxfam International, 2009. Logo no começo de 2001, o Brasil declarou a possibilidade de licenciamento compulsório das patentes de dois medicamentos. No mês de março, conseguiu a redução do preço de um deles. Quanto ao outro, em agosto de 2001, o Ministério da Saúde anunciou o licenciamento compulsório de patente do medicamento, sustentando emergência em razão do custo e do interesse público. Contudo, após o anúncio a detentora da patente reduziu o preço. Todo o histórico nacional pode ser conhecido acessando o site mantido pelo próprio Ministério da Saúde no Brasil. Disponível em: https://www.aids.gov.br/. O Decreto Presidencial nº 4.830/2003, autorizou a importação de medicamentos genéricos, em caso de emergência ou interesse público. Tentava-se, ao tempo, reduzir os custos. O Decreto autorizava ainda a produção, em grande escala, dos referidos antirretrovirais pelo laboratório estatal Far-Manguinhos. 25 As ações foram ajuizadas pelos partidos Rede Sustentabilidade (ADI 6421), Cidadania (ADI 6422), Partido Socialismo e Liberdade (ADI 6424), Partido Comunista do Brasil (ADI 6425), pela Associação Brasileira de Imprensa (ADI 6427), pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 6428) e pelo Partido Verde (6431). Sustentam que esses critérios poderiam implicar a anistia ou o salvo-conduto a toda e qualquer atuação estatal desprovida de dolo ou erro grosseiro. Por maioria, o Supremo firmou as seguintes teses: "1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos".
O jurista uruguaio Eduardo Couture, em sua sabedoria imortal, deixou um alerta não apenas para os juristas, mas para todos aqueles que enxergam no tempo um inimigo a ser combatido. "O tempo se vinga das coisas que se fazem sem a sua colaboração". O tempo existe e não adianta ser indiferente a isso. Em muitas sociedades esse elemento está associado à sabedoria, à experiência e à segurança, especialmente à segurança jurídica. Nas nações mais avançadas na realização de direitos, o valor de suas políticas é medido a partir das respostas a perguntas simples, mas poderosas, como essa: como a sua comunidade cuida dos idosos? Os idosos são, entre nós, a demonstração mais cabal da força do tempo, assim como o são as tradições, os costumes e a própria história. Na sede da Corte Constitucional da Coreia do Sul - uma nação que confere dignidade ao tempo - há, no topo do edifício, um agradável terraço de onde é possível ver Seul inteira. Lá se enxerga também o "Baeksong" (Pinheiro Lacebark), uma árvore de mais de 600 anos reconhecida como o Monumento Natural nº 8 da Coréia. O tronco branco é associado aos cabelos brancos adquiridos com a maturidade. A primeira premissa desse texto é essa: o tempo existe e é perigoso negligenciá-lo. Ele não precisa ser demasiadamente longo, nem absurdamente curto, precisa apenas ser o tempo justo, como reclama o próprio conceito de justiça em seu sentido material quando associada à prestação jurisdicional eficiente e à razoável duração do processo, previstos respectivamente no parágrafo único do art. 126 e no inciso LXXVIII do art. 5º, ambos da Constituição Federal. Se o raciocínio acima é crível, então vale a pena investir um instante de energia intelectual para analisar a Proposta de Emenda à Constituição n. 199/2019, de autoria do deputado federal Alex Manente, em tramitação na Câmara dos Deputados. Eis um breve trecho da sua justificativa: "(...) a transformação dos recursos extraordinário (art. 102, caput, III) e especial (art. 105, caput, III) em ações revisionais, possibilitando que as decisões proferidas pelas cortes de segunda instância transitem em julgado já com o esgotamento dos recursos ordinários". Se o que há hoje são recursos entregues ao jurisdicionados para que tentem se socorrer, pela vez derradeira, do STF e do STJ, e a PEC os substituem por uma ação revisional, então não se trata de uma "transformação", mas, sim, de uma "extinção". A Proposta acaba com os recursos extraordinário e especial. Em português claro, é isso o que faz. A PEC 199/2019 aponta os seus propósitos. São os seguintes: "a) reconfigurar o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça enquanto cortes destinadas à, respectivamente, proteção e afirmação da Constituição da República, e à uniformização da interpretação do direito nacional; b) estabelecendo as cortes superiores enquanto cortes de vértice, impinge-se a busca pela racionalização do Direito brasileiro, reduzindo a contradição em pronunciamentos judiciais, e reduzindo o déficit de fundamentação que por vezes afeta pronunciamentos judiciais; c) com o fim dos recursos extraordinário e especial, vinculando o trânsito em julgado das decisões ao julgamento prolatado pelas cortes ordinárias, retoma-se a responsabilização institucional, e a valorização das instâncias ordinárias da Justiça - responsáveis pela análise probatória; d) ainda, como consequência do trânsito em julgado após o julgamento em segunda instância, permite-se a efetiva execução das sentenças judiciais, satisfazendo mais rapidamente os interesses jurídicos tutelados nas demandas; e) a execução imediata da sentença, por sua vez, qualifica-se como desestímulo à interposição automática de recursos protelatórios, traduzindo-se enquanto remédio especialmente necessário nas ações penais, como forma de efetivação da tutela penal; f) por fim, ressalta-se que a medida proposta não se qualifica enquanto afastamento do direito de petição, e de submeter-se à jurisdição da das cortes superiores, sendo, contudo, meio proporcional e eficaz à racionalização do sistema jurídico recursal". O item "c" é franco e a franqueza tem o seu valor. Ele diz: "o fim dos recursos extraordinário e especial". Ponto. É a partir daqui que passo à segunda premissa do artigo em forma de questionamento: é possível simplesmente acabar com esses recursos? A PEC altera o sistema processual-constitucional brasileiro de natureza extraordinária para acabar com os recursos especiais e extraordinários e criar uma ação revisional de natureza especial denominada "ação revisional", em que o autor só poderá dela se valer após o trânsito em julgado do pronunciamento judicial. Para responder o questionamento anteriormente feito, é preciso compreender qual a teleologia constitucional quanto à relação que os cidadãos devem ter com a sua aspiração por direitos perante um Judiciário que, como se vê no Capítulo III da Constituição, contempla o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça (art. 92, I e II). O preâmbulo da Constituição Federal visa a instituir um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício da justiça como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Um dos objetivos da República é o de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Como disciplina o art. 1º, a República constitui-se em "Estado Democrático de Direito", que traz, como um dos seus Poderes - Legislativo e Executivo - o Poder Judiciário (art. 2º). Segundo o inciso XXXIV do art. 5º, "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal." O inciso XXXV do mesmo art. 5º, por sua vez, dispõe: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Esse mesmo art. 5º apresenta o habeas corpus (LXVIII), o mandado de segurança (LXIX), o mandado de segurança coletivo (LXX); o mandado de injunção (LXXI), o habeas data (LXXII) e a ação popular (LXXIII), dispondo que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (LXXIV). Assevera ainda que o "Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença" (LXXV), sem descuidar do fato de que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" (LXXVIII). A Seção IV do Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça) apresenta a Defensoria Pública como "instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado" (art. 134). Por fim, o inciso XXIX do art. 7º insere como um dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, a ação quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho. Da leitura harmônica de todos esses comandos acima referidos parece clara a conclusão de que a Constituição brasileira de 1988 pretendeu abrir inteiramente os caminhos do acesso à justiça para as pessoas, não o contrário. E não é só isso. A Constituição também condiciona à sentença judicial a incursão em um plexo de garantias, reservando, inclusive, para as decisões judiciais transitadas em julgado, a possibilidade de desconstituição de determinados direitos. A perda da nacionalidade do brasileiro que tiver cancelada sua naturalização em virtude de atividade nociva ao interesse nacional reclama sentença judicial (art. 12, §4º, I). Também o cancelamento da concessão ou permissão, antes de vencido o prazo, de serviço público de radiodifusão sonora e de sons e imagens também reclama igual medida (art. 223, §4º). Como se vê, a Constituição de 1988 teve a intenção de fortalecer uma cultura de proteção a direitos, num ambiente no qual ninguém jamais tema elevar sua voz contra injustiças valendo-se do Poder Judiciário para tal mister, o que inclui a possibilidade de alcançar o STF e o STJ em suas vindicações pela proteção de direitos violados. Tanto que, segundo o inciso XIII do art. 93, na redação da Emenda Constitucional n. 45/2004, lei complementar, de iniciativa do STF, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados, dentre vários princípios, que o número de juízes na unidade jurisdicional seja proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população. A atividade jurisdicional, inclusive, há de ser ininterrupta (inciso XII do art. 93). O §3º do art. 107, por sua vez, dispõe que os Tribunais Regionais Federais poderão funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo. Há uma base normativa muito densa abrindo os caminhos do Poder Judiciário para que a comunidade dele faça uso, não de forma abusiva ou em violação às regras e princípios que estruturam o Sistema de Justiça, mas com o desembaraço de quem enxerga no Judiciário um ambiente ao qual as pessoas não devem temer tampouco se sentirem intimidadas ou sem esperança de que suas vindicações serão ouvidas e respondidas. Não custa recordar que a defesa judicial, além de ampla, há de ser munida dos meios e recursos a ela inerentes: "LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (art. 5º). Por tudo isso é que alterar o marco constitucional do trânsito em julgado é uma medida grave. Como o ministro Cezar Peluso, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, registrou na audiência pública da qual participou na Câmara dos Deputados exatamente para discutir essa PEC, é algo, pelo menos, "radical". Não toca apenas o inciso LVII do art. 5º, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Impacta múltiplos comandos vitalizadores de direitos fundamentais, de preceitos fundamentais, de garantias institucionais, de princípios constitucionais sensíveis e de cláusulas pétreas. A Constituição é cuidadosa com os marcos temporais a partir dos quais direitos são cristalizados. Tanto assim o é que o inciso XXXVI do art. 5º determina que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". A PEC, contudo, reconstrói a dimensão da coisa julgada que se consolidou em nosso histórico processual, enfraquecendo-a. Isso, enquanto a Constituição enxergou no trânsito em julgado o marco a ser observado nas hipóteses de desconstituição de bens da vida constitucionalmente assegurados em conexão com os elementos que dão sustentação ao Estado Democrático de Direito. Veja-se o caso das associações. Elas só poderão ser compulsoriamente dissolvidas por decisão judicial "com trânsito em julgado" (inciso XIX do art. 5º). E não é só. O servidor público estável perderá o cargo somente em virtude de sentença judicial "transitada em julgado" (art. 41, § 1º, I). Essa garantia institucional não se volta ao servidor em si, mas ao aperfeiçoamento das instituições estatais. A vitaliciedade, uma das garantias da magistratura e do Ministério Público, só pode ser perdida através de sentença judicial "transitada em julgado" (art. 95, I; art. 128, § 5º, I). A vitaliciedade é realizadora tanto da independência do Poder Judiciário como da autonomia do Ministério Público. E quanto à perda ou suspensão de direitos políticos? O art. 15 da Constituição condicionou-a ao cancelamento da naturalização por sentença "transitada em julgado" e à condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos. Outro elemento fundamental é a independência do Poder Legislativo e a legitimidade popular de seus integrantes granjeada pelo mandato pelo povo outorgado. Consta no texto constitucional que perderá o mandato o Deputado ou Senador que sofrer condenação criminal em "sentença transitada em julgado" (art. 55, VI). Ou seja, a partir da própria Constituição parece evidente a gravidade de qualquer medida que intente remodelar o instituto do trânsito em julgado de modo a reduzir a sua eficácia, encurtando o tempo necessário a alcançá-lo subtraindo dar a parte, como regra e a partir de agora, a oportunidade de chegar ao STF ou ao STJ1. Por isso é importante questionar se a PEC n. 199/2019 não tende a abolir direitos fundamentais ao antecipar a presença do instituto do trânsito em julgado. Nem se diga que pode o Poder Legislativo estabelecer, da forma que bem entender, o que é trânsito em julgado sem se basear em qualquer parâmetro, em alguma organicidade do próprio sistema constitucional e em absoluto desafio à compreensão histórica da hermenêutica constitucional construída e legada às nossas gerações. Na Constituição, o conceito é associado, em várias oportunidades, a uma realidade só configurada historicamente com a decisão judicial contra a qual não cabe mais recurso pelo fato de já ter percorrido os degraus jurisdicionais que ela mesma, a Constituição, oferece, o que não pode deixar de incluir, mesmo que haja filtros - e eles devem existir -, o STF e o STJ, que são integrantes do Poder Judiciário à luz dos inciso I e II do art. 92. Adiantar-se ao trânsito em julgado para que os recursos extraordinário e especial deixem de existir não se trata de criar um filtro, mas de extinguir a única via de acesso recursal do cidadão a esses tribunais. Quais as regras de calibração? Quais as salvaguardas? Quais os equivalentes funcionais colocados no lugar daquilo que deixará de existir? Quais os canais regedores das excepcionalidades que advirão de uma medida tão drástica? E quanto aos vários direitos fundamentais elencados nesse texto cuja desconstituição reclama o trânsito em julgado da decisão judicial? A PEC 199, pelo menos até aqui, destrói e não coloca nada no lugar. Na prática, pôs-se fim aos recursos extraordinário e especial. Optou-se por esse caminho enquanto é sabido que medidas de realização da celeridade processual passam pelo uso, por exemplo, da inovação tecnológica como forma de desafogar o Poder Judiciário. Elas podem reclamar reformas constitucionais ou infraconstitucionais. A Emenda Constitucional n. 45/2004 deu provas disso. Essas alterações se deram sem qualquer impedimento. O nosso modelo de prestação jurisdicional é, a partir da própria Constituição, reparador e transformador, entregue a um povo que em sua história multissecular foi mais intensamente convidado a uma vida com escassez de justiça do que com abundância dela. Todos devem encontrar na vindicação por direitos, na aspiração por justiça, e na esperança de acesso, mesmo limitado, racionalizado e funcional, a todas as instâncias do Poder Judiciário, a razão de ser do Estado Democrático de Direito. Trata-se de uma cidadania judicial inerente a democracias jovens que precisam de aportes persistentes da lei e da ordem para constituírem uma cultura de respeito a direitos, cultura essa que qualifica uma sociedade como politicamente civilizada e juridicamente elevada. Por tudo isso é que, pelo menos a partir do seu texto original, é possível constatar que a PEC n. 199/2019 enfraquece direitos e garantias individuais, fazendo disparar o §4º do art. 60, que diz: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais". Compreender o instituto do trânsito em julgado como inclusivo, em regra, do STF e do STJ, é uma forma de dizermos que, na vida e no direito, o tempo tem o seu próprio papel. Por isso é perigoso nós nos colocarmos na função de alquimistas dele, tentando encurtá-lo radical e artificialmente para driblarmos os seus efeitos. Não nos esqueçamos de Couture: "O tempo se vinga das coisas que se fazem sem a sua colaboração". Um tempo que, como disse, não precisa ser demasiadamente longo nem absurdamente curto. Apenas o tempo justo. E um tempo que, pela Constituição, inclui a possibilidade de enxergar o STF e o STJ como amparo último possível para quem pede a reparação de uma injustiça violadora da Constituição ou das leis do país. __________ 1 A própria Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942), por exemplo, dispõe, § 3º do seu art. 6º, que "chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso".
terça-feira, 9 de junho de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas as quartas-feiras, das 13 às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. O racismo entrou, uma vez mais, a partir da dor e do sofrimento que impõe, na agenda global. Manifestações em diferentes democracias em todo o mundo têm enfatizado a necessidade de enfrentar a questão com coragem e de uma vez por todas. No tempo atual, a associação entre o preconceito e a nova era marcada pela desinformação pode representar uma combinação explosiva. Exatamente por isso, o webinar "A Judicialização da Crise no STF" amanhã, 10/6, abordará a temática recebendo o Subsecretário de Políticas de Direitos Humanos e Igualdade Racial do Distrito Federal, Juvenal Araújo, e a coordenadora de Políticas de Promoção e Proteção dos Povos e Comunidades do Distrito Federal, Edcleide Martins Honório.O advogado constitucionalista Saul Tourinho Leal tratará ainda do caso que está na pauta do Supremo Tribunal Federal nessa quarta-feira, a Medida cautelar na ADPF 572, de relatoria do ministro Edson Fachin, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade, questionando a Portaria GP 69/2019, do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, que instaurou inquérito (Inquérito 4.781/DF) visando apurar a existência de notícias fraudulentas (Fake News), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares. Clique aqui e inscreva-se para o debate.
No plenário virtual do Supremo Tribunal Federal dessa semana, a Lista nº 103-2020, da ministra Cármen Lúcia, trouxe, sexta-feira da semana passada, voto divergente do ministro Alexandre de Moraes relativo ao estabelecimento, à luz da Constituição de 1988, do regime jurídico dos empregados dos Conselhos Profissionais, no sentido de saber se esse regime pode ser regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), quando há lei expressa nesse sentido, ou se necessariamente deve se dar pelo regime jurídico único dos servidores públicos, sob pena de ser declarado inconstitucional. Vale recordar que o Partido da República (PR) ajuizou, em 30/4/2015, a ação declaratória de constitucionalidade nº 36, visando converter em absoluta a presunção relativa de constitucionalidade do § 3º do art. 58 da lei 9.649/98, que diz: "§ 3º Os empregados dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas são regidos pela legislação trabalhista, sendo vedada qualquer forma de transposição, transferência ou deslocamento para o quadro da Administração Pública direta ou indireta". Em seguida, a Procuradoria Geral da República ajuizou a ação direta de inconstitucionalidade nº 5367 e a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 367, todas de relatoria da ministra Cármen Lúcia. Abaixo, um resumo: (i) ADC 36: §3º do art. 58 da Lei 9.649/98 (Organização da Presidência da República e dos Ministérios); (ii) ADI 5367: art. 58, § 3º, da Lei 9.649/98 (Organização da Presidência da República e dos Ministérios); art. 31 da Lei 8.042/90 (Conselhos de Economistas Domésticos); e art. 41 da Lei 12.378/2010 (Conselhos de Arquitetura e Urbanismo); (iii) ADPF 367: arts. 35 da Lei 5.766/71 (Conselhos de Psicologia); 19 da Lei 5.905/73 (Conselhos de Enfermagem); 20 da Lei 6.316/75 (Conselhos de Fisioterapia e Terapia Ocupacional); 22 da Lei 6.530/78 (Corretor de Imóveis); 22 da Lei 6.583/78 (Conselhos de Nutricionistas); e 28 da Lei 6.684/79 (Conselhos de Biologia e Biomedicina). A ministra Cármen Lúcia, relatora, entende que todos os empregados desses conselhos hão de ser regidos pelo regime jurídico único dos servidores públicos, sendo inconstitucional qualquer disposição legal em contrário1. O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, contrapõe que há espaço constitucional de conformação legal no sentido de que podem ser celetistas2. O julgamento virtual segue até a sexta-feira, 5/6. É digno de nota o fato de que, em 22/9/99, o STF julgou prejudicada a medida cautelar pedida no bojo da ação direta de inconstitucionalidade nº 1717, no ponto em que impugnava o mesmo §3º do art. 58 da Lei nº 9.649/98, tendo declarado a inconstitucionalidade do caput e dos parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do art. 58. Derrubou-se previsão que qualificava os Conselhos como de direito privado. O STF entendeu-os como autarquias, sem, contudo, esgotar seus elementos constitutivos. O § 3º não teve sua constitucionalidade analisada3. Posteriormente, deliberando sobre aspectos jurídicos dos conselhos profissionais, o ministro Alexandre de Moraes pontuou: "Há a possibilidade de afastamento de algumas regras que se impõem ao Poder Público em geral e, no caso específico, à Fazenda Pública". E arrematou: "Veja-se, por exemplo, a discussão quanto à possibilidade de contratação de empregados pelo regime celetista, pendente de análise na ADC 36, na ADI 5.367 e na ADPF 367, todas de relatoria da Minª. CÁRMEN LÚCIA"4. Prosseguindo, o ministro Alexandre de Moraes, em manifestação majoritária do pleno do STF, estabelece as distinções que singularizam esses Conselhos: "Os Conselhos profissionais gozam de ampla autonomia e independência; eles não estão submetidos ao controle institucional, político, administrativo de um ministério ou da Presidência da República, ou seja, eles não estão na estrutura orgânica do Estado. Seus recursos financeiros não estão previstos, como salientou o Ministro MARCO AURÉLIO, na lei orçamentária. Eles não têm e não recebem ingerência do Estado nos aspectos mais relevantes da sua estrutura - indicação de seus dirigentes, aprovação e fiscalização da sua própria programação financeira ou mesmo a existência, podemos chamar, de um orçamento interno. Eles não se submetem, como todos os demais órgãos do Estado, à aprovação de sua programação orçamentária, mediante lei orçamentária, pelo Congresso Nacional. Não há nenhuma ingerência na fixação de despesas de pessoal e de administração. Os recursos dessas entidades são provenientes de contribuições parafiscais pagas pela respectiva categoria. Não são destinados recursos orçamentários da União, suas despesas, como disse, não são fixadas pela lei orçamentária anual. Há, então, essa natureza sui generis, que, por mais que se encaixe, como fez o Supremo Tribunal Federal, anteriormente, na categoria de autarquia, seria uma autarquia sui generis, o que não é novidade no sistema administrativo brasileiro: as agências reguladoras também foram reconhecidas como autarquias sui generis. Aqui, no caso dos Conselhos profissionais, teríamos uma espécie mais híbrida ainda5." No caso acima, o STF concluiu: "O caráter sui generis, portanto, híbrido, dessas entidades exige uma cautela no exame de todas as implicações decorrentes da sua caracterização a priori como pessoa jurídica de direito público"6. Agora, o ministro Alexandre de Moraes torna a ressaltar essa circunstância em seu voto-vista lançado na ADC 36, na ADI 5367 e na ADPF 367: "há, então, essa natureza sui generis, que, por mais que se encaixe, como fez o Supremo Tribunal Federal, anteriormente, na categoria de autarquia, seria uma autarquia sui generis, o que não é novidade no sistema administrativo brasileiro: as agências reguladoras também foram reconhecidas como autarquias sui generis. Aqui, no caso dos Conselhos profissionais, teríamos uma espécie mais híbrida ainda". E acrescentou: "por esses motivos, merece ser franqueado ao legislador infraconstitucional alguma margem de conformação na discriminação do regime aplicável a esses entes, entendida a necessidade de se fazer incidir certas exigências do regime jurídico de direito público, na linha do afirmado na ADI 1717, mas bem entendida também a importância de se identificar que destoam do regime puro de Fazenda Pública". Mesmo antes no STF, eis a firme ponderação do ministro Maurício Corrêa: "Seria o cúmulo do absurdo que pretendesse o Constituinte, ao votar o artigo 39 da Carta Política, o que não fez, ter requerido dizer que tal regime e planos de carreira para "os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas" - porque assim é o que diz literalmente a norma - tivesse intuído também incluir os empregados de Conselhos Profissionais, sob a alcunha de servidores públicos, como beneficiários da infortunada classificação de autarquia especial, que na lei ordinária fez-se dimensionar"7. Ao liderar a divergência nessa ADC 36, na ADI 5367 e na ADPF 367, o ministro Alexandre de Moraes rememorou: "não por acaso, o anteprojeto da Nova Lei Orgânica da Administração Pública, elaborado por comissão de juristas constituída no âmbito do Ministério do Planejamento, e presidida pelo Professor Paulo Modesto, reserva aos Conselhos a categoria de entidades paraestatais, não integrantes da Administração, embora com personalidade de direito público, o que demonstra a precariedade, ou insuficiência, na qualificação dessas entidades como autarquias". O fato é que a ratio decidendi do voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, reside no fundamento de que "enquanto pendentes os efeitos da cautelar proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2135, juridicamente não há como relativizar - na persistência da jurisprudência sedimentada sobre a matéria neste Supremo Tribunal - a obrigatoriedade de adoção do regime jurídico único para os Conselhos de Fiscalização Profissional". Todavia, divergindo, o ministro Alexandre de Moraes assinalou o seguinte: "não obstante os sólidos fundamentos declinados pela Ministra Relatora, em especial no tocante ao art. 39, caput, da CF, e ao precedente firmado pela CORTE no julgamento da ADI 1717, observo que a peculiar situação dos Conselhos Profissionais dentro da organização do Estado brasileiro, recomenda maior reflexão sobre a aplicabilidade de certos aspectos do regimente jurídico administrativo a essas entidades". E prosseguiu: "a compreensão dos diversos aspectos que distinguem esses entes - como a autonomia na escolha de seus dirigentes, o exercício de funções de representação de interesses profissionais (além da fiscalização profissional), desvinculação de seus recursos financeiros do orçamento público, desnecessidade de lei para criação de cargos - permite a conclusão de que configuram espécie sui generis de pessoa jurídica de Direito Público não estatal". O ministro Alexandre de Moraes então ressaltou que "exigir a submissão do quadro de pessoal dos Conselhos Profissionais ao regime jurídico único atrairia uma série de consequências - como a exigência de lei em sentido formal para a criação de cargos e fixação das remunerações respectivas - que atuariam de forma desfavorável à independência e funcionamento desses entes". Sua Excelência concluiu no sentido de ser válida a opção do legislador de permitir a formação dos quadros dos Conselhos Profissionais com empregados celetistas. Essa coluna entende que, diante da divergência liderada pelo ministro Alexandre de Moraes, e respeitosamente convencido de que a posição de Sua Excelência a doutra relatora, ministra Cármen Lúcia, não coloca a discussão em conformidade com a Constituição, os demais ministros e ministra da Suprema Corte - Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello - devem, conhecendo os fundamentos apresentados pela divergência, segui-la, reconhecendo a possibilidade de as leis, sem violação à Constituição Federal, estipularem que o regime jurídico dos empregados dos Conselhos Profissionais sejam regido pela CLT. Isso por serem robustos os fundamentos constitucionais relativos aos referidos Conselhos, fundamentos esses que podem ser resumidos da seguinte forma: (i) não se submetem à tutela ou supervisão ministerial; (ii) não são vinculados a Ministérios ou órgãos da Administração Pública; (iii) não se adequam à estrutura organizacional do Executivo (Leis 9.649/98 e 10.683/2003); (iv) não possuem receitas e despesas regidas pela LDO e LOA; (v) não recebem auxílio ou subvenção da União; (vi) seus orçamentos não se vinculam ao orçamento da União; (vii) seus dirigentes não recebem remuneração e são eleitos dentre os seus membros, sem interferência da Administração Pública; (viii) além das funções típicas de Estado de fiscalizar e regular o exercício das profissões, representam e defendem os interesses das categorias profissionais que fiscalizam; (ix) seus órgãos jurídicos não são vinculados à AGU para representação judicial ou extrajudicial; (x) não desfrutam de isenção de custas na Justiça Federal; (xi) não existe autorização legal para criação de cargos públicos para os Conselhos na LDO; (xii) não existe lei criando cargos públicos com denominação própria; (xiii) não há previsão legal acerca da remuneração e concessão de aumentos e vantagens, não existindo publicação anual de seus valores; (xiv) o regime próprio da previdência social (RPPS) é incompatível, já que os Conselhos Profissionais são excluídos do orçamento do RPPS. __________ 1 Trecho dos votos da Min. Cármen Lúcia, relatora: "Enquanto prevalecente a conclusão deste Supremo Tribunal no sentido da eficácia da norma originária do caput do art. 39 da Constituição da República, pela qual se determina a imperatividade de adoção do regime jurídico único para os entes da Administração Pública direta e indireta, entre os quais se incluem os Conselho de Fiscalização profissional, o regime jurídico dos seus servidores acompanha o regime jurídico da entidade, a saber, de direito público, sem opção pelo regime trabalhista, próprio das entidades particulares". 2 Trecho dos votos do Min. Alexandre de Moraes, divergente: "Mesmo o precedente firmado na ADI 1717 não parece ter força para alcançar essa conclusão, visto não ter tratado do art. 58, § 3º, da Lei 9.649 /1998, mas da inviabilidade de delegação, a entidade privada, de atividades de poder de polícia, tributação e sancionamento disciplinar. E exigir a submissão do quadro de pessoal dos Conselhos Profissionais ao regime jurídico único atrairia uma séria de consequências - como a exigência de lei em sentido formal para a criação de cargos e fixação das remunerações respectivas - que atuariam de forma desfavorável à independência e funcionamento desses entes. Assim, tenho por válida a opção feita pelo legislador, no sentido da formação dos quadros dos Conselhos Profissionais com pessoas admitidas por vínculo celetista". 3 Eis: "(...) 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao §3º do atr. 58 da lei 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º, e 8º do mesmo art. 58. (...) 3. Decisão unânime. 6. Desta forma, em relação ao §3º do art. 58 da Lei nº 9.649/98, vê-se que não houve pronunciamento do Supremo Tribunal Federal acerca de sua constitucionalidade, de modo que o inteiro teor do parágrafo 3º do art. 58 mantém-se vigente e incólume". 4 RE 938.837, red. do acórdão Min. Marco Aurélio (DJe 25.9.2017). Tese 877: "Os pagamentos devidos, em razão de pronunciamento judicial, pelos Conselhos de Fiscalização não se submetem ao regime de precatórios". Página 32 do acórdão. RE 938.837, red. do acórdão Min. Marco Aurélio (DJe 25.9.2017). 5 Página 33 do acórdão. RE 938.837, red. do acórdão Min. Marco Aurélio (DJe 25.9.2017). 6 Página 37 do acórdão. RE 938.837, red. do acórdão Min. Marco Aurélio (DJe 25.9.2017). 7 MS 21.797 (Min. Carlos Velloso, DJ 18/5/2001), página 24 do acórdão.
