União Europeia prorroga entrada em vigor da lei que impõe deveres de diligência nas cadeias de fornecimento
quarta-feira, 23 de abril de 2025
Atualizado em 22 de abril de 2025 08:46
Uma das leis mais controversas dos últimos anos na União Europeia é a chamada lei de devida diligência em cadeias de fornecimento - também conhecida pela terminologia inglesa Corporate Sustainability Due Diligence Directive (CSDDD ou CS3D), i.e., diretiva de due diligence em sustentabilidade corporativa ou, no vernáculo alemão, LkSG - Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz.
O objetivo da lei é promover um comportamento empresarial sustentável e responsável, obrigando empresas de grande porte a auditar suas atividades a fim de prevenir, mitigar e eliminar violações a direitos humanos e ao meio ambiente perpetradas ao longo de suas cadeias de fornecimento.
O tema foi objeto de palestra proferida pelo prof. Dr. Dr. h. c., Stefan Grundmann, professor catedrático da Humboldt Universidade de Berlim, em evento da Associação Luso-Alemã de Juristas - DLJV - Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung - organizado por essa articulista na ENFAM - Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura, em março passado1.
A ideia é que as empresas sejam responsabilizadas quando lucrarem com o uso - em qualquer ponto da cadeia de suprimento - de trabalho infantil, trabalho forçado, escravo ou práticas análogas, condições de trabalho degradantes ou indignas, degradação ambiental, alterações nocivas ao solo, poluição da água ou ar, emissões nocivas, consumo excessivo de água etc. A diretiva traz um anexo com exemplos de práticas contrárias à sustentabilidade ecológica e social.
A lei afeta companhias de todos os setores da economia, obrigando-as a monitorar - através de diversas obrigações - toda a sua cadeia de valor, desde a extração da matéria-prima até a distribuição do produto final, a fim de que não haja violações a direitos humanos e ao meio ambiente2.
A norma faz parte de um conjunto de regulamentos europeus estabelecidos nos últimos anos para aumentar o nível global de proteção aos direitos humanos e incentivar a transição para a economia verde, em linha com o European Green Deal e com o Acordo de Paris, que pretende reduzir o aquecimento global ao patamar de 1,5?°C.
As empresas, porém, alegam que o legislador fixou exigências excessivas que lhes impõem pesado fardo burocrático e financeiro, reduzindo a competitividade da Europa no comércio internacional3. Além disso, a diretiva seria implementada em um novo e difícil contexto marcado pelos elevados preços de energia decorrentes da invasão da Ucrânia pela Rússia, pelas pesadas tarifas impostas por Donald Trump e pela feroz concorrência global4.
Com efeito, a lei deveria começar a valer a partir do próximo ano. Inicialmente, os estados-membros do bloco deveriam transpor a diretiva para seus ordenamentos jurídicos em 2026 e ela entraria em vigor progressivamente a partir do ano seguinte, de acordo com o porte da empresa.
Dessa forma, a partir de 2027, as empresas com mais de 5.000 funcionários e faturamento líquido global anual acima de 1,5 bilhões de euros deveriam atender aos deveres de diligência impostos pela CS3D; em 2028, a norma deveria ser cumprida por empresas com 3.000 empregados e faturamento de 900 milhões de euros e, por fim, em 2029, por empresas menores, com mais de 1.000 trabalhadores e faturamento global superior a 450 milhões, conforme o cronograma estabelecido pelo art. 37 da CS3D.
Porém, devido a pressões, o Parlamento Europeu postergou a vigência da lei. Com efeito, a maioria dos eurodeputados votou em Strasbourg, em regime de urgência, no último dia 1º de abril, para que as primeiras disposições da diretiva comecem a vigorar apenas um ano mais tarde do que o previsto. Os Estados-membros só precisam agora dar seu aval para que a alteração seja publicada no Diário Oficial da União Europeia, mas isso é visto como mera formalidade vez que eles já se manifestaram favoravelmente ao adiamento5.
