Alemanha altera a Constituição para fortalecer o Tribunal Constitucional
terça-feira, 14 de janeiro de 2025
Atualizado às 07:18
2024 foi um ano difícil para a Alemanha. Paralelamente à crise econômica que afeta a maior economia da Europa, eclodiu no país uma crise política quando o (impopular) chanceler Olaf Scholz exonerou, em novembro de 2024, o ministro de finanças e líder de um dos partidos de sustentação do governo (o partido liberal FDP), Christian Lindner.
Segundo especialistas, a crise política teve como estopim disputas internas na coalização acerca da política econômica, mas foi fruto também de divergências em relação à condução da política externa (guerra na Ucrânia e no Oriente Médio, relações com a Rússia e eleição de Donald Trump nos EUA) e a questões de imigração, integração e alterações climáticas1.
O fato provocou o colapso do gabinete formado por social-democratas (SPD), ecologistas (Grünen) e liberais, que perdeu a necessária maioria no Parlamento (Bundestag), levando o chanceler a pedir um voto de confiança ao Parlamento, por meio do requerimento 20/14150, de 11/12/2024, a fim de que os deputados se pronunciassem sobre a necessidade ou não de se convocar eleições antecipadas, medida prevista no art. 68 da Grundgesetz (GG), a Lei Fundamental alemã.
O chanceler, contudo, perdeu a moção de confiança no Bundestag em 16/12/2024: para manter o governo, ele precisaria do voto de 367 dos 717 deputados, mas apenas 207 acreditavam na governabilidade do gabinete de Olaf Scholz2. Diante disso, ele teve que pedir a dissolução do Parlamento ao presidente, Frank-Walter Steinmeier, e a convocação de novas eleições3.
Em 27/12/2024, Steinmeier dissolveu oficialmente o 20º Deutscher Bundestag por meio do ofício 20/14400, ordenando novas eleições para 23/02/2025, nos termos do referido art. 68 inc. 1 da Lei Fundamental.
A moção de confiança (Vertrauensfrage) e o chamado voto construtivo de desconfiança (konstruktives Misstrauensvotum), previsto no art. 67 da Lei Fundamental, são uma novidade da Constituição de Bonn, vez que a Constituição de Weimar só estabelecia, em seu art. 54, que o chanceler e os ministros precisavam da confiança do Reichstag para o exercício de suas funções e que qualquer deles precisaria renunciar quando o Parlamento retirasse sua confiança em resolução expressa.
Desde a entrada em vigor da Lei Fundamental em 1949, só houve cinco moções de confiança, em três das quais o Parlamento retirou oficialmente a confiança no chanceler, o que ocorreu nos governos de Willy Brandt (1972), Helmut Kohl (1982) e Gerhard Schröder (2005)4, que fora sucedido por Angela Merkel.
Ao contrário do que possa parecer, a "dissolução do Parlamento" (Parlamentsauflösung) não implica o fechamento da casa legislativa, não podendo a expressão ser entendida ao pé da letra. A atual composição do Bundestag continua a existir até que ocorram novas eleições e seja eleito um novo congresso, como deixa claro o art. 39 inc. 1 da Grundgesetz. Não há, portanto, um período sem atividade parlamentar, significando a "dissolução" tão somente a antecipação das eleições para o Parlamento Federal, que continua legitimamente a legislar.
As pesquisas realizadas ano passado indicam que, em caso de novas eleições, a oposição conservadora do CDU, partido de Angela Merkel, poderá sair vitoriosa com 31% dos votos, seguida pelo partido de ultradireita Aliança para a Alemanha (Alternative für Deutschland - AfD) com 18%, ficando o SPD com 16% e os Verdes com 12% das intenções de voto5.
Diante desse preocupante horizonte, o governo de Olaf Scholz e Parlamento se apressaram em aprovar diversas leis consideradas importantes para o país, como o aumento na renda dos trabalhadores e medidas imediatas de apoio à indústria alemã.