segunda-feira, 1 de junho de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas as quartas-feiras, das 13 às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. Nesta quarta-feira, 3/6, às 13h, o constitucionalista Saul Tourinho Leal receberá a presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), a juíza Renata Gil. Essa semana, o pleno do STF não traz em sua pauta temas relacionados ao coronavírus (Covid-19). Na quarta-feira, 3/6, os casos são os seguintes: - Continuidade do julgamento do RE 597.124 (Min. Edson Fachin), com o voto-vista do ministro Marco Aurélio, do Tema 222, que visa a saber se é constitucional a extensão do adicional de risco portuário ao trabalhador portuário avulso. Após os votos dos Ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que negavam provimento ao recurso, reconhecendo a constitucionalidade do referido adicional, pediu vista o ministro Marco Aurélio. - Continuidade do julgamento da ADI 2167 (Min. Ricardo Lewandowski), que discute a constitucionalidade de dispositivos estaduais que condicionam a indicação de dirigente de sociedade de economia mista e interventores de município a arguição prévia pela Assembleia Legislativa. Também, aferir a constitucionalidade de dispositivos estaduais que estabelece critério de indicação de conselheiros em Tribunal de Contas estadual. - Continuidade do julgamento da ADI 2200 (Min. Cármen Lúcia), que, à luz da Medida Provisória nº 1.950-66/2000 e da Lei nº 10.192/2001, discute a possibilidade de revogação de dispositivos de lei ordinária por medida provisória. Apensada à ADI 2288. - Continuidade do julgamento da ADI 4776 (Min. Gilmar Mendes), que visa a saber se é inconstitucional dispositivo que determina que o Tribunal de Contas Municipal será composto por cinco Conselheiros, aos quais aplicam-se as normas pertinentes aos Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado. Apensada à ADI 346. Na quinta-feira, 4/6, o pleno irá deliberar sobre a ADI 6082 (Min. Gilmar Mendes), que definirá se são constitucionais os dispositivos impugnados que estabelecem parâmetros para a reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho. Apensada às ADIs 5870, 6050 e 6069. Clique aqui e inscreva-se para o debate.
quarta-feira, 27 de maio de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas as quartas-feiras, das 13 às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. O webinar traz, essa semana, o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil - AJUFE, o doutor Fernando Mendes. O que parecia um fôlego semana passada para que o plenário do Supremo Tribunal Federal, pela primeira vez em 11 sessões, dedicasse energia a outros temas que não os relativos à pandemia do Covid-19, não se confirmou.Inseridas na noite da terça-feira, sete ações diretas de inconstitucionalidade de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso levaram à Suprema Corte a discussão sobre a MP 966/2020, que trata sobre a responsabilização dos agentes públicos durante a crise de saúde pública. Por maioria, os ministros concederam parcialmente a cautelar para conferir a interpretação no sentido de que os atos de agentes públicos em relação à pandemia devem observar critérios técnicos e científicos de entidades médicas e sanitárias.Essa semana, caso não haja novidades o Supremo sairá do tema da Covid-19. Consta para julgamento na quarta-feira a ADPF 403, de relatoria do ministro Edson Fachin, discutindo a constitucionalidade de decisão judicial que suspende os serviços de aplicativo de comunicação por mensagem. A ação vem na companhia da ADI 5527, relatada pela ministra Rosa Weber, que discute se a disponibilização do conteúdo das comunicações privadas dos usuários de aplicações de internet somente pode se dar mediante ordem judicial para fins de persecução penal. Ainda, se as sanções de suspensão temporária e de proibição de exercício das atividades dos provedores de conexão de aplicações de internet ofendem a Constituição.Na quinta-feira, o RE 587.108, de relatoria do ministro Edson Fachin, com o Tema 179: "Aproveitamento de créditos calculados com base nos valores dos bens e mercadorias em estoque, no momento da transição da sistemática cumulativa para a não-cumulativa da contribuição para o PIS/COFINS". Após o relator ter negado provimento ao recurso do contribuinte, o caso retorna agora com o voto-vista do ministro Marco Aurélio. Em seguida, o RE 599.316, de relatoria do ministro Marco Aurélio, cuja Tema 244 trata da "limitação temporal para o aproveitamento de créditos de PIS/COFINS". Apesar desse intervalo que o pleno do STF se deu quanto à temática do Covid-19, a intensidade da judicialização da crise tende a seguir impondo a sua força sobre a agenda da Suprema Corte.
quarta-feira, 20 de maio de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas as quartas-feiras, das 13 às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. O webinar semanal "A Judicialização da Crise no STF" contará com a participação do professor da faculdade de Direito da USP, André Ramos Tavares e do assessor no Supremo Tribunal Federal, José dos Santos Carvalho Filho. Na pauta do STF na quarta e quinta-feira, constam os seguintes processos: - QO na ADO 25 (Min. Gilmar Mendes), do Gov. do PA. Amici: OAB/PA e Estados da BA, DF, ES, GO, MA, MT, PA, PR, RJ, RN, RS, RO, SC, SE, SP e MG. Tema: ICMS. Operações de exportação. Compensação financeira. Omissão do Congresso na edição de lei complementar. Prazo de 12 meses para que fosse sanada a omissão. Prorrogação. - ADPF 403 (Min. Edson Fachin), do Cidadania. Amici: IBIDEM, Assespro Nacional, ITS, Proteste, NIC.BR, UBC, AMB e Defensoria Pública da União. Tema: Se ofende a liberdade de comunicação decisão judicial que suspende os serviços de aplicativo de comunicação por mensagem. - ADI 5527 (Min. Rosa Weber), do PR. Amici: IBIDEM, Frente Parlamentar pela Internet Livre e Sem Limites, ITS, Assespro Nacional, UBC, AMB e Whatsapp INC. Tema: Se a disponibilização do conteúdo das comunicações privadas dos usuários de aplicações de internet somente pode se dar mediante ordem judicial para fins de persecução penal. Se as sanções de suspensão temporária e de proibição de exercício das atividades dos provedores de conexão de aplicações de internet ofendem a Constituição. - ADI 5545 (Min. Luiz Fux), da PGR. Tema: Lei estadual que obriga a adoção de medidas de segurança que evitem, impeçam ou dificultem a troca de recém-nascidos nas dependências de hospitais públicos ou privados, casas de saúde e maternidades e que possibilitem a posterior identificação através de exame de DNA. Se os dispositivos impugnados são inconstitucionais. - Ag.Rg. na Rcl. 11427 (Min. Ricardo Lewandowski). Tema: se cabe reclamação contra decisão que aplica o instituto da repercussão geral. O relator, Min. Ricardo Lewandowski, nega provimento ao agravo, acompanhado pela ministra Ellen Gracie e pelos ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso. O Min. Marco Aurélio diverge, dando provimento ao agravo.
Se a penosa história percorrida pela humanidade de nada servir para evitar que essa mesma humanidade experimente sofrimentos persistentes, então talvez seja mesmo o fatalismo do eterno erro a condenação merecida a quem despreza a sabedoria do passado. A história sempre traz consigo lembranças teimosas. Vamos a uma delas. Em 2 de fevereiro de 1933, o periódico da comunidade judaica na Alemanha, Der Israelit, publicou um editorial alusivo à chegada de Adolf Hitler no poder. Intitulado "A nova situação", o editorial tem início com a seguinte afirmação: "Não concordamos com a opinião de que Herr Hitler e seus amigos, agora finalmente possuidores do poder que desejavam há tanto tempo, aprovarão as propostas que circulam nos jornais alemães Angriff ou Völkischer Beobachter". Em seguida, o texto garante que os nazistas "não alienarão repentinamente os judeus alemães de seus direitos constitucionais, nem os trancarão em guetos de raça ou os sujeitarão aos impulsos avarentos e assassinos da multidão". A razão pela qual aquele editorial acreditava que nada do que o líder radical eleito prometeu se realizaria era o fato de que "eles não apenas não podem fazer isso, porque muitos outros fatores cruciais mantêm seus poderes sob controle, desde o presidente do Reich até alguns dos partidos políticos a eles associados, mas também claramente por não quererem seguir esse caminho"1. Foi a forma de o jornal dizer: "As instituições seguirão funcionando". No Brasil contemporâneo, quase um século depois, sempre que ouvimos os pedregulhos adiante de nós rolando precipício abaixo, alguém aparece para nos dizer que não tenhamos medo, afinal de contas, as instituições estão funcionando. É preciso ter um olhar mais crítico sobre essa afirmação que, se falada e ouvida como se um mantra fosse, pode se tornar um cala a boca retórico, algo desprovido de aderência à realidade. Vamos cavar um pouco a nossa situação institucional para tentar encontrar alguma luz. O Congresso Nacional, pelas suas duas Casas - Câmara dos Deputados e Senado Federal - tem conselhos de ética responsáveis por zelar pelo decoro parlamentar de seus integrantes. Há normas regimentais, eleições para a escolha dos presidentes desses conselhos, membros, servidores são colocados à disposição dos trabalhos lá realizados, existem pautas..., há tudo. Mesmo assim, esse arranjo institucional robusto do Poder Legislativo pouco contribuiu para evitar que alguns parlamentares passem uma parte do dia na penitenciária cumprindo pena privativa de liberdade para, na outra parte, legislarem e falarem em nome da ética nos corredores do Congresso Nacional. Não para por aí. Jamais faltou na Administração Pública brasileira órgãos de controle responsáveis por averiguar a quantas anda o gasto do dinheiro público. Ministério Público, Polícia Federal, Tribunal de Contas da União, Controladoria-Geral da União, o próprio Poder Judiciário..., são muitas as instituições responsáveis por se antecipar aos fatos e fechar preventivamente as torneiras sujas dos desvios antes que toda a água republicana simplesmente escape pelo ralo da corrupção. Mesmo assim, fizeram o que fizeram com a Petrobras. Depois de feito, claro, muitos foram atrás do dinheiro. Mas por que tão tarde? Podemos ir além. Alguém duvida que em março de 1990 a Constituição Federal já assegurava o direito de propriedade bem como um vasto plexo de outros direitos? Mesmo assim, por meio de uma medida provisória, o então presidente Fernando Collor de Mello confiscou as economias das pessoas (bloqueio de ativos financeiros sob certas condições e limites por um período de 18 meses). É difícil entender como uma nação inteira assistiu a uma medida econômica dessa intensidade sem que ninguém levantasse a mão e dissesse: "por favor, talvez não seja esse o melhor caminho. Vamos discutir melhor a implementação desse plano ou simplesmente paralisá-lo". Em nossa história, a existência e o funcionamento de instituições jamais impediram que fôssemos vilipendiados, que a injustiça triunfasse e que espertalhões do poder levassem a melhor. Os exemplos pululam nas manchetes dos jornais, nas comissões parlamentares de inquérito, nas roupas pretas dos agentes da polícia federal, nas salas do Judiciário, nas cadeias e no imaginário popular. As instituições brasileiras não raramente são capturadas, estranguladas, esperneiam gritando pela própria sobrevivência até serem profundamente machucadas. Às vezes até mortas. É um ciclo. Há dias de glória, é verdade, mas há muito fracasso também. A vida delas não é uma vida fácil. Exatamente por isso, precisamos ser mais críticos com o álibi cômodo revelado por esse mantra segundo o qual "as instituições estão sempre funcionando". Esse olhar é de fundamental importância agora. Collor confiscou a poupança das pessoas, mas devolveu depois. O escândalo da Petrobras foi em parte reparado pelo trabalho posterior das instituições em recuperar os recursos desviados. Mas, quanto às bases da democracia, se elas nos forem roubadas, como conseguiremos tê-las de volta? Da última vez que as levaram de nós só devolveram 21 anos depois. É muito tempo. Nenhuma das preocupações que o Brasil já teve desde 1988 foi tão umbilicalmente ligada ao justo receio que temos agora de que as bases da democracia pelas quais todos os muitos abusos perpetrados pelos governantes puderam ser fustigados, estão sendo pouco a pouco minadas, erodidas. O que o momento atual apresenta no tabuleiro do xadrez nacional é a consolidação de um movimento popular radical dedicado a comprometer os pilares das nossas conquistas mais relevantes. Não é possível ser dúbio nesse particular. Esse movimento nasceu graças à democracia, mas tem demonstrado uma dificuldade impressionante de conviver com ela. E nada mostra que em algum lugar no futuro essa relação melhorará. O que tem sido feito com a imprensa é um bom termômetro. Sem imprensa livre não há democracia. No julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 130, o STF rechaçou "um modelo de imprensa que investe no atraso mental das massas e ainda se disponibiliza para o servilismo governamental, quando não para o insidioso desprestígio das instituições democráticas e o dogmatismo tão confessional quanto mercantil". É como se reafirmasse que a imprensa nasceu para ser crítica, para investigar, para ser incômoda. A sua razão de ser é, acima de tudo, o controle do poder em proveito da comunidade. Acontece que não se intimida a imprensa apenas estabelecendo um órgão de censura estatal. Esse trauma coletivo precisa ser ressignificado, sob pena de não percebemos as tantas outras formas, até mais influentes, de destruir no tempo presente o ambiente no qual um jornalista sinta que tem liberdade para fazer o seu trabalho. Usar a força do estado para ameaçar jornalistas é algo demasiadamente grave. A internet e especialmente as redes sociais têm sido utilizadas para esse tipo de investida. Se a prática contar com organização, dinheiro, poder e a tolerância por parte do líder a quem os ataques digitais aproveitam, então estamos diante da tempestade perfeita. Por mais corajosos e vocacionados que esses profissionais sejam, com o tempo eles sentirão na pele as consequências do compromisso jornalístico que insistem em preservar. Será quando todos perceberão que a democracia brasileira tem algumas rachaduras. O cinema ajuda a entender. No documentário estadunidense City of Ghosts, um grupo de ativistas sírios utiliza os meios de comunicação para lançar nas redes sociais a campanha "Al Raqa está sendo massacrada em silêncio", em alusão à cidade síria que foi tomada pelo Estado Islâmico em 2014. Uma cena mostra a foto da fachada da casa de um dos ativistas - Sarmad - sendo publicada no twitter. "O Estado Islâmico consegue informações sobre nós. Eles postam fotos online com os nossos nomes e fotos de onde estamos morando" diz o ativista, enquanto lê no seu feed o último post de um terrorista: "@Sarmad eu gostei da entrada da sua casa. Mal posso esperar para vê-lo na próxima vez". Esse tipo de senha tem sido usado com frequência pelos agentes mais engajados e radicais que dão suporte ao governo atual, notadamente no twitter. É um método. Quando radicais financiados pelo dinheiro e pelo poder lançam o nome de uma pessoa como sendo alguém a quem seguidores devotados devem perseguir ou escarafunchar a vida pessoal, já não é mais a liberdade de expressão que está sendo exercitada, mas, sim, a covarde intenção de colocar a vida de alguém em risco. Não é só a Constituição que deve lidar com a questão. O Código Penal também. Essa não é uma prática democrática. Em Ruanda, militantes hutus usavam uma estação de rádio para hostilizar os tutsis. O uso do rádio era estratégico porque se sabia que ele era um veículo de massa, que todas as casas, por mais simples que fossem, teriam acesso a esse meio de comunicação. Era como as redes sociais hoje. Dentre as muitas formas usadas pelos radicais para desumanizar seus opositores, a principal delas era associá-los a animais, no caso, às baratas. No Brasil, milícias digitais tentar intimidar autoridades ou instituições associando-as a porcos ou hienas. Também a ratos. Isso não quer dizer que o Brasil seja Ruanda, mas mostra que há identidade de métodos e que esses métodos são perigosos, eles podem intimidar e até matar pessoas. Em Ruanda, num primeiro momento, pouca coisa acontecia no tecido social daquela sociedade. Mas a prática de ódio foi ganhando corpo ao longo do tempo, os tabus morais foram sendo deixados de lado, as pessoas foram se sentindo mais à vontade para usar a violência nas ruas, até que, quando se viu, cerca de 70% da população tutsi havia sido exterminada. Um genocídio teve início com discursos de ódio no rádio. Como eu já afirmei, o Brasil não é Ruanda e o genocídio daquele país tem complexidades próprias, não há dúvidas quanto a isso. Mesmo assim, é fato que campanhas de ódio veiculadas por meios de comunicação social de larga acessibilidade popular sem que haja um líder que diga basta, nem um aparato de segurança e justiça que impeça esses militantes radicais de seguirem por esse caminho sombrio, são algo que têm a aptidão de ganhar escala e, por isso, de provocar danos coletivos irreparáveis. Samantha Power, na obra "Chasing the Flame: Sergio Vieira de Mello and the Fight to Save the World", recorda que Osama Bin Laden, em 2001, havia lançado um comunicado dizendo que jihadistas de todo o mundo deveriam pegar armas não só contra os Estados Unidos, mas contra a ONU. Foi a senha para que um ataque terrorista à sede da organização, no Iraque, resultasse na morte do brasileiro Sérgio Vieira de Mello. A tentativa de obstrução à independência do Poder Judiciário por meio da ameaça persistente a seus integrantes, somada ao silêncio imposto a opositores incômodos e, ainda, a intimidação organizada a profissionais de imprensa que agem com independência são práticas que têm se consolidado no Brasil. Milícias digitais que intimidam testemunhas, ameaçam opositores e assassinam a reputação de profissionais da imprensa e de seus familiares precisam encontrar imediata resposta das autoridades de segurança para que possam ser identificadas, desbaratadas e suas fontes de financiamento secadas. Os responsáveis precisam ser punidos. Outro aditivo a esse caldeirão de violações é a desinformação. Movimentos políticos compostos por populistas que se apresentam falsamente com o verniz conservador, mas que são, na verdade, apenas radicais violentos, quase sempre apostam na desinformação. Nos ares da internet, esse método ganha uma potência incalculável. No Irã, a partir de 1979, explodiu uma revolução. No filme estadunidense "Setembro em Shiraz", uma cena ilustra o importante papel da desinformação para se alcançar a finalidade daquela guinada rumo ao fim das liberdades civis. A patroa judia Farnez, interpretada por Salma Hayek, conversa em seu carro com a empregada muçulmana Habiben (atriz Shohreh Aghdashloo). Depois de se queixar da situação do país, Habiben, mãe do militante radical Morteza (ator Navid Navid), começa a explicar por que passou a se sentir seduzida ideologicamente pelo séquito violento. Ao desenvolver o seu raciocínio, ela, uma mulher de meia idade, tenta convencer a patroa de que líderes religiosos europeus querem governar o Irã. O diálogo é o seguinte: - Habiben: E se quisermos que nossos Mulás nos governem e não aquele "Santo"? Morteza me falou que ele é idolatrado na Europa. Eu sei. Saint-Laurent ou alguma coisa assim. - Farnez: Yves Saint-Laurent? - Habiben: Sim, esse mesmo. A passagem mostra a virada rumo ao fundamentalismo impulsionada pela desinformação. O estilista Yves Saint-Laurent virou, na mente de senhoras religiosas pouco informadas, um santo francês que impediria a liberdade dos muçulmanos. No Brasil, a propaganda agitada por um certo conservadorismo caricato tem partido de quem o quer na vida alheia apenas, jamais na sua própria. O moralismo exacerbado costuma ser assim, hipócrita. Quem melhor retratou essa hipocrisia foi o escritor Jorge Amado, por meio da personagem Perpétua, a viúva enlutada e pudica que enquadrava as mulheres na rua reclamando de suas roupas e, em casa, guardava o órgão genital do marido falecido numa caixa branca no guarda-roupa. Outro fenômeno é um certo culto às armas de fogo. Não a posse em si, segundo as leis vigentes, mas o exibicionismo narcisista incrementado pelas redes sociais. Pessoas de representatividade popular, mesmo mandatários, têm aparecido fazendo uso de armamento pesado em momentos de lazer ou em sua intimidade. Essa exibição como demonstração de força normalmente é feita por bandidos ou por playboys. Dificilmente um herói a fará. Na casa que tinha no deserto do Negev, o quarto de David Ben-Gurion, primeiro-ministro de Israel, contava com a foto do pacifista Mahatma Gandhi, não com fuzis. O maior cômodo da casa era uma biblioteca, não um galpão de munições. Ele não era um bandido. Tampouco um playboy. Era um herói. E as invocações intelectualmente subalternas à base normativa estadunidense que abre caminho, a partir de uma emenda à Constituição, a um tipo de relação com armas de fogo sem similar em qualquer outra democracia do planeta, são absolutamente irrelevantes para o ordenamento jurídico brasileiro. O Preâmbulo da Constituição reafirma que somos uma sociedade comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. Seguindo adiante, o art. 5º, talvez o mais importante de toda a Constituição, assegura, no seu inciso XVI, que todos podem reunir-se pacificamente em locais abertos ao público, desde que sem armas. O inciso seguinte dispõe ser plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar. Segundo o inciso XLIV, é crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Não bastasse toda a ênfase na cautela que a ordem constitucional brasileira tem quanto à associação entre armas de fogo e multidões, ou em relação ao uso de armas para propósitos políticos ou contrários à democracia, a Constituição de 1988 fez questão de afastar qualquer espécie de "braço armado" na política e em seus partidos. Segundo o art. 17, § 4º, "é vedada a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar". Essa exegese precisa encontrar o seu destino entre nós. A combinação entre fundamentalismo religioso, fanatismo político e o uso de armas de fogo, num ambiente cuja lei e a ordem têm baixa adesão, é um tipo de alinhamento digno de estados autoritários ou sociedades disfuncionais. Não tem como dar certo. É um campo aberto para a arregimentação de milícias, o nascimento de terroristas, a consolidação de forças paramilitares, de cartéis do tráfico e do crime organizado, além de guerrilhas urbanas ou rurais. Prosperidade alguma nascerá daí. Apenas o medo. E onde reina o medo não há espaço para a esperança, que deve ser a mais poderosa força aglutinadora de uma nação. Radicais políticos, fanáticos religiosos e tarados armamentistas são um perigo. Não sou eu quem diz isso, é a história. Na tarde de 30 de janeiro de 1948, Mahatma Gandhi foi alvejado a caminho de sua oração diária na Birla House, em Nova Déli. Os assassinos eram membros da organização hindu radical Rashtriya Swayamsevak Sangh. Dia 22 de julho de 2011, na Noruega, o militante da extrema-direita Anders Behring Breivik, matou a tiros 69 jovens do Partido Trabalhista Norueguês, na ilha de Utøya. Há um caso ainda mais simbólico. Em 4 de novembro de 1995, numa praça em Tel Aviv, o primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, afirmou, num discurso emocionado: "A violência corrói as bases da democracia israelense. Ela deve ser condenada, sabiamente expugnada e isolada". Pregava a paz. Horas depois, um pedaço de papel em seu bolso ficou chamuscado. O papel trazia a letra da "Canção pela Paz", entoada na manifestação. Eram respingos de sangue. Rabin acabara de ser assassinado a tiros pelo judeu ortodoxo de extrema-direita Yigal Amir. O que os três assassinos tinham em comum? Um cérebro lavado pela ideologia política radical e uma arma de fogo na mão. Não fosse esse elemento definitivo, poderiam ser apenas tontos gritando por aí. Porém, armados, e com ódio, eles passam a direcionar o seu fanatismo para as causas que constroem. A partir daí, para se transformarem em assassinos, basta a oportunidade. Condescender pelo silêncio com aqueles que não querem bem aos mecanismos que mantêm a democracia de pé é se portar como um aliado desse terrível comportamento. De onde não se espera nada é de onde não virá coisa alguma. Omitir-se muitas vezes é tudo o que espíritos antidemocráticos precisam para triunfar. É preciso aprender com a história. O editorial do Der Israelit, em 2 de fevereiro de 1933, foi claro ao revelar a sua forma de enxergar a democracia alemã, com instituições fortes, freios e contrapesos, e uma sociedade civil que não renunciaria à sua liberdade para embarcar num projeto de poder populista e radical. O editorial sustentou que os nazistas não privariam repentinamente os judeus alemães de seus direitos constitucionais, nem os trancariam em guetos de raça ou os sujeitariam aos impulsos avarentos e assassinos da multidão. Isso, porque a Constituição não permitiria. A postura descrita acima é natural para quem se comporta de boa-fé e supõe que mesmo o inimigo agirá com alguma integridade. Todavia, a história mostrou quão frágeis podem ser até mesmo as instituições de países de longa experiência institucional. Por isso, confiar de braços cruzados nos poderes das Constituições e das instituições é abrir mão de entregar à democracia a sua própria força realizadora, que é a aglutinação da sociedade civil, com uma imprensa livre, numa comunidade bem informada e disposta a, controlando o poder de todos que o detêm, seguir elegendo ou não elegendo aqueles que, de tempos e tempos, aparecem em nossas vidas pedindo votos. Chega de dizer que as instituições estão funcionando. Esse mantra nos convida para um certo tipo de comodismo. Isso não é bom. A democracia é feita da desconfiança, da mobilização, da certeza da falibilidade humana, do barulho e da persistência. Em países como o Brasil, as instituições estão sempre enfrentando múltiplas dificuldades para realizarem suas missões. O engajamento da sociedade civil, combinado com uma imprensa livre, numa comunidade pacífica e bem informada é o que precisamos para fortalecer essas instituições para que, livres de predadores, possam realizar suas funções e, assim, preservar as nossas conquistas. É nessa trilha que devemos caminhar. __________ 1 A tradução para o inglês do editorial está disponível nesse importante trabalho disponível aqui.
segunda-feira, 11 de maio de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas às quartas-feiras, das 13h às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. O webinar dessa semana contará com a participação da constitucionalista Christine Peter, que falará sobre os direitos fundamentais em tempos de crise; e também do advogado Francisco Giardina, que abordará a postergação do pagamento de tributos em razão do estado de calamidade pública. Pauta da semana Quarta-feira, 13/5 O pleno deliberará sobre o referendo da cautelar na ADI 6357, ajuizada pelo presidente da República, na qual o relator, ministro Alexandre de Moraes, concedeu a cautelar conferindo "interpretação conforme à Constituição Federal, aos arts. 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e 114, caput, in fine e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020, para, durante o estado de calamidade pública decorrente do Covid-19, afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação do vírus". Quinta-feira, 14/5 Será a vez de apreciar o referendo da negativa de cautelar na ADI 6359, ajuizada pelo partido Progressistas, de relatoria da ministra Rosa Weber, na qual se pede a declaração da "inconstitucionalidade progressiva parcial do art. 9º, caput, da lei 9.504/97, e do art. 1º, incisos, IV, V e VII, da Lei Complementar 64/90, e por arrastamento, do art. 10, caput, e seu § 4º, da resolução 23.609/2019, que dispõe sobre o registro de candidatura, e das disposições correlatas da Resolução nº 23.606/2019, que dispõe sobre o Calendário para as Eleições de 2020, ambas promulgadas pelo TSE". Pede-se a suspensão dos prazos de filiação partidária, identificação do domicílio eleitoral e de desincompatibilização.
