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Pressupostos para a democracia na lição de Böckenförde

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Atualizado às 07:33

Atualmente, parecem existir dois grupos no Brasil que se autointitulam salvadores da democracia. Quando se tem em mente que a democracia só pode ser salva por uma única visão de mundo, ou quando os fins passam a justificar todos os meios, é porque as coisas não vão bem. Nestas épocas, é sempre bom recorrer aos pensadores clássicos.

Ernst-Wolfgang Böckenförde (1930-2019) foi um dos mais influentes Professores de Direito Público da Alemanha. Chegou a ocupar uma das cadeiras do Tribunal Constitucional Federal alemão.

Uma de suas frases mais célebres foi: "o Estado liberal e secular vive de pressupostos que ele mesmo não pode garantir. Esse é o grande risco que ele assumiu em nome da liberdade."1

Com esse raciocínio, apontou para um paradoxo: a manutenção do Estado democrático liberal depende de valores que normalmente são originados fora da estrutura estatal, como solidariedade, responsabilidade, cidadania e coesão social. Todavia, esses valores não podem ser impostos pelo próprio Estado, sob pena de se contradizer, tornando-se autoritário.

Além disso, o problema jurídico que envolve a compreensão da Constituição, voltada à proteção dos valores que integram o núcleo da democracia liberal, diz respeito ao fato de que não existe um conhecimento racionalmente controlável do que seriam esses valores2.

Daí a importância de existir na sociedade um consenso mínimo em torno da Constituição e o que dela se pode esperar. Vale dizer: uma coesão em torno do essencial.

A busca desse consenso, na lição de Böckenförde, leva à conclusão de que existem pressupostos mínimos, sem os quais uma democracia funcional não pode se desenvolver, tampouco sobreviver às ameaças, cada vez mais perigosas.

Três se destacam.

1. Efetivação de condições socioeconômicas-culturais-educacionais.

Sem essas condições não é possível gerar um eleitorado? Uma cidadania? Forte e independente, apto a defender, de forma não seletiva, a vigência dos valores da democracia.

Historicamente, o Brasil tem dificuldades em eleger prioridades que se justifiquem, diante dos reais interesses da população.

Por relegarmos a educação a planos inferiores, não conseguimos construir um senso crítico na sociedade, capaz de construir uma representação política digna da grandeza do país.

De maneira geral, insistimos em valorizar nas urnas o que há de pior na política, pessoas que colocam o interesse próprio ou de corporações acima dos interesses gerais da sociedade, que fazem da política uma profissão, na busca de poder e enriquecimento.

Quando se enfraquece o sistema educacional em todos os níveis, esfarela-se o tecido social, gerando más decisões na condução do país, a começar pela economia. Aumentam-se as desigualdades, com a fragilização da própria cidadania.

2. Valores éticos mínimos.

Do ponto de vista individual são indispensáveis, já que sem eles não é possível desenvolver na coletividade virtudes cívicas e cidadãs, que sublinhem a necessidade de respeito ao próximo? inclusive perante os adversários políticos que pensam diferente.

É a partir desses valores que se desenvolvem o espírito público, a honestidade, a coesão, a coragem, a liderança, a responsabilidade individual e a adesão voluntária à legalidade, sem os quais a boa política, indispensável à realização do bem comum, não se torna possível.

Diante disso, devemos refletir: gostamos de criticar os políticos, mas se lá estivéssemos, também faríamos as mesmas coisas que reprovamos?

Ao nos omitirmos de fiscalizar melhor quem elegemos, de acompanhar mais de perto a atuação dos nossos representantes, de priorizar tantas outras coisas, não estamos contribuindo para piorar a qualidade de vida no país?

Sérgio Buarque de Holanda advertiu para um conjunto de situações que favoreceram o desenvolvimento de uma cultura patrimonialista no país, marcada pela imensa dificuldade, sobretudo para os detentores de posições públicas de responsabilidade, em compreender a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público.3

Quando a sociedade passa a dar atenção demasiada a influencers, às pessoas que propagam discursos de ódio, aos discursos rasos, ou os defensores seletivos da democracia - que só enxergam problemas nos adversários e são incapazes de visualizar os desmandos por parte daqueles que idolatram, é porque a sociedade está carente de valores éticos mínimos.

