A reforma do CC e o testamento público - A inclusão das pessoas com deficiência
quarta-feira, 25 de junho de 2025
Atualizado em 24 de junho de 2025 12:48
Como tenho afirmado em textos, aulas, palestras e entrevistas, uma das linhas metodológicas seguidas pela Comissão de Juristas nomeada no Senado Federal para a elaboração do PL do CC foi a de reduzir as burocracias, destravando a vida das pessoas, o que se aplica ao testamento, um dos institutos civis mais burocráticos previstos na atual legislação privada.
Nesse contexto, no presente artigo veremos algumas sugestões relativas ao testamento público, aquele que traz maior segurança para as partes envolvidas, pois efetivado por escritura pública lavrada pelo Tabelião de Notas ou por seu substituto, que recebe as declarações do testador ou autor da herança.
Nos termos do art. 1.864 do CC em vigor, são seus requisitos essenciais, sob pena de nulidade absoluta: a) ser o testamento escrito por Tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo este servir-se de minuta, notas ou apontamentos; b) lavrado o instrumento, ser lido em voz alta pelo Tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial; e c) ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo Tabelião. Todos esses atos formais, sucessivos e simultâneos, engendram o que se denomina como princípio da unidade ou unicidade do ato testamentário.
Em complemento, dispõe o parágrafo único do dispositivo vigente que o testamento público pode ser escrito manualmente ou mecanicamente - v.g., por máquina de escrever antes, depois e atualmente por computador -, bem como ser feito pela inserção da declaração de vontade em partes impressas de livro de notas, desde que rubricadas todas as páginas pelo testador, se mais de uma (atual art. 1.864, parágrafo único, do CC).
Vale lembrar que, nos termos do antigo provimento 100 do CNJ, de maio de 2020 - depois incorporado ao seu CNN -, é possível realizar a escritura pública do testamento pela via digital ou eletrônica, desde que observados os requisitos de validade previstos na norma, com os seguintes atos: a) a realização de videoconferência notarial para captação do consentimento das partes sobre os termos do ato jurídico; b) a concordância expressada pelas partes com os termos do ato notarial eletrônico; c) a assinatura digital pelas partes, exclusivamente através do e-notariado; d) a assinatura do Tabelião de Notas com a utilização de certificado digital ICP-Brasil; e e) o uso de formatos de documentos de longa duração com assinatura digital.
Sobre a gravação da videoconferência notarial, deverá conter, no mínimo: a) a identificação, a demonstração da capacidade e a livre manifestação das partes atestadas pelo Tabelião de Notas; b) o consentimento das partes e a concordância com a escritura pública; c) o objeto e o preço do negócio pactuado; d) a declaração da data e horário da prática do ato notarial; e e) a declaração acerca da indicação do livro, da página e do tabelionato onde será lavrado o ato notarial. O desrespeito a qualquer um desses requisitos de validade, previstos atualmente no art. 286, parágrafo único, do CNN-CNJ, gera a nulidade absoluta do negócio jurídico, nos termos dos incs. IV e V do art. 166 do CC, que tratam do desrespeito à forma ou à solenidade.
O mesmo se diga quanto à necessidade de se observar a regra de competência do antigo art. 6.º do provimento 100, e atual art. 289 do CNN-CNJ, o que visa afastar práticas predatórias de mercado. Conforme esse comando, "a competência para a prática dos atos regulados nesse provimento é absoluta e observará a circunscrição territorial em que o tabelião recebeu sua delegação, nos termos do art. 9º da lei 8.935/1994".
Como tenho igualmente repetido, existe uma crítica profunda e bem fundamentada quanto ao tratamento desse tema por força de norma administrativa do Conselho Nacional de Justiça, pois a competência para legislar sobre o tema é do Poder Legislativo da União, por se tratar de tema de Direito Civil, afeito à forma e à solenidade dos atos e negócios jurídicos, nos termos do art. 22, inc. I, da Constituição Federal.