Não demoraria para que algo assim ocorresse. A deliberação virtual a partir de julgamentos em listas abarrotadas, durante a pandemia da Covid-19, começa a suplantar posições adotadas no plenário da Suprema Corte, até aquelas tomadas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, resultando na derrubada de leis estaduais muitas vezes sem que conheçamos expressamente todas as posições do colegiado. Um caso ajuda a ilustrar o todo. O recurso extraordinário nº 740.008, de relatoria do ministro Marco Aurélio, está submetido a julgamento na lista virtual nº 122-2020, com julgamento a se encerrar nessa sexta-feira, 8/5. O atual desfecho, considerando o voto do relator, que foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, tendo a divergência do ministro Edson Fachin, reverte a deliberação do pleno da Suprema Corte na ação direta de inconstitucionalidade nº 4303, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, apreciada em 2014, na qual o ministro Marco Aurélio ficara vencido. Acompanharam a relatora a ministra Rosa Weber e os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello. O leading case cuida do Tema nº 6971 da repercussão geral. Eis a conclusão do voto do doutor relator: "é inconstitucional o aproveitamento de servidor, aprovado em concurso público a exigir a formação de nível médio, em cargo que pressuponha escolaridade superior". No entanto, não é de ascensão funcional sem concurso público e tampouco provimento derivado de cargo público que se trata2. Essa posição do douto relator ficara vencida isoladamente em 2014, quando o pleno do STF apreciou a citada ADI 4303 (relatoria da ministra Cármen Lúcia, DJe 28/8/2014), cuja ementa diz o seguinte: "1. A reestruturação convergente de carreiras análogas não contraria o art. 37, inc. II, da Constituição da República. Logo, a Lei Complementar potiguar n. 372/2008, ao manter exatamente a mesma estrutura de cargos e atribuições, é constitucional. 2. A norma questionada autoriza a possibilidade de serem equiparadas as remunerações dos servidores auxiliares técnicos e assistentes em administração judiciária, aprovados em concurso público para o qual se exigiu diploma de nível médio, ao sistema remuneratório dos servidores aprovados em concurso para cargo de nível superior. 3. A alegação de que existiriam diferenças entre as atribuições não pode ser objeto de ação de controle concentrado, porque exigiria a avaliação, de fato, de quais assistentes ou auxiliares técnicos foram redistribuídos para funções diferenciadas. Precedentes. 4. Servidores que ocupam os mesmos cargos, com a mesma denominação e na mesma estrutura de carreira, devem ganhar igualmente (princípio da isonomia). 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente." Agora, a posição vencida acima volta à baila nesse julgamento virtual para um overruling do referido precedente, algo que reclama a atenção da Suprema Corte. Isso porque o Poder Legislativo de Roraima, aprovando projeto enviado pelo Governador que resultou na Lei Complementar nº 142/2008, elevou o nível de escolaridade exigido para ingresso, sempre por concurso público, na carreira de oficial de justiça, substituindo-se o médio pelo superior. A lei pôs em extinção os cargos dos oficiais aprovados em concurso que ao tempo exigia nível médio, equiparando suas remunerações com os de nível superior, haja vista que os oficiais - nível médio e superior - realizam as mesmas funções perante o mesmo Poder. O TJ/RR, todavia, julgando ADI local, declarou, por maioria, a inconstitucionalidade do art. 35 da LC 142/20083 (na redação da LC 175/2011)4, cuja redação é a seguinte: "Ao ocupante do cargo de Oficial de Justiça, código TJ/NM-1, fica assegurada a remuneração equivalente a do cargo de Oficial de Justiça, código TJ/NS-1". Entendeu-se ter havido "provimento derivado de cargo público", em violação dos arts. 37, II da Constituição Federal e do art. 20, caput da Constituição Estadual, incidindo, ainda, as Súmulas 685 e 339 do STF5. Oficiais de Justiça que desempenham o mesmo ofício, que coletam diariamente mandados, todos aprovados em concurso público, para trabalharem no mesmo Tribunal, merecem, à luz do acórdão a quo, remuneração diversa, haja vista que os primeiros, de nível médio e com o cargos em extinção, não seriam "iguais" aos de nível superior posteriormente aprovados. Não é o que diz a Constituição. Consta do caput do art. 5º: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)". O inciso XXX do art. 7º assegura como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, "proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil". Segundo o § 3º do art. 39, esse dispositivo se aplica aos servidores públicos6. Como os oficiais de justiça de RR foram aprovados em concurso, o acórdão a quo também viola o art. 37, II: "a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração". O acórdão a quo e o voto do douto ministro relator destoam do inciso I do § 1º do art. 39 da Constituição Federal, que em nenhum momento entrega ao sistema remuneratório dos servidores públicos esse tipo de elemento. Eis a íntegra do dispositivo: "a fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório observará: I - a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira"7. Se há a mesma natureza, grau de responsabilidade, complexidade do cargo, naquela que se tornou a mesma carreira, não há como se sustentar, à luz da Constituição, que o nível de escolaridade distinguirá a remuneração dos que exercem iguais funções. O pedido desse leading case, que formará a tese do Tema nº 697, é a aplicação singela, a partir do robusto conjunto de comandos constitucionais acima mencionados, da máxima: "Às mesmas funções, as mesmas remunerações". O art. 35 da LC 142/2008, alterada pela LC 175/2011, diante do incremento do ensino superior para os concursos vindouros de oficial de justiça, conferiu isonomia de remuneração entre os oficiais de nível médio e os de nível superior, transitoriamente, pois os cargos de nível médio foram postos em extinção. Eis trechos do parecer da Procuradoria-Geral da República: "A lei em exame, por razões de administração judiciária, ao estabelecer um regime de transição consistente na criação de uma carreira com requisitos de acesso mais dificultosos e na extinção paulatina dos cargos da carreira já existente, define, assentada em parâmetros de proporcionalidade, a equivalência remuneratória, não existindo qualquer irregularidade ou inconstitucionalidade a ser observada. Inexiste, a configurar uma espécie de ascensão, uma típica progressão funcional, pois o regime criado pela aludida lei é evidentemente provisório e, por ter essa natureza, tornar-se-á exaurida no momento em que todos os atuais ocupantes do cargo de Oficial de Justiça, código TJ/NM-1, se desvincularem do quadro funcional do Tribunal de Justiça de Roraima8". Daí a questão: os oficiais de justiça de RR, de nível médio e superior, concursados, exercem as mesmas funções9? A resposta vem do Anexo VIII da LC 175/2011. Além da ADI 4303 (Min. Cármen Lúcia)10, em cujo julgamento ficara vencido isoladamente o ministro Marco Aurélio, e que agora está prestes a sofrer um precoce overruling, há a ADI 2335 (rel. p/ac. Min. Gilmar Mendes, DJ 19/12/2003), cuja ementa diz: "(...) 2. Lei Complementar nº 189, de 17 de janeiro de 2000, do Estado de Santa Catarina, que extinguiu os cargos e as carreiras de Fiscal de Tributos Estaduais, Fiscal de Mercadorias em Trânsito, Exator e Escrivão de Exatoria, e criou, em substituição, a de Auditor Fiscal da Receita Estadual. 3. Aproveitamento dos ocupantes dos cargos extintos nos recém criados. 4. Ausência de violação ao princípio constitucional da exigência de concurso público, haja vista a similitude das atribuições desempenhadas pelos ocupantes dos cargos extintos. (...)". Também a ADI 1561 MC (Min. Sydney Sanches, DJ 28/11/97): "(...) Leis nºs 8.246 e 8.248, de 18.04.1991, não se aludiu a transformação de cargos, nem se cogitou expressamente de aproveitamento em cargos mais elevados, de níveis diferentes. O que se fez foi estabelecer exigência nova de escolaridade, para o exercício das mesmas funções, e se permitiu que os Fiscais de Mercadorias em Trânsito e os Escrivães de Exatoria também as exercessem, naturalmente com a nova remuneração, justificada em face do acréscimo de responsabilidades e do interesse da Administração Pública na melhoria da arrecadação. E também para se estabelecer paridade de tratamento para os exercentes de funções idênticas. Mas não se chegou a enquadrá-los em cargos novos, de uma carreira diversa.(...)". Por fim, a ADI 2713 (Min. Ellen Gracie, DJ 7/3/2003): "(...) Rejeição, ademais, da alegação de violação ao princípio do concurso público (CF, arts. 37, II e 131, § 2º). É que a análise do regime normativo das carreiras da AGU em exame aponta para uma racionalização, no âmbito da AGU, do desempenho de seu papel constitucional por meio de uma completa identidade substancial entre os cargos em exame, verificada a compatibilidade funcional e remuneratória, além da equivalência dos requisitos exigidos em concurso. (...)". Por essas razões, é que se não se imagina outra postura que não seja o posicionamento pela procedência do recurso extraordinário, reafirmando-se a constitucionalidade do art. 35 da LC nº 142/2008, de Roraima, afastando-se a tese fixada pelo doutor Ministro Relator, que negou provimento ao recurso. __________ 1 Tema nº 697 da repercussão geral: "Constitucionalidade de lei que, ao aumentar a exigência de escolaridade em cargo público, para o exercício das mesmas funções, determina a gradual transformação de cargos de nível médio em cargos de nível superior e assegura isonomia remuneratória aos ocupantes dos cargos em extinção, sem a realização de concurso público". 2 "E certo que o Supremo Tribunal Federal, há muito, definiu-se pela impossibilidade de ingresso a cargos públicos diverso do concurso público, dada a vedação constitucional. Contudo, o caso não parece condizer com a pecha de inconstitucionalidade dada ao normativo em questão", p. 9 do parecer da PGR neste RE. 3 LC 142/2008: "Art. 9° Carreira é o agrupamento de cargos de provimento efetivo com a mesma complexidade e vencimentos, organizados em níveis, de acordo com a escolaridade"; "Art. 12. O Quadro de Pessoal Efetivo do Poder Judiciário é composto pelas seguintes Carreiras, organizadas de acordo com o nível de escolaridade: I - Nível Superior - NS; 11- Nível Médio - NM; 111 - Nível Fundamental - NF". 4 A LC 142/2008, dispõe sobre a Organização do Quadro de Pessoal e o Plano de Carreira dos Servidores do Judiciário de Roraima; revoga as LC's Estaduais 018/96, 021/97, 035/2000, 042/2001, 045/2001, 058/2002, 080/2004, 085/2005, 105/2006; 118/2007, 134/2008, 141/2008, e dá outras providências. 5 Súmulas STF 685 e 339, respectivamente: "É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido", e "Não cabe ao poder judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia". 6 "Art. 39, § 3º. Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir". 7 Viola também a compreensão do STF de que o Legislativo pode, por lei, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento da isonomia. Diz a Súmula nº 339: "Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia". 8 Página 9 do parecer da PGR neste RE. 9 Conclui a PGR neste RE: "Com efeito, não há que se considerar inconstitucional a lei em exame, em razão da plena satisfação ao requisito da isonomia entre ocupantes de carreiras afins, traduzindo-se o caráter remuneratório apenas fator de equivalência entre aqueles que ocupam posições funcionalmente idênticas". 10 "1. A reestruturação convergente de carreiras análogas não contraria o art. 37, inc. II, da Constituição da República. Logo, a Lei Complementar potiguar n. 372/2008, ao manter exatamente a mesma estrutura de cargos e atribuições, é constitucional. 2. A norma questionada autoriza a possibilidade de serem equiparadas as remunerações dos servidores auxiliares técnicos e assistentes em administração judiciária, aprovados em concurso público para o qual se exigiu diploma de nível médio, ao sistema remuneratório dos servidores aprovados em concurso para cargo de nível superior. 3. A alegação de que existiriam diferenças entre as atribuições não pode ser objeto de ação de controle concentrado, porque exigiria a avaliação, de fato, de quais assistentes ou auxiliares técnicos foram redistribuídos para funções diferenciadas. Precedentes. 4. Servidores que ocupam os mesmos cargos, com a mesma denominação e na mesma estrutura de carreira, devem ganhar igualmente (princípio da isonomia). 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente".
quarta-feira, 6 de maio de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas às quartas-feiras, das 13h às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. Hoje, teremos a participação de dois convidados: O juiz instrutor do STF, Eduardo Sousa Dantas, que falará sobre "Ações Estruturais e o Estado de Coisas Inconstitucional"; e o professor Nilson Franco Júnior, que falará sobre decisões judiciais que suspendem o pagamento de aluguéis durante a crise. Pauta da semana Quarta-feira, 6/5 - Referendo da cautelar na ADI 6343, da Rede, tendo como amicus a Febratel, contra as MPs 926 e 927 que, alterando a Lei 13.979/2020, tratam da competência dos estados, DF, municípios e União para restringir transporte intermunicipal e interestadual durante a calamidade. O Min. Marco Aurélio, relator, manteve o indeferimento da cautelar. O ministro Alexandre de Moraes, divergindo, defere parcialmente para, excluindo estados e municípios, nas suas competências, da necessidade de obediência aos órgãos Federais na adoção de medidas relativas ao transporte interestadual e intermunicipal e de autorização do Ministério da Saúde para a decretação de isolamento, quarentena e outras providências na saúde. Acompanharam os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Já o ministro Edson Fachin defere parcialmente para explicitar que, desde que amparadas em evidências científicas e nas recomendações da OMS, estados, municípios e DF podem determinar as medidas sanitárias de isolamento, quarentena, exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver. Foi acompanhado pela ministra Rosa Weber. O caso volta com a vista do ministro Dias Toffoli. - Referendo da cautelar na ADI 6389 (ministra Rosa Weber), do PSB, questionando a MP 954/2020, sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de serviço telefônico com o IBGE. Apensadas as ADIs 6390, do PSOL; 6393, do PCdoB; 6388, do PSDB; e 6387, da OAB. Quinta-feira, 7/5 - Referendo da negativa de cautelar na ADI 6359 (ministra Rosa Weber), dos Progressistas - PP, sobre a suspensão, por 30 dias, do Calendário das Eleições de 2020, para definir se pandemia inviabilizará o cumprimento dos prazos de filiação partidária, domicílio eleitoral e desincompatibilização.
quarta-feira, 29 de abril de 2020

Judicialização da crise no STF

Todas às quartas-feiras, das 13h às 14h, antes do início da sessão por videoconferência do pleno do STF, o advogado Saul Tourinho Leal, interagindo com o público, e contando com a participação de quem faz o contencioso constitucional junto ao Supremo, fará um balanço da judicialização da crise na Corte, com números, os principais pontos das decisões, os temas mais presentes e as tendências dessa judicialização. O convidado de hoje é Abhner Youssif Mota Arabi, juiz instrutor no STF. Confira a íntegra do debate: Ao longo do webinar ele conversará sobre as relações entre a judicialização da crise e o federalismo brasileiro, à luz de trabalho que publicou sobre a nossa federação. Pauta da semana Quarta-feira (29/4) Continuidade do julgamento dos referendos das cautelares negadas pelo ministro Marco Aurélio em sete ADI's questionando a MP 927/2020, que autoriza empregadores a adotarem medidas excepcionais em razão da pandemia. O julgamento foi suspenso depois do voto do relator, que mantém a negativa das cautelares. Para o ministro, o presidente da República "pode e deve" atuar provisoriamente nas relações e da saúde no trabalho. A edição da medida teria visado "atender uma situação emergencial e preservar empregos". O ministro Marco Aurélio observou que a norma, ao possibilitar que empregado e empregador celebrem acordo individual a fim de garantir o vínculo, prevê que devem ser observados os limites definidos pela Constituição. Também seria razoável a antecipação de feriados, pois preservaria a fonte de renda dos empregados e reduziria o ônus dos empregadores. Quanto à negociação individual para a antecipação de períodos futuros de férias, a MP busca a manutenção do vínculo empregatício, pois, durante a período de distanciamento ou isolamento social, não haverá campo para a prestação de serviços. Abaixo, as ações: - Referendo da negativa de cautelar na ADI 6342 (Min. Marco Aurélio), do PDT1, que questiona a MP 927/2020, quanto à redução da jornada de trabalho e redução salarial por acordo individual; suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; pagamento do terço de férias após a concessão desta durante o estado de calamidade pública; interrupção das atividades pelo empregador; regime especial de compensação de jornada; dispensa de realização de exames médicos ocupacionais; suspensão do contrato de trabalho; casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais e quanto à convalidação de medidas trabalhistas adotadas por empregadores. Mesma discussão nas ADIs 6344, da Rede; 6346, da Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos; 6348, do PSB2; 6349, do PCdoB; 6352, do Solidariedade3; 6354, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria; de relatoria do ministro Marco Aurélio e pautadas com a ADI 6342. Quinta-feira (30/4) Referendo da negativa de cautelar na ação direta de inconstitucionalidade por omissão 56, pelo relator, ministro Marco Aurélio, nessa ação da Rede, que, alegando omissão inconstitucional dos Presidentes da República, da Câmara e do Senado, pede: 1) Definir, para as circunstâncias de pandemia do COVID-19, o mínimo existencial, que se sugere ser a quantia de no mínimo R$ 300,00 per capita durante seis meses, para todos os trabalhadores listados no Cadastro Único e todos os seus dependentes também cadastrados bem como os desempregados que tenham número de identificação social, limitando o valor máximo de R$ 1.500,00 por família de 2 trabalhadores e três dependentes independente da família ser beneficiária ou não do Bolsa Família, ou, de maneira subsidiária, de acordo com os parâmetros que a Suprema Corte entender razoáveis. II. Determinar, aos Presidentes da República, da Câmara e do Senado, seja estabelecido programa de renda mínima emergencial para os brasileiros que estão privados de fonte de renda durante a pandemia do COVID-19 no prazo máximo de dez dias, ou, de maneira subsidiária, no prazo que a Corte entender razoável". 2) Referendo da cautelar concedida pelo relator, ministro Alexandre de Moraes, na ADI 6347, da Rede, contra o art. 6º-B da Lei 13.979/2020, na redação da MP 928/2020, sobre pedidos de acesso à informação, suspensão dos prazos de resposta nos órgãos ou nas entidades da Administração Pública cujos servidores estejam sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes e o descabimento de recursos contra resposta com fundamento nessa hipótese. Questiona também a possibilidade de reiteração do pedido de acesso à informação no prazo de dez dias após o encerramento do estado de calamidade pública e a exclusividade de apresentação do pedido de acesso à informação por meio de sistema disponível na internet. Estão apensadas as ADIs 6351, da OAB, e 6353, do PSB, todas de relatoria do Min. Alexandre de Moraes. 3) Referendo da negativa de cautelar na ADI 6343 pelo relator, ministro Marco Aurélio, nessa ação da Rede4, contra dispositivos das MPs 926 e 927/2020, relativos à competência legislativa para impor restrições ao transporte intermunicipal condicionadas a evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde, e à recomendação técnica da Anvisa, de autorização do Ministério da Saúde e Ato Conjunto dos Ministros da Saúde, da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura5. Inscreva-se e acompanhe o debate, clique aqui. __________ 1 Amici: CUT, UGT, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, Força Sindical, Central dos Sindicatos Brasileiros, Nova Central Sindical dos Trabalhadores, Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho - SINAIT. 2 Amici: CUT, UGT, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, Força Sindical, Central dos Sindicatos Brasileiros, Nova Central Sindical de Trabalhadores. 3 Amici: CUT, UGT, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, Força Sindical, Central dos Sindicatos Brasileiros e Nova Central Sindical dos Trabalhadores. 4 Amicus: Federação Brasileira de Telecomunicações - FEBRATEL. 5 O STF, julgando a ADI 6341 (relator o ministro Marco Aurélio), confirmou, por unanimidade, que as medidas da MP 926/2020 para o enfrentamento do coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, DF e municípios. A maioria dos ministros aderiu à proposta do ministro Edson Fachin sobre a necessidade de que o art. 3º da Lei 13.979/2020 também seja interpretado de acordo com a Constituição, a fim de deixar claro que a União pode legislar sobre o tema, mas que o exercício desta competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes.
Em 2009, Barack Obama estava radiante diante do púlpito no Parlamento de Gana, em Acra, capital, quando disse: "A África não precisa de homens fortes. Ela precisa de instituições fortes". A mensagem combatia o desmantelamento de instituições importantes motivado por caprichos políticos de governantes que se enxergavam como estando acima das leis e da Constituição. Três anos depois, Daron Acemoglu e James A. Robins publicaram Why Nations Fail (Por que as nações fracassam), no qual apontaram que o destino de uma nação depende, basicamente, das instituições pelas quais ela é governada. A Constituição brasileira de 1988 anteviu isso. O Ministério Público é "instituição permanente" (art. 127), assim como a Defensoria Pública (art. 134). A Advocacia-Geral da União é a "instituição" que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente (art. 131). É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das "instituições" democráticas e conservar o patrimônio público (art. 23, I). O Título V trata "Da Defesa do Estado e das 'Instituições' Democráticas". A essas instituições foram conferidas garantias. Para Paulo Bonavides, garantias institucionais são a "proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza". Constituem "proibições dirigidas ao Legislativo para não ultrapassar na organização do instituto aqueles limites extremos, além dos quais o instituto como tal seria aniquilado ou desnaturado"1. É nesse contexto que surge essa afirmação histórica: "No Direito Privado, o indivíduo pode se comportar com certo 'capricho', embora tal 'capricho' não seja o que deveria ser. Mas, no domínio do Direito Público - Direito Constitucional e Administrativo - o 'capricho' é uma doença terminal"2. A colocação acima compôs a discussão, em 2003, na Suprema Corte de Israel, no caso "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (HCJ 7367/97), que levou o Primeiro Ministro Ariel Sharon aos Tribunais. A razão? Uma controvertida escolha para o Ministério da Segurança Pública. Tzahi Hanebi havia sido o indicado. Em 1982, jovem, ele foi condenado por se envolver numa confusão na universidade. Posteriormente, já figura pública, viu seu nome pululando em três investigações sem que tivesse sido condenado em nenhuma delas. O Movimento entendia que Hanebi não poderia servir ao Governo, pois apesar de não ter sido condenado, todos os rumores que seu nome despertava estilhaçavam o cristal da confiança pública no Ministério, o que terminava gerando obstruções dos populares. Essas obstruções, somadas a toda a mídia que o indicado atraía e ao burburinho de que novas investigações poderiam surgir atrapalhavam a continuidade do serviço público e pareciam limitar a capacidade do próprio Hanebi executar uma agenda com legitimidade. O justice Mishael Cheshin, proferindo o seu voto, arrematou: "Aqueles que exercem autoridade em nome do Estado ou de qualquer outra autoridade pública - no nosso caso, o Primeiro-Ministro e o Ministro da Segurança Pública - devem estar conscientes de que suas questões não são suas. Trata-se de questões que dizem respeito a outros e eles são obrigados a conduzirem-se com justiça e integridade, em estrita conformidade com os princípios da administração pública"3. Ficou vencido. A Suprema Corte de Israel concluiu não haver razão para impedir que Ariel Sharon empossasse Tzahi Hanebi. Vetar a assunção ao posto sem que houvesse taxativa previsão a respeito ou, pelo menos, que o conjunto dos fatos indicasse evidências mais robustas, poderia se tornar um hábito caprichoso de juízes voluntaristas. No Brasil, sempre que chamado a analisar potencial violação da Constituição em razão da indicação, pelo presidente, de um nome, ou quando demandado a deliberar sobre as consequências de um comportamento desviante dessas autoridades, o STF antecipou que esse tipo de escrutínio judicial é excepcional. No Mandado de Segurança n. 25.579 (Pleno, DJe 24/8/2007), o ministro Joaquim Barbosa, relator, anotou: "Na qualidade de guarda da Constituição, o STF tem a elevada responsabilidade de decidir acerca da juridicidade da ação dos demais Poderes do Estado. No exercício desse mister, deve a Corte ter sempre em perspectiva a regra de auto-contenção que lhe impede de invadir a esfera reservada à decisão política dos dois outros Poderes, bem como o dever de não se demitir do importantíssimo encargo que a Constituição lhe atribui de garantir o acesso à jurisdição de todos aqueles cujos direitos individuais tenham sido lesados ou se achem ameaçados de lesão". No caso acima, a Corte definiu que o membro do Congresso que se licencia do mandato para investir-se no cargo de ministro de Estado não perde os laços com o Parlamento (art. 56, I), devendo seguir observando as vedações e incompatibilidades inerentes ao estatuto constitucional do congressista, assim como as exigências ético-jurídicas que a Constituição (art. 55, § 1º) e o que os regimentos internos das casas legislativas estabelecem como elementos caracterizadores do decoro parlamentar4. Noutra oportunidade, a Corte definiu que "os ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, c; lei 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/1992)". O Supremo também precisou definir se a nomeação de um secretário de Estado irmão do governador que o nomeou violaria a posição da Corte contra o nepotismo (Súmula Vinculante nº 13). Julgando a reclamação 6650 MC-AgR (Min. Ellen Gracie, Pleno, DJe 21/11/2008), a Corte afastou a aplicação da citada súmula. Não custa recordar o Mandado de Segurança n. 34.070 (Min. Gilmar Mendes), que questionou o ato de nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de ministro chefe da Casa Civil. O relator, ministro Gilmar Mendes, registrou: "Nenhum Chefe do Poder Executivo, em qualquer de suas esferas, é dono da condução dos destinos do país; na verdade, ostenta papel de simples mandatário da vontade popular, a qual deve ser seguida em consonância com os princípios constitucionais explícitos e implícitos, entre eles a probidade e a moralidade no trato do interesse público 'lato sensu'". Esse racional esteve presente na decisão da Suprema Corte de Israel em "Women's Lobby v. The Minister of Labor and Welfare, (HCJ 2671/98)". Ficou registrado: "Ao agir no domínio do direito público, a autoridade investida do poder de nomeação opera na qualidade de administrador público. Assim como um administrador fiduciário não possui nada próprio, também a autoridade que nomeia não possui nada dela. Deve conduzir-se à maneira do administrador: agir com integridade e equidade, considerando apenas fatores relevantes, atuando com razoabilidade, igualdade e sem discriminação"5. No caso brasileiro, o ministro Gilmar Mendes pontuou: "O princípio da moralidade pauta qualquer ato administrativo, inclusive a nomeação de Ministro de Estado, de maneira a impedir que sejam conspurcados os predicados da honestidade, da probidade e da boa-fé no trato da 'res publica'". Então, arrematou: "o argumento do desvio de finalidade é perfeitamente aplicável para demonstrar a nulidade da nomeação de pessoa criminalmente implicada, quando prepondera a finalidade de conferir-lhe foro privilegiado". Noutra oportunidade, julgando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 388, de relatoria do ministro Gilmar Mendes (DJe 1º/8/2016), a Suprema Corte estabeleceu a interpretação de que membros do Ministério Público não podem ocupar cargos públicos fora do âmbito da instituição, salvo o de professor e funções de magistério (art. 128, § 5º, II, "d", da CF). Derrubou-se a resolução 72/2011 do Conselho Nacional do Ministério Público. Eis a ordem: "Outrossim, determinada a exoneração dos ocupantes de cargos em desconformidade com a interpretação fixada, no prazo de até vinte dias após a publicação da ata deste julgamento". O então Ministro da Justiça caiu. A exoneração de um Ministro de Estado pelo fato de a sua nomeação violar a Constituição encontra a companhia da Suprema Corte de Israel. No citado "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General (2003)", o justice Eliezer Rivlin, relator, registrou em seu voto-vencedor: "Tanto a decisão do Primeiro-Ministro de nomear uma pessoa e sua decisão de não exonerar um indicado ao seu gabinete estão sujeitas a padrões de razoabilidade, integridade, proporcionalidade, boa-fé e ausência de arbitrariedade ou discriminação"6. No Brasil, o presidente da República está constitucionalmente vinculado aos princípios constitucionais da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput). Indo além, segundo o art. 78, o presidente e o vice-presidente tomarão posse em sessão do Congresso, prestando o compromisso de "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil". Nesse sentido, na Reclamação n. 29.508, de relatoria da ministra Cármen Lúcia (DJe 1º/2/2018), constou: "é bem sabido que não compete ao Poder Judiciário o exame do mérito administrativo em respeito ao Princípio da separação dos Poderes. Este mandamento, no entanto, não é absoluto em seu conteúdo e deverá o juiz agir sempre que a conduta praticada for ilegal, mais grave ainda, inconstitucional, em se tratando de lesão a preceito constitucional autoaplicável". O raciocínio repete a linha da excepcionalidade. Em 2016, a Suprema Corte de Israel apreciou o caso "Movement for Quality Government in Israel v. Prime Minister" (HCJ 232/16), no qual se questionava a indicação do membro do Knesset - Parlamento israelense -, Rabbi Aryeh Machlouf Deri, para o posto de Ministro do Interior. Deri havia sido condenado por corrupção na década de 1980, dentre outras coisas. O justice Salim Joubran anotou: "a intervenção deste Tribunal, na discricionariedade das pessoas autorizadas a remover um Ministro ou Vice-Ministro do cargo, deve ser limitada às situações em que a gravidade da infração não pode ser conciliada com a continuidade do serviço público"7. A verdade é que o poder que chefes do Executivo têm hoje não é nem de longe o que um dia tiveram. Esses governantes cada vez mais sofrem controles variados e não podem usar a caneta que lhe demos para fazer estripulias por aí. Moisés Naím, especialista no tema, chega a ser peremptório: "O poder está em degradação". Para ele, "no século XXI, o poder é mais fácil de obter, mais difícil de utilizar e mais fácil de perder". Naím explica que os governantes estão cada vez com mais dificuldades de exercer o poder que sonhavam ter. "De Chicago a Milão e de Nova Délhi a Brasília, os chefes das máquinas políticas irão prontamente admitir que têm bem menor capacidade de tomar as decisões unilaterais que seus predecessores davam como certas"8. Moisés Naím tem razão. São inúmeros os instrumentos de controle. No Brasil, eles decorrem da Constituição e chamam o povo a participar desse tipo de obstrução republicana quando partes legitimadas levam ao Judiciário a discussão sobre temas tais como a qualidade dos nomes apresentados à comunidade, pelo Presidente, para ocupar postos de chefia executando uma agenda de políticas públicas. Destoa da ideia de estado constitucional supor que o chefe do Poder Executivo é absoluto em suas escolhas. Ele está submetido à Constituição. Entendendo ter havido uma escolha que compromete a confiança pública no governo ou mesmo a capacidade do indicado executar uma agenda, parece natural que alguém levante a mão no meio da multidão e diga: "Talvez devêssemos discutir melhor essa indicação". Isso engrandece o espaço público quanto a um assunto genuinamente republicano. Indo além, não parece sábio argumentar que as altas autoridades da Administração Pública Federal não se submetem à moralidade administrativa. Basta ler a apresentação do Código da Alta Administração Federal (CCAAF): "A Constituição Federal de 1988 consagrou, no seu artigo 37, o princípio da moralidade como um daqueles a que todos os Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, devem obedecer no exercício de suas atividades administrativas". Eis o arremate: "Tendo a Constituição positivado, vale dizer, juridicizado a ética, esta deixou de ser um conjunto de normas de conduta voltadas para cada um em particular, pois no centro das considerações morais da conduta humana está o eu, conforme lição de Hannah Arendt. Passou, assim, a ética a ter status jurídico e interessar diretamente ao Estado, visto que ele está no centro das considerações jurídicas da conduta humana". Bela apresentação. Foi escrita pelo jurista Américo Lacombe, presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Segundo o art. 3º do Código, "no exercício de suas funções, as autoridades públicas deverão pautar-se pelos padrões da ética, sobretudo no que diz respeito à integridade, à moralidade, à clareza de posições e ao decoro, com vistas a motivar o respeito e a confiança do público em geral". É claro que não se deve vandalizar as indicações do Poder Executivo, mas é preciso constitucionalizá-las. Tanto que o Ministério Público Federal - exercendo as funções institucionais que a Constituição lhe conferiu (art. 129, IX) - recomendou no passado a troca de todos os vice-presidentes da Caixa Econômica Federal, invocando o artigo 34, o princípio republicano, o princípio da impessoalidade da Administração Pública, o art. 173, 'caput' e §1º, II, o artigo 170, IV e o artigo 219, todos da Constituição. Recomendou-se a "melhoria no processo de seleção de altos executivos" e a "troca imediata dos vice-presidentes"9. O chefe do Poder Executivo atendeu a recomendação. A postura de atuar em harmonia com determinadas recomendações do Ministério Público não é diversa da que se vê em outros países do mundo cuja chaga da corrupção tem gangrenado uma República surrada pela desigualdade. É o caso da África do Sul. No país, a Suprema Corte de Recursos, apreciando o caso "SABC v DA (393/2015) [2015] ZASCA 156", em outubro de 2015, contando com a Corruption Watch como amicus curiae, definiu que as recomendações da "Public Protector" - equivalente ao nosso Ministério Público - tem a mesma eficácia de uma decisão judicial. Logo, toda e qualquer autoridade tem que cumprir a recomendação. Caso entenda-a injusta, é preciso ir ao Judiciário desconstituí-la, numa corrida cara e exaustiva. Por isso, a controvérsia judicial brasileira instalada em certas indicações do presidente da República não é mera artilharia inconsequente de uma batalha política de baixa qualidade. É bom para o país discutir, em sua Suprema Corte, questões ligadas ao princípio republicano, à confiança pública no governo, à moralidade administrativa, ao controle dos atos do Executivo e às condições necessárias, numa democracia contemporânea, para se conseguir uma boa-governança. O século XXI não é o século do Executivo, nem do Legislativo ou do Judiciário. São as instituições os personagens mais influentes do nosso tempo. Isso, para que nunca mais tenhamos nossas vidas inteiramente entregues aos caprichos dos homens. Devem, os destinos de um povo, ser assegurados por meio de suas liberdades e pela virtude de suas instituições. Qualquer presidente da República precisa ter em mente que não há governo fora da Constituição. Simplesmente não há. __________ 1 Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 537. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 541. 2 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Within the area of private law the individual can behave with a measure of the "capriche", though such 'capriche' is not what it used to be, nor should it be. But in the realm of public law - constitutional and administrative law - caprice is a terminal illness". 3 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Those exercising authority on behalf of the state or any other public authority - in our case, the Prime Minister and the Minister of Public Security - must constantly be aware that their affairs are not their own. They are dealing with matters that concern others and are obligated to conduct themselves with fairness and integrity, in strict compliance with the principles of public administration". 4 O Ministro de Estado, que era parlamentar, havia sido acusado - e constou dos autos - de haver usado de sua influência para levantar fundos junto a bancos "com a finalidade de pagar parlamentares para que, na Câmara dos Deputados, votassem projetos em favor do Governo" (Representação 38/2005). 5 Consta do parágrafo 24 do acórdão: "When acting in the domain of public law, the appointing authority operates in the capacity of a public trustee. Just as a trustee possesses nothing of his own, so too, the appointing authority possesses nothing of its own. It must conduct itself in the manner of the trustee: acting with integrity and fairness, considering only relevant factors, acting with reasonableness, equality, and without discrimination". 6 No parágrafo 17 do acórdão consta: "Therefore, both the Prime Minister's decision to appoint a person and his decision not to remove one from office are subject to the accepted standards of reasonableness, integrity, proportionality, good faith, and the absence of arbitrariness or discrimination". 7 Consta do parágrafo 28 do voto-vencedor no acórdão: "(...) the boundaries of the Court's intervention in appointments is limited to those instances in which an appointment might seriously harm the standing of the institutions of government and the public's confidence in them". 8 Naím, Moisés. O fim do poder: nas salas da diretoria ou nos campos de batalha, em Igrejas ou Estados, por que estar no poder não é mais o que costumava ser?/ Moisés Naím; tradução Luis Reyes Gil. - São Paulo: LeYa, 2013. 9 Recomendação 87/2017, do Ministério Público Federal (Força-Tarefa Greenfield).