Pano de fundo
Como dito, a nova lei europeia sobre cadeias de fornecimento, aprovada em 24/4/24, impõe amplo dever de cuidado - e pesadas obrigações e responsabilidades - às grandes empresas, obrigando-as a adotar medidas adequadas a prevenir, mitigar e remediar os impactos negativos de suas atividades sobre os direitos humanos e o meio ambiente.
Elas devem assumir responsabilidades por suas cadeias de fornecimento e assegurar que seus parceiros no exterior também respeitem os padrões éticos e ambientais reconhecidos internacionalmente, sobretudo no âmbito da União Europeia e das Nações Unidas.
Para tanto, elas devem adotar um sistema eficiente para identificar, corrigir e prevenir riscos aos direitos humanos e ao meio ambiente ao longo de sua cadeia de suprimentos. Isso requer, principalmente, intenso contato e troca de informações com os fornecedores (aqui entendido em sentido amplo), além de consideráveis investimentos na remodelação do processo de estruturação e gerenciamento (management) da cadeia de fornecimento. Aqui incidem, por exemplo, custos com a implementação de modernas tecnologias de gestão e análise de dados, e com o treinamento e capacitação dos elos da supply chain para garantir que eles tenham condições de cumprir as exigências regulatórias.
Além da implementação de eficientes processos de identificação, correção/mitigação e prevenção de riscos, é imprescindível o permanente monitoramento do sistema de gestão de riscos a fim de atender às exigências da diretiva, devendo as empresas ainda apresentar às autoridades fiscalizadoras relatórios periódicos acerca dos riscos identificados e das medidas adotadas.
Elas também devem criar um plano de transição climática que permita alcançar a neutralidade climática, i.e., contribuir para a atenuação das alterações climáticas com a limitação do aquecimento global a 1,5?°C (art. 22 da CS3D). Essa obrigação de transição para uma economia sustentável tem sido um dos pontos mais controversos, principalmente após a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris, pois coloca as empresas europeias em desvantagens em relação às concorrentes norte-americanas.
Como dito, a lei europeia dirige-se diretamente a empresas europeias (ou subsidiárias controladas) com mais de 1.000 funcionários e faturamento líquido global superior a 450 milhões de euros, bem como a empresas estrangeiras (ou subsidiárias controladas) com faturamento líquido acima de 450 milhões de euros na União Europeia, independentemente do número de trabalhadores (art. 2º da CS3D). Mas ela alcança indiretamente, em efeito cascata, todos os elos da cadeia global de atividade, como fornecedores de commodities, transporte, armazenamento etc.
O descumprimento dos deveres e proibições impostos pela diretiva geram consequências jurídicas diversas, as quais variam desde pesadas multas (de valor não inferior a 5% do faturamento global, conforme o art. 27, inc. 4 da CS3D) até a obrigação de indenizar danos individuais e coletivos decorrentes do efeito negativo real causado pela empresa sobre os direitos humanos e/ou o meio ambiente (art. 12 da CS3D), inclusive por atos de seus fornecedores indiretos, elos da cadeia global.
Todos os estados-membros da União Europeia deverão transpor a diretiva para seu direito interno através da promulgação de lei específica. Mas ela sofreu forte oposição, principalmente na Alemanha, que já conta com lei semelhante: a Lieferkettensorfaltspflichtengesetz.
A resistência na Alemanha
Na Alemanha, a lei europeia sobre cadeia de fornecimento encontrou forte resistência. A uma, porque o país já possui legislação específica - LkSG - Lieferkettensorfaltspflichtengesetz - em vigor desde 1º/1/23. A duas, porque a normativa europeia impõe maiores exigências - atreladas a elevados custos e burocracias - às empresas, reduzindo a competitividade da Alemanha e da Europa no comércio global6.
Sem pretender abordar aqui os diplomas, pode-se dizer, em apertada síntese, que a lei alemã possui o mesmo escopo que a lei europeia: obrigar grandes empresas com sede, matriz ou filial no país a assegurar que os direitos humanos e a proteção ambiental sejam respeitados durante o processo de fabricação de seus produtos, inclusive por todos os seus fornecedores estrangeiros diretos.