Também foi aprovada, no apagar das luzes de 2024, uma alteração constitucional, proposta pelo Bundestag, para proteger a Corte Constitucional alemã - Bundesverfassungsgericht (BVerfG) - contra eventuais forças políticas antidemocráticas. A partir de agora, regras centrais acerca da estrutura, competência e função do Tribunal Constitucional estão expressamente positivadas na Lei Fundamental alemã.
Defesa do Tribunal Constitucional
"O nosso Estado de Direito não pode ser sabotado por dentro. É por isso que estamos protegendo a capacidade de ação do Tribunal Constitucional"6. Com essas palavras, a ministra do interior, Nancy Faeser, sintetizou a razão e o objetivo das recentes alterações realizadas na Constituição alemã.
Com efeito, o crescimento da extrema-direita antidemocrática no país e no mundo fez com os partidos democráticos na Alemanha - inclusive o FDP, que abandonou o governo de Olaf Scholz - superassem suas divergências e se unissem em torno de um projeto comum, qual seja, o de fortalecer o Tribunal Constitucional para lidar com o crescimento de forças antidemocráticas.
E, assim, todos os partidos representados do Parlamento, à exceção do partido de extrema-direita AfD, apresentaram e aprovaram dois projetos de lei: o Gesetzentwurf 20/12977 e 20/12978, de 24/9/2024, visando alterar os arts. 93 e 94 da Lei Fundamental.
Os projetos de lei
Na exposição de motivos, o Gesetzentwurf 20/12977 deixa claro, inicialmente, que a Lei Fundamental alemã fez uma clara opção por uma jurisdição constitucional forte, na qual o Bundesverfassungsgericht é o órgão encarregado da defesa da Constituição e, em especial, da ordem constitucional livre e democrática, e dos direitos fundamentais.
E ao longo de sua existência, a Corte Constitucional se estabeleceu, de fato, como um órgão constitucional essencial para o Estado e a sociedade, atuando como garantidor da ordem constitucional livre e democrática7.
Porém, quando a Grundgesetz foi elaborada, a instituição Bundesverfassungsgericht ainda não estava bem modelada, ficando a cargo do legislador ordinário disciplinar sua estrutura e competência, o que acabou sendo feito através da lei de organização da Corte: a Bundesverfassungsgerichtsgesetz (BVerfGG), em vigor, com pontuais alterações, desde 12/03/1951.
Após 75 anos de atuação do BVerfG, chegara a hora de conferir status constitucional a elementos essenciais do órgão constitucional, deixando expressa na Constituição a estrutura, a competência e a posição do órgão na estrutura constitucional, tal como se dá em relação aos demais órgãos constitucionais: Bundestag (Parlamento, equivalente à Câmara dos Deputados), Bundesrat (Conselho Federal, equivalente ao Senado Federal), Bundespräsident (Presidente) e Bundesregierung (Governo Federal).
Segundo o projeto de lei, a definição dessa estruturação na Lei Fundamental é indispensável para garantir a independência da Corte e protegê-la contra disputas políticas como as ocorridas recentemente no leste europeu8, quando ventos antidemocráticos atingiram países como Hungria e Polônia, enfraquecendo a Corte Constitucional, o Estado Democrático de Direito e a separação de poderes9.
Na Polônia, sob o pretexto de reformar o sistema de justiça, o partido nacionalista e conservador PiS, que governou o país entre 2015 e 2023, reduziu consideravelmente a autonomia do Poder Judiciário, permitindo ao Executivo e ao Parlamento, dentre outras coisas, controlar e punir magistrados. Agora, o novo governo de centro-esquerda do presidente Donald Tusk procura desfazer essas medidas para cumprir os padrões de equilíbrio e independência judicial exigidos pela União Europeia.
Na Hungria, a situação é ainda mais dramática. Viktor Orban criou novas turmas na Suprema Corte, nomeou novos ministros e reduziu o limite de idade para a aposentadoria de magistrados não alinhados ao governo, preenchendo essas vagas com seus apadrinhados.
Portanto, as alterações na Lei Fundamental buscam evitar que algo semelhante ocorra na Alemanha, garantindo que a Corte Constitucional continue a desemprenhar suas funções de forma independente em relação ao poder político, vez que agora sua estrutura e competência estão claramente definidas na Constituição, o que significa que qualquer alteração dessas regras só poderá ser feita por maioria qualificada de 2/3 do Bundestag e do Bundesrat, e não por maioria simples, como nas leis ordinárias, nos termos do art. 79 inc. 2 da Grundgesetz.