É como se uma corrente prendesse o Brasil, e alguma força desconhecida, sempre que visse o país andar um degrau à frente, o puxasse dois passos para trás. O Partido da República (PR) ajuizou, em 30/4/2015, no Supremo Tribunal Federal, a ação declaratória de constitucionalidade n. 36, visando converter em absoluta a presunção relativa de constitucionalidade do § 3º do art. 58 da lei 9.649/98, cotejado com o art. 39 da Constituição Federal (na redação da EC n. 18/98)1. Eis o teor do dispositivo: "Os empregados dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas são regidos pela legislação trabalhista, sendo vedada qualquer forma de transposição, transferência ou deslocamento para o quadro da Administração Pública direta ou indireta"2. A Procuradoria-Geral da República, então, ajuizou a ação direta de inconstitucionalidade n. 53673 e a arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 3674, trazendo à tona a questão do regime jurídico dos empregados desses conselhos, se são regidos pelo regime jurídico único dos servidores públicos ou pela Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT. Anunciando seu voto no último dia 10/4, sexta-feira, no julgamento virtual da lista n. 103-2020, a relatora de todas essas ações, a ministra Cármen Lúcia, julgou improcedente a ADC 36 e procedentes a ADI 5367 e a ADPF 367. A relatora reconheceu o regime jurídico único a reger esses empregados. O julgamento se encerrará dia 17/4/2020 e não há ainda qualquer outro voto além do da ministra Cármen Lúcia. A resposta quanto ao regime jurídico dos empregados dos Conselhos Profissionais se inicia no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), da Constituição, especialmente no seu art. 5º, que assegura a liberdade de exercício profissional (XIII: "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer"). Ou seja, o nosso modelo de regulação dos profissionais liberais é de "autorregulação", reclamando autonomia e independência quanto ao Estado. As autarquias, diversamente, estão no inciso XVII do art. 37, no Capítulo VII (Da Administração Pública), voltado à "administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios". Consta: "a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público"5. Essa distinção é fundamental, porque a base da fundamentação da posição que entende serem os empregados dos Conselhos Profissionais regidos pelo regime jurídico único, e não pela CLT, parte da assunção de que esses Conselhos são "autarquias". Ocorre que não se encontra neles nada que, substancialmente, os converta em autarquias puras e simples. Tanto que a natureza sui generis jamais foi refutada pelo STF. Um exemplo que ilustra o todo é o trecho de voto recente do ministro Alexandre de Moraes: "Há a possibilidade de afastamento de algumas regras que se impõem ao Poder Público em geral e, no caso específico, à Fazenda Pública". E o arremate: "Veja-se, por exemplo, a discussão quanto à possibilidade de contratação de empregados pelo regime celetista, pendente de análise na ADC 36, na ADI 5.367 e na ADPF 367, todas de relatoria da Minª. CÁRMEN LÚCIA"6. De fato, o STF já o fez quanto à OAB7, em vista da peculiaridade de essa entidade exercer função constitucionalmente qualificada, além de suas finalidades institucionais na defesa dos interesses da cidadania e da sociedade civil. Prosseguindo, o ministro Alexandre de Moraes, em manifestação majoritária do pleno do STF, estabelece as distinções que singularizam esses Conselhos: "Os Conselhos profissionais gozam de ampla autonomia e independência; eles não estão submetidos ao controle institucional, político, administrativo de um ministério ou da Presidência da República, ou seja, eles não estão na estrutura orgânica do Estado. Seus recursos financeiros não estão previstos, como salientou o Ministro MARCO AURÉLIO, na lei orçamentária. Eles não têm e não recebem ingerência do Estado nos aspectos mais relevantes da sua estrutura - indicação de seus dirigentes, aprovação e fiscalização da sua própria programação financeira ou mesmo a existência, podemos chamar, de um orçamento interno. Eles não se submetem, como todos os demais órgãos do Estado, à aprovação de sua programação orçamentária, mediante lei orçamentária, pelo Congresso Nacional. Não há nenhuma ingerência na fixação de despesas de pessoal e de administração. Os recursos dessas entidades são provenientes de contribuições parafiscais pagas pela respectiva categoria. Não são destinados recursos orçamentários da União, suas despesas, como disse, não são fixadas pela lei orçamentária anual. Há, então, essa natureza sui generis, que, por mais que se encaixe, como fez o Supremo Tribunal Federal, anteriormente, na categoria de autarquia, seria uma autarquia sui generis, o que não é novidade no sistema administrativo brasileiro: as agências reguladoras também foram reconhecidas como autarquias sui generis. Aqui, no caso dos Conselhos profissionais, teríamos uma espécie mais híbrida ainda8." O STF concluiu: "O caráter sui generis, portanto, híbrido, dessas entidades exige uma cautela no exame de todas as implicações decorrentes da sua caracterização a priori como pessoa jurídica de direito público"9. Tal conclusão foi reafirmada no RE n. 938.837 (rel. p/ac. ministro Marco Aurélio, DJe 25/9/2017), cujo trecho da ementa diz o seguinte: "EXECUÇÃO - CONSELHOS - ÓRGÃOS DE FISCALIZAÇÃO - DÉBITOS - DECISÃO JUDICIAL. A execução de débito de Conselho de Fiscalização não se submete ao sistema de precatório". Nesse caso, foi fixada a Tese do Tema n. 877: "Os pagamentos devidos, em razão de pronunciamento judicial, pelos Conselhos de Fiscalização não se submetem ao regime de precatórios"10. O fato é que o julgamento virtual da ADC 36, da ADI 5367 e da ADPF 367, pelo pleno do STF, precisa tomar como base o fato de que o modelo brasileiro dos Conselhos Profissionais é inteiramente compatível com a Constituição, pois, primeiramente, é respeitoso ao art. 37, II, que diz: "a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração". Mas isso não os converte numa autarquia a justificar o reconhecimento de seus empregados como servidores públicos. Um dos elementos centrais às autarquias, mas faltante aos Conselhos Profissionais, é a supervisão ministerial. O art. 5º, I, do decreto-lei 200/67 conceitua autarquia11. O parágrafo único do art. 4º diz: "vinculam-se ao Ministério em cuja área de competência estiver enquadrada sua principal atividade". Esse controle se dá pelos Ministérios sobre as entidades da Administração Indireta enquadradas na sua área de competência. Segundo o art. 19, "todo e qualquer órgão da Administração Federal, direta ou indireta, está sujeito à supervisão do Ministro de Estado competente, excetuados os órgãos mencionados no art. 32, que estão sujeitos à supervisão direta do Presidente da República". A supervisão ministerial, à luz do decreto-lei 200/67, é feita pelos controles político (art. 26, p. ú, 'a', 'b', 'i'), institucional (art. 26, p. ú, 'c'), administrativo (art. 26, p. ú, 'c', 'h', 'i') e financeiro (art. 26, p. ú, 'c', 'd', 'e', 'f', 'g')12. Mas o secreto-lei 2.299/96, no art. 3º, revogou o parágrafo único do art. 1º do decreto-lei 968/69, que dispunha sobre a vinculação das entidades de fiscalização do exercício das profissões liberais pelo Ministério do Trabalho13. Há mais distinções14. O regime jurídico estatutário, aplicável aos servidores da Administração direta e autárquica, se caracteriza pela (i) criação de cargos; (ii) fixação de vencimentos por meio de lei (arts. 37, X, 39, 61, §1º, II, 'a'); (iii) valores dos subsídios dos cargos públicos publicados anualmente (art. 39, § 6º); (iv) prévia dotação orçamentária para a criação de cargos, a concessão de vantagens, o aumento de remuneração e contratação de pessoal e qualquer título; e (v) autorização específica na LDO para a Administração Direta e autárquica (art. 169, § 1º). O art. 165, §5º da Constituição traz a universalidade do orçamento: "o orçamento deve conter todas as receitas e despesas da União, de qualquer natureza, procedência ou destino, inclusive a dos fundos, dos empréstimos e dos subsídios". O inciso I estabelece que a Lei Orçamentária Anual compreenderá o orçamento fiscal das entidades da administração direta e indireta, inclusive os da seguridade social das autarquias15. Ocorre que os Conselhos não enviam a proposta do seu orçamento-programa e de sua programação financeira para aprovação de qualquer Ministro16. Também não existe lei criando cargos públicos com denominação própria. As remunerações dos empregados não contam com previsão legal e não existe publicação anual de seus valores. As remunerações não são pagas pelos cofres públicos, pois inexiste qualquer dotação orçamentária no orçamento da União para o custeio da remuneração dos empregados desses Conselhos. O § 7º do art. 39 da Constituição prevê que lei deverá disciplinar a aplicação de recursos orçamentários provenientes da economia com as despesas correntes das autarquias "para aplicação no desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização e racionalização do serviço público, inclusive sob a forma de adicional ou prêmio de produtividade", o que não se aplica aos Conselhos, já que os seus recursos orçamentários não se vinculam ao orçamento da União, e, além disso, a União não destina verbas para programas aos servidores destes Conselhos, nem para remuneração. O art. 169, §§1º e 2º, por sua vez, dispõe que a criação de cargos, empregos ou funções públicas, concessão de vantagens, aumento de remuneração e a contratação de pessoal a qualquer título pelos órgãos e entidades da Administração Direta ou Indireta só poderão ser feitas se houver prévia dotação orçamentária suficiente para cobrir os custos e, ainda, "se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e sociedades de economia mista". Ou seja, é um modelo orçamentariamente sustentável, uma vez que é financiado fora do orçamento, com contribuições parafiscais dos interessados. Não há emendas, não há lei orçamentária, não há verbas parlamentares, não há rubrica no erário. E isso, de forma isonômica, pois permite a variação da contribuição e do salário, à luz das peculiaridades regionais, realizando um dos objetivos fundamentais da República, no art. 3º, III, que é o de reduzir as desigualdades regionais. Há muitas outras distinções. Segundo o caput do art. 131, cabe à Advocacia-Geral da União, diretamente ou através de órgão vinculado, representar a União, judicial e extrajudicialmente, "cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo"17. Mas no caso dos Conselhos Profissionais, além de não possuírem órgão jurídico vinculado à AGU, fica sob a responsabilidade deles arcar, com seus próprios recursos, com os custos necessários - materiais e humanos -, para que o seu setor jurídico realize a representação judicial e extrajudicial destas entidades. Os seus departamentos jurídicos não passaram a integrar a Procuradoria-Geral Federal nem foram mantidos como Procuradorias Federais. Também não são beneficiários da isenção do pagamento de custas na Justiça Federal (art. 4º, § ú da lei 9.289/96). Por fim, segundo o art. 40, aos servidores titulares de cargos das autarquias é assegurado o regime de previdência de caráter contributivo e solidário (RPPS), pela contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, ao passo que aos servidores ocupantes de emprego público aplica-se o RGPS (§13º)18. Aos titulares de cargos públicos das autarquias é assegurado o regime de previdência de caráter contributivo, garantindo-se o recebimento dos proventos na forma do art. 40, e seus parágrafos. Tanto as contribuições feitas pelos servidores das autarquias, como as despesas com encargos do RPPS para estes servidores, devem integrar o Orçamento da Seguridade Social da União (art. 165, §5º, III). Mas os Conselhos são excluídos do orçamento de receitas e despesas da União da Seguridade Social, de modo que nas LOA's não existe previsão para pagamento de aposentadorias e demais benefícios previdenciários para o pessoal das entidades de fiscalização profissional, consoante o RPPS dos entes autárquicos19. E quanto à irredutibilidade dos vencimentos (art. 37, XV)? E à estabilidade (art. 41)? E às indenizações, gratificações e adicionais previstos na lei 8.112/90? As distinções são evidentes. Não à toa, o ministro Maurício Corrêa concluiu seu voto numa dada oportunidade de maneira tão contundente: "Seria o cúmulo do absurdo que pretendesse o Constituinte, ao votar o artigo 39 da Carta Política, o que não fez, ter requerido dizer que tal regime e planos de carreira para "os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas" - porque assim é o que diz literalmente a norma - tivesse intuído também incluir os empregados de Conselhos Profissionais, sob a alcunha de servidores públicos, como beneficiários da infortunada classificação de autarquia especial, que na lei ordinária fez-se dimensionar"20. É preciso se considerar ainda que os Conselhos Profissionais são potências públicas voltadas à representação de interesses e à defesa de direitos das atividades profissionais, colocando-se muitas vezes em posições antagônicas às medidas de governo adotadas pelo Poder Executivo da União, exatamente em razão da sua autonomia. A lei de criação desses Conselhos obriga a inscrição e o pagamento de contribuição parafiscal, garantindo a existência de apenas uma por categoria. Há um interesse público a ser perseguido, que é o risco potencial de que o exercício da profissão cause prejuízos à sociedade e ao bom nome da profissão. Recentemente, o Colégio de Presidentes, última instância do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), julgou o processo ético-disciplinar contra a enfermeira ré por homicídio qualificado na morte do enteado Bernardo Boldrini, assassinado em abril de 2014, aos 11 anos. A enfermeira foi cassada por 30 anos. Há quase duas décadas, foi o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea) que cassou o registro de engenheiro de um ex-deputado, dono da construtora Sersan, impedindo-o de acompanhar obras de engenharia no País. A empresa foi responsável pela construção do edifício Palace II que desabou em fevereiro de 1998, na Barra da Tijuca, Rio, provocando a morte de oito pessoas. Ele portanto empodera a sociedade civil. Como anotou o ministro Néri da Silveira, em julgamento no pleno do STF, "Todos esses Conselhos, além de exercerem fiscalização, são também órgãos de defesa das atividades profissionais respectivas"21. Precisam, exatamente por isso, de uma liberdade que reclama que os Conselhos Profissionais não sejam atirados nos braços do Estado. Isso comprometerá o necessário papel por eles desempenhado de potência pública aglutinadora da sociedade civil em temas afetos às respectivas profissões regulamentadas22. No modelo que soubemos montar, um grupo de colegas se reúne, com celeridade, para, de maneira equidistante, apreciar uma queixa contra um igual, e, de modo civilizado, afastá-lo de suas atividades, em proveito da integridade da profissão, e da proteção da comunidade. Há muitas outras hipóteses que reafirmam a necessária autonomia desses Conselhos Profissionais. Em 24/4/2019, a ministra Cármen Lúcia determinou a suspensão do trâmite de ação popular na Justiça Federal do Distrito Federal que buscava sustar os efeitos da resolução 1/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP). A Resolução estabelecia normas de atuação para os psicólogos em relação à questão de orientação sexual e veda a chamada "cura gay"23. Atuou o Conselho Federal de Psicologia. Essa autonomia existiria caso o Conselho estivesse vinculado a um Ministério do Poder Executivo? Noutra oportunidade, o Conselho Federal de Medicina, pelo seu presidente, questionou o programa Mais Médicos, do Poder Executivo da União. Isso ocorreu na audiência pública sobre o tema realizada pelo Supremo Tribunal Federal24, em mais uma demonstração de necessária autonomia, que será comprometida a depender do que defina o Supremo Tribunal Federal no julgamento virtual das referidas ADC 36, ADI 5367 e ADPF 367. Ainda o CFM, ao lado do Conselho Federal de Psicologia, participou da audiência pública no STF sobre a interrupção voluntária da gestação25, levando, ambos, seus aportes ao equacionamento de um tema impregnado de desacordos morais e que exatamente por isso reclama a participação de potências públicas qualificadas na sociedade civil26. Iniciativas como essas, muitas vezes confrontadoras do próprio Poder Executivo da União, são mais condizentes com a exortação à liberdade emanada do inciso XIII do art. 5º da Constituição Federal e dos outros incisos voltados à liberdade de associação (XVII, XVIII, XIX, XX e XXI), do que com o inciso XIX do art. 37 que dispõe sobre autarquia. Não custa recordar que os empregados dos Conselhos Profissionais exercem atividades cotidianas, preparatórias, instrutórias. O poder de polícia é exercido pelos conselheiros, que desfrutam um cargo honorífico. O modelo combina, acima de tudo, liberdade com responsabilidade, pois é controlável pela lei, pelo Tribunal de Contas da União e pelo Poder Judiciário. Daí se concluir que a Constituição ampara o §3º do art. 58 da lei 9.649/98, refutando-se a aplicabilidade do regime jurídico único (lei 8.112/90) aos empregados dos Conselhos Profissionais27, que são em verdade regidos pela legislação trabalhista. Conclusão que é a mais harmônica com a Constituição para prevalecer no julgamento virtual que ora ocorre no STF, especialmente nos autos da ADC 36, que cuida especificamente desse ponto. __________ 1 CF: "Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes". 2 Em 22/9/99, o STF julgou prejudicada a ADI 1717 MC no ponto em que impugnava o mesmo §3º do art. 58 da lei 9.649/98, tendo declarado a inconstitucionalidade do caput e dos parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do art. 58. Derrubou-se previsão que qualificava os Conselhos como de direito privado. O STF entendeu-os como autarquias, sem, contudo, esgotar seus elementos constitutivos. O § 3º não teve sua constitucionalidade analisada. Eis: "EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao §3º do atr. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º, e 8º do mesmo art. 58. (...) 3. Decisão unânime. 6. Desta forma, em relação ao §3º do art. 58 da lei 9.649/98, vê-se que não houve pronunciamento do Supremo Tribunal Federal acerca de sua constitucionalidade, de modo que o inteiro teor do parágrafo 3º do art. 58 mantém-se vigente e incólume". O entendimento adotado na ADI 1717 já havia sido firmado na ADI 641-0 (rel. p. ac. Min. Min. Marco Aurélio, 1991), quando a Corte decidiu não possuírem os conselhos legitimidade para propor ADI. 3 A ADI 5367 ataca (i) o art. 58, § 3º, da Lei 9.649/98; (ii) o art. 31 da lei 8.042/90 (cria os Conselhos Federal e Regionais de Economistas Domésticos), e (iii) o art. 41 da lei 12.378/2010 (regulamenta o exercício da Arquitetura e do Urbanismo, cria o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil e dá outras providências). São amici o Sindicato dos Empregados em Conselhos e Ordens de Fiscalização Profissional e Entidades Coligadas e Afins do Distrito Federal (SINDECOF), o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) e o Conselho Federal de Contabilidade (CFC). 4 A ADPF 367, ajuizada pela PGR, pleiteia a não-recepção, pela CF, do (i) art. 35 da lei 5.766/71; (ii) art. 19 da lei 5.905/73; (iii) art. 20 da lei 6.316/75; (iv) art. 22 da lei 6.530/78; (v) art. 22 da lei 6.583/78; (vi) art. 28 da lei 6.684/79. São amici o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) e o COREN/RJ. 5 Redação da EC 19/98. 6 RE 938.837 (rel. p/ac. Min. Marco Aurélio, DJe 25/9/2017), página 32 do acórdão. 7 ADI 3026, Min. Eros Grau, DJ 29/9/2006: "(...) 1. A lei 8.906, artigo 79, § 1º, possibilitou aos 'servidores' da OAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha: indenização a ser paga à época da aposentadoria. 2. Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como 'autarquias especiais' para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas 'agências'. 5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. (...) 8. Embora decorra de determinação legal, o regime estatutário imposto aos empregados da OAB não é compatível com a entidade, que é autônoma e independente. (...)". 8 RE 938.837 (rel. p/ac. Min. Marco Aurélio, DJe 25/9/2017), página 33 do acórdão. 9 Eis a ementa da ADI 4697 (Min. Edson Fachin, DJe 30/3/2017): "1. A jurisprudência desta Corte se fixou no sentido de serem os conselhos profissionais autarquias de índole federal. Precedentes: MS 10.272, de relatoria do Ministro Victor Nunes Leal, Tribunal Pleno, DJ 11.07.1963; e MS 22.643, de relatoria do Ministro Moreira Alves, DJ 04.12.1998. 2. Tendo em conta que a fiscalização dos conselhos profissionais envolve o exercício de poder de polícia, de tributar e de punir, estabeleceu-se ser a anuidade cobrada por essas autarquias um tributo, sujeitando-se, por óbvio, ao regime tributário pátrio. Precedente: ADI 1.717, de relatoria do Ministro Sydney Sanches, Tribunal Pleno, DJ 28.03.2003. 3. O entendimento iterativo do STF é na direção de as anuidades cobradas pelos conselhos profissionais caracterizarem-se como tributos da espécie "contribuições de interesse das categorias profissionais", nos termos do art. 149 da Constituição da República. (...)". Ainda: RE 611.947 (Min. Ricardo Lewandowski, DJe 6/9/2011); AI 791.759 (Min. Gilmar Mendes, DJe 2/8/2011); RE 539.224 (Min. Luiz Fux, 1ª T, 22/5/2012). 10 O mesmo na Rcl 29.178 AgR (Min. Alexandre de Moraes, 29/9/2018, 1ª Turma): "(...) CONSELHO PROFISSIONAL. PEDIDO DE CONVERSÃO DO REGIME CELETISTA PARA O ESTATUTÁRIO. VIOLAÇÃO À ADI 2.652. NÃO OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE ESTRITA ADERÊNCIA. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO." 11 "Art. 5º. Para os fins desta lei, considera-se: I - Autarquia - o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada". 12 "Art. 26. No que se refere à Administração Indireta, a supervisão ministerial visará a assegurar, essencialmente: I - A realização dos objetivos fixados nos atos de constituição da entidade. II - A harmonia com a política e a programação do Govêrno no setor de atuação da entidade. III - A eficiência administrativa. IV - A autonomia administrativa, operacional e financeira da entidade. Parágrafo único. A supervisão exercer-se-á mediante adoção das seguintes medidas, além de outras estabelecidas em regulamento: a) indicação ou nomeação pelo Ministro ou, se fôr o caso, eleição dos dirigentes da entidade, conforme sua natureza jurídica; b) designação, pelo Ministro dos representantes do Govêrno Federal nas Assembléias Gerais e órgãos de administração ou contrôle da entidade; c) recebimento sistemático de relatórios, boletins, balancetes, balanços e informações que permitam ao Ministro acompanhar as atividades da entidade e a execução do orçamento-programa e da programação financeira aprovados pelo Govêrno; d) aprovação anual da proposta de orçamento-programa e da programação financeira da entidade, no caso de autarquia; e) aprovação de contas, relatórios e balanços, diretamente ou através dos representantes ministeriais nas Assembléias e órgãos de administração ou contrôle; f) fixação, em níveis compatíveis com os critérios de operação econômica, das despesas de pessoal e de administração; g) fixação de critérios para gastos de publicidade, divulgação e relações públicas; h) realização de auditoria e avaliação periódica de rendimento e produtividade; i) intervenção, por motivo de interêsse público". 13 Houve a revogação parcial do art. 5º da lei 6.530/78, suprimindo-se, do texto, a expressão "vinculada ao Ministério do Trabalho" (lex posterior derrogat priori - art. 2º, §1º, da Lei de Introdução ao Código Civil). 14 No Parecer/CONJUR/MTE 094/2001, a AGU defendeu a natureza autárquica sui generis desses Conselhos, além da constitucionalidade do §3º do art. 58 da Lei 9.649/98 e a inaplicabilidade do regime jurídico único aos servidores dos conselhos profissionais. RMS 20.976 (Min. Sepúlveda Pertence, DJ 16/2/90): "(...) enquanto se mantenha a autarquia profissional no exercício regular de suas atividades finalísticas, carece o Ministro do Trabalho de competência tutelar, seja para decidir, em grau de recurso hierárquico, posto que impróprio, sobre as decisões concretas da entidade corporativa, seja para dar-lhe instruções normativas sobre como resolver determinada questão jurídica de sua alçada. (...) (...) Vigência do §3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998, que atribuiu o regime celetista aos servidores dos conselhos. Violação da Súmula Vinculante nº 10, do Supremo Tribunal Federal pelo acórdão proferido no julgamento do REsp nº 507.536, pelo STJ. Manifestações do Advogado-Geral da União sobre a natureza autárquica sui generis dos conselhos profissionais. (...)". 15 Segundo o art. 108 da lei 4.320/64 (Normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do DF), os orçamentos das autarquias federais se vinculam ao orçamento da União, ficando nele incluídos ou como receita, na hipótese de previsão de saldo positivo no orçamento-programa da autarquia (totais das receitas maior do que os totais das despesas), ou como subvenção econômica, em caso de previsão de saldo negativo (totais das receitas maior do que os totais das despesas). A lei 4.320/64, , estabelece que os orçamentos das autarquias devem ser aprovados por decreto do Executivo, ou pelo Legislativo, caso haja disposição legal nesse sentido. 16 Segundo o art. 19 da lei 5.905/73, os Conselhos Federal e Regional de Enfermagem terão tabela própria de pessoal. Todavia, não se diz que tais tabelas sejam construídas nos moldes do serviço público federal. 17 A LC 73/93 (Lei Orgânica da AGU) estabelece, no art. 2º, § 3º, que "as Procuradoras e Departamentos Jurídicos das autarquias e fundações públicas são órgãos vinculados à Advocacia-Geral da União". Já a lei 10.480/2002, tendo instituído a Procuradoria-Geral Federal, em seu art. 10 diz lhe competir "a representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais, as respectivas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos, a apuração da liquidez e certeza dos créditos, de qualquer natureza, inerentes às suas atividades, inscrevendo-os em dívida ativa, para fins de cobrança amigável ou judicial". O § 2º dispõe: "integram a Procuradoria-Geral Federal as Procuradorias, Departamentos Jurídicos, Consultorias Jurídicas ou Assessorias Jurídicas das autarquias e fundações federais, como órgãos de execução desta, mantidas as suas atuais competências". O § 3º: "serão mantidos, como Procuradorias Federais especializadas, os órgãos jurídicos de autarquias e fundações de âmbito nacional". 18 CF: "Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo. (Redação da EC 41/2003) (.) § 13 - Ao servidor ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração bem como de outro cargo temporário ou de emprego público, aplica-se o regime geral de previdência social. (EC 20/98)". 19 CF: "Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: § 5º - A lei orçamentária anual compreenderá: (...) III - o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público". Lei 12.919/2013, "Art. 36. O Orçamento da Seguridade Social compreenderá as dotações destinadas a atender às ações de saúde, previdência e assistência social, obedecerá ao disposto no inciso XI do caput do art. 167 e nos arts. 194, 195, 196, 199, 200, 201, 203, 204 e 212, § 4º, da Constituição Federal e contará, entre outros, com recursos provenientes: (...) II - da contribuição para o plano de seguridade social do servidor, que será utilizada para despesas com encargos previdenciários da União;". 20 MS 21.797 (Min. Carlos Velloso, DJ 18/5/2001), página 24 do acórdão. 21 Página 11 do acórdão. ADI 641 MC (rel. p/ac. Min. Marco Aurélio, DJ 12/3/93). Dai a ilegitimidade 'ad causam' do Conselho Federal de Farmácia e de todos os demais que tenham idêntica personalidade jurídica - de direito público. 22 A Constituição traz um subsistema voltado às associações profissionais privadas: (i) "Art. 5º, XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; (ii) Art. 5º, XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento; (iii) Art. 5º, XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente; (iv) Art. 8º. É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: (...)". São comandos que exortam à liberdade. 23 A decisão liminar, proferida na RCL 31.818, mantém a eficácia plena da Resolução nº 1/99 do CFP. 24 Questionamento da Medida Provisória 621/2013 (Programa Mais Médicos). ADIs 5035 e 5037. 25 ADPF 442: recepção dos arts. 124 e 126 do Código Penal, que instituem a criminalização da interrupção voluntária da gravidez (aborto), pela ordem normativa constitucional vigente. 26 O Conselho Federal de Psicologia participou, como amicus curiae, do julgamento da ADI 4275 (rel. p. ac. Min. Edson Fachin, DJe 7/3/2019), cujo desfecho pode ser resumido pela transcrição do seguinte trecho da ementa: "A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade". 27 A lei 8.112/90 não revogou a norma especial do decreto-lei 968/69.