3. Instituições políticas minimamente adequadas.

As instituições democráticas são instrumentos de mediação entre diferentes classes e grupos. Quando elas falham, os diferentes grupos sociais passam a fazer política diretamente, cada um à sua maneira, potencializando a corrupção.

Abrem-se caminhos para as castas, que se apropriam da coisa pública em posição de superioridade.

As instituições devem ser capazes de atender às necessidades reais de cada época. Devem, portanto, ser capazes de dar o retorno para que uma ordem democrática e um Estado social possam funcionar a contento.

Insistir em uma má configuração das instituições políticas é o caminho para o caos, pois leva à formação de um círculo vicioso, de difícil recuperação.

Más instituições abafam o que as pessoas têm de melhor e, em contrapartida, potencializam o que elas têm de pior. É o que se costuma dizer com "era bom, mas acabou entrando no esquema".

Consequentemente, favorecem que pessoas de perfil inadequado cheguem ao nível da representação política, fortalecendo valores eticamente incorretos, que produzirão decisões contrárias aos interesses da população, enfraquecendo as bases socioeconômicas-culturais-educacionais, sem as quais a boa democracia não pode florescer.

De forma contrária, as boas instituições valorizam o que as pessoas têm de melhor, incentivando comportamentos positivos, o que qualifica a representação política e, naturalmente, a tomada de boas decisões.

Surge, assim, um círculo causal positivo, que fomenta os pressupostos socioeconômico-culturais-educacionais e, por reverberação, os valores éticos na sociedade, direcionados ao bem comum.

Não há como apostar em uma democracia quando a defendemos de forma seletiva, para agradar a grupos ou ideologias simpáticas, sem tenhamos um senso crítico quanto às nossas omissões ou quanto à incapacidade de determinados sistemas políticos tradicionais fornecerem bons resultados.

A boa configuração institucional é a chave!

Problemas constitucionais devem buscar respostas na Constituição e não na atividade política. O caminho contrário desacredita aqueles que assim agem4.

Se a Constituição não se mostra capaz de resolver graves problemas, contribuindo para aprofundá-los, que se aperfeiçoe a Constituição e, em uma situação crítica, que se a modifique em larga escala.

A mais difícil barreira que se ergue contra uma reforma institucional é que o seu sucesso depende da boa vontade de grupos e corporações que não possuem interesse em reformas.

Manter as coisas como estão é condição para permanência no poder e para acesso a privilégios e regalias que, sem a blindagem estatal, jamais seriam alcançáveis.

Retornando à lição de Böckenförde: se por um lado valores também precisam ser cultivados fora da estrutura estatal, por meio da família, da educação, das religiões e da própria cultura cívica dentro de um Estado laico, entre outros, por outro lado a própria ordem democrática, por sua natureza, não pode obrigar os cidadãos a crerem ou praticarem tais valores.

Este é o grande risco da nossa liberdade, que pode se autodestruir, caso os cidadãos não sustentem, por convicção, os valores que a mantêm viva.

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1 Böckenförde, Ernst-Wolfgang. Die Entstehung des Staates als Vorgang der Säkularisation. In: Böckenförde, Ernst-Wolfgang. Staat, Gesellschaft, Freiheit: Studien zur Staatstheorie und zum Verfassungsrecht. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976, p. 60.

2 Böckenförde, Ernst-Wolfgang. Staat, Verfassung, Demokratie. Studien zur Verfassungstheorie und zum Verfassungsrecht. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 51.

3 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 145s.

4 GRIMM, Dieter. Was ist politisch an der Verfassungsgerichtsbarkeit? Zeitschrift für Politik (ZfP), v. 66, nº 1. München: Nomos, 2019, p. 93.