O coelhinho da Páscoa e o FGTS
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Atualizado às 07:47
O FGTS surgiu em 1966 como alternativa ao sistema da CLT.
No regime original da CLT, o empregado demitido sem justa causa fazia jus a indenização equivalente a um salário por ano de serviço, salvo quando contasse 10 anos na empresa, hipótese em que adquiria estabilidade.
No modelo do FGTS, o empregador realiza depósitos mensais equivalentes a 8% da remuneração, em conta vinculada de titularidade do empregado. Na hipótese de demissão, ele levanta o montante acumulado acrescido de 40% (no início 10%).
Os dois modelos foram concorrentes (e excludentes) até a Constituição de 1988, quando o FGTS passou a obrigatório, independentemente de opção do empregado.
Além de manter o FGTS, a Constituição impôs a criação em lei complementar de regras de proteção contra a despedida arbitrária, que jamais foi promulgada (art. 7º, I). Enquanto a lei não surge, aplicam-se as regras do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (aí está, por exemplo, o aumento da indenização de 10 para 40%).
Nunca houve ambiente propício à regulamentação da despedida arbitrária. A disputa política dificulta o debate técnico e, por isto, surgiram apenas leis esparsas para situações específicas (vg. proteção contra dispensa discriminatória). Em tese, tendo a Constituição optado pelo modelo de "indenização compensatória", a lei deveria distinguir a dispensa puramente arbitrária da dispensa por motivos econômicos, técnicos ou disciplinares. Hoje, excetuada a justa causa (disciplinar), é devida a mesma indenização para qualquer tipo de rescisão por iniciativa patronal.
A omissão do legislador parece não incomodar os atores sociais, mas algo perturbador cresceu: o uso dos recursos do FGTS para escopos muito suspeitos.
A poupança forçada do FGTS tem sido sistematicamente remunerada abaixo da inflação, tanto assim que, em 2024, o STF, ao julgar a ADI 5090, passou a exigir no mínimo a correção inflacionária.
Desde 1966, aos poucos, a lei foi admitindo hipóteses de levantamento desvinculadas da rescisão contratual (vg. aquisição de moradia, doenças graves, aposentadoria). Como é um péssimo negócio manter o dinheiro em conta vinculada, tendem os empregados a levantá-lo sempre que possível.
Entra governo, sai governo, e o problema da atualização não é resolvido. Em paralelo, para injetar dinheiro no mercado (vg. privatizações na década de 90) ou para aumentar popularidade do governo, novas modalidades surgem de saque ou uso do FGTS.
Comprometendo a teleologia do sistema, a lei 13.932/19 introduziu a possibilidade de optar entre o "saque-rescisão" (tradicional) e o "saque-aniversário", permitindo o levantamento de parte dos depósitos no mês do aniversário do empregado.
É natural que muitos optem por esse novo mecanismo, mas não podem se esquecer de que são excludentes, ou seja, quem optou pela nova modalidade não pode levantar a integralidade dos montantes na hipótese de demissão.
A MP 1290/25, coincidentemente editada logo após notícias de piora na avaliação do Governo Federal, liberou para os já demitidos no regime de "saque-aniversário" o FGTS retido nas demissões. O montante gira em torno de impressionantes 12 bilhões de reais1.
Aspecto mais alarmante é o uso do FGTS como lastro em operações financeiras, o que é paradoxal: o empregado contrai empréstimo com juros e oferece seu FGTS em garantia. Ganha o mercado, perde o trabalhador.
Esta possibilidade existe desde 2019 para quem optou pelo "saque-aniversário"2. Agora, com a MP 1292/253, todos poderão usar o FGTS como lastro na modalidade do consignado "Crédito do Trabalhador". Desde o dia 25/4/25, os bancos podem oferecer a modalidade diretamente, sem passar pelo aplicativo do governo.
O tema ganhou visibilidade nas redes sociais com o anúncio de uma gigante do varejo convidando os clientes a usarem seu FGTS para aquisição de ovos de Páscoa. O que parecia uma brincadeira era, em verdade, estratégia de vendas confirmada pela rede: o incentivo a empréstimos ancorados no FGTS4.
Essas novidades são demagogicamente apresentadas como conquistas para os trabalhadores.
De fato, com o oferecimento da garantia, os juros podem ser inferiores à prática de mercado - essa é a propaganda feita pelo Governo. Preocupa a face oculta: além de o fundo se desviar de sua finalidade, o dinheiro permanece atualizado de forma ínfima, bem distante dos juros cobrados pelos bancos.
É preciso jogar luz sobre esses absurdos para que o sistema recupere sua racionalidade. Enquanto isso, tal e qual o coelhinho, a garantia do tempo de serviço persiste uma fantasia.
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