terça-feira, 31 de março de 2020

A judicialização da crise no STF

Nem sempre a intensidade de uma grave crise é perfeitamente identificada logo no seu início. Apenas quando ela se vai é que, do rastro desolador que deixa, é possível mensurar a sua força destrutiva. Nesse momento, não haverá mais qualquer espaço para arrependimentos. Será simplesmente tarde demais. Supremas Cortes também enfrentam crises. A de Israel, por exemplo, está habituada a interferir em operações militares do país em territórios vizinhos. A lógica é simples: o poder, mesmo o militar, não pode ser absoluto, ele precisa ser controlado. Na África do Sul, coube à Corte Constitucional contrapor a negação do então presidente Thabo Mbeki que, no epicentro de uma epidemia de HIV, insistia que o vírus não causava a Aids1. O governo sugeriu que combatessem a doença bebendo refresco de beterraba2. Acontece que, diante da morte, as pessoas jamais esperarão inertes soluções apresentadas tardia e equivocadamente por políticos. Por isso, elas procuram o Judiciário. Em nosso país, o tempo presente atirou no colo do STF um pacote embrulhado por um sombrio alinhamento de astros. A Suprema Corte está tentando desembrulhá-lo. Dia 4/2, o ministro Gilmar Mendes decidiu o HC 180.921 (DJe 6/2/2020), impetrado em favor de Indira Mara Santos e outros. Brasileiros que estavam em Wuhan, na China, desejavam retornar ao país, mas a posição do presidente brasileiro era a de que não seria "'oportuno' resgatar família com suspeita de coronavírus"3. Daí a impetração do habeas corpus, para que o Brasil fosse obrigado a resgatar a sua gente. Por não preencher quaisquer dos requisitos formais, o habeas foi negado4. Um mês depois, numa noite de quarta-feira, o presidente do Senado Federal, David Alcolumbre e o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, foram recebidos pelo embaixador do Marrocos no Brasil, Nabil Adghoghi, num jantar de cortesia para a delegação de autoridades brasileiras que visitaria o país5. Quinta-feira da semana seguinte, o presidente do STF embarcou para o Marrocos em viagem oficial. No mesmo dia, 12/3, o Supremo divulgou a Resolução 663/2020, com medidas para prevenção do contágio na Corte. Foram suspensos o atendimento presencial do público externo que pudesse ser prestado por meio eletrônico ou telefônico, a visitação pública e a entrada de público externo no restaurante e na Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal. O acesso às sessões ficou restrito às partes e advogados com processos em pauta. Suspendeu-se ainda as audiências públicas que discutiriam o Marco Civil da Internet (23 e 24/3) e a criação do juiz de garantias (16 e 30/3)6. A crise já havia chegado à Suprema Corte. Na sexta-feira (13/3), o site do STF estampava: "Fake news: Não é verdade que expediente e prazos processuais foram suspensos em razão do coronavírus"7. Dias depois, parte dos prazos seria suspensa. Inacreditavelmente, dia 15/3, domingo, ocorreu em várias cidades uma manifestação popular pedindo, dentre outras coisas, o fechamento do Congresso Nacional e do STF8. O ministro Gilmar Mendes tuitou: "A epidemia do coronavírus exige das nossas instituições uma conscientização mais profunda em torno do valor constitucional da solidariedade. As mobilizações populares devem cobrar intervenções mais efetivas para evitar uma crise ainda mais grave na saúde pública". Não havia outro jeito. O Supremo teria de entrar na equação política da pandemia. O ministro Dias Toffoli, que estava em missão em Marrocos, antecipou o seu retorno9. Na segunda-feira, Luiz Vassallo noticiava, no Blog do Fausto Macêdo, que o presidente do STF não se submeteria à quarentena do coronavírus. Segundo a Corte, o ministro "não apresenta sintomas de coronavírus, nem se enquadra na situação de quarentena"10. De volta, o ministro Dias Toffoli reuniu autoridades dos Três Poderes para discutirem medidas conjuntas. Participaram, além do ministro da saúde, Henrique Mandetta, os ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Roberto Barroso e Edson Fachin; o secretário da Secretaria de Serviços Integrados de Saúde do STF, Marco Polo Freitas; o presidente do Senado, David Alcolumbre; o presidente da Câmara, Rodrigo Maia; o presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha; a presidente do TST, ministra Maria Cristina Peduzzi; o vice-presidente do STM, ministro José Barroso Filho; o procurador-geral da República, Augusto Aras; e o advogado-geral da União (AGU), André Mendonça. O presidente Jair Bolsonaro estava ausente. Apenas a presidente do TST, ministra Cristina Peduzzi, usava máscara. Não tardaria para que a pandemia começasse a alterar a rotina judicial do Supremo. Na própria segunda-feira, houve a impetração do MS 36.997, no qual o Podemos pediu liminar para sanar "ato omissivo" do presidente da República em reduzir a propagação do vírus. Pleiteou-se a suspensão do desembarque de passageiros vindos de países europeus e asiáticos por no mínimo 30 dias e o deslocamento de tropas das Forças Armadas para o controle terrestre nas fronteiras. É relatora a ministra Cármen Lúcia. Dia seguinte, o ministro Ricardo Lewandowski, 72, anunciou que, durante a pandemia, trabalharia de casa, assim como os servidores do seu gabinete11. A judicialização da crise se fez sentir. A chamada no site do STF dizia: "Chegam ao STF ações e petições em razão da pandemia do coronavírus"12. Ao meio-dia, o ministro Gilmar Mendes tuitou: "O coronavírus demanda iniciativas de coordenação política entre os Três Poderes que envolvam a União, Estados e Municípios. Em situação semelhante (ainda que menos grave), o governo FHC instituiu a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica para lidar com o apagão (MP 2198-5)". Nesse dia, o CNJ divulgou a Recomendação 62, para que os Tribunais e magistrados adotem medidas preventivas à propagação da infecção pelo coronavírus no sistema carcerário. A Recomendação fez explodir no STF pedidos em habeas corpus para que penas cumpridas em regime fechado fossem convertidas em prisão domiciliar, caso o preso integrasse um dos grupos de risco da pandemia. Nas hipóteses cabíveis, os habeas corpus eram concedidos13. Ou então os relatores pediam mais informações para saber da situação do detento à luz da referida Recomendação-CNJ 62/202014. Outra possibilidade era a remessa dos autos à origem para que o juiz da execução aferisse a compatibilidade do caso com a Recomendação15. A grande maioria dos habeas corpus foi negada, por não preencher os requisitos16. Perto da meia-noite, o ministro Gilmar Mendes tuitou: "O judiciário deve trabalhar para impedir que a crise da saúde se torne uma crise da justiça. Parabenizo as iniciativas do Pres. Toffoli de manter as atividades do @STF_oficial e de ampliar o uso do Plenário Virtual. Sejamos fortes! Nem a Ditadura fechou as portas do Supremo". Dia seguinte, quarta-feira, 18/3, numa sessão administrativa realizada num plenário esvaziado, o presidente Dias Toffoli anunciou uma ferramenta para permitir que as partes envolvidas em um processo - como advogados, procuradores, defensores públicos - possam enviar suas sustentações orais por meio digital. Os ministros seguiriam deliberando de quinze em quinze dias. 343 servidores já estavam em trabalho remoto. Nessa sessão, quem brilhou foi o ministro da Saúde, Henrique Mandetta. "E aqui faço questão de parabenizar o ministro da Saúde, o ministro Mandetta, pela liderança nessa crise, pela liderança técnica e efetiva que vem tendo nessa crise", registrou o ministro Alexandre de Moraes. O ministro Gilmar Mendes o aparteou: "acho que todos nós que ouvimos sua exposição, na segunda-feira, quedamos impressionados com a qualidade técnica, com a responsabilidade, com o senso humano, com a responsabilidade política, de modo que, numa quadra que nós vivenciamos às vezes gestões muito medíocres, vemos um quadro dessa dimensão, um homem certo num lugar certo". O arremate veio do presidente Dias Toffoli: "Se há uma pessoa hoje inamovível na República deve ser considerado o ministro Luiz Henrique Mandetta". Na sessão jurisdicional, analisando o pedido do Instituto de Defesa do Direito de Defesa - Márcio Thomaz Bastos (IDDD) para prevenir a propagação do coronavírus no sistema carcerário, os ministros entenderam, por maioria, que o Judiciário deve seguir as recomendações do CNJ e da portaria conjunta dos Ministérios da Saúde e da Justiça e Segurança Pública. Amicus curiae, o IDDD pediu a concessão de livramento condicional a presos com 60 anos ou mais e a autorização para que detentos com HIV, tuberculose, câncer, diabetes e doenças respiratórias, cardíacas e imunodepressoras cumpram regime domiciliar. O pedido foi feito na ADPF 347, na qual o STF havia reconhecido, em 2015, o "estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário". Por unanimidade, os ministros acompanharam o entendimento do relator, ministro Marco Aurélio, sobre a ilegitimidade de amicus curiae para requerer cautelar. Porém, divergiram quanto a recomendação aos juízes de execução penal. O ministro Alexandre de Moraes, que abriu divergência, destacou que, para evitar a disseminação do novo coronavírus nas prisões, o CNJ recomendou a análise de situações de risco caso a caso17. Dia seguinte, o presidente do STF e o presidente da República encaminharam ao Congresso Nacional o projeto de lei emergencial para criar o Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle, alterando a Lei 13.979/2020, sobre as medidas para enfrentamento da pandemia. Além do STF, CNJ e AGU, integram o comitê o TCU, a Procuradoria-Geral da União, o CNMP, a Controladoria-Geral da União e a Defensoria Pública. Como a Suprema Corte seguiria com sessões presenciais quinzenais, vieram os pedidos de adiamentos de julgamentos. O ministro Marco Aurélio deferiu muitos deles18. Já o ministro Luiz Fux optou por determinar a inclusão do feito na pauta virtual, em que se permite sustentação por videoconferência19. A ministra Cármen Lúcia, relatora do RE 574.706, que determinou a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS, retirou o caso de pauta, "em face da pandemia do coronavírus que estamos enfrentando em todo o mundo, bem como pela segurança dos patronos e ministros, e a repercussão do presente recurso extraordinário". Ao meio-dia da sexta-feira, Mariana Oliveira, da TV Globo, estampava: "Toffoli diz que fará teste nos próximos dias para verificar se está com coronavírus". Em entrevista à Radio Bandeirantes, o presidente disse estar em isolamento desde que soube do teste positivo para Covid-19 do presidente do Congresso, o senador David Alcolumbre20. A crise escalou. O atendimento presencial ao público na Central do Cidadão do STF foi suspenso. A sala de apoio aos advogados fechou suas portas. Em petições nas ADIs 5658, 5680 e 5715, o PT, o PSOL e vários amici curiae pediram uma liminar que suspendesse os efeitos de parte da emenda constitucional 95/2016, para que o teto de gastos não seja aplicado à saúde, fazendo com que a ministra Rosa Weber pedisse informações ao Poder Executivo da União sobre os efeitos da EC 95/2016 sobre as necessidades decorrentes da pandemia21. Já não importava mais que horas eram nem em que dia da semana estávamos. No domingo, 22/3, o ministro Alexandre de Moraes determinou a destinação de R$ 1,6 bilhão ao Ministério da Saúde para custeio de ações de combate ao coronavírus. O ministro homologou proposta apresentada pelo PGR, Augusto Aras, na ADPF 568, em que foi firmado, em 2019, acordo sobre destinação de valores oriundos da Operação Lava-Jato. À tarde, o ministro Gilmar Mendes voltou ao Twitter: "O discurso de Merkel é sintomático da gravidade da crise do coronavírus. Para a Chanceler alemã, a COVID-19 representa o maior desafio ao país desde a Segunda Guerra Mundial, superando, portanto, os esforços para a reconstrução e reunificação da Alemanha"22. Na madrugada da segunda-feira, 23/3, o presidente da República, Jair Bolsonaro, editou a MP 927, que, por meio do art. 18, permitia às empresas suspenderem o contrato de trabalho de seus empregos por quatro meses, sem lhes pagar. Nesse mesmo dia, o presidente do STF se pronunciou: "Você colocar o povo dentro de casa, com medo, e sem remuneração, sem garantia, é falta de discernimento"23. O dispositivo foi revogado. As alterações do funcionamento do Supremo continuavam. Veio a Resolução 670/2020, suspendendo os prazos processuais de processos físicos, até o dia 30 de abril, sendo mantidos os atos necessários à preservação de direitos e de natureza urgente. Nesse dia, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu por 180 dias o pagamento das parcelas da dívida do Estado de São Paulo com a União (ACO 3363). Fez o mesmo com os Estados de MS (ACO 3371), AC (ACO 3372), PA (ACO 3373), BA (ACO 3365), MA (ACO 3366), PR (ACO 3367), PB (ACO 3368), PE (ACO 3369), SC (ACO 3370), AL (ACO 3374) e ES (ACO 3375). Esses valores devem ser aplicados em ações de prevenção, contenção, combate e mitigação à pandemia. Determinou, ainda, a realização, com urgência, de audiência virtual para tentativa de composição com a União. Ainda na segunda-feira, na ACO 3359, proposta por sete Estados (BA, CE, MA, PB, PE, PI e RN), o ministro Marco Aurélio determinou que o Governo Federal suspenda os cortes no programa Bolsa Família enquanto perdurar a calamidade pública. O ministro Roberto Barroso, por sua vez, indeferiu liminar no MS 37.018 (DJe 25/3/2020), impetrado pela Federação das Entidades Sindicais dos Oficiais de Justiça do Brasil, visando à análise, pelo CNJ, do PCA 0002293-69.2020.2.00.0000, em que foram requeridas medidas para resguardar os oficiais de justiça da contaminação pelo Covid-19. Já tarde da noite, perto das 22h, o ministro Gilmar Mendes escreveu em sua conta no Twitter: "A imprensa brasileira tem dado um exemplo de excelência na cobertura do #covid19. Os jornalistas têm cumprido a missão de informar a população de forma técnica, mesmo que, para isso, esses profissionais tenham que se expor a riscos. A imprensa livre é um pilar da nossa democracia". Na manhã da terça-feira, 24/3, às 11h, o presidente do STF participou de videoconferência com líderes de movimentos sindicais. Presentes os presidentes da Força Sindical, Miguel Torres; da Central dos Sindicatos Brasileiros, Antônio Neto; da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, Adilson Araújo; da Nova Central Sindical de Trabalhadores, José Calixto; e o deputado federal Paulinho da Força. Ancelmo Gois tinha notado algo diferente desde o dia anterior: "O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, raspou a barba. Está com a cara 'limpa'. É por causa do risco, apontado por alguns infectologistas, de que os fios no rosto possam acabar retendo gotículas do vírus"24. O uso da tecnologia para se comunicar no isolamento passaria a ser a tônica do presidente do Supremo. E ele não estava sozinho. No mesmo dia, o ministro Edson Fachin, por videoconferência, ouvia as deputadas Renata Souza e Talíria Petrone, sobre a superlotação do Sistema Socioeducativo, o Degase25. A judicialização da crise ganhava fluxo. Na ADI 6341, do PDT, o ministro Marco Aurélio deferiu em parte liminar para explicitar que as medidas do Governo Federal na MP 926/2020 para o enfrentamento do coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, Distrito Federal e municípios. Já na ACO 3364, a ministra Cármen Lúcia indeferiu pedido de tutela do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, de imposição ao Poder Executivo federal da adoção de medidas de teletrabalho em relação aos servidores públicos federais e aos empregados da administração pública direta, indireta, autárquica, fundacional, empresas públicas e sociedades de economia mista da União lotados no Distrito Federal. Às 20h30, o presidente da República, Jair Bolsonaro, fez um pronunciamento em cadeia nacional de televisão. Criticou as medidas de isolamento social e chamou o coronavírus de "gripezinha". Horas depois, o ministro Gilmar Mendes voltou à carga no Twitter: "A pandemia do covid-19 exige solidariedade e corresponsabilidade. A experiência internacional e as orientações da OMS na luta contra o vírus devem ser rigorosamente seguidas por nós. As agruras da crise, por mais árduas que sejam, não sustentam o luxo da insensatez. #FiqueEmCasa". Dia seguinte, na ADI 6343, o ministro Marco Aurélio indeferiu liminar na qual a Rede pedia a suspensão de pontos das MPs 926/2020 e 927/2020, que tratam do transporte intermunicipal durante a pandemia. O ministro reafirmou que os dirigentes (União, Estados, DF e Municípios) devem implementar as medidas necessárias à mitigação das consequências da pandemia. No entanto, considerando a "crise aguda envolvendo a saúde pública", a recomendação foi a de que o tratamento seja nacional. Já o ministro Gilmar Mendes determinou, na ADPF 662, o prazo de 72h para que o Congresso e o TCU prestem informações. Questiona-se a ampliação do acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) suspensão cautelar da alteração feita pelo Senado no art. 20, § 3º, da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/93), que estabelece o limite de renda familiar per capita para fins de concessão do BPC. Também houve providências por parte do ministro Roberto Barroso, que intimou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional sobre o pedido de tutela de evidência no RE 1.253.494, no qual uma empresa de operações portuárias pede o levantamento dos valores depositados em conta judicial do juízo de origem vinculados à controvérsia26. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, ainda pela manhã, o presidente da República, numa reunião por videoconferência, se exasperava com o governador de São Paulo, João Dória. A polarização de ambos seria uma das marcas políticas da crise. Às 21h15, o ministro Gilmar Mendes tuitou: "Interessante medida do @governosp. Para além da questão da reintegração dos detentos, a iniciativa demonstra a possibilidade de se utilizarem equipamentos e mão de obra ociosos no combate à #covid19. A estratégia deve servir de inspiração aos gestores"27. Dia seguinte, 26/3, o presidente do STF teve uma videoconferência com o presidente da Fiesp/Ciesp, Paulo Skaf, e grandes grupos empresariais, para tratar da crise. Enquanto isso, uma notícia reclamou da Suprema Corte nervos de aço. O Globo trouxe a informação de que o ministro Celso de Mello, 74, havia se submetido ao teste para o coronavírus e estava em isolamento em São Paulo. O médico infectologista David Uip havia testado positivo para a doença e o decano da Corte tinha tido contato com Uip28. Naquela manhã, foi publicado artigo do ministro Edson Fachin na coluna Tendências e Debates, do jornal Folha de São Paulo. Dias antes, a imprensa noticiava que o presidente da República, Jair Bolsonaro, pedira à AGU uma posição quanto à eventual decretação de estado de sítio, medida que foi expressamente oposta pela OAB29. Sob o título "A esperança não é um estado de exceção", o ministro Edson Fachin anotou o seguinte em seu artigo: "Para enfrentar a atual emergência sanitária, almeja-se o auxílio esclarecedor da ciência com transparência. Questões críticas de saúde demandam uma sociedade aberta às soluções técnicas, permeadas por constantes e sucessivas ponderações públicas. Debate plural, livre e acessível tornam as interrogações atuais em razões verificáveis e sindicáveis, o que é próprio da normalidade democrática". E arrematou: "é temerária a hipótese excepcional do estado de sítio para essa situação crítica pela qual hoje passamos. Matéria indigesta, mas precaver-se nunca é demais"30. A imprensa estava especialmente focada no STF naquele dia. A jornalista Carolina Brígido, na Revista Época, estampou: "Como é o home office dos ministros do Supremo". As primeiras revelações couberam ao ministro Luiz Fux. "Acorda, toma café, faz uma caminhada - tudo na sala de casa, no Rio de Janeiro, onde tem esteira e bicicleta ergométrica. Depois, vai trabalhar no escritório, também em casa. Em vez de terno e gravata, opta por uma roupa informal. Divide as tarefas do lar com a mulher". O presidente Dias Toffoli narrou outra rotina: "Estou almoçando em casa, eu mesmo lavo minha louça, limpo meu quarto, estou tomando as precauções". O ritmo do ministro Ricardo Lewandowski seguia frenético: "Estou trabalhando mais do que nunca a partir de casa: 12 a 14 horas por dia". O trabalho do ministro Roberto Barroso não era menos intenso, "só não coloco terno". Ficava das 9h às 21h, "com uma parada para almoçar". Um dos ministros fez uma confidência: "Olha, está muito difícil trabalhar em casa, toda hora eu quero comer, fico contando as horas pro almoço, vou na cozinha o dia todo"31. Carolina Brígido guardou segredo quanto à identidade do (ou da) confidente. Apreciando a ADI 6351, da OAB, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a eficácia do art. 6º-B da Lei 13.979/2020, incluído pela MP 928/2020, que limitou o acesso às informações prestadas por órgãos públicos durante a emergência de saúde pública32. Na ADI 6342, ajuizada pelo PDT, o ministro Marco Aurélio indeferiu a liminar contra dispositivos da MP 927/2020, que autorizam empregadores a adotarem medidas excepcionais em razão do estado de calamidade pública33. O ministro fez o mesmo nas ADIs 6344, da Rede; e 6346, da CNTM, ambas contra a MP 927/2020. Tramita ainda, com o mesmo objeto, a ADI 6354, da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria - CNTI. Nesse dia, o STF anunciou a Resolução 672/2020, que permite a participação dos ministros nas sessões do Plenário e das Turmas por videoconferência. A videoconferência assumiria o lugar das sessões com a presença física dos ministros no pleno da Corte. A sessão ordinária convocada para o dia 1º de abril foi convertida em sessão virtual para a semana seguinte. A sustentação oral dos advogados passaria a ser realizada por videoconferência mediante inscrição feita por formulário eletrônico disponibilizado no site do STF até 48 horas antes do dia da sessão. Na mesma quinta-feira, foi ajuizada pela Confederação Nacional dos Transportes, a ADPF 665, contra decretos Estaduais e Municipais que determinam o fechamento de fronteiras, vias públicas e locais limites entre municípios e divisas entre estados, como forma de contenção da pandemia. A relatoria é do ministro Luiz Fux. A Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis ajuizou a ADPF 666, questionando atos de diferentes Estados e Prefeituras tendo por objeto estabelecer medidas restritivas para o enfrentamento da crise, suspendendo o funcionamento de empresas locadoras de veículos automotores. A ministra Rosa Weber é a relatora.   Também foi ajuizada a ADPF 660, pela Associação Nacional de Membros do Ministério Público Pró-Sociedade, questionando dispositivos da Recomendação-CNJ 62/2020. A relatoria é do ministro Gilmar Mendes. Foram ajuizadas ainda as ADIs 6344, da Rede; 6346, da Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos; 6348, do PSB; 6349, do PCdoB, PSOL e PT; e 6352, do Solidariedade. Todas questionam a MP 927/2020, que flexibiliza a legislação trabalhista durante a calamidade. O relator é o ministro Marco Aurélio. Por fim, a ADI 6353, do PSB, questionando a MP 928/2020, em partes que suspendem direitos previstos na Lei de Acesso à Informação - LAI. O relator é o ministro Alexandre de Moraes. No mesmo dia, o PGR, Augusto Aras, pediu ao ministro Edson Fachin que os R$ 51 milhões atribuídos ao ex-deputado federal Geddel Vieira Lima fossem destinados ao combate ao coronavírus. Aquela havia sido a quinta-feira que jamais acabou. Até então, o "Dia D" da judicialização da crise no Supremo. Dia seguinte, a Corte lançou no seu site o Painel de Ações Covid-19, com dados atualizados sobre todos os processos em curso no STF em que existam pedidos relacionados à pandemia, além das suas decisões tomadas no tema34. Nas ADPFs 661, ajuizada pelos Progressistas, e 663, do presidente da República, o ministro Alexandre de Moraes deferiu liminar para, apesar de não suspender os prazos das medidas provisórias, autorizar que, durante a calamidade, elas sejam instruídas perante o plenário da Câmara e do Senado, ficando autorizada a emissão de parecer por parlamentar de cada uma das Casas em substituição à Comissão Mista35. No sábado, 28/3, a jornalista Eliane Cantanhêde noticiava que o presidente Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro Gilmar Mendes, no Palácio da Alvorada, para ouvi-lo sobre a Câmara de Gestão de Crise do colapso de energia elétrica de 2001, que pode ser replicada agora na pandemia. Na época, o ministro Gilmar Mendes era AGU36. Dia seguinte, domingo, o ministro Alexandre de Moraes afastou a exigência de demonstração de adequação orçamentária em relação à criação e expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento da Covid-19. A decisão vale para todos os entes da federação que tenham decretado estado de calamidade pública pela pandemia37. Mesmo na segunda-feira, 30/3, enquanto eu tentava terminar a coluna, os acontecimentos se projetavam na tela do laptop. Cedo da manhã, o jornal O Globo trouxe artigo do ministro Luiz Fux, ponderando que, "antes de decidirem, devem os juízes ouvir os técnicos, porque uma postura judicial diversa gera decisões passionais que desorganizam o sistema de saúde, gerando decisões trágicas e caridade injusta"38. Às 11h, o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, entrava numa "live" com o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. "Mas, tudo que tem ocorrido no mundo leva a crer na necessidade do isolamento realmente, que é para puxar a diminuição de uma curva e ter atendimento de saúde para população em geral", afirmou o presidente. O site do STF, por sua vez, disponibilizava a decisão do ministro Marco Aurélio tomada no sábado, na ADO 56, ajuizada pela Rede, indeferindo o pedido para que o STF definisse, para a pandemia, o mínimo existencial apto a garantir a existência digna dos brasileiros, por meio da instituição de uma renda básica emergencial39. O fio segue. Foram ajuizadas as ADPFs 668 e 669, da CNTM e da Rede, respectivamente, questionando a campanha publicitária divulgada nas redes sociais ligadas à presidência da República intitulada "O Brasil Não Pode Parar"40. A relatoria é do ministro Roberto Barroso. Esse é o primeiro capítulo da judicialização da crise no STF gerada pela pandemia do coronavírus. Mais ações serão ajuizadas, novas decisões serão tomadas e muitas outras posturas institucionais terão de ser adotadas. A crise não vai acabar agora e trabalhos como esse tornar-se-ão um mero periódico. Estamos apenas no começo.    __________ 1 Minister of Health v Treatment Action Campaign (TAC) (2002) 5 SA 721 (CC).   2 Ver: https://jus.com.br/artigos/19156/ativismo-judicial-as-experiencias-brasileira-e-sul-africana-no-combate-a-aids/2   3 Em: https://veja.abril.com.br/saude/bolsonaro-suspeita-coronavirus-filipinas/.   4 Os óbices formais verificados pelo relator foram: ausência de legitimidade ativa do impetrante; ausência de ato coator específico; o governo federal indicou a adoção de postura distinta da narrada na impetração.   5 Em: https://brasiliainfoco.com/embaixador-do-marrocos-recebe-autoridades-na-residencia-oficial/   6 A discussão sobre o Marco Civil é objeto dos REs 1.037.396 e 1.057.258. A figura do juiz de garantias e outros dispositivos do Pacote Anticrime são tratados nas ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305.   7 Em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439316&ori=1   8 Em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/na-paulista-apoiadores-de-bolsonaro-atacam-congresso-e-stf-e-chamam-coronavirus-de-mentira.shtml   9 Em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/03/16/em-meio-a-crise-do-coronavirus-toffoli-antecipa-volta-ao-brasil.htm?cmpid=copiaecola   10 Em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/apos-voltar-do-marrocos-toffoli-nao-vai-se-submeter-a-quarentena/   11 Eis o inteiro teor da nota divulgada pelo ministro Ricardo Lewandowski: "Em cumprimento às recomendações das autoridades sanitárias nacionais e internacionais e em atenção à Resolução 663 da Presidência do STF, o ministro Ricardo Lewandowski exercerá suas funções por meio de trabalho remoto, assim como os servidores de seu gabinete. Isso inclui a análise de cautelares e decisões nos processos que lhe forem distribuídos ou pautados para julgamento nas sessões virtuais do plenário e da Segunda Turma".   12 Em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439575&ori=1   13 Apreciando o HC 182.582/SP, em 20/3/2020, o Min. Gilmar Mendes registrou: "(...) a colocação da paciente em prisão domiciliar é medida que se impõe, mormente porque, para além do fato de que seu filho conta com apenas 3 anos e 6 meses, ficou comprovada a imprescindibilidade da paciente aos cuidados da criança, considerada a juntada de documentação médica que atesta a ocorrência de episódios depressivos moderados e alterações comportamentais após a separação da mãe (eDOC 4). concedo a ordem de habeas corpus para determinar que a paciente Ricelli Ravena Ribeiro Zancanaro seja posta em prisão domiciliar, com a obrigação de comparecimento periódico em Juízo para informar e justificar suas atividades. deverá a paciente: a) solicitar previamente autorização judicial sempre que pretender ausentar-se de sua residência (artigo 317 do CPP); b) atender aos chamamentos judiciais; c) noticiar eventual transferência; e d) para fins de apuração da melhor situação para a criança (ECA doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente), submeter-se, periodicamente, juntamente com sua família, a estudos psíquico-sociais". O mesmo no HC 182.670 MC/RJ (DJe 27/3/2020). No HC 182.950, o Min. Ricardo Lewandowski concedeu de ofício pedido para uma presa que amamenta seu filho recém-nascido.   14 HC 143.641/SP, Min. Ricardo Lewandowski, DJe 25/3/2020; Ext 1601/DF, Min. Gilmar Mendes, DJe 26/3/2020; Ext 1612/DF, Min. Gilmar Mendes, DJe 26/3/2020; HC 167.201 TPI/DF, Min. Edson Fachin, DJe 24/3/2020; RHC 162.575 AgR/SC, Min. Edson Fachin, DJe 24/3/2020; e HC 179.548/SP, Min. Edson Fachin, DJe 25/3/2020.   