As alterações na Grundgesetz
Em apertada síntese, o Parlamento inverteu o conteúdo dos arts. 93 e 94 até então vigentes, completando-os com novas determinações necessárias para garantir o papel do Bundesverfassungsgericht como o órgão constitucional guardião da Constituição (Hüter der Verfassung) e da ordem fundamental livre e democrática.
A partir de agora, o status da Corte como órgão constitucional, antes estabelecido apenas no § 1º I BVerfGG, encontra-se expressamente previsto no atual art. 93 inc. 1 da Lei Fundamental. A norma também prevê a eficácia vinculante das decisões da Corte, enquanto sua competência vem disciplinada no art. 94 do referido diploma.
Além disso, outras diretrizes estruturais deixaram o status de mera lei ordinária e alçaram o patamar de norma constitucional, como, v.g., o número de magistrados da Corte, a composição das turmas e a duração do mandato dos magistrados.
Segundo a atual redação do art. 93 da GG, os juízes do Tribunal Constitucional serão escolhidos metade pelo Parlamento e metade pelo Senado (inc. 2) para um mandato improrrogável de 12 anos ou até o alcance da idade limite de 68 anos (inc. 3), o que antes só constava do § 4 da lei orgânica do BVerfG.
A fim de impedir que a vacância do cargo impeça ou atrapalhe o funcionamento da Corte, o mencionado inc. 2 do art. 93 estabelece que o magistrado só deixará de exercer suas funções após a escolha de seu sucessor. Um exemplo concreto: o mandato de Josef Christ, que esteve no Brasil em 2023 falando sobre democracia defensiva em eventos organizados por esta articulista, findou no final de 2024, mas ele permanece no cargo aguardando a nomeação de seu substituto, o que deve ocorrer nos próximos meses.
A composição do BVerfG também ganhou status constitucional: a Corte é formada por duas turmas, denominadas Senate, cada qual com oito juízes, perfazendo um total de dezoito membros, previsão que até então só constava do § 5 I da lei orgânica (BVerfGG). O antigo art. 94 inc. 1 e 2 da GG previa apenas que o BVerfG se compunha de "juízes federal e outros membros", eleitos em partes iguais pelo Parlamento Federal e pelo Conselho Federal, e que lei federal regularia sua organização e processo.
A alteração na Constituição alemã também reafirma a autonomia do Tribunal para decidir sobre questões relacionadas à sua lei orgânica (art. 93 inc. 4), o que até então só constava do § 1 III do referido diploma.
A rigor, essa autonomia decorre diretamente da qualidade da Corte como órgão constitucional, mas, para evitar dúvidas, o Parlamento achou por bem fazer constar expressamente da Grundgesetz, equiparando o BVerfG aos demais órgãos constitucionais10, cuja autonomia já gozava de previsão constitucional: a autonomia do Bundestag está prevista no art. 40 inc. 1, a do Bundesrat no art. 52 inc. 3 e a do Bundesregierung no art. 65 inc. 4 da Lei Fundamental.
Para evitar que uma minoria parlamentar bloqueie ou impeça a eleição dos magistrados, o art. 93 inc. 2 da Carta Constitucional criou um mecanismo segundo o qual o direito de voto será transferido do Bundestag para o Bundesrat, e vice-versa, quando a maioria necessária de 2/3 não for alcançada na respectiva casa legislativa, responsável pela indicação do futuro integrante da Corte Constitucional.
O Gesetzentwurf 20/12978 teve por fim alterar a lei de organização do Tribunal Constitucional (BVerfGG) para acrescentar o inc. 5 ao § 7a prevendo que se o órgão competente não escolher novo magistrado no prazo de 03 meses, contados da sugestão feita pelo Tribunal Constitucional, seu direito de voto poderá ser exercido pelo outro órgão, sendo considerada a escolha como realizada por aquele.