Para resolver esse problema, de invasão legislativa, o PL do CC pretende inserir todo esse tratamento a respeito das escrituras digitais e do e-notariado, que atualmente está no CNN-CNJ, no novo livro de Direito Civil Digital, a ser adicionado à codificação privada de 2002, o que virá em bora hora em prol da sempre necessária segurança jurídica.
Seguindo com o estudo do tema do testamento público, se o testador não souber, ou não puder assinar, o Tabelião ou seu substituto legal assim o declarará, assinando, neste caso, pelo testador, e, a seu rogo ou pedido, uma das testemunhas instrumentárias (art. 1.865 do CC). Assim, confirma-se a tese pela qual a pessoa analfabeta pode testar.
Mas não é só, pois, nos termos literais do art. 1.866 da lei civil, o indivíduo inteiramente surdo, sabendo ler, poderá testar. Em casos tais, lerá o seu testamento, e, se não o souber, designará quem o leia em seu lugar, presentes as testemunhas.
Também ao cego, no atual sistema e na redação atual da normatização privada, só se permite o testamento público (art. 1.867 do CC). O testamento lhe será lido, em voz alta, duas vezes, uma pelo Tabelião ou por seu substituto legal, e a outra por uma das testemunhas, designada pelo testador, fazendo-se de tudo circunstanciada menção no testamento.
Em boa hora, no PL do CC, como já adiantado, almeja-se uma funcionalização do instituto, reduzindo-se burocracias, incluindo-se as pessoas com deficiência - inclusive nas suas corretas denominações - e permitindo-se o uso de novas tecnologias, especialmente para esse fim.
Todas as proposições nesse sentido foram feitas à Comissão de Juristas pelo professor e promotor de justiça do Estado da Bahia Fernando Gaburri, de forma colaborativa e atuante, como participante da audiência pública em Salvador que antecedeu os trabalhos de elaboração do então anteprojeto, no ano de 2023.
Como não poderia ser diferente, foram elas acatadas integralmente, representando enormes avanços que estão sendo propostos para a codificação privada, hoje ausente e totalmente excludente quanto a esses temas relativos ao ato testamentário de última vontade das pessoas com deficiência.
Assim, com o propósito dessa inclusão, e dialogando perfeitamente com o Estatuto da Pessoa com Deficiência e com a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o art. 1.864 da lei civil passará a prever, como requisitos do testamento público: a) ser escrito e, também, gravado em sistema digital de som e imagem por Tabelião ou por seu substituto legal, de acordo com as declarações do testador, podendo este servir-se de minuta, notas ou apontamentos, ao tempo da manifestação da vontade; b) que o testamento escrito, depois de lavrado o instrumento, deve ser lido em voz alta pelo Tabelião ao testador ou pelo testador ao oficial em seguida à leitura; o instrumento será assinado pelo testador e pelo Tabelião, que deverá, obrigatoriamente, realizar a gravação do ato em sistema digital de som e imagem; e c) que a gravação em sistema digital de som e imagem será exibida pelo Tabelião ao testador, que confirmará, por escrito, o teor das declarações.
Pela mesma proposição, em seu § 1º, a certidão do testamento público, enquanto vivo o testador, só poderá ser fornecida a requerimento deste ou por ordem judicial. Ademais, conforme o projetado § 2º desse art. 1.864, caberá ao Tabelião fornecer todos os recursos de acessibilidade e de tecnologia assistida disponíveis para que a pessoa com deficiência tenha garantido o direito de testar, o que visa a sua tão citada e necessária inclusão na linha do que está assegurado no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Como outra proposta de caráter social indiscutível, o novo art. 1.864-A do CC passará a enunciar que os hospitais, as clínicas, os asilos, as casas de repouso ou os donos da residência em que esteja pessoa que não possa se movimentar, ambular ou deslocar-se não podem impedir o ingresso de oficiais que venham praticar atos notariais em suas dependências, cabendo ao Tabelião, quando solicitado, identificar-se perante o estabelecimento, ou perante os donos da casa, declarando com precisão quem os contatou e solicitou sua presença.