15 No MS 37.028 (DJe 26/03/2020), a Min. Cármen Lúcia decidiu: "nego seguimento ao presente mandado de segurança, concedendo, entretanto, habeas corpus de ofício para que o juízo da Vara de Execuções Penais responsável pelo Centro de Progressão Penitenciária 2 em Bauru, localizado no Estado de São Paulo, analise, com urgência, a possibilidade de análise da aplicação, ou não, ao paciente de alguma das medidas estabelecidas na Recomendação n. 62/2020 do CNJ". Mais: MS 37.030, Min. Gilmar Mendes, DJe 27/3/2020; RHC 182.510/SP, Min. Gilmar Mendes, DJe 27/3/2020; MS 37.019 MC/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 25/3/2020; HC 180.472/RJ, Min. Gilmar Mendes, DJe 25/3/2020; HC 182.831/PE, Min. Luiz Fux, DJe 24/3/2020; HC 182.854/SC, Min. Gilmar Mendes, DJe 26/3/2020; HC 182.596 MC/ES, Min. Gilmar Mendes, DJe 26/3/2020; HC 182.793/RJ, Min. Gilmar Mendes, DJe 26/3/2020; HC 180.574, Min. Cármen Lúcia, DJe 27/3/2020; e HC 181.772, Min. Cármen Lúcia, DJe 25/3/2020.   16 Na AP 1030, por exemplo, o Min. Edson Fachin negou o pedido de Geddel Vieira Lima para ser colocado em prisão domiciliar. Mais: HC 182.934/CE, Min. Cármen Lúcia, DJe 27/3/2020; HC 182.729/DF, Min. Luiz Fux, DJe 27/3/2020; HC 182.904/SP, Min. Luiz Fux, DJe 27/3/2020; HC 182.966/SP, Min. Edson Fachin, DJe 27/3/2020; HC 183.008/RS, Min. Cármen Lúcia, DJe 27/3/2020; HC 183.016/RJ, Min. Luiz Fux, DJe 27/3/2020; HC 183.044/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 27/3/2020; HC 183.052, Min. Luiz Fux, DJe 27/3/2020; HC 182.869/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 26/3/2020; HC 182.940/RS, Min. Cármen Lúcia, DJe 26/3/2020; HC 182.941/PB, Min. Cármen Lúcia, DJe 26/3/2020; HC 182.963/GO, Min. Cármen Lúcia, DJe 26/3/2020; HC 182.780/SP, Min. Luiz Fux, DJe 25/3/2020; HC 182.860/RJ, Min. Luiz Fux, DJe 25/3/2020; HC 182.917/SP, Min. Luiz Fux, DJe 25/3/2020; Rcl 39.746/PR, Min. Alexandre de Moraes, DJe 27/3/2020; HC 182.990/RJ, Min. Cármen Lúcia, DJe 27/3/2020; HC 178.336 AgR-ED/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 25/3/2020; HC 182.772/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 26/3/2020; MS 37.012/SP, Min. Cármen Lúcia, DJe 24/3/2020; HC 182.787/PA, Min. Cármen Lúcia, DJe 24/3/2020; HC 182.861/MG, Min. Cármen Lúcia, DJe 25/3/2020; HC 182.789/AC, Min. Cármen Lúcia, DJe 24/3/2020.   17 A divergência foi seguida pelos Min. Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, e Dias Toffoli. O Min. Gilmar Mendes acompanhou o relator na concessão de ofício das sugestões.   18 No HC 175.267/SP (DJe 19/3/2020), o Min. Marco Aurélio relatou que o patrono da parte pedia que fosse "adiado, por 30 dias, o exame do processo, marcado para amanhã, 17 de março de 2020, na Primeira Turma. Destaca encontrar-se em São Paulo, alegando temor de viajar a Brasília, tendo em vista a atual crise sanitária relacionada à pandemia de COVID-19 (coronavírus)". O Ministro decidiu: "Defiro o que requerido. Reincluam o processo na pauta da Sessão seguinte ao prazo postulado". O mesmo em: HC 180.348/TO (DJe 19/3/2020), HC 158.410/RJ (DJe 19/3/2020), HC 172.567/MG (DJe 19/3/2020), HC 180.578/SP (DJe 19/3/2020) e ARE 1.235.950 AgR-ED/DF (DJe 20/3/2020).   19 No AR 2732 AgR/RS (DJe 24/3/2020), o Min. Luiz Fux anotou: "Na ocasião, fixou-se, ainda, que as sustentações orais poderão ocorrer por meio de videoconferência, nos moldes em que realizada recentemente em julgamento Plenário, a partir de recurso audiovisual, dispensando-se o comparecimento físico dos patronos dos feitos, a fim de resguardar a saúde de todos e obedecer ao máximo as diretrizes estabelecidas pelas autoridades para reduzir o risco de contágio da doença. Destarte, diante de tais deliberações, carece de fundamentos legítimos a suspensão ora pleiteada, não se verificando, in casu, nenhuma das hipóteses previstas no artigo 313 do Código de Processo Civil. No afã de preservar o direito do patrono do requerente à sustentação oral, sem prejuízo da observância ao princípio da duração razoável do processo, revela-se benfazeja a retirada do recurso da pauta do Plenário presencial e sua inclusão na pauta do Plenário Virtual".   20 Em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/20/toffoli-diz-que-fara-teste-nos-proximos-dias-para-verificar-se-esta-com-coronavirus.ghtml   21 A Min. Rosa Weber pediu que os Ministérios da Saúde e da Economia, a Secretaria do Tesouro Nacional e o Conselho Nacional de Saúde informem o montante mínimo aplicado em ações e serviços públicos de saúde.   22 Eis o vídeo indicado pelo Min. Gilmar Mendes: https://www.youtube.com/watch?v=IWZiolHnm-w&feature=youtu.be   23 Em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/03/colocar-o-povo-dentro-de-casa-com-medo-e-sem-garantias-e-falta-de-discernimento-diz-presidente-do-stf.shtml   24 Em: https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/o-novo-visual-de-dias-toffoli-e-uma-licao-em-tempos-de-coronavirus.html   25 Sobre o HC 143.988/ES.   26 Anotou o Min. Roberto Barroso: "Considerando as informações apresentadas, intimo a Procuradoria da Fazenda Nacional a se manifestar, em 48 horas, sobre: (i) o Parecer PGFN/CRJ/Nº 162/2017; (ii) o interesse em recorrer da decisão monocrática por mim proferida em 11.02.2020". Para a contribuinte, nos termos da Lei Federal 13.979/2020, regulamentada pelo Decreto 10.282/2020, que dispõe sobre "as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus", exerce atividade essencial que não deve ser interrompida, razão pela qual é fundamental a liberação do valor depositado em conta judicial.   27 Eis o link da matéria sugerida pelo Min. Gilmar Mendes: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/24/presos-produzirao-320-mil-mascaras-hospitalares-em-sao-paulo.htm?cmpid=copiaecola   28 O decano do STF, ministro Celso de Mello, foi internado inicialmente em 21/1, em São Paulo, para ser submetido a uma cirurgia no quadril. Em seguida, teve alta hospitalar e permaneceria em casa, na capital paulista, até o dia 19/3. Mas foi diagnosticado com uma infecção e retornou ao hospital. Em: https://oglobo.globo.com/brasil/decano-do-supremo-celso-de-mello-aguarda-resultado-de-teste-para-coronavirus-24327763   29 Em: https://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/oab-diz-que-estado-de-sitio-por-causa-de-coronavirus-e-inconstitucional/   30 Em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/03/a-esperanca-nao-e-um-estado-de-excecao.shtml   31 Em: https://epoca.globo.com/coluna-como-o-home-office-dos-ministros-do-supremo-24328345   32 O dispositivo suspendia os prazos de resposta a pedidos dirigidos a órgãos cujos servidores estejam em regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes e que dependam de agente público ou setor envolvido no combate à doença. Previa também não caber recursos contra negativa de resposta a pedido de informação.   33 O Min. Marco Aurélio afastou a alegação de vício formal na edição da MP. Em época de crise, não seria possível impedir que o presidente da República atue provisoriamente no campo trabalhista e da saúde no trabalho. Quanto aos demais pontos, o ministro entendeu não haver conflito com a Constituição, uma vez que as normas, como a que sobrepõe o acordo individual aos coletivos, foram editadas com o objetivo de enfrentar o estado de calamidade e permitir que empregado e empregador possam estabelecer parâmetros para a manutenção do vínculo empregatício sem ultrapassar os limites definidos pela Constituição Federal.   34 Em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440336&ori=1   35 Pela decisão do Min. Alexandre de Moraes, "em deliberação nos plenários das casas legislativas por sessão remota, as emendas e requerimentos de destaque podem ser apresentados à Mesa, na forma e prazo definidos para funcionamento do Sistema de Deliberação Remota em cada Casa, sem prejuízo da possibilidade de regulamentação complementar desse procedimento legislativo regimental'.   36 Em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-e-gilmar-discutem-gestao-do-apagao-eletrico-de-2001-e-como-aplica-la-contra-o-coronavirus,70003251905   37 A decisão foi tomada na ADI 6357, ajuizada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. A AGU pediu o afastamento de algumas exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei 13.898/2020) relativas a programas de combate ao coronavírus e de proteção da população vulnerável à pandemia. Os dispositivos exigem, para o aumento de gastos tributários indiretos e despesas obrigatórias de caráter continuado, as estimativas de impacto orçamentário-financeiro e a compatibilidade com a LDO, além da demonstração da origem dos recursos e a compensação de seus efeitos financeiros nos exercícios seguintes.   38 Em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-justica-infectada-hora-da-prudencia-24337119   39 "Surge impróprio o pedido formalizado nesta ação. Não cabe a fixação, no âmbito precário e efêmero, nem mesmo no definitivo, de auxílio revelador de renda básica emergencial temporária. Frise-se, por oportuno, que a matéria está sendo tratada pelos dois Poderes - Executivo e Legislativo -, aguardando votação no Senado da República", escreveu o Min. Marco Aurélio, em sua decisão.   40 Eis o pedido liminar da ADPF 669, da Rede: "i. suspender o contrato firmado com a empresa iComunicação Integrada (EXTRATO DE DISPENSA DE LICITAÇÃO Nº 1/2020 - UASG 110319, processo nº 00170.000322/2020) no âmbito da Campanha "O Brasil não Pode Parar", sem que haja qualquer pagamento pelo Estado à referida empresa - para que se evite qualquer lesão irreversível ao erário e à saúde de toda a população - até o julgamento do mérito da presente ação, já que há patente incompatibilidade do ato público retro com preceitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal e aqui explicitados; e, no mesmo sentido ii. impedir, liminarmente, que sejam veiculadas quaisquer publicidades institucionais pagas, direta ou indiretamente, com dinheiro público no escopo da Campanha 'O Brasil não Pode Parar' (ou seus derivados e assemelhados), pelo manifesto risco de grave lesão à saúde de toda a população".
O caráter da nossa nação jamais poderá ser medido pela disposição dos mais velhos em darem suas vidas pelos mais novos, mas, sim, pelo reconhecimento, por toda a comunidade, do valor intrínseco da vida humana. Aquele que, no vale das sombras, salva uma única vida, em verdade salva toda a humanidade. No Brasil, o idoso compõe um capítulo próprio da Constituição (Capítulo VII), que estabelece, no art. 229, que "os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade". O art. 230, por sua vez, diz que, além da família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, "defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida". Numa antevisão, o § 1º dispõe que "os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares". Um dos objetivos da assistência social é exatamente a proteção "à velhice" (art. 203, I)1. Não há dúvida de que a Constituição reputa os idosos como sendo um grupo vulnerável. Quando essa vulnerabilidade se agrava, é preciso fazer de tudo para protegê-los, realizando um dos objetivos da República, que é o de termos uma sociedade que, além de fraterna (Preâmbulo2), é "livre, justa e solidária" (art. 3º, I). Esse dever se realiza de múltiplas formas, especialmente pelo direito à saúde, um "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (art. 196). Criamos o Sistema Único de Saúde. Cabe-lhe executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 200, II)3. Como o novo coronavírus (COVID-19) é uma pandemia - evento global -, essas ações precisam ter coordenação com os consensos forjados nos órgãos internacionais especializados de saúde com os quais o Brasil mantenha relação por meio dos instrumentos do Direito Internacional Público. O bem não separa. Só o mal separa. A relação entre o Brasil e a China é antiga e profundamente frutífera, apesar das histórias tão distintas dessas duas grandes nações. Coube a um brasileiro e a um chinês encaminharem a proposta que resultou na criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), agência internacional especializada, fundada em 1948, subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU). Geraldo Horácio de Paula Souza, médico sanitarista, e Szeming Sze, médico e diplomata, membros das delegações de seus países na Conferência de São Francisco, em 1945, que reuniu 50 países aliados para criar a ONU4, fizeram história. No crepúsculo da Segunda Guerra Mundial, dois médicos elevaram suas vozes pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Isso se daria por meio da saúde. É dever da União, como ente representante da República em suas relações internacionais, se portar à luz dessa realidade (art. 21, I)5. Não se trata de abrir mão da independência (art. 4º, I)6, nem da soberania (art. 1º, I)7, mas de reconhecer que, em casos de pandemia, o caráter hierárquico do planejamento das ações da União pelo SUS toma como ponto de partida a cooperação com a OMS, assumindo, no Brasil, a sua natureza de rede regionalizada e hierarquizada (art. 198)8. Segundo a Constituição, um dos princípios das nossas relações externas é o da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (art. 4º, IX). Essa cooperação pode, na necessária adequação doméstica, contar com distinções decorrentes de peculiaridades da nossa comunidade. Todavia, não podemos nos colocarmos como oponentes empedernidos das recomendações oriundas de uma instância internacional especializada em saúde por nós fundada e permanentemente integrada. Nesse sentido, o internacionalista Valerio Mazzuoli anota que "não há qualquer norma constitucional a prever a execução das decisões de organizações internacionais no Brasil, o que não significa que não se tenha que encontrar uma maneira de operacionalizar o comando de tais decisões no país". Isso porque, "o eventual âmbito restrito de tais decisões não lhes retira a característica de serem normas de conduta, ou seja, de direito em sua essência, e cujas violações podem ser passíveis de sanção"9. Mazzuoli conclui: "Não faria qualquer sentido o Estado ratificar um tratado internacional - que, por sua vez, cria e põe em marcha determinado mecanismo de monitoramento - se não for para seguir as suas recomendações e deliberações10. Não deve haver litígio entre a União e a OMS quanto à implementação das recomendações da agência. Compete ao Supremo Tribunal Federal, inclusive, reafirmar esse dever de cooperação, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, qualquer contenda entre organismo internacional e a União (art. 102, I, "e"). Essa é a mensagem que extraio da Constituição, cujo zelo e guarda compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (art. 23, I)11, assim como também lhes compete cuidar da saúde (art. 23, II)12, em especial, a dos idosos. Todo e qualquer cálculo utilitarista que despreze o valor intrínseco da vida humana, a fundamentalidade do nosso sistema de saúde e a vulnerabilidade dos idosos, constituir-se-á num absurdo moral. Como disse Rubens Ricupero: "Cada sociedade será julgada em última instância pela maneira como trata seus membros mais frágeis e vulneráveis"13. __________ 1 Constituição: "Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;". 2 Preâmbulo da Constituição: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL". 3 Constituição: "Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;". 4 Roland, Maria Inês de França; Gianini, Reinaldo José. Geraldo Horácio de Paula Souza, a China e a medicina chinesa, 1928-1943. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.20, n.3, jul.-set. 2013, p.885-912. 5 Constituição: "Art. 21. Compete à União: I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;". 6 Constituição: "Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional;". 7 Constituição: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania;". 8 Constituição: "Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade". 9 Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 103. 10 Mazzuolli, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 815. 11 Constituição: "Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;". 12 Constituição: "Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;". 13 100 dias que mudaram a posição do Brasil no mundo.
Uma vez mais o pleno do Supremo Tribunal Federal foi chamado a ser o fiador tanto da federação como do futuro da inovação tecnológica no Brasil. Terá que, no desempenho de suas graves competências, traçar destinos nacionais. Nasceu para isso. Consta da pauta dessa quarta-feira, 18/3, um lote de casos conexos que, à exceção da ADI 46231, tratam da repartição de competências tributárias dos entes federados - Estados e municípios - quanto aos programas de computadores. Basicamente, sobre a possibilidade dos serviços de software, já tributados pelo ISS, de competência dos municípios, também serem tributados pelo ICMS, de competência dos Estados. Eis um resumo das ações: (i) RE 688.223 (Min. Luiz Fux), TIM Celular x Curitiba. Tema 590: ISS sobre contratos de licenciamento ou de cessão de software desenvolvido para clientes de forma personalizada; (ii) ADI 1945 (Min. Cármen Lúcia), do PMDB. Tema central: inconstitucionalidade do inciso VI do art. 2º e do § 6º do art. 6º, por bitributação e invasão da competência municipal, dado que o Estado fez incidir o ICMS sobre operações com software, ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados, operações já tributadas pelo ISSQN; e (iii) ADI 5659 (Min. Dias Toffoli), da CNS. Tema: inconstitucionalidade do Decreto estadual n° 46.877/2015-MG, e interpretação conforme do art. 5° da Lei n° 6.763/75; do art. 1°, I e II, do Decreto nº 43.080/2002, ambos de Minas Gerais; bem como do art. 2° da LC 87/96, a fim de excluir das hipóteses de incidência do ICMS as operações com software. A primeira fantasia é a que reputa os softwares uma "mercadoria incorpórea"2 sobre a qual se deve incidir o ICMS. Esse conceito - mercadoria incorpórea -, quando aplicado à tecnologia da informação, desmantela a sua base, que se constitui pela divisão em hardwares e softwares, sendo, aqueles, o produto tangível, palpável, material, a parte física que circula, capaz de mudar de titularidade, ou seja, a mercadoria. Os softwares, por sua vez, são o oposto. Intangíveis, não palpáveis, imateriais, sem qualquer corpo físico, frutos das ideias, incapazes de circular mudando de titularidade - o que há são licenças ou assinaturas -, não se tratando de mercadoria. Sobre os hardwares, que são bens, incide o ICMS. Sobre os softwares, que são serviços, o ISS, sabendo-se que a combinação entre as formas contemporâneas de prestação de serviços e a chegada da Quarta Revolução Industrial3 resultam em maneiras cada vez mais criativas e sofisticadas de prestação de serviços. Essa é a fórmula presente na Constituição, que equilibra o pacto federativo e permite que a inovação distribua seus frutos equitativamente, realizando o comando de desenvolvimento nacional equilibrado, presente tanto no art. 3º, II da Constituição, enquanto um dos objetivos fundamentais da República, como no § 1º do art. 174, que cuida da ordem econômica. Quando as águas sobem, todos os barcos se elevam. O Direito Empresarial incorporou a dicotomia "bens e serviços", bens constituindo bens materiais e serviços sendo bens imateriais. Essa dicotomia pode ser vista no art. 170, VI, e no art. 173, §1º, da Constituição4, explicitando-se o conceito de serviço (bem imaterial) em oposição ao conceito de bens (materiais), ambos completando-se como resultado exaustivo de atividade empresarial. O STF, no RE 540.829 (Min. Luiz Fux, DJe 18/11/2014), fixou a Tese 297: "Não incide o ICMS na operação de arrendamento mercantil internacional, salvo na hipótese de antecipação da opção de compra, quando configurada a transferência da titularidade do bem". Enfatizou-se que "a alínea 'a' do inciso IX do § 2º do art. 155 da CF, na redação da EC 33/2001, faz incidir o ICMS na entrada de bem ou mercadoria importados do exterior, somente se de fato houver circulação de mercadoria, caracterizada pela transferência do domínio (compra e venda)"5. No caso de Minas Gerais, a base de cálculo do ICMS, que antes correspondia ao suporte físico do software (Dec. 43.080/2002), passou a ser o valor total da operação de serviço do software, incluindo o valor do programa, do suporte informático e quaisquer outros valores cobrados do adquirente do software, seja por meio de mídia, seja por meio de transferência eletrônica de dados (download ou streaming)6. Houve ainda a publicação do Convênio ICMS 181/2015, do CONFAZ (DOU 29/12/2015), autorizando alguns Estados a concederem inconstitucionalmente redução na base de cálculo do ICMS relativo às operações com softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, padronizados, ainda que sejam ou possam ser adaptados, disponibilizados por qualquer meio, de forma que a carga corresponda a 5% do valor da operação. Eis os Estados: AC, AL, AP, AM, BA, CE, GO, MA, MS, PR, PB, PE, PI, RJ, RN, RS, SC, SP e TOi. Acontece que a Constituição limitou aos estados e ao DF o poder de instituir imposto sobre a "circulação de mercadorias" e sobre dois serviços explicitados no art. 155: "Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e (serviços) de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; III - propriedade de veículos automotores". Também outorgou aos municípios (e ao DF) competência para tributar os "serviços de qualquer natureza", listados em lei complementar (excetuados aqueles dois que haviam sido reservados aos estados, "serviços de transporte" e de "comunicação"): "Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: I - propriedade predial e territorial urbana; II - transmissão 'Inter vivos', a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; III - Serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar". Em 31/7/2003, a LC 116 inseriu o software no âmbito de incidência do ISS: "Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador. 1 - Serviços de informática e congêneres. 1.01 - Análise e desenvolvimento de sistemas. 1.02 - Programação. 1.03 - Processamento de dados e congêneres. 1.04 - Elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos. 1.05 - Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação. 1.06 - Assessoria e consultoria em informática. 1.07 - Suporte técnico em informática, inclusive instalação, configuração e manutenção de programas de computação e bancos de dados. 1.08 - Planejamento, confecção, manutenção e atualização de páginas eletrônicas". A LC 157/2016, ampliou e descrição dos itens 1.03 e 1.04 e incluiu um novo item 1.09, mantendo o ISS sobre os serviços de Tecnologia da Informação: "Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador. 1 - Serviços de informática e congêneres. (...) 1.03 - Processamento, armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos, e congêneres. 1.04 - Elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos, independentemente da arquitetura construtiva da máquina em que o programa será executado, incluindo tablets, smartphones e congêneres. (...) 1.09 - Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a lei 12.485/2011, sujeita ao ICMS)". No caso dos softwares, não há lei complementar definindo os contribuintes de ICMS, dispondo sobre substituição tributária, disciplinando o regime de compensação, fixando o estabelecimento responsável e o local e a base de cálculo7. Exatamente por isso, uma área inteira da economia se estabilizou reconhecendo o seu business como uma prestação de serviço sobre a qual incidia o ISS. Fê-lo por expressa determinação constitucional (art. 156, III) e legal (LC 116/2013). Apenas para ilustrar, em 2019, a Confederação Nacional da Indústria - CNI, divulgou pesquisa que fez com empresários das indústrias de transformação e extrativa. Foi a Sondagem Especial 73 - Qualidade do Sistema Tributário Brasileiro, feita em parceria com as federações estaduais da indústria, realizada em outubro de 2018, com 2.083 empresas, sendo 838 pequenas, 754 médias e 491 grandes. Em resposta à pergunta "Qual o tributo que causa a maior impacto negativo sobre a competitividade?", 42% dos entrevistados responderam: o ICMS. Em seu extremo oposto, apenas 1% indicou o ISS. Essa aversão a tudo o que o ICMS representa nos convida a lembrar que demos à ciência e à tecnologia o destaque de um capítulo na Constituição. A ele, diversos dispositivos foram inseridos pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015, resultando no Capítulo IV, da "Ciência, Tecnologia e Inovação". Mesmo assim, Ucrânia, Mongólia, Costa Rica, África do Sul, Sérvia, México, Chile, Índia, Colômbia, Uruguai..., dezenas de países são considerados ambientes mais inventivos e amigáveis à inovação do que nós. O Brasil ocupa a 64ª posição no Índice Global de Inovação de 20188. Por qual razão? Para Daron Acemoglu e James Robinson, a resistência por parte de autoridades locais à inovação decorre do "receio, quase sempre justificado, de que ela desloque o eixo do poder político, transferindo-o dos que dominam hoje para as mãos de novos indivíduos e grupos"9. É uma postura extrativista que se revela pela tributação também. Nesse que é o século das cidades, no tempo que é o da economia digital, e diante da rara oportunidade de vermos o município conquistando sua autonomia financeira (art. 18 c/c art. 30, III, da Constituição), um conjunto de leis estaduais, estimuladas pelo CONFAZ, subvertem a lógica de reconhecer softwares como serviços. Acontece que a jurisprudência do STF jamais permitiu a tributação do software pelo ICMS. Sempre foram reconhecidos como serviços, implicando a incidência do ISS. O que a jurisprudência da Suprema Corte fez foi entender que, no caso dos softwares de prateleira - aqueles não personalizados - as cópias da parte física que hospedava tais programas, como o CD-ROM, serviria de base de cálculo do ICMS. No RE 176.626 (Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T, DJ 11.12.98), consta: "Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de 'licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador' 'matéria exclusiva da lide', efetivamente não podem os Estados instituir ICMS (...)". Em seguida, veio o esclarecimento: "dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo - como a do chamado 'software de prateleira' (off the shelf) - os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio". Apesar da imprecisão da distinção, o fato é que o relator, Min. Sepúlveda Pertence, frisou que "o conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo". Segundo o Ministro, "trata-se, pois, de operações que têm como objeto um direito de uso, bem incorpóreo insuscetível de ser incluído no conceito de mercadoria e, consequentemente, de sofrer a incidência do ICMS". O Min. Pertence realçou: "Os contratos de licenciamento e cessão são ajustes concernentes aos direitos de autor, firmados pelo titular desses direitos - que não é necessariamente, o vendedor do exemplar do programa - e o usuário do software". E arrematou: "Licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador, bem incorpóreo sobre o qual, não se cuidando de mercadoria, efetivamente não pode incidir o ICMS"10. Hoje, na quase totalidade as operações com software, além da ausência de suporte físico, sequer a titularidade da licença é transferida ao usuário. Modelos de negócios regidos pelo Direito Civil (e não pelo Direito Comercial), sem que haja transferência de titularidade sequer de cópias do software são as subscrições (assinaturas); os licenciamentos de uso por prazo determinado (mediante pagamento de mensalidades, anuidades, parcelas trienais, etc); e as operações SaaS (Software como Serviço), PaaS (Plataforma como Serviço) e IaaS, (infraestrutura como serviço), quando o contratante terá apenas o direito de usar o software, acessando a plataforma de desenvolvimento ou toda a Infraestrutura, além do próprio software. Quando o STF definiu a incidência do ISS no leasing financeiro e no lease back (RE 547.245, DJe 5/3/2010), o Min. Cezar Peluso afirmou: "as dificuldades teóricas opostas pelas teses contrárias [que definem serviço como obrigação de fazer] a todos os votos já proferidos vêm, (...), de um erro (...) não (...) apenas histórico, mas um erro de perspectiva, qual seja o tentar interpretar não apenas a complexidade da economia do mundo atual, mas sobretudo os instrumentos, institutos e figuras jurídicos com que o ordenamento regula tais atividades complexas com a aplicação de concepções adequadas a certa simplicidade do mundo do império romano, em que certo número de contratos típicos apresentavam obrigações explicáveis com base na distinção escolástica entre obrigações de dar, de fazer e de não fazer". No referido case, o Min. Joaquim Barbosa afastou a classificação das obrigações como critério a definir, numa dada atividade econômica, a incidência ou não do ISS: "[...] a rápida evolução social tem levado à obsolescência de certos conceitos jurídicos arraigados, que não podem permanecer impermeáveis a novas avaliações (ainda que para confirmá-los). Ideias como a divisão das obrigações em 'dar' e 'fazer' desafiam a caracterização de operações nas quais a distinção dos meios de formatação do negócio jurídico cede espaço às funções econômica e social das operações e à postura dos sujeitos envolvidos (e.g., software as service, distribuição de conteúdo de entretenimento por novas tecnologias)". Logo, as atividades in comercium não se aderem à classificação "dar, fazer e não fazer", ensina Alberto Macedo. Diferentemente das mercadorias, em que o dar fica limitado a uma ação e um objeto específico, tangível; nos serviços, cujas espécies ganham uma variedade cada vez maior, a atividade não se resume a uma única ação, e muito menos a um objeto, contendo diversas ações, as quais, sejam imediatas ou mediatas, ensejam utilidades, pelas quais paga o contratante do serviço11. No RE 651.70312, definiu-se que serviço é mais do que obrigação de fazer, sendo um bem imaterial usufruído pelo uso, a facilidade, a utilidade, que vêm com as licenças, as cessões de direito. Nesse sentido, eis o item 