Para evitar que a Lei Fundamental fique excessivamente detalhista, o inc. 5 do art. 93 atribui competência ao legislador infraconstitucional para regular, em grande medida, a organização e o processo perante o BVerfG11. Diz a norma:
"Artigo 93.
(1) O Tribunal Constitucional Federal é, face a todos os demais órgãos constitucionais, um tribunal autônomo e independente da federação.
(2) O Tribunal Constitucional Federal é constituído por juízes federais e outros membros; ele compõe-se de dois senados. Para cada senado serão eleitos oito juízes, metade pelo Parlamento e metade pelo Conselho Federal; eles não podem pertencer ao Parlamento, ao Conselho Federal, ao Governo Federal ou aos órgãos respectivos de um estado [da federação]. Através de lei federal, segundo o § 5, pode-se estabelecer que o direito de voto seja exercido por outro órgão eleitoral se, dentro de prazo a ser determinado, após o término do mandato ou saída prematura de um juiz, não houver a eleição de um sucessor.
(3) O mandato dos membros do Tribunal Constitucional Federal tem a duração de doze anos, no máximo até ao final do mês em que o membro completar 68 anos de idade. Após o término do mandato, os juízes continuam a exercer as suas funções oficiais até a nomeação de seu sucessor. Está excluída a reeleição subsequente ou posterior.
(4) O Tribunal Constitucional Federal estabelece o seu próprio regulamento interno, deliberado pelo Pleno.
(5) Uma lei federal regulará a constituição e o processo do Tribunal Constitucional Federal. Ela poderá impor como pressuposto para a reclamação constitucional o esgotamento prévio das vias legais e prever um rito especial para o processo de admissão."12
A competência da Corte, antes prevista no art. 93 da Lei Fundamental, encontra-se agora definida no art. 94:
"Art. 94.
(1) O Tribunal Constitucional Federal decide:
1. sobre a interpretação desta Lei Fundamental em controvérsias a respeito da extensão dos direitos e deveres de um órgão federal superior ou de outros interessados, dotados de direitos próprios decorrentes da presente Lei Fundamental ou pelo regulamento interno de um órgão federal superior;
2. em caso de divergências de opinião ou dúvidas sobre a compatibilidade formal e material da legislação federal ou estadual com a presente Lei Fundamental ou sobre a compatibilidade da legislação estadual com outras leis federais, mediante requerimento do governo federal, de um governo estadual ou de um quarto dos membros do Parlamento Federal;
2a. em caso de divergências, se uma lei preenche os requisitos do artigo 72, inciso 2, mediante requerimento do Conselho Federal, de um governo ou parlamento estadual;
3. em caso de divergências sobre os direitos e deveres da federação e dos estados-membros, especialmente a respeito da execução de lei federal pelos estados e do exercício da fiscalização federal;
4. em outras controvérsias de direito público entre a federação e os estados, entre diversos estados e dentro de um estado, sempre que não haja outra via judicial;
4a. sobre as reclamações constitucionais, que podem ser interpostas por qualquer pessoa sob o argumento de ter sido violado, pelo poder público, em seus direitos fundamentais ou um dos direitos previstos nos artigos 20 inciso 4, 33, 38, 101, 103 e 104;
4b. sobre reclamações constitucionais apresentadas por municípios e associações de municípios contra a violação, por meio de lei, do direito de autonomia administrativa, previsto no artigo 28; no caso de leis estaduais, no entanto, apenas se o recurso não puder ser interposto no respectivo Tribunal Constitucional estadual;
4c. sobre reclamações de associações contra seu não reconhecimento como partido para as eleições para o Parlamento Federal;
5. nos demais casos previstos na presente Lei Fundamental.
(2) O Tribunal Constitucional Federal decide, além disso, mediante requerimento do Conselho Federal, do governo de um estado ou do parlamento estadual, se, no caso do artigo 72, inciso 4, não subsiste a necessidade de uma regulamentação por lei federal, nos termos do artigo 72, inciso 2, ou se o direito federal não poderia ser aplicado nos casos referidos no artigo 125a, inciso 2, 1º período. A constatação de que a necessidade já não existe ou que o direito federal não deva ser aplicado, substitui uma lei federal aprovada segundo o artigo 72, inciso 4 ou segundo o artigo 125a, inciso 2, 2º período. A petição, conforme o 1º período, só é admissível quando um projeto de lei, nos termos do artigo 72 inciso 4 ou do artigo 125a inciso 2, 2º período, tenha sido rejeitado no Parlamento Federal ou não tenha sido debatido e aprovado no prazo de um ano, ou se um projeto de lei correspondente for rejeitado no Conselho Federal.