Mas enquanto a legislação alemã dirigia-se inicialmente a empresas com mais de 3.000 funcionários e, a partir de 2024, passou a abarcar também aquelas com mais de 1.000 trabalhadores (§ 1 LkSG), a proposta inicial da diretiva europeia pretendia incluir empresas com mais de 500 funcionários (volume de negócio a nível mundial de 150 milhões de euros), estendendo-se posteriormente a empresas com 250 empregados (faturamento acima de 40 milhões de euros), o que, segundo os críticos, estrangularia pequenas e médias empresas alemãs e europeias7. Por isso, houve forte reação de outros países e o Parlamento Europeu acabou aumentando o porte das empresas, tal como consta atualmente no art. 2º da CS3D.
Criticava-se ainda a extensão dos deveres de diligência impostos pela lei europeia, bem mais amplos que os impostos pela Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz, bem como a incidência da diretiva em setores sensíveis da economia alemã, como construção, indústria têxtil e de calçados, agricultura, pesca e indústria alimentícia. Havia dissenso também quanto às consequências jurídicas decorrentes do descumprimento dos deveres de diligência.
Enquanto a Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz sanciona as empresas com multas pecuniárias e sanções administrativas, como proibição de participação em licitações com o Poder Público, a lei europeia prevê, adicionalmente, uma responsabilização civil por danos (individuais ou coletivos) decorrentes do efeito negativo real causado pela empresa (art. 12 da CS3D)8. Os valores das multas são mais altos na diretiva europeia: não inferior a 5% do faturamento mundial (art. 27, inc. 4 da CS3D), enquanto não ultrapassam 2% do faturamento anual pela lei alemã (§ 24, inc. 3 da LkSG)9.
Outra fonte de acesa controvérsia diz respeito à obrigação das empresas de adotar um plano prático que permita a transição para uma economia sustentável, imposta pelo art. 22 da CS3D, mas ausente na legislação alemã10. De modo geral, havia o consenso - ao menos no plano político - de que a legislação alemã já cumpria bem o seu papel e que a diretiva europeia onerava excessivamente indústria. Por isso, não surpreende que a Alemanha tenha votado contra a aprovação da diretiva europeia no Parlamento em Strasbourg11.
Uma coisa, porém, é certa: a Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz representou importante mudança de paradigma no direito alemão. Como explicou Stefan Grundmann, até a sua entrada em vigor, a gestão dos riscos aos direitos humanos e ao meio ambiente era meramente voluntária.
A situação começou a mudar a partir de 2014, quando uma diretiva europeia passou a exigir das empresas a apresentação de relatórios de sustentabilidade social (denominados "relatórios não financeiros") divulgando aspectos ambientais e sociais de sua atividade comercial.
Esses aspectos foram considerados tão essenciais que empresas de determinado porte foram obrigadas a reportá-los mesmo quando eles não impactassem diretamente sua situação financeira, mas sem, contudo, precisar mencionar riscos em pontos distantes da cadeia de fornecimento12.
A Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz deu um passo além ao exigir que as empresas não só reportassem o que elas estavam fazendo em prol do meio ambiente e dos direitos humanos, mas também adotassem medidas concretas e eficazes para prevenir, eliminar e/ou minimizar os riscos causados por sua atividade econômica à sustentabilidade social e ambiental.
As mudanças propostas para a diretiva europeia
Diante da atual conjuntura política e econômica, a lei europeia sofreu um súbito revés. Com efeito, o Parlamento Europeu decidiu não só adiar a entrada em vigor da lei, como também alterar o conteúdo da diretiva, simplificando-o para que as empresas sejam aliviadas com menos burocracia. Ainda não se sabe ao certo a extensão dessas mudanças, o que deve ser objeto de intenso debate legislativo nos próximos meses.