3 da Lista de Serviços: "3 - Serviços prestados mediante locação, cessão de direito de uso e congêneres". A verdade é que a autonomia financeira dos municípios é uma ideia cujo tempo chegou. O advento da Indústria 4.0, somada à demanda por cidades inteligentes13 e ao crescimento e consolidação de um robusto setor de serviços fizeram com que o ISS deixasse de ser uma utopia e passasse a significar dinheiro no caixa dos municípios. É a realização da antevisão da Constituição de 1988, no art. 156, III, que assegurou a autonomia financeira às municipalidades, num propósito transformador. E a Constituição levou às últimas consequências a necessidade de os municípios gozarem de autonomia financeira. Tanto que, segundo o art. 34, V, "b", a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para reorganizar as finanças da unidade da Federação que "deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei". Não bastasse, um dos princípios constitucionais sensíveis expresso na alínea "c" do inciso VII do art. 34 é o de assegurar a observância da "autonomia municipal". É um tributo ao passado. Referindo-se ao aumento da receita municipal na Constituição de 1946, o então deputado Aliomar Baleeiro anotou: "A isso se vem chamando a revolução municipal, e, em verdade, essa inovação terá a consequência política de abrandar o domínio que os governadores exerciam ilimitadamente sobre as populações do interior, deles inteiramente dependentes. Enfim, a Constituição foi assinada sobre o papel. Resta, agora, gravá-la em todos os corações e consciências". Victor Nunes, em seu "Coronelismo, Enxada e Voto", registrou: "Apertados por um lado pelo fisco da Nação, as províncias acabavam por espremer os municípios numa estreitíssima faixa tributária, que mal lhes permitia definhar na indigência". Mesmo Alcântara Machado, citado por Victor Nunes Leal, alertava: "Que fazem os Estados, premidos pelas circunstâncias? De uma parte, sacam desvairadamente contra o futuro, comprometendo o erário em ruinosas operações de crédito, de outra parte, invadem a esfera tributária, própria dos municípios, estancando as fontes de vida local... Reduzidas à pobreza pela União, os Estados, por seu turno, reduzem à miséria os municípios". E o triunfo dos municípios chega para somar, jamais para dividir. Não há qualquer razão para temer um esvaziamento da base tributária dos estados com a chegada da economia digital. Temos mais de 50 bilhões de dispositivos físicos conectados à Internet14. A chegada da Internet das Coisas (IoT)15 fará com que tudo tenha potencial de se transformar num hardware. Uma geladeira, um fogão, um carro, um relógio..., todos eles poderão integrar essa vasta economia digital. E não será apenas a IoT que poderá incrementar com mercadorias a realidade econômica. Klaus Schwab, do Fórum Econômico Mundial, anota: "As impressoras 3D, por exemplo, agora podem produzir quaisquer coisas, desde peças de motor até gêneros alimentícios e células vivas; com o surgimento da internet das coisas, podemos pedir aos nossos assistentes pessoais virtuais que desliguem as luzes da sala ou aumentem o aquecimento; robôs, drones e carros autônomos estão aprendendo a interagir com o mundo de forma cada vez mais natural"16. A conclusão não poderia ser outra. É inconstitucional a cobrança do ICMS em qualquer operação com software, já que essas atividades são passiveis da cobrança do ISS, pela lista anexa à LC 116/2003, conforme o art. 156, III, da Constituição Federal. Subscrever o comportamento desleal de alguns estados e do CONFAZ contra os municípios, entes constitucionalmente autorizados a cobrar o imposto devido nessas operações, que é o ISS, será como se, num ato de força, e em violação à Constituição, obrigássemos drones a se moverem como locomotivas a vapor. Um alinhamento raro de astros permitiu o encontro entre o século das cidades e a Quarta Revolução Industrial. Esse encontro representa as chances do florescimento de um mundo ainda virgem. Macular a Constituição para entregar essa aurora ao crepúsculo do ICMS realizaria a advertência de Raymundo Faoro, que, explicando como agem "os donos do poder", imortalizou seu pensamento com as seguintes palavras: "Em lugar da renovação, o abraço lusitano produziu uma social enormity, segundo a qual velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem". __________ 1 ADI 4623 (Min. Cármen Lúcia), da CNI, que questiona o art. 25, § 6º, da Lei 7.098/1998-MT. Cuida de diferenciação de créditos por alíquotas interna e interestadual de ICMS em razão de ser os bens destinados a uso, consumo ou ativo permanente e sobre a utilização de serviço cuja prestação se tenha iniciado em outro Estado e não esteja vinculada a operação ou prestação subsequente. A CNI alega: 1) violação aos arts. 19, III e 152, da CF, eis que o dispositivo atacado cria distinção tributária entre bens em razão de sua procedência; 2) violação ao art. 155, § 2º, I da CF, pois o dispositivo assegura o crédito do montante cobrado nas operações anteriores 'pelo mesmo ou outro Estado ou DF' ao passo que a norma atacada restringe o crédito em função de quem cobrou nas etapas anteriores, causando, assim, cumulatividade; 3) violação ao art. 155, § 2º, XII, c, da CF, que comete à lei complementar a disciplina do regime de compensação do imposto, matéria invadida pela norma estadual atacada, que ainda distingue em função da origem do bem. 2 Na análise da cautelar da ADI 1945, um dos fundamentos apresentados pelo Min. Nelson Jobim foi o de que deve incidir ICMS sobre os serviços de software, pois a Constituição prevê a incidência do imposto sobre energia elétrica. O Min. Ilmar Galvão pontuou: "Mas se não houvesse essa forma, jamais se cobraria ICMS sobre energia elétrica. Porque se diria que não é uma mercadoria que pode ser estocada em armazém etc". O mesmo fez o Min. Marco Aurélio: "Dir-se-á: tem-se a problemática da energia elétrica. Mas, quanto à energia elétrica, o próprio constituinte de 1988 versou a matéria. Tratou de forma específica porque, a rigor, não se poderia cogitar de circulação de mercadorias e de operação de circulação de mercadoria". Por fim, o Min. Moreira Alves: "Aqui há problema de aplicação analógica. Considerar que havia analogia...". De fato, o § 3º do art. 155 dispôs: "À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo [ICMS] e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País". 3 A Primeira Revolução Industrial foi "provocada pela mecanização da fiação e da tecelagem" e "se iniciou na indústria têxtil da Grã-Bretanha em meados do século XVIII". Entre 1870 e 1930, "o rádio, o telefone, a televisão, os eletrodomésticos e a iluminação elétrica mostraram o poder transformador da energia elétrica". Foi a Segunda Revolução Industrial. A partir de 1950, a teoria da informação e a computação digital "passaram por avanços revolucionários". Foi a Terceira. Agora, abriu-se o portal da Indústria 4.0, com a Quarta Revolução Industrial. O retrospecto é de Klaus Schwab, do Fórum Econômico Mundial. 4 "Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação"; "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre". 5 Reiterou que "os conceitos de direito privado não podem ser desnaturados pelo direito tributário, na forma do art. 110 do CTN, à luz da interpretação do art. 146, III, c/c o art. 155, II e § 2º, IX, 'a', da CF". 6 Relativamente a 2016, a dívida de Minas Gerais era dramática: 203% da Receita Corrente Líquida - RCL. 7 Na ADI 28 (Min. Sydney Sanches, DJ 12/11/93), o STF derrubou a Lei 6.352/88, do Estado de São Paulo, que criou o "Adicional de Imposto de Renda" (art. 155, II, CF). Tal tributo não pode ser instituído pelos Estados e DF, sem que, antes, a lei complementar nacional, prevista no caput do art. 146, disponha sobre as matérias de seus incisos e alíneas. 8 Global Innovation Index 2018. 9 Acemoglu, Daron. Robinson, James A. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Tradução Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 189. 10 RE 176.626 (Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T, DJ 11/12/98). 11 Como anota Alberto Macedo, "empresas de locação de automóveis, por exemplo, atuam no comércio, exercendo atividade econômica. Certamente desenvolvem suas marcas, e como o objeto de suas atividades (locação de automóveis) não são produtos, obviamente só podem ser serviços". MACEDO, Alberto. ISS - O conceito econômico de serviços já foi juridicizado há tempos também pelo direito privado. In: XII CNET - Direito Tributário e os Novos Horizontes do Processo. São Paulo: Editora Noeses, 2015, p. 21. 12 No RE 176.626 (DJ 11/12/98), registrou o Min. Sepúlveda Pertence: "As cláusulas desses contratos - voltadas à garantia dos direitos do autor, e não à disciplina das condições do negócio realizado com o exemplar - limitam a liberdade do adquirente da cópia quanto ao uso do programa, estabelecendo, por exemplo, a proibição de uso simultâneo do software em mais de um computador, a proibição de aluguel, de reprodução, de decomposição, de separação dos seus componentes e assim por diante". 13 Cidades inteligentes fazem intenso e qualitativo uso da tecnologia e da inovação na superação de seus problemas, pelo particular e pelo Estado. A internet, com bandas cada vez mais largas, e suas múltiplas possibilidades, atreladas a bilhões de dispositivos inteligentes, são peças centrais na constituição desses laboratórios. 14 André Marcelo Panhan, Leonardo Souza Mendes e Gean Davis Breda lembram que "no ano de 2020 serão cerca de 50 bilhões de dispositivos conectados à Internet e este crescimento será exponencial para as próximas décadas". Construindo cidades inteligentes / André Marcelo Panhan, Leonardo Souza Mendes, Gean Davis Breda. 1ª ed. Curitiba: Appris, 2016, p. 64. 15 Klaus Schwab apresenta a IoT como o "elemento central da infraestrutura da Quarta Revolução Industrial". E explica: "Trata de uma gama de sensores inteligentes conectados que coletam, processam e transformam os dados de acordo com a necessidade; os dados são, então, enviados para outros dispositivos ou indivíduos para atender aos objetivos de um sistema ou usuário". Klaus Schwab, p. 148. 16 Schwab, Klaus, p. 56.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

STF em 2020: a cruz, a espada e as colunas

Em 1899, o juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes registrou: "Não é completamente verdadeiro que na realidade prática (e eu não conheço razão alguma pela qual a teoria deveria estar em desacordo com a realidade dos fatos) uma dada palavra, ou até determinada combinação de palavras, tenha um só significado e nenhum outro. Qualquer palavra tem geralmente vários significados, inclusive no dicionário". Holmes sabe o que diz. Merece crédito. E se as palavras têm múltiplos significados, como ele afirmou, muito mais possibilidades há na interpretação dos símbolos, especialmente aqueles que adornam a atmosfera das Supremas Cortes. Se os artistas, os escultores, os arquitetos e todos os tantos agentes responsáveis por imortalizar prédios incutiram em suas criações certos sentidos, somos nós, os senhores e senhoras do hoje, que devemos decidir quais significados nós iremos lhes conferir, nessa que é a jornada do nosso tempo, a era que já chegou. Thomas Jefferson, referindo-se ao originalismo enquanto tabu hermenêutico, disse que "a Terra pertence aos vivos" e que "os mortos não deveriam governar os vivos". Ele foi um homem que preferiu viver a verdade e percorrer o caminho. Não simplesmente escreveu livros ou fez discursos. Ele se tornou o próprio conteúdo dos livros, o tema central dos mais relevantes discursos. Por quê, então, não podemos dizer o mesmo quanto aos símbolos que compõem a nossa Suprema Corte? Há de residir em nós o poder de ressignificá-los à luz das nossas aspirações cívicas, enquanto cidadãos constitucionais que somos. Símbolos têm poder. E, com o poder que têm, se impõem sobre as pessoas, dirigindo seus comportamentos, ainda que contra suas vontades. Não é diferente no Supremo Tribunal. Na capital Federal, Brasília, desde 21 de abril de 1960, o edifício-sede fica na Praça dos Três Poderes, obra do arquiteto Oscar Niemeyer, com projeto original de Lúcio Costa. É um prédio público repleto de símbolos. Primeiro, a espada. Na entrada da sede está a estátua que personifica a Justiça, do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti, em granito de Petrópolis e pedra monolítica. A Deusa, vendada e sentada em seu trono, empunha com a mão direita uma espada. Com a ponta dos dedos da mão esquerda, ela confere o quão afiada está a lâmina. Esse foi o símbolo escolhido para, diante dos olhos de todos os que entram e saem do Tribunal, representar a jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal. O próprio site da Corte explica: "Em primeiro lugar, a espada é o símbolo do estado militar e de sua virtude, a barreira, bem como de sua função, o poderio. O poderio tem um duplo aspecto: o destruidor (embora essa destruição possa aplicar-se contra a injustiça, a maleficência e a ignorância, e por causa disso, tornar-se positiva); e o construtor, pois estabelece e mantém a paz e a justiça (CHEVALIER, 2002, p. 392). É aplicada contra a injustiça, maleficência e ignorância. Tornando-se positiva, ela estabelece e mantém a paz e a justiça. De acordo com Udo Becker (1999, p. 101), quando associada com o símbolo da Justiça, simboliza a decisão, a separação entre o bem e mal, sendo misericordiosa com o primeiro e golpeando e punindo o segundo. É a força máxima para punir o culpado e perdoar o inocente. (BECKER, 1999, p. 101)".1 Segundo a descrição oficial, a espada mostra uma Justiça constitucional misericordiosa com uns e cruel com outros, punindo e golpeando, se preciso for. Esse elemento termina por habitar as moradas sem trancas do nosso inconsciente. Acontece que a jurisdição constitucional exercida por uma Suprema Corte não deve expressar o poder, mas moderá-lo, pacificamente, zelando pela sua autoridade. O Preâmbulo da Constituição brasileira nos reconhece como uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias". Somos da paz, não da guerra. Na ordem interna, e na internacional, primamos por soluções pacíficas. Logo, longe de impor cegamente o seu poder, sentada num trono, de posse de uma espada amolada, selecionando pessoas para misericórdia ou punição, o que se reclama de uma jurisdição constitucional humanista é a capacidade de, por meio da sua autoridade, inspirar em nós o que Abraham Lincoln chamava de "os anjos bons da nossa natureza". Ressignificando a espada, fomos capazes de construir uma fórmula original, criativa, a partir da qual passamos a convidar as pessoas a se sentarem juntas, numa mesa redonda - sem cabeceiras -, para olharem reflexivamente para os seus conflitos e, de boa-fé, e com esforço sincero, renunciarem reciprocamente a questões individuais na busca de uma solução coletiva. Como diz o min. Ayres Britto, "uma saída para chamar de nossa".2 Falo das conciliações no STF. A Suprema Corte tem, por meio das conciliações, ressignificado a estátua da Justiça. Levantando a venda para olhar para a angústia das partes, suas expectativas e frustrações, ministros e ministras têm se colocado no lugar do outro, e, sem saírem de sua condição de julgadores, passam a interagir mais em busca de soluções construídas ali, premidas pela realidade, como fazem os bons artesãos. O Tribunal se levanta do seu trono e, de pé, percorre o caminho que precisa ser percorrido. A estátua da Justiça alcança o estado da arte na sua ressignificação ao abrir mão da espada, para que não mais divida as pessoas em merecedoras de misericórdia ou de punição. Humanista e contemporânea, guiada por uma Constituição que é uma heroína generosa, ela passa a, sem espada, de pé, e olhando nos olhos dos que vindicam justiça, convidá-los a, sentados numa mesa sem lugares marcados, nem posições mais elevadas do que as de outros, refletirem, juntos, sobre suas condições, abrindo caminho para a construção mais humana, pessoal e sincera de soluções individualizadas. Aglutinando conciliações e acordos supervisionados, o STF deu novo sentido à jurisdição constitucional brasileira, apresentando ao mundo algo original, que pode até encontrar paralelos em outras jurisdições - como o engajamento significativo sul-africano -, mas que, como sabemos, é fruto de um jeito de ser que é único. Um jeito de ser consistente na máxima: "é conversando que a gente se entende". A expertise nasce com o requinte brasileiro e, na realidade diária de uma prática intensa, já é robusta o suficiente para ser apresentada, com orgulho, ao constitucionalismo global. Mas não é apenas a espada postada na entrada do STF que precisa ganhar um novo significado. O Crucifixo do plenário também. "A arte existe porque a vida não basta". Foi Ferreira Gullar quem disse. No plenário do STF, há uma obra de arte formada pelo painel com relevo em mármore repleto de nichos triangulares de autoria de Athos Bulcão. Os nichos têm três camadas, como três são as instâncias judiciais. Cobrem a parede, estando neles o Brasão de Armas Nacionais, e, num nicho maior, o Cristo Crucificado em madeira pau-brasil, do escultor Alfredo Ceschiatti. A nossa história é feita de cruzes e árvores. Os colonizadores chamaram Terra (ou Ilha) de Vera "Cruz". Preferimos "Brasil", a árvore cujo vermelho interno, de tão intenso, parece um braseiro. Uma interpretação respeitosa da Constituição veria, pregado simbolicamente em toras de pau-brasil, a pessoa que não contou com um julgamento justo nem com as virtudes do caráter contramajoritário da jurisdição constitucional. Tanto que nada há nas turmas do STF, órgãos que não declaram a inconstitucionalidade de leis. Uma pessoa simples se opôs ao poder valendo-se dos direitos fundamentais e terminou sentenciada pelas vozes das ruas. Queria um juiz ou juíza independente para apreciar o seu caso. Terminou diante de alguém que, lavando as mãos, ordenou que o povo, gritando, proferisse um veredito. São episódios como esse que o constitucionalismo contemporâneo visa a impedir. O caráter contramajoritário da jurisdição constitucional existe para impedir que multidões apaixonadas sejam as responsáveis pelo destino de minorias isoladas, de grupos vulneráveis, de indivíduos amedrontados ou esmagados pela força irrecusável dos poderosos. Aquela obra de arte chama a atenção dos ministros e ministras do STF para isso, para a grave responsabilidade que é estar ali. A peça artística que combina o réu com as toras de pau-brasil, cujo vermelho intenso tanto pode remeter-nos para o nosso sangue, como para o sangue derramado pela nossa colonização extrativista em desfavor da Mãe-natureza, realiza o inciso IX do art. 5º da Constituição, que diz ser "livre a expressão da atividade artística". É um bem material portador de referência à identidade, à ação, à memória de um grupo formador da sociedade brasileira, sendo uma "forma de expressão", uma "criação artística" e um "objeto destinado à manifestação artístico-culturais". Tudo conforme os incisos do art. 216 da Constituição Federal. Em outras Supremas Cortes, o espaço para a criatividade humana na construção de símbolos expostos ao público tem sido como deve ser: livre. A Menorá judaica está na Suprema Corte de Israel. Na Coreia do Sul, o yin-yang está na Corte Constitucional, convidando não à religiosidade, mas a sentir o fluxo de forças opostas da natureza, como a luz e a escuridão. Na África do Sul, o plenário imita uma floresta. Na Nova Zelândia, recria o cone de semente da árvore Kauri, popular no país. No Brasil, foi o pau-brasil que foi lembrado para, de uma forma original, exortar o STF a se manter sempre vigilante ao seu caráter contramajoritário, a jamais lavar as mãos, muito menos se guiar em atenção ao que pede a massa que forma as maiorias postadas por aí, gritando e ordenando: "crucifique-o!", numa ação que metaforicamente pode ser associada ao duelo histórico entre maiorias e minorias. A peça de arte de Ceschiatti convida-nos a emprestar-lhe significado. De fato, somos capazes de ressignificar o legado dos nossos antepassados. A arte é assim. Cabe a nós fazê-lo em sintonia com a Constituição. Por fim, as colunas. As linhas arquitetônicas de Oscar Niemeyer dão o tom do STF. Nas colunas de sustentação do prédio da Suprema Corte, há linhas retas na parte externa e linhas curvas no desenho interno. Uma ao lado da outra. Ambas, juntas, mantêm o prédio de pé, dando-lhe conformação, imortalizando-o. É dessa alquimia que nasce a jurisdição constitucional. A missão do STF em 2020 há de ser, por meio dos seus membros, cultivar o equilíbrio entre o Direito e a Justiça, à luz da Constituição. Sem ambos, a estrutura rui, tudo desmorona. A Corte não deve ser temida, mas respeitada, ela não deve exalar poder, mas autoridade e de suas decisões não há de brotar indiferença, mas esperança. O Direito e a Justiça, juntos e em harmonia, são poderosos parâmetros de funcionamento de uma Casa que nasceu para traçar destinos nacionais. No Direito, como na Vida, o essencial é reconhecer os polos e, com sabedoria, mantê-los em harmonia, para o bem do todo. É como combinar razão e sensibilidade. Um elemento alimentando o outro, em nome da unidade que se almeja alcançar. Quando o Direito dizia que a pena era de morte, ele próprio, o Direito, deixava aberta a via da Justiça para que o juiz, por razões de humanidade, convertesse a pena capital em prisão perpétua. E ele o fez, livrando da morte pessoas como Nelson Mandela, um líder essencial para a promoção do reencontro da África do Sul com ela mesma, décadas depois. Direito e Justiça. Não foi diferente em Israel. Lá, o Direito dizia que não havia uma Constituição, mas a Justiça fez com que a Suprema Corte entendesse que onde houver uma lei, mesmo que ordinária, dispondo sobre a liberdade e a dignidade das pessoas, haverá, materialmente, uma Constituição. Dessa exegese nasceu uma Constituição material que consolidou um oásis de democracia no oriente médio. Direito e Justiça novamente. No Brasil, a Constituição usou a expressão "homem" e "mulher" ao dispor, num comando, sobre a família. Era a redação do Direito. Mas a Justiça enxergava além. Quando olhava para o dispositivo, a Justiça enxergava "seres humanos". Que em 2020 haja, no STF, a imaculada harmonia entre as linhas retas e curvas, entre o Direito e a Justiça, para que, juntos, unidos em nossa diversidade, vejamos a chama da nossa democracia constitucional queimar ininterruptamente, vitalizando, com a sua luz, os compromissos firmados pelos nossos antepassados na Constituição de 1988, que sempre serão, pelas gerações presentes, reafirmados de modo ainda mais generoso. A cruz, a espada e as colunas. Há muito poder nesses símbolos. Nós, conscientes que somos do fundamental papel que exercemos na jurisdição constitucional de uma democracia aberta, tolerante e inclusiva como a brasileira, podemos dar-lhes os significados do nosso tempo, todos harmônicos com a Constituição, porque, no fundo, nós, e apenas nós, o povo, somos o poder. E jamais deixaremos de ser. ____________ 1 Disponível em: clique aqui. 2 Disponível: clique aqui.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Sobre estrelas, turmalinas e a Constituição

Todos aqueles que entregam suas vidas para a elevada tarefa de interpretar textos jurídicos deveriam ler a obra "H. Stern: a história do homem e da empresa", da jornalista Consuelo Dieguez, publicada pela Editora Record. É um material profundamente estimulante aos humanistas. Há dor, beleza, desafios e triunfo. Há muita sabedoria também. A obra não fala exatamente sobre pedras, mas como se faz arte a partir delas. Não apresenta um empresário somente, mas um judeu alemão refugiado que se tornou um apaixonado pelo Brasil. Não descreve episódios esparsos, pois o que faz é revelar uma rica biografia. Não constrói narrativas. Apresenta os fatos e eles, de tão marcantes, cantam por si. Traz uma mensagem que toca, transforma e merece ser levada adiante. O véu inaugural cai com o capítulo "Noite dos Cristais", em alusão à madrugada de 9 para 10 de novembro de 1938, na Alemanha nazista. O engenheiro Kurt Stern está recostado em uma das mesas do escritório da sua empresa de instalações elétricas industriais, na cidade de Essen, na Renânia do Norte-Vestfália. Seu filho, Hans, de 16 anos, está de pé, com o rosto colado numa grande janela envidraçada. São judeus alemães. Consuelo Dieguez rememora: "O saldo daquela noite de terror por toda a Alemanha foram 815 empresas totalmente destruídas e 7.500 saqueadas; 119 sinagogas incendiadas e mais 176 completamente destruídas; 20 mil judeus presos e levados para campos de concentração; outros 36 gravemente feridos e mais dezenas deles mortos por assassinato ou chacinados quando tentavam escapar do fogo". A escritora segue expondo as faces do mal: "O governo do Terceiro Reich não só ignorou a violência - que secretamente estimulara através de instruções aos líderes da SS - como decidiu impor uma descabia penalidade à comunidade judaica. Através de um bizarro comunicado do Ministério da Fazenda, os judeus foram avisados de que seriam responsabilizados pelas pilhagens e destruição de suas próprias propriedades, 'em virtude de seus crimes abomináveis'".1 Gustav, pai de Kurt e, portanto, avô do jovem Hans, tinha uma linda casa, em Nassau, cidadezinha de veraneio entre Frankfurt e Wiesbaden, estação de águas onde a alta sociedade alemã se divertia. Era um chalé de três andares, com floreiras sob as janelas brancas que se abriam para um jardim gramado, sombreado por árvores frondosas que, na primavera, ficavam carregadas de flor. Na parte de trás do chalé, havia um imenso pomar onde Hans, criança, colhia maçãs. Depois da madrugada de terror da Noite dos Cristais, autoridades nazistas comunicaram a Gustav que sua casa seria confiscada. Desolado, ele suicidou-se.2 Com a escalada do terror, a solução foi deixar o país. A família Stern parte para o Rio de Janeiro, de navio. Numa carta que enviou aos amigos, na Alemanha, Hans divide as emoções da chegada: "E, ao aparecer o símbolo do Rio, o Pão de Açúcar, sabia que não demoraria muito e eu seria um homem livre, uma emoção que não pode ser compartilhada depois de tudo o que sofri".3 "Eu seria um homem livre". No primeiro registro que fez sobre o Brasil, aquele jovem imortalizou a liberdade. A mesma liberdade prevista no Preâmbulo da Constituição de 1988 e que, pelo caput do art. 5º, parecia destinada a pessoas como ele: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Hans foi, por muito tempo, um "estrangeiro residente no país". Enquanto a Alemanha nazista privava pessoas como ele de tudo, até da própria vida, pelo mero fato de serem judeus - mesmo sendo, os Stern, alemães -, a Constituição brasileira de 1988 olha para o estrangeiro que aqui reside e entrega a ele a base da existência civilizada: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. Não bastasse, elege como um dos objetivos fundamentais da República "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, IV). Tudo o que os Stern queriam, naquele momento sombrio da história, era cumprir a vida dispondo dos direitos como esses assegurados pelo art. 3º, IV da Constituição de 1988, que cuida, acima de tudo, da vedação a preconceitos e discriminações. Por isso o Brasil era para eles mais do que um esverdeado belo, exótico e um tanto selvagem. Seria o local onde ele viveria a vida em abundância. Tudo com liberdade, que hoje se desdobra no inciso XLI do mesmo art. 5º, ao dispor: "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". Também no inciso LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Tempos depois, vieram os tesouros. "Dos duzentos pacotes cuidadosamente embalados na Alemanha, apenas vinte estavam intactos. ... a parte do carregamento que eles aguardavam com mais ansiedade - a biblioteca da família, que incluía uma coleção de livros raros e o acordeão de Hans - chegara intacta"4, anota Consuelo Dieguez. Livros são o início, o fim e o meio. Sequer impostos podemos lhes impor. É vedado, como sabemos, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão (art. 150, VI, "d" da Constituição). A família Stern entregou suas esperanças a eles. Em 1939, todavia, para se sustentar, tiveram de vendê-los. A livraria Kosmos, no Centro do Rio, tornou-se uma grande compradora daquelas obras sobre temas variados - de romances e ensaios filosóficos a tratados científicos.5 O livro de Consuelo Dieguez mostra que Hans Stern teve de se virar cedo. "Pela manhã e à tarde, trabalhava no armazém do tio. À noite, dedicava-se à filatelia."6 Em pouco tempo virou gerente do departamento de organização interna, criado para ele, com dois funcionários à sua disposição.7 Não era raro que se esquecesse de almoçar. "Trabalhava de oito a dez horas por dia, fora as quatro horas que perdia com o transporte de ônibus e bonde para ir e voltar do trabalho". Exercia o direito contemplado no inciso XIII do art. 5º da nossa atual Constituição: "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Muito da obra revela a relação sublime entre Hans Stern e seu pai, Kurt. Um hiato de tristeza, todavia, se deixa conhecer quando Kurt foi convidado para dirigir uma usina hidrelétrica em Parnaíba, Piauí. "Aceitou a proposta por absoluta falta de opção. Com seu português precário, tinha dificuldades em se empregar e não podia se dar o luxo de recusar trabalho"8, explica Consuelo Dieguez. O dinheiro que mandava de Parnaíba viabilizara a mudança de Hans e da mãe da pensão onde moravam para um apartamento de quarto e sala na travessa Santa Leocádia, em Copacabana. Cobria a maior parte das despesas.9 A vida de Kurt em Parnaíba não era fácil. Contava com poucas pessoas com quem podia conversar em alemão e ganhava apenas o suficiente para viver e sustentar a mulher e o filho no Rio com o mínimo de decência. Jamais se queixou. Tinha feito alguns amigos e gostava de ajudar a comunidade onde vivia com seus conhecimentos de engenheiro. Virara, em Parnaíba, "uma simpática autoridade".10 Tempos depois, em 15 de agosto de 1942, já decidido a voltar para o Rio de Janeiro, algo impensável lhe ocorre. O Baependi, embarcação