(3) O Tribunal Constitucional Federal atuará igualmente nos casos que lhe forem conferidos por lei federal.
(4) As decisões do Tribunal Constitucional Federal vinculam os órgãos constitucionais da federação e dos estados, bem como todos os tribunais e o funcionalismo público. Uma lei federal determinará os casos em que suas decisões terão força de lei."13
A norma transpõe as competências do Tribunal Constitucional, antes previstas no antigo art. 93, inc. 1 a 3 da Lei Fundamental, para o atual art. 94, inc. 1 a 3, acrescentando o inc. 4 para ressaltar a eficácia jurídica (Rechtswirkung) das decisões da Corte. Tendo em vista a primazia da Constituição e a tarefa da jurisdição constitucional de assegurar essa primazia no caso concreto, resta evidente, segundo o Bundestag, que a Corte Constitucional só pode desempenhar seu papel se suas decisões foram vinculantes.
Portanto, o Parlamento considerou apropriado deixar expressa essa conexão fundamental na Grundgesetz e, para tanto, estabeleceu que as decisões da Corte devem ser respeitadas por todos os tribunais, pelos funcionários públicos, bem como por todos os órgãos constitucionais da federação e dos estados14.
Segundo a exposição de motivos, "a regra previne, ao mesmo tempo, tentativas de se questionar a validade das decisões do Tribunal Constitucional (através da alteração de disposição legal supostamente ordinária). Ela deixa claro que a vinculação do poder público às decisões do Tribunal não pode ser enfraquecida nem revogada por alterações de lei ordinária. De acordo com o direito vigente, ambos prejudicariam a eficácia dos poderes de controle do Tribunal Constitucional, tal como previsto na Lei Fundamental, e estariam, portanto, fora do poder de disposição do legislador."15
Em suma, a recente alteração constitucional reorganizou as disposições da Lei Fundamental, completando o conteúdo dos art. 93 e 94 da Grundgesetz para fortalecer a instituição do Bundesverfassungsgericht, protegendo-o contra futuros ventos antidemocráticos. Ela "consagra os elementos definidores do status do Tribunal Constitucional na Lei Fundamental, deixa claro a posição orgânica do Tribunal e, dessa forma, exprime adequadamente sua posição enquanto órgão constitucional. Além disso, a nova regulação deve contribuir para evitar tentativas de questionar a independência ou a funcionalidade da jurisdição constitucional"16.
A situação no Brasil
No Brasil, assise-se a um movimento distinto, direcionado para uma tentativa de contenção da atuação do Supremo Tribunal Federal, como percebe-se pelas propostas de limitar o mandato dos ministros, ampliar as hipóteses de impeachment dos membros da Corte e até suspender a eficácia vinculante de algumas decisões do STF.
As razões para esse movimento são complexas e não cabem, por óbvio, ser aqui mencionadas, mas não podem ser compreendidas sem uma análise imparcial da postura da Corte, mas também da crescente onda antidemocrática, que tem como uma de suas estratégias enfraquecer as Cortes Constitucionais, como ocorreu na Hungria, Polônia, Israel e bem antes na Venezuela, El Salvador e durante a ditadura militar brasileira (1964-1985).
Mas alegações de invasão de competências dos demais poderes, de esmorecimento da autocontenção, de aumento do protagonismo político e ativismo judicial por parte dos ministros permeiam, implícita ou expressamente, as justificativas de diversos projetos de reforma do arcabouço legal17.
Tramitam atualmente no Congresso Nacional três projetos de lei visando extinguir o caráter vitalício do exercício do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, estabelecido pelo caput do art. 101 da Constituição, bem como democratizar o sistema de escolha de magistrados para os tribunais superiores, principalmente para a Corte Constitucional, atualmente centralizado na figura de um único agente público (Presidente). A proposta é que o direito de escolha seja alternado com o Congresso Nacional18.