Por ora, foi aprovada a prorrogação por um ano do prazo para transposição da diretiva pelos Estados-membros, que agora têm até julho de 2027 para incorporar as disposições em seus direitos nacionais. Por tabela, foi adiada ainda a data de início da vigência da lei para que as empresas comecem a cumprir as determinações legais13.
Maior impacto deverá ter, contudo, as alterações de fundo que devem ser discutidas nos próximos meses. O objetivo primordial é reduzir a burocracia e aumentar a competitividade da Europa no comércio global tendo em vista a atual conjuntura geopolítica e econômica.
Uma das propostas já ventiladas é reduzir o número de empresas obrigadas a apresentar relatórios acerca da repercussão de suas atividades comerciais no meio ambiente e na sociedade - os chamados relatórios de sustentabilidade, deixando essa obrigação a cargo apenas das grandes empresas, que potencialmente provocam maior impacto sobre as pessoas e o meio ambiente.
Apesar da turbulência política e econômica atual, as alterações na normativa europeia sobre cadeias de fornecimento enfrentam oposição. O grande receio é que a lei acabe sendo esvaziada14.
O debate no Brasil
Por aqui, até onde se tem notícia, está parado no Congresso o PL 752/22, que visa estabelecer o marco nacional sobre direitos humanos e empresas. A lei tem por objetivo estabelecer diretrizes para a aplicação de normas nacionais e internacionais dos direitos humanos e para a promoção de políticas públicas sobre o tema.
Dentre os destinatários da lei, o art. 2º faz referência a empresas e instituições financeiras com atuação no território nacional ou com atividade transnacional, inclusive suas subsidiárias, filiais, subcontratadas, fornecedores e todas as outras entidades de suas cadeias de valor global (parágrafo único).
O § 1º do art. 5º estabelece a responsabilidade solidária de toda a cadeia de produção por violações aos direitos humanos causadas direta ou indiretamente por suas atividades. O § 2º da norma, por sua vez, obriga as empresas a adotarem mecanismos de controle, prevenção e reparação de violações a direitos humanos decorrentes de suas atividades, sem prejuízo de eventual responsabilidade civil, administrativa ou criminal.
O projeto de lei é uma reação aos inúmeros casos de violações ao meio ambiente e/ou aos direitos humanos ocorridos no país por parte de grandes empresas, a exemplo do rompimento das barragens de Mariana (MG), Brumadinho (MG) e Barcarena (PA), da chuva de prata que afetou os moradores do entorno do complexo industrial-siderúrgico da Baia de Sepetiba (RJ) e do afundamento de diversos bairros da cidade de Maceió (AL) - com o deslocamento compulsório de moradores - em razão da extração de sal-gema pela Braskem na região15. Isso sem falar nos inúmeros casos de empresas envolvidas em trabalho escravo, racismo, xenofobia, práticas discriminatórias de gênero etc.
Resumo da ópera
De um modo geral, pode-se dizer que o projeto de lei brasileiro, assim como as leis alemã e europeia, ainda quando passíveis de aprimoramento, seguem uma tendência até então em curso no mundo de chamar as grandes empresas a responder por uma proteção mais efetiva e proativa do meio ambiente e aos direitos humanos.
Recorde-se que existem leis semelhantes em outros países, embora com objetos e regras distintas, a exemplo do Dodd-Frank Act (2010) nos EUA, o Transparency in Supply Chains Act (2012) na Califórnia, Modern Slavery Act (2015) no Reino Unido, a Loi relative au devoir de vigilance (2017) na França, Modern Slavery Act (2018) na Austrália, a lei austríaca de responsabilidade social (Sozialverantwortungsgesetz) de 2019 e a lei holandesa sobre trabalho infantil, denominada Wet Zorgplicht (2020)16.
Como afirmou Stefan Grundmann, na atual quadra da história, qualquer atividade econômica precisa estar ancorada em três pilares fundamentais: sustentabilidade ecológica (preservação ambiental), sustentabilidade social (sobretudo, respeito aos direitos humanos) e sustentabilidade econômica. Aquela