brasileira de passageiros e carga, fora torpedeada por um submarino alemão, deixando um saldo de 270 mortos. Imagens mostravam corpos queimados e desmembrados, rostos endurecidos com expressões aterrorizadas, bebês e crianças com as faces enterradas na areia. Um horror. Posteriormente, mais quatro navios seriam atacados na costa nordestina pelo mesmo submarino, provocando a morte de mais de mil pessoas. Getúlio Vargas declarou guerra às potências do Eixo, na manhã do dia 22 de agosto. Cidadãos alemães, italianos e japoneses começaram a ser presos no Brasil, assim como fechadas as empresas desses países, e todos os seus bens confiscados pela polícia do Estado.11 Kurt estava em sua sala, na sede da usina elétrica, esvaziando as gavetas, quando um grupo de policiais armados o levou para a cadeia, em Teresina. Lá, foi trancado em uma cela com outros dois alemães. Os inimigos do Estado, além de Kurt, eram: um padre católico e o cônsul da Alemanha no Piauí. Kurt, de judeu fugido da Alemanha, se viu, no Piauí, na condição de preso como suspeito de "atividades antibrasileiras".12 Indignado, Hans enviou um telegrama ao governador do Piauí, explicando a diferença entre um alemão e um judeu refugiado alemão. O pai foi solto dias depois. Kurt sempre se lembraria, às gargalhadas, daquele episódio. Consuelo Dieguez anota: "a prisão fora amena. Ele e seus compatriotas passaram o tempo jogando skat, um jogo alemão de baralho, semelhante ao bridge, e tomando cerveja".13 Em 1944, Hans se naturaliza brasileiro14. Gozou de seus direitos numa plenitude, como hoje determina o art. 12, § 2º da Constituição: "A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição". É como se a Constituição dissesse: no Brasil, seja brasileira nato, seja naturalizado, todos têm o direito à felicidade. São, ambos, irmãos no seio da nação. Hans não era apenas um empresário. Era um homem que pensava o país. "O Brasil poderia prover o mundo inteiro com tesouros minerais, poderia alimentar com suas regiões de terras férteis toda a humanidade. Poderia..., se quisesse. Mas não quer", registrou. "Outra barreira era a precariedade da educação tanto básica quanto superior"15, disse mais adiante, deixando descoberta a sua fome por uma grandeza nacional. A Constituição brasileira prevê, no art. 6º, que a educação é um dos direitos sociais. O art. 23, V constitui como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios "proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação". Tudo isso numa Constituição que trouxe o Capítulo III, Seção I: "Da Educação", cujo art. 205 diz: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". É, de certa forma, o sonho sonhado por Hans. A desigualdade social igualmente o preocupava. "Mesmo no carnaval, a festa mais popular da cidade maravilhosa do mundo, ficava clara a marcante desigualdade entre classes"16, anotou. Interessante notar que a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais de regionais (art. 3º, III) não é apenas um dos objetivos fundamentais da República. A redução das desigualdades regionais e sociais constitui um dos princípios da ordem econômica (art. 170, VII) na Constituição do Brasil. A obra segue. O encontro entre Hans e as pedras se deu na Cristab S.A., uma empresa de exportação de cristais de rocha e de pedras de cor na qual começou a trabalhar. Ele "tinha inglês e alemão fluentes, além de um francês bastante razoável - conhecimentos fundamentais para uma forma exportadora - e uma datilografia irretocável". Logo foi promovido a gerente.17 Por ter um temperamento sério e responsável, além de enorme curiosidade, Hans foi encarregado de comprar pedras e cristais para a empresa. Maravilhou-se com a variedade e o colorido daqueles minerais que ele nunca imaginara que pudessem existir.18 Turmalinas, topázios, águas-marinhas e ametistas..., ele passou a selecionar, analisar e comprar as pedras, aprendendo a distinguir as mais bonitas, as mais perfeitas e as mais valiosas. Isso o entusiasmou bastante.19 Era, talvez sem saber, um hermeneuta, um intérprete, alguém cuja missão e vocação são, a partir de uma matéria-prima, às vezes bruta, interpretar a realidade morta e estática dando-lhe vida e movimento. Tempos depois, decidiu seguir o seu próprio destino. Por amor às pedras, vendeu por 200 dólares o seu acordeão. Com o dinheiro e mais um pequeno empréstimo bancário, abriu sua firma.20 Hans Stern trazia as pedras em consignação de lapidários e garimpeiros de Minas Gerais e as revendia no Eixo São Paulo, Porto Alegre e Salvador, além de exportá-las para os Estados Unidos. Passava muito tempo viajando, "em busca de novos clientes"21. Aos 27 anos, estava convencido de que as turmalinas verdes, rosas e azuis, os topázios dourados e as brilhantes águas-marinhas atrairiam os turistas americanos tanto quando o atraíram. Se para os nativos pareciam banais, para ele eram magníficas.22 Segundo o art. 20, IX, são bens da União os recursos minerais, inclusive os do subsolo. O art. 22, XII da Constituição dispõe competir privativamente à União legislar sobre jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia. O § 3º assevera: "O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros". Numa época em que não havia Código de Defesa do Consumidor, ele criou um "certificado mundial de garantia para suas pedras". Consuelo Dieguez anota: "O certificado era um instrumento absolutamente inovador no mercado brasileiro, que não deixava ao consumidor praticamente nenhum espaço para reclamação".23 Com a ideia, realizava, por antecipação, o inciso V do art. 170 da Constituição atual, que aponta como um dos princípios da ordem econômica "a defesa do consumidor". O livro mostra momentos em que a empresa precisou demitir pessoas. Ricardo, filho de Hans, ao fazer as demissões, tinha o cuidado de "procurar saber se a pessoa era a única empregada da família, se tinha filhos, problemas de saúde ou outro agravante".24 Faz lembrar o art. 7º, I da Constituição: "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos". Há mais elementos fascinantes nessa história. A H. Stern era - e segue sendo - uma empresa bem feminina. Para Kurt, pai de Hans, "as mulheres eram mais dedicadas, mais sérias e mais fáceis de lidar do que os homens". Conforme a empresa crescia, as mulheres foram ocupando cargos executivos.25 Vivia-se o que hoje está no inciso I do art. 5º da Constituição: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Também, do inciso XX do art. 7º, que dispõe serem direitos dos trabalhadores, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei". Mas não se tratava apenas de proporcionar empregos às mulheres. Hans vivia a verdade e percorria o caminho em tudo o que fazia. Consuelo Dieguez mostra que ele "se impressionava como os jornais noticiavam diariamente agressões contra as mulheres perpetradas pelos seus maridos, amantes e namorados. E não se conformava com o fato de esses casos violentos serem chamados de 'crimes de amor'".26 Trazia, dentro de si, como se fosse uma pedra preciosa abrigada no peito, o art. 5º, III da Constituição, segundo o qual "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". No fundo, o Brasil de Hans Stern é o descrito pelo preâmbulo da Constituição de 1988, formado por uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos". O livro também mostra que a H. Stern sempre oferecia algo novo ao mercado.27 Hans jamais opunha resistência às ideias dos mais novos.28 Uma vez mais abraçava um ideal constitucional atual. Como consta do Capítulo IV da Constituição, dedicado à Ciência, Tecnologia e Inovação, "o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação" (art. 218). Mais do que isso, há a liberdade de inovar, assegurada no inciso IX do art. 5º, que diz: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Se os brasileiros desprezavam suas pedras por considerá-las de menor valor, os estrangeiros se encarregavam de comprar grandes quantidades delas. E, ao transformar as pedras em joias, com ouro da melhor qualidade e acabamento de primeira, Hans conseguiu "provar para o mundo que chamar de semipreciosas as intensas águas-marinhas, os citrinos cintilantes, os topázios com paleta de cor infinita e as deslumbrantes turmalinas era uma heresia". Ele tratou de "abolir o termo e ao dizer que, da mesma forma que não existe uma pessoa semi-honesta ou semigrávida, não existe pedra semipreciosa".29 Amava verdadeiramente o Brasil. Não bastasse - e o que vimos até aqui já é extasiante -, a H. Stern nasceu cosmopolita. Houve um dia em que recebeu mais de mil turistas em um mesmo dia. Foi no carnaval de 1951.30 Num mundo de líderes e liderados que têm ojeriza ao estrangeiro, Hans, que soube o que era a xenofobia, recebeu-os de braços abertos. Tudo em sintonia com a Constituição atual, a exemplo do que diz o art. 207, § 1º: "É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei". Também, o art. 218, § 7º: "O Estado promoverá e incentivará a atuação no exterior das instituições públicas de ciência, tecnologia e inovação, com vistas à execução das atividades previstas no caput". Orientado por Kurt, Hans acreditava que a cultura da empresa tinha que ser a do comprometimento e da cooperação31. Acontece que hoje em dia, um dos princípios pelos quais se rege a República nas suas relações internacionais é o da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (art. 4º, IX). Nenhum funcionário jamais o viu levantar a voz ou destratar quem quer que fosse.32 A "única coisa que ele jamais perdoava era a desonestidade"33, anota Consuelo Dieguez. A obra mostra que a H. Stern montou uma área de recurso humanos, instituiu benefícios e criou uma fundação para os funcionários.34 Realizava, numa antevisão, o art. 6º da Constituição: "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". Mas, se há pedras, há pedreiras e o senhor Hans teve de enfrentar as suas. Em 1963, com dificuldades de caixa, o governo de João Goulart precisava aumentar a arrecadação federal. Colocou no comando do Serviço Federal de Prevenção e Repressão de Infrações contra a Fazenda Nacional (SFPR) da Guanabara, o general Francisco Saraiva Martins, o "general Saraiva".35 A H. Stern, de grande visibilidade, virou um dos alvos favoritos do militar. Logo a turma encarregada da fiscalização "formou uma gangue e transformou expropriações em um negócio rentável para o grupo".36 Certo dia, ao receber a decisão judicial que dava ganho de causa à H. Stern e determinava a devolução de mercadorias irregularmente apreendidas, o general voltou cedo com os fiscais para apreendê-las novamente. Um dos diretores da H. Stern, Stefan Barczinski, proibiu a entrada. Os funcionários, ao saberem da chegada dos fiscais, cercaram o prédio, impedindo que subissem. O general chamou uma tropa do Exército para invadir a H. Stern, em vários andares do prédio da avenida Rio Branco. Com a empresa ocupada, ligou para Leonel Brizola, seu amigo e então apresentador de um programa popular na rádio Mayrink Veiga, o Grupo dos Onze. Brizola, aos brados, chamava os donos da empresa de "espoliadores da nação".37 A obra de Consuelo Dieguez se desenvolve bem, chegando a informar que os quatro meninos de Hans casaram-se, tiveram filhos, separaram-se e casaram-se novamente. Roberto é pai de uma menina; Ronaldo, de dois rapazes e uma moça; Ricardo, de um rapaz e duas meninas; e Rafael, de duas meninas. Como dizem, a exigência para trabalhar na empresa é a seguinte: "dar duro e trabalhar de verdade".38 Hans Stern, apesar de tudo o que sofreu com o nazismo, jamais deixou de amar a Alemanha. Tanto que, após Israel, foi o segundo país a ter lojas da H. Stern quando elas se expandiram para além das Américas.39 Soube distinguir e perdoar. A obra começa e termina com a imaculada relação entre Hans e seu pai, Kurt. Fora o pai quem lhe transmitira valores "como respeito ao próximo, lealdade e capacidade de resistir". Com Kurt, Hans aprendera a apreciar "a vida, a música, a poesia e a literatura e a jogar xadrez".40 Uma carta prova isso. Nela, Kurt abre a correspondência tratando o filho assim: "Meu querido Hans, meu filho, meu amigo, meu fiel camarada das horas difíceis". A partir daí, oferece um punhado de pedras filosóficas preciosas repletas de sabedoria: "Um ditado de Goeth: 'A vida, seja como for, é bela'".41 "Não podemos esquecer a ambição de subir e melhor a situação." "Aja espontaneamente somente quando as coisas forem boas e, fora disso, com reflexão e retardo." "A honestidade e as atitudes decentes sempre devem vir em primeiro lugar, mesmo que, ao primeiro momento, pareçam desvantajosas." "Seja econômico, mas não mesquinho!" "Domínio de si próprio em todas as coisas." "Não deixe que nada se torne fanatismo!" "Nós, os humanos com certa instrução intelectual, necessitamos, para a verdadeira alegria da vida, de outra ferramenta, ou seja, da cultura e do aperfeiçoamento intelectual." "Esta esperança e a confiança firme nunca nos devem deixar, nem mesmo nas piores horas." "Estamos entrelaçados uns com os outros." "Se você se tornar um bom conhecedor dos homens, evitará desilusões, não ficará mais aborrecido com aqueles que lhe fazem maldades." "Amigos e amigas também fazem parte da vida daquele que não quer passá-la como um eremita, mas sim como um homem saudável, natural, que se alegra com a vida." "Não se esqueça de pensar sobre como poderá alegrar outra pessoa, seja pela personalidade, sociabilidade, camaradagem ou solicitude." "O conhecimento de que a vida é maravilhosa e a vontade de torná-la bela ajudarão você a ultrapassar as muitas horas desagradáveis que não são poupadas a ninguém."42 A carta foi escrita em Parnaíba, no Piauí, em 26 de agosto de 1940, por ocasião do aniversário de 18 anos de Hans. Foi o presente possível naquele momento da vida. Um presente de extraordinário valor. Kurt morreria em janeiro de 1964. Viveu para "o bom e o belo". Para ele, "o equilíbrio entre o hedonismo e a contemplação ornava com a arte de viver."43 A obra "H. Stern: a história do homem e da empresa", da jornalista Consuelo Dieguez, convida todos nós a entendermos por que o mundo é tão fascinado pelas estrelas. Estas existem para dar beleza àquilo que, sem sua presença, seria apenas enfado, vazio e escuridão. Estão, como podemos ver, sempre no topo, acima, no alto. Iluminam e fascinam. Vivemos a contá-las e a fazer desejos encantados pelo seu brilho. Não à toa, em alemão, a palavra estrela é traduzida para "Stern". Na manhã do dia 27 de outubro de 2007, foi a vez de Hans Stern partir, aos 85 anos de idade. Eis a declaração que abre a sua Carta-testamento: "Eu tive uma vida feliz". _______________ 1 Dieguez, Consuelo. H. Stern: a história do homem e da empresa. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 12. 2 Ibidem, p. 19. 3 Ibidem, p. 34. 4 Ibidem, p. 57. 5 Ibidem, p. 74. 6 Ibidem, p. 61. 7 Ibidem, p. 62. 8 Ibidem, p. 74. 9 Ibidem, p. 89. 10 Ibidem, p. 95. 11 Ibidem, p. 106. 12 Ibidem, p. 106. 13 Ibidem, p. 106. 14 Ibidem, p. 110. 15 Ibidem, p. 79. 16 Ibidem, p. 84. 17 Ibidem, p. 89. 18 Ibidem, p. 89. 19 Ibidem, p. 91. 20 Ibidem, p. 111. 21 Ibidem, p. 112. 22 Ibidem, p. 113. 23 Ibidem, p. 114/115. 24 Ibidem, p. 196. 25 Ibidem, p. 116. 26 Ibidem, p. 66. 27 Ibidem, p. 123. 28 Ibidem, p. 194. 29 Ibidem, p. 123. 30 Ibidem, p. 127. 31 Ibidem, p. 131. 32 Ibidem, p. 131.33 Ibidem, p. 132. 34 Ibidem, p. 141. 35 Ibidem, p. 149. 36 Ibidem, p. 150. 37 Ibidem, p. 151. 38 Ibidem, p. 255. 39 Ibidem, p. 153. 40 Ibidem, p. 74. 41 Ibidem, p. 97 42 Ibidem, p. 99. 43 Ibidem, p. 48.
segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O "ano miraculoso" da liberdade econômica no STF

Quanto às liberdades, não maldigam a Constituição. Nas disputas políticas mesquinhas, onde o messianismo populista - que apenas troca de cara - se embrenha sempre em busca de poder, a única inocente é ela, a Constituição. Apenas uma leitura apressada de seu texto justifica a conclusão equivocada de que ela é negligente com as liberdades. Pelo contrário. Não parece haver, em nossa história, uma Carta Fundamental que franqueou tantas liberdades como a Constituição Federal de 1988. Basta ver. A livre iniciativa é tanto um dos fundamentos da República quanto um dos princípios da ordem econômica (art. 1º, IX c/c art. 170, caput). É objetivo da República "constituir uma sociedade livre (...)" (art. 3º, I). Essa liberdade é inviolável (art. 5º, caput), para que dela gozemos quanto à manifestação do pensamento (art. 5º, IV), de consciência, crença e exercício dos cultos religiosos (art. 5º, VI), da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX), do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII) e da locomoção no território nacional em tempo de paz (art. 5º, XV). Não é pouca coisa. A associação profissional ou sindical há de ser livre (art. 8º), assim como a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos (art. 17) e o exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação (art. 34, IV). Também há de ser livre o exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação (art. 85, II). Liberdade em abundância. Um dos princípios da ordem econômica é a livre concorrência (art. 170, IV) e o parágrafo único do mesmo art. 170 dispõe: "É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei". E quanto à assistência à saúde? Ela é livre à iniciativa privada (art. 199). E quanto ao ensino? Ele também é livre à iniciativa privada (art. 209). A base normativa está aí. Não faltam comandos constitucionais exortando a um irrenunciável compromisso com as liberdades, desde que atendam, claro, as condições compatíveis com o gozo desse bem essencial. Esse é o risco no chão até onde a Constituição consegue ir. A partir desse ponto, entram os múltiplos elementos que têm o dever de converter essa normatividade em realidade, operando a alquimia do dever-ser para o ser. Nessa pedra de toque reside o segredo de toda e qualquer constitucionalização. Daí a necessidade da política, do empreendedorismo, da liderança, da segurança jurídica, do respeito aos contratos, da proteção ao trabalhador, do Judiciário independente, da democracia, e de toda a ordem de institutos e instituições que a civilização construiu sob sangue suor e lágrimas - na expressão de Winston Churchill - para reduzir ao máximo a dor e sofrimento coletivos, ampliando, assim, a felicidade do maior número de pessoas. No fundo, estamos falando do sentido da existência: ter uma vida boa, produtiva e feliz, guiada pela liberdade. Não tarda para associarmos liberdade com economia. Claro. Acontece que a vitalidade da economia de uma nação reclama um conjunto tão complexo de elementos, que não é justo dizer que a Constituição brasileira é inconstitucional porque a economia não vai bem. Vamos separar as coisas. O constituinte conferiu ao Congresso Nacional o poder de emenda, assegurando à posteridade os caminhos de transformação normativa que de tempos em tempos desafiam o tirocínio da nossa gente e dos nossos líderes. Acordemos cedo dispostos, durmamos tarde cansados e, com criatividade, vamos dar o nosso melhor com o que temos disponível. É desse tipo de aglutinação sincera que nascem as grandes transformações. "A alcatra está cara. Vamos fazer uma nova Constituição!". Não é sábio pensar assim. Diante desse mar normativo-constitucional de liberdade que banha todo o ordenamento jurídico brasileiro, sem privá-lo, claro, de suas responsabilidades com o coletivo, o Supremo Tribunal Federal abraçou o ano de 2019 como sendo uma espécie de "ano miraculoso" para as liberdades voltadas à atividade econômica. E não foi um ano fácil. Uma vez mais a Suprema Corte estampou as manchetes dos jornais, ocupou o horário mais nobre das emissoras de televisão, abarrotou os grupos de WhatsApp e pupulou na Internet com uma onipresença contra a qual nenhum dos demais poderes - Legislativo e Executivo - foi capaz de cogitar competir. O olhar menos atento dirá que a Suprema Corte atravessa uma crise. Questões como o chamado "Inquérito das Fake news" e o resultado acerca do novo julgamento quanto à prisão a partir da condenação em segunda instância dividiram o país e nos encheram de dúvidas. Apesar disso, não é justo nem verdadeiro afirmar que esses episódios definem os trabalhos do Supremo Tribunal Federal em 2019. Para o que muitos enxergam como uma "crise", outros veem uma real oportunidade de realização de comandos constitucionais essenciais ao nosso tempo. Os comandos que vitalizam a liberdade econômica são o mais extraordinário exemplo disso. Comecemos pelo mês de março. O ministro Alexandre de Moraes concedeu liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6071, suspendendo dispositivo da Lei nº 11.140/2018 (Código de Direito e Bem Estar Animal da Paraíba) que autoriza, no âmbito estadual, a punição de empresas agropecuárias que utilizarem técnicas de inseminação artificial. O ministro entendeu que o art. 59, IV, da Lei nº 11.140/2018 é inconstitucional por invadir a competência da União para editar normas gerais sobre produção, consumo e proteção ambiental (art. 24, V, VI e § 1º, da Constituição). Lembrou ainda que os entes da Federação podem editar normas mais protetivas ao meio ambiente. No entanto, não constatou evidência de que norma do Estado da Paraíba tenha incrementado o patamar de proteção firmado pela legislação federal. Também em março, o STF declarou a inconstitucionalidade de normas do Estado de Santa Catarina que estabeleciam obrigações contratuais às seguradoras de veículos. A questão foi analisada na ADI 4704, de relatoria do ministro Luiz Fux, julgada procedente por unanimidade. O entendimento foi de que as normas invadiram a competência privativa da União para legislar sobre direito civil, seguros, trânsito e transporte. Os artigos da lei estadual 15.171/2010, que foram declarados inconstitucionais, impunham uma série de condutas às seguradoras, entre elas a de arcar com reparos de veículos sinistrados não só em oficinas credenciadas ou referenciadas, mas em qualquer outra apontada pelo segurado ou terceiro prejudicado. A lei exigia também que as seguradoras fornecessem ao cliente certificado de garantia dos serviços prestados, além de instituir hipótese de "seguro obrigatório", ao determinar que as seguradoras não podem negar a contratação de seguro para veículos recuperados que tenham sido considerados aptos à circulação por órgão de trânsito responsável. Em abril, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista da ADI 4619, que questiona a lei 12.274/2010, do Estado de São Paulo, que dispõe sobre a rotulagem de produtos transgênicos. A relatora, ministra Rosa Weber, havia votado pela constitucionalidade da norma. Para ela, trata-se de norma incidente sobre produção e consumo com conteúdo relativo à proteção e defesa da saúde, matérias afetas à União, estados e ao Distrito Federal, nos termos do art. 24, V e XII, da Constituição. A vista do ministro Alexandre de Moraes sinaliza uma disposição de quem saber liderar uma divergência desse entendimento. Ainda em maio, foi fixada a tese do Tema nº 967 (RE nº 1.054.110): "I - A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência; II - No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF/1988, art. 22, XI)1". Liberdade econômica. Liberdade de iniciativa. Livre concorrência. Tudo junto. Em agosto, a Suprema Corte invalidou norma do Estado da Bahia que proibia a cobrança de taxa de religação de energia elétrica em caso de corte de fornecimento por falta de pagamento (ADI 5610). O ministro Luiz Fux verificou que a lei estadual 13.578/2016 afrontou regras constitucionais que atribuem à União a competência para explorar, diretamente ou por seus concessionários, os serviços e instalações de energia elétrica (art. 21, XII, "b", da Constituição) e para legislar privativamente sobre energia (art. 22, IV). Segundo explicou o relator, os prazos e os valores para religação do fornecimento de energia encontram-se regulamentados de forma "exauriente" por resolução da Aneel. Em setembro, o STF deu início ao julgamento conjunto de duas ações que discutem a lei 11.442/2007, que regulamenta a contratação de transportadores autônomos por proprietários de carga e por empresas transportadoras, autoriza a terceirização da atividade-fim por essas empresas e afasta a configuração de vínculo de emprego nessa hipótese. Para o relator, ministro Roberto Barroso, uma vez preenchidos os requisitos dispostos na lei 11.442/2007, está configurada relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista. "A proteção constitucional não impõe que toda ou qualquer prestação remunerada de serviços configure relações de emprego", afirmou. O ministro também declarou que não há inconstitucionalidade no prazo prescricional para a propositura de ação de reparação de danos relativos ao contrato de trabalho, estabelecido no art. 18 da lei, pois não se trata de indenização decorrente de relação de trabalho, mas de relação comercial. Em outubro, por maioria, em sessão virtual na qual se julgou a ADI 5792, o STF declarou a inconstitucionalidade da lei 5.853/2017, do Distrito Federal, que assegurava ao consumidor a tolerância de 30 minutos para a saída do estacionamento após o pagamento da tarifa. Prevaleceu o entendimento do ministro Alexandre de Moraes, relator, no sentido de que leis estaduais que tratem da regulamentação de estacionamentos são inconstitucionais, por invasão da competência da União para legislar sobre Direito Civil (art. 22, I, da Constituição). Segundo o relator, a lei distrital interferia direta e indevidamente na dinâmica econômica da atividade empresarial estabelecida pelo proprietário do estacionamento e violava, assim, o princípio da livre iniciativa. Uma vez mais ela, a livre iniciativa, reluziu na ribalta dos acontecimentos jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal, nesse que foi o seu "ano miraculoso". Agora em dezembro, um pedido de vista do ministro Dias Toffoli suspendeu o julgamento da ADI 4914, que questiona lei do Estado do Amazonas que obriga as concessionárias a notificar previamente o consumidor, por meio de carta com aviso de recebimento (AR), da realização vistoria técnica no medidor de sua casa. A exigência faz parte do art. 1º da lei estadual 83/2010. O ministro Marco Aurélio, relator, votou pela improcedência da ação, por entender que se trata de norma de direito do consumidor, que tem o direito de ser avisado previamente da vistoria. Para ele, nesse caso, não há competência legislativa privativa da União, pois os estados têm competência concorrente quando se trata de edição de norma voltada à proteção dos consumidores. Foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski. O ministro Alexandre de Moraes, todavia, abriu divergência pela procedência da ação, entendendo que normas concorrentes que visem à proteção aos consumidores podem ser adotadas desde que não afetem as relações que integram o núcleo central da prestação contratual do serviço sob concessão. Segundo o ministro, ao criar para as empresas obrigações adicionais não previstas no contrato de concessão e impor ônus financeiro e sanções administrativas e pecuniárias em caso de descumprimento, a lei estadual adentrou direta e indevidamente a relação contratual. Acompanharam a divergência os ministros Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Ainda em dezembro, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da lei estadual 2.388/2018, do Amapá, que instituiu taxa sobre atividade de exploração e aproveitamento de recursos hídricos (TFRH). Por maioria, julgou-se procedente a ADI 6211. Prevaleceu o entendimento do relator, ministro Marco Aurélio, para quem a taxa, ao contrário do imposto, tem caráter contraprestacional, ou seja, deve estar atrelada à execução efetiva ou potencial de um serviço público específico ou, como no caso, ao exercício regular do poder de polícia. No caso do Amapá, em que a taxa é calculada em função do volume dos recursos hídricos empregados pelo contribuinte, os dados evidenciariam a ausência de proporcionalidade entre o custo da atividade estatal que justifica a taxa e o valor a ser despendido pelos particulares em benefício do ente público. O montante arrecadado, afirmou, seria dez vezes superior ao orçamento anual da secretaria de gestão do meio ambiente do estado. "Nada justifica uma taxa cuja arrecadação total ultrapasse o custo da atividade estatal que lhe permite existir", ressaltou o ministro Marco Aurélio. Semana passada, o ministro Celso de Mello suspendeu a eficácia da lei 16.600/2019, do Estado de Pernambuco, que proíbe a oferta e a comercialização de serviços de valor adicionado, digitais e complementares de forma onerosa ao consumidor quando agregados a planos oferecidos por empresas prestadoras de serviços de telecomunicações. O decano deferiu liminar na ADI 6199. Segundo o ministro Celso de Mello, a legislação estadual, ao impor obrigações às operadoras de serviços de telecomunicações com atuação em todo o território nacional, mostra-se em desacordo com a necessidade de promover e de preservar a segurança jurídica e a eficiência indispensáveis ao desenvolvimento das telecomunicações, que demanda "um regime jurídico coerente, uniforme, estruturado e operacional", além de violar a competência privativa da União para legislar sobre telecomunicações. Como se viu, se há um tema que contou com a atenção do Supremo esse ano foi a liberdade econômica. Isso, a partir de uma Constituição que abraçou, como se abraçasse o seu próprio destino, as liberdades. Nessas decisões, ao reafirmar o valor intrínseco das liberdades, a jurisprudência do STF faz com que as águas das possibilidades de empreendedorismo e inovação subam. Quando essas águas sobem, todas as jangadas se elevam. E, elevadas, as jangadas e seus jangadeiros têm condições de seguir levando seus propósitos de vida boa adiante. Que venha 2020. E que a marcha dessa virtuosa jurisprudência das liberdades siga o seu curso. A Constituição traz os parâmetros de aferição e correção de eventuais externalidades negativas. Não há o que temer. Bastar que a Suprema Corte, como um farol numa viagem escura, permaneça iluminando o caminho. __________ 1 O tema também foi objeto de julgamento na ADPF 449, julgada conjuntamente.