O estabelecimento fará constar por escrito, no prontuário do paciente, a ocorrência e dará ao oficial declaração, subscrita por médico, quanto à solicitação do Tabelião e quanto a eventual causa de proibição de o paciente receber visitas. Eventualmente, se entender necessário, o Tabelião solicitará a presença do médico que atende o declarante ou, na sua falta, trará médico de sua própria confiança para acompanhá-lo. Se a gravação para o testamento público, a juízo do Tabelião, expuser o declarante a especial constrangimento, será feita apenas para captar sua voz. A gravação de som e imagem será realizada se o declarante, informado pelo Tabelião, expressamente a consentir ou se se tratar de caso em que a gravação completa não possa ser dispensada.
O mesmo projetado art. 1864-A da codificação privada preverá que, ao lavrar o ato notarial solicitado, o Tabelião declinará na escritura todos os dados que permitam identificar quem o contatou e solicitou os seus serviços, o momento, o lugar e a forma como a manifestação de vontade foi colhida e a impressão que lhe causou o paciente, bem como alguma observação que o médico assistente tenha feito, a respeito do estado de saúde mental e da lucidez do declarante, bem como as razões pelas quais a gravação de imagem foi ou não realizada.
Como último dos seis parágrafos propostos para esse novo art. 1.864-A, se Tabelião notar alguma irregularidade que faça supor estar o idoso ou o paciente em condições de subjugação moral ou física, por parte de familiares, de cuidadores ou dos administradores do lugar onde se encontram internados, dará notícias desse fato às autoridades competentes.
Como não poderia ser diferente, espera-se a aprovação dessa nova norma, que atenderá plenamente aos interesses de pessoas vulneráveis, especialmente os idosos e as pessoas com deficiência, tendo sido formulada pela professora Rosa Maria de Andrade Nery, jurista com notória visão humanista, que foi a relatora geral do PL do CC.
O testamento em vídeo - um antigo pedido da doutrina especializada do Direito das Sucessões - também será uma opção para a pessoa analfabeta, passando o art. 1.865 da lei privada a prever que, se o testador não souber ler ou assinar, o testamento público será obrigatoriamente realizado mediante gravação em sistema digital de som e imagem e a assinatura será lançada na escritura pública pelo sistema digital.
Também no que diz respeito à pessoa com deficiência, a urgência de adaptação do CC frente ao Estatuto da Pessoa com Deficiência e à Convenção de Nova Iorque consta do novo art. 1.866 da codificação privada, com o seguinte novo texto e utilizando os termos corretos: "o testamento público da pessoa surda ou com deficiência auditiva, total ou parcial, será obrigatoriamente gravado em sistema digital de som e imagem".
Em complemento, conforme o seu § 1º, se essa pessoa souber ler, lerá o seu testamento, diante do Tabelião. Não sabendo ou não podendo se expressar, designará quem o leia em seu lugar, podendo indicar um intérprete da LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais, para simultaneamente lhe dar conhecimento do conteúdo. Ademais, consoante o § 2º do art. 1.866, o Tabelião deverá, obrigatoriamente, realizar a gravação do ato em sistema digital de som e imagem.
Também com o intuito de inclusão da pessoa com deficiência, o projetado art. 1.867 da lei civil preverá que a pessoa com deficiência visual poderá testar por qualquer forma, com a gravação obrigatória do ato em sistema digital de som e imagem. Em complemento, o seu parágrafo único enunciará que, em se tratando de testamento público, o testador com deficiência visual pode solicitar cópia do seu testamento em formato acessível, incluindo Braille, áudio, fonte ampliada e arquivo digital acessível.
Como não poderia ser diferente, espera-se a imediata aprovação de todas as proposições aqui expostas pelo Parlamento Brasileiro, pois o texto atual relativo ao testamento público é muito distante da necessária inclusão das pessoas com deficiência, estando totalmente desatualizado perante as normas recentes que promoveram a sua inclusão, em igualdade de condições com as demais pessoas. Além disso, há atualmente de um tratamento excessivamente burocrático, que acaba gerando pouca adesão pela sociedade aos atos testamentários, como exercício legítimo da autonomia privada, tão valorizada pelo PL do CC, em praticamente todos os seus livros.