A PEC 16/2019 pretende modificar o art. 101 da Carta Magna para estabelecer um mandato de 08 anos, vedada a recondução, a qual, por sua vez, é permitida pela PEC 77/2019, que também prevê igual prazo para a duração do mandato, mas pretende restringir a escolha para o STF entre aqueles que já ocupam cargos em tribunais superiores ou tribunais estaduais a fim de evitar que "juristas sejam alçados diretamente à magistratura máxima sem maturação anterior, apenas por critérios de proximidade política"19.
Já a PEC 51/2023 propõe um mandato de 15 anos, vedada a recondução e o aumento para 50 anos da idade mínima exigida para a investidura na toga de magistrado do STF, além de sugerir alterações no processo de escolha dos membros da Corte e dos tribunais superiores.
Outra proposta de alteração constitucional importante é a PEC 28/2024, que pretende acrescentar o art. 97-A à Constituição para estabelecer a necessidade de submissão imediata de medidas cautelares ao referendo do órgão colegiado competente, bem como alterar o art. 102 da Carta Magna para permitir um controle político sobre decisões do Tribunal Constitucional.
Pela proposta, ao mencionado dispositivo seria acrescentado um § 4º permitindo ao Congresso Nacional sustar os efeitos de decisões do Supremo Tribunal Federal, prolatadas no exercício da jurisdição constitucional, se considerar que a decisão exorbita do adequado exercício da função jurisdicional e inova o ordenamento jurídico como norma geral e abstrata.
A sustação teria o prazo de 02 anos, prorrogável uma única vez, por igual período, pelo voto de 2/3 dos membros de cada uma das casas do Parlamento. O novo § 5º, por sua vez, estabelece que, em caso de suspensão da eficácia, o Supremo Tribunal Federá só poderá manter sua decisão por voto de 4/5 de seus membros.
Segundo a justificação da PEC, a regra proposta apenas alongaria a regra constitucional já prevista no art. 49 da Constituição, na qual estão fixadas competências exclusivas do Congresso Nacional, mantendo hígido o núcleo essencial da separação dos poderes pela possibilidade do STF poder sustar a deliberação parlamentar20.
Por fim, o PL 658/2022 pretende alterar a lei 1.079/1950 - conhecida como Lei dos Crimes de Responsabilidade ou Lei do Impeachment - para proibir o Senado Federal de realizar novo juízo de admissibilidade da acusação contra o Presidente da República após sua admissão na Câmara dos Deputados (art. 24 § 2º) e, no que aqui interessa, criar nova hipótese de crime de responsabilidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Ao art. 39 da referida lei pretende-se acrescentar o inc. 6 segundo o qual configura crime de responsabilidade "manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais ou sobre as atividades dos outros poderes da República, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério"21.
Independentemente de qualquer juízo de valor, inegável que essas propostas de alteração constitucional e legal caminham em direção àquilo que no direito comparado se chama de constitucionalismo fraco, distinto do constitucionalismo forte estabelecido na Alemanha pela Lei Fundamental e respeitado não somente pelos demais poderes do Estado como ainda pela sociedade alemã. A sociedade brasileira precisa discutir, sem partidarismos, qual caminho deseja seguir, pois ele pode não ter volta...
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1 Gostaria de agradecer penhoradamente aos germanistas Arthur Ferrari de Almeida e Matthäus Kroschinsky pelo frutífero diálogo acerca do tema. Sobre a crise política na Alemanha, confira-se: Presidente alemão dissolve o Parlamento e confirma eleições. Disponível aqui. Acesso em: 27/12/2024.
2 Vertrauensfrage und vorzeitige Neuwahlen. Disponível aqui. Acesso em: 07/01/2025.
3 Olaf Scholz da Alemanha perde voto de confiança. Disponível aqui. Acesso em: 16/12/2024.
4 Vertrauensfrage und vorzeitige Neuwahlen.
5 Parlamento da Alemanha vota moção de confiança de Scholz nesta segunda-feita (16). CNN Brasil, 16/12/2024.
6 "Unser Rechtsstaat darf nicht von innen heraus sabotiert werden können. Deshalb sichern wir die Handlungsfähigkeitdes Bundesverfassungsgerichts besser ab." Confira-se o site do Parlamento alemão. Acesso em: 19/12/2024.
7 Drucksache 20/12977, p. 1.
8 Drucksache 20/12977, p. 1.
9 Bundesverfassungsgericht ist künftig besser geschützt. Disponível aqui. Acesso em: 20/12/2024.
10 No mesmo sentido, BT-Drucksache 20/12977, p. 8.
11 BT-Drucksache 20/12977, p. 5.
12 Artikel 93. (1) Das Bundesverfassungsgericht ist ein allen übrigen Verfassungsorganen gegenüber selbständiger und unabhängiger Gerichtshof des Bundes.
(2) Das Bundesverfassungsgericht besteht aus Bundesrichtern und anderen Mitgliedern; es gliedert sich in zwei Senate. In jeden Senat werden je zur Hälfte vom Bundestag und vom Bundesrat acht Richter gewählt; sie dürfen weder dem Bundestag, dem Bundesrat, der Bundesregierung noch entsprechenden Organen eines Landes angehören. Durch Bundesgesetz nach Absatz 5 kann vorgesehen werden, dass das Wahlrecht vom anderen Wahlorgan ausgeübt werden kann, wenn innerhalb einer zu bestimmenden Frist nach dem Ende der Amtszeit oder dem vorzeitigen Ausscheiden eines Richters eine Wahl seines Nachfolgers nicht zustande kommt.
(3) Die Amtszeit der Mitglieder des Bundesverfassungsgerichts dauert zwölf Jahre, längstens bis zum Ende des Monats, in dem das Mitglied das 68. Lebensjahr vollendet. Nach Ablauf der Amtszeit führen die Richter ihre Amtsgeschäfte bis zur Ernennung des Nachfolgers fort. Eine anschließende oder spätere Wiederwahl ist ausgeschlossen.
(4) Das Bundesverfassungsgericht gibt sich eine Geschäftsordnung, die das Plenum beschließt.
(5) Ein Bundesgesetz regelt die Verfassung und das Verfahren des Bundesverfassungsgerichts. Es kann für Verfassungsbeschwerden die vorherige Erschöpfung des Rechtsweges zur Voraussetzung machen und ein besonderes Annahmeverfahren vorsehen.
13 Artikel 94. (1) Das Bundesverfassungsgericht entscheidet:
1. über die Auslegung dieses Grundgesetzes aus Anlass von Streitigkeiten über den Umfang der Rechte und Pflichten eines obersten Bundesorgans oder anderer Beteiligter, die durch dieses Grundgesetz oder in der Geschäftsordnung eines obersten Bundesorgans mit eigenen Rechten ausgestattet sind;
2. bei Meinungsverschiedenheiten oder Zweifeln über die förmliche und sachliche Vereinbarkeit von Bundesrecht oder Landesrecht mit diesem Grundgesetz oder die Vereinbarkeit von Landesrecht mit sonstigem Bundesrecht auf Antrag der Bundesregierung, einer Landesregierung oder eines Viertels der Mitglieder des Bundestages;
2a bei Meinungsverschiedenheiten, ob ein Gesetz den Voraussetzungen des Artikels 72 Absatz 2 entspricht, auf Antrag des Bundesrates, einer Landesregierung oder der Volksvertretung eines Landes;
3. bei Meinungsverschiedenheiten über Rechte und Pflichten des Bundes und der Länder, insbesondere bei der Ausführung von Bundesrecht durch die Länder und bei der Ausübung der Bundesaufsicht;
4. in anderen öffentlich-rechtlichen Streitigkeiten zwischen dem Bund und den Ländern, zwischen verschiedenen Ländern oder innerhalb eines Landes, soweit nicht ein anderer Rechtsweg gegeben ist;
4a. über Verfassungsbeschwerden, die von jedermann mit der Behauptung erhoben werden können, durch die öffentliche Gewalt in einem seiner Grundrechte oder in einem seiner in Artikel 20 Absatz 4, 33, 38, 101, 103 und 104 enthaltenen Rechte verletzt zu sein;
4b. über Verfassungsbeschwerden von Gemeinden und Gemeindeverbänden wegen Verletzung des Rechts auf Selbstverwaltung nach Artikel 28 durch ein Gesetz, bei Landesgesetzen jedoch nur, soweit nicht Beschwerde beim Landesverfassungsgericht erhoben werden kann;
4c. über Beschwerden von Vereinigungen gegen ihre Nichtanerkennung als Partei für die Wahl zum Bundestag;
5. in den übrigen in diesem Grundgesetz vorgesehenen Fällen.
(2) Das Bundesverfassungsgericht entscheidet außerdem auf Antrag des Bundesrates, einer Landesregierung oder der Volksvertretung eines Landes, ob im Falle des Artikels 72 Absatz 4 die Erforderlichkeit für eine bundesgesetzliche Regelung nach Artikel 72 Absatz 2 nicht mehr besteht oder Bundesrecht in den Fällen des Artikels 125a Absatz 2 Satz 1 nicht mehr erlassen werden könnte. Die Feststellung, dass die Erforderlichkeit entfallen ist oder Bundesrecht nicht mehr erlassen werden könnte, ersetzt ein Bundesgesetz nach Artikel 72 Absatz 4 oder nach Artikel 125a Absatz 2 Satz 2. Der Antrag nach Satz 1 ist nur zulässig, wenn eine Gesetzesvorlage nach Artikel 72 Absatz 4 oder nach Artikel 125a Absatz 2 Satz 2 im Bundestag abgelehnt oder über sie nicht innerhalb eines Jahres beraten und Beschluss gefasst oder wenn eine entsprechende Gesetzesvorlage im Bundesrat abgelehnt worden ist.
(3) Das Bundesverfassungsgericht wird ferner in den ihm sonst durch Bundesgesetz zugewiesenen Fällen tätig.
(4) Die Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts binden die Verfassungsorgane des Bundes und der Länder sowie alle Gerichte und Behörden. Ein Bundesgesetz bestimmt, in welchen Fällen seine Entscheidungen Gesetzeskraft haben.
14 BT-Drucksache 20/12977, p. 9.
15 Tradução livre: "Die Regelung trifft zugleich Vorsorge gegen Versuche, die Geltung verfassungsgerichtlicher Entscheidungen (durch Änderung einer vermeintlich nur einfachgesetzlichen Vorgabe) in Frage zu stellen. Sie stellt klar, dass die Bindung der öffentlichen Gewalt an die Entscheidungen des Gerichts durch einfachgesetzliche Änderungen weder abgeschwächt noch aufgehoben werden kann. Schon nach geltendem Recht unterliefe beides die Effektivität der verfassungsgerichtlichen Kontrollbefugnisse, wie sie das Grundgesetz vorsieht und wäre deshalb der Disposition des Gesetzgebers entzogen." BT-Drucksache 20/12977, p. 9.
16 Tradução livre: "Der Entwurf ergänzt daher den Inhalt der Artikel 93 und 94 GG und ordnet die grundgesetzlichen Regelungen neu. Er verankert die statusprägenden Elemente des Bundesverfassungsgerichts im Grundgesetz, verdeutlicht die Organstellung des Gerichts und bringt damit seinen Rang als Verfassungsorgan angemessen zum Ausdruck. Zudem soll die Neuregelung dazu beitragen, Bestrebungen vorzubeugen, welche die Unabhängigkeit oder Funktionsfähigkeit der Verfassungsgerichtsbarkeit in Frage stellen wollen." BT-Drucksache 20/12977, p. 5.
17 Nesse sentido, veja-se PEC 51/2023, p. 2 e PL 658/2022, p. 2.
18 Nesse sentido: PEC 77/2019.
19 PEC 77/2019, p. 7.
20 PEC 28/2024, p. 2.
21 A norma já consta do art. 35 inc. 3 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35, de 14/3/1979. O art. 12 inc. 2 do Código de Ética da Magistratura Nacional, aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça em 06/08/2008, também estabelece semelhante proibição.