Caso Ramagem: Imunidade sem sentido
sexta-feira, 16 de maio de 2025
Atualizado às 07:27
A interpretação política e a jurídica de normas constitucionais não raro possuem direções diversas.
Não desconsidero que os graves fatos que envolvem os atos praticados no 8/1/23, bem como seu julgamento pelo STF, envolvem controvérsias por todos os lados. Um debate complexo e legítimo.
Contudo, o ponto central da reflexão que se inicia é uma crítica ao instituto da imunidade parlamentar, que condiciona o prosseguimento de uma ação penal movida contra um congressista, à vontade do parlamento.
A presente abordagem não contém, portanto, qualquer juízo de mérito frente a suposta culpabilidade de políticos - isso cabe à justiça averiguar, em atenção ao devido processo legal.
O que se coloca é que o instituto da imunidade formal, que blinda congressistas da persecução penal, parece incompatível com as características de uma república, em um cenário de separação autonomia e independência dos poderes estatais, sobretudo frente às características que dominam a política brasileira.
Aos fatos.
Segundo o § 3º, do art. 53 da Constituição Federal, compete às Casas Legislativas do Congresso Nacional a decisão sobre o andamento de ações penais promovidas no STF contra deputados ou senadores1.
Quis a Constituição, por força da EC 35/2001, que o Poder Legislativo tivesse a palavra final sobre a possiblidade de tramitação de uma ação penal no STF contra um membro do Congresso, configurando, assim, uma imunidade formal, de natureza processual.
O tema veio recentemente à baila no caso do deputado federal Alexandre Ramagem que, junto com outros acusados, figura na condição de réu na ação penal 2.668/DF2, que tramita perante o STF, no conjunto de processos que investigam os responsáveis pela tentativa de golpe de Estado e crimes correlatos, no episódio conhecido como 8/1/23.
Após o STF ter aceitado a denúncia contra o parlamentar, a Câmara dos Deputados aprovou uma resolução, com base no referido § 3º, do art. 53 da Constituição, determinando a sustação da referida ação penal movida contra o deputado3.
O dispositivo constitucional é cercado de várias polêmicas. A começar pelo quórum necessário para aprovar a resolução que susta o andamento da ação penal contra um congressista.
Em que pese o § 3º, do art. 53 da CF falar em maioria de votos - o que sugere o quórum de maioria simples, já que quando a maioria absoluta é exigida no processo legislativo a Constituição faz referência expressa neste sentido - há um julgado do STF que entende que a aprovação da resolução dependeria de votação pela maioria absoluta dos membros da respectiva casa (ADI 5.526)4.
Neste julgado o STF ponderou que a EC 35/2001 alterou substancialmente a redação do art. 53 da CF, revogando a necessidade de licença prévia para o processo contra parlamentares e possibilitando, somente para os crimes praticados após a diplomação, a sustação da ação penal por maioria absoluta dos membros da casa, desde que devidamente provocada por iniciativa de partido político nela representada.
Seja como for, o projeto que beneficiou Ramagem foi aprovado com 315 votos a favor do relatório, 143 contra e 4 abstenções, superando, com folga, o número mínimo de votos necessários (257 caso se considere a maioria absoluta, embora questionável)5.
Ao ser comunicada da resolução, a 1ª turma do STF, por unanimidade, suspendeu a ação penal movida contra o deputado6, exclusivamente, em face dos crimes supostamente praticados após a diplomação7, interrompendo a prescrição quanto a esses delitos.
Contudo, o tribunal manteve o curso do processo em face das acusações decorrentes de atos supostamente praticados antes da diplomação8, sob o argumento de que a regra constitucional de imunidade se aplica somente aos parlamentares no exercício do mandato, estando temporalmente relacionada com a diplomação, momento a partir do qual se presume que o parlamentar foi validamente eleito.
Contra esta decisão, a mesa da Câmara dos Deputados ajuizou, perante o STF, a ADPF 1.2279, requerendo a suspensão integral da tramitação da ação penal 2.668 em relação ao parlamentar.
Fica claro que a ampla composição da Câmara dos Deputados não deseja ver a ação penal prosseguir contra um dos seus pares.
É aqui que se coloca uma questão constitucional relevante: Qual é o sentido desta imunidade?
A crítica ao instituto da imunidade formal deve ser interpretada à luz da realidade da política brasileira, marcada por inegável clientelismo e barganhas por todo o lado. Uma cultura praticamente enraizada, de difícil remoção.
São atualíssimas as palavras de Raymundo Faoro, no clássico "Os Donos do Poder", quando alerta para o sistema de reciprocidade, que há muito marca a política nacional: "de um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça"10.
O tema das emendas parlamentares, que corrompem a lógica orçamentária do Estado, encaixa-se como uma luva neste aspecto11.
Em juízo de ponderação penso que, considerando a cultura preponderante na política nacional, as desvantagens do instituto superam as vantagens, pelo afastamento do espírito republicano que deve ser espelhado na separação dos poderes.
Não se nega, como reconhecido pelo próprio STF no julgamento da ADI 5.526, que as imunidades do Legislativo são garantias do poder e de uma instituição de Estado contra influências, pressões, coações e ingerências internas e externas. Devem, portanto, ser asseguradas para o equilíbrio de um governo republicano e democrático.
Também se reconhece que, desde a Constituição do Império até a presente, essas imunidades não dizem respeito à figura do parlamentar em si, mas às funções por ele exercidas, no intuito de preservar o Poder Legislativo de eventuais excessos ou abusos por parte dos demais poderes, consagrando-se como garantia de sua independência.
Em outras palavras, as imunidades não são uma garantia da pessoa que exerce o mandato, mas da própria instituição: o parlamento!
Portanto, ainda que as imunidades protejam o congressista no exercício de seu mandato eletivo, não se pode perder de vista a sua teleologia, que, repito, é a independência do Poder Legislativo.
Este é o motivo pelo qual a doutrina clássica afirma que as imunidades parlamentares estão universalmente vinculadas à proteção do Poder Legislativo e ao exercício independente do mandato representativo12.
O problema surge quando a Constituição passa a conferir ao Poder Legislativo a última palavra sobre o andamento de uma ação penal contra um membro do Congresso por força de um juízo meramente político - e não jurídico! Essa é a deturpação do instituto.
Quando um parlamentar é suspeito de cometer um crime comum, ao ponto de ser alçado à condição de réu perante o STF, a conduta aparta-se do exercício do mandato, não subsistindo motivos razoáveis para que a Casa Legislativa obstaculize o prosseguimento regular da ação penal.
Parte-se do pressuposto de que o exercício independente do mandato não é justificativa para a prática de crimes, motivo pelo qual a imunidade conferida pelo § 3º, do art. 53 da CF parece uma decisão constitucional equivocada.
Resta ao parlamento fiscalizar se ao réu está sendo garantida a presunção da inocência, o contraditório e a ampla defesa, tal como ocorre com qualquer pessoa que se coloca na condição de réu em um processo penal.
Mas sustar a ação penal por um motivo de natureza meramente política, parece algo temerário.
Se poderia contra-argumentar que a finalidade da referida imunidade seria evitar retaliações contra os congressistas por parte do Poder Judiciário, mas isso não parece fazer muito sentido, quando se leva em conta que, de uma forma ou de outra, após o término do mandato, os respectivos processos podem prosseguir, naturalmente.
É importante dizer que a ação penal 2.668/DF não versa sobre crimes contra a honra, nos quais, eventualmente, poder-se-ia colocar o argumento de inviolabilidade por opiniões, palavras e votos, mas sim sobre crimes mais graves, como organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
É como se a Constituição atribuísse um juízo político a um aspecto que não deveria ser político, mas sim jurídico, que é o enquadramento de uma pessoa, na condição de réu, pelo suposto cometimento de crimes comuns - e não de responsabilidade, como é o caso do impeachment do presidente da República.
Crimes comuns são aqueles, vale lembrar, que podem ser cometidos por qualquer pessoa, independentemente de ostentar cargos de autoridade.
Ao politizar algo que deveria ser apenas jurídico, a Constituição comete um equívoco, favorecendo a procrastinação dos processos, gerando desigualdade de tratamento e contribuindo, assim, para a impunidade.
Constituições que ampliam, de modo demasiado, a judicialização da política, provocam, por si próprias, o perigo típico dos desvios13.
Este é o ponto decisivo. Um crime comum não deveria ser analisado e julgado à luz de argumentos políticos, cenário em que não se fazem presentes situações caras ao contraditório e à ampla defesa, como as condicionantes de imparcialidade do juízo, que exigem medidas relativas ao impedimento ou a suspeição dos julgadores.
Todavia, quando o juízo é meramente político, tais características não necessitam ser observadas.
Basta perceber que na hipótese de um parlamentar ser alvo de processo penal perante o STF, caso familiares, amigos íntimos etc. fossem igualmente parlamentares, todos poderiam votar, igualmente, pela resolução a favor da suspensão do processo movido contra seus próximos, o que, em uma ação de natureza jurídica, seria algo inconcebível.
Ao que tudo indica, este embate entre a Câmara dos Deputados e o STF visa a gerar um precedente que permita aos parlamentares se protegerem no futuro contra eventuais ações penais. Interesse, portanto, predominantemente corporativo.
É bem provável que o deputado em questão seja apenas um pretexto, para se assegurar blindagem futura, em face de outros processos penais dirigidos contra congressistas.
Como lembrava o saudoso Raul Machado Horta, a interpretação da Constituição sofre o natural condicionamento do meio e da época. Fases tranquilas, dizia, não geram dissídios irremediáveis, enquanto os períodos de crise desencadeiam a carga emocional que perturba o raciocínio e compromete a serenidade14.
Ciente desta advertência, pondera-se que a partir do instante em que a Constituição permite que um deputado não possa ser processado por um crime comum, pela simples vontade dos seus pares, a partir de conveniências meramente políticas e corporativas, que desconsideram o contexto probatório produzido sobre as regras jurídicas vigentes, a mesma Constituição, que faz do republicanismo um dos seus maiores pilares, parece, em verdade, dele se afastar.
1 Art. 53, § 3º "Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação" (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001).
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 Disponível aqui.
7 Dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima e deterioração de patrimônio tombado.
8 Organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
9 Disponível aqui.
10FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. rev. Rio de Janeiro: Globo, p. 749s.
11 Disponível aqui.
12 HORTA, Raul Machado. Imunidades Parlamentares. Revista de Informação Legislativa, v. 4, n. 15/16, jul. - dez. 1967, p. 42.
13 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik. Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 137.
14 HORTA, Raul Machado. Imunidades Parlamentares. Revista de Informação Legislativa, v. 4, n. 15/16, jul. - dez. 1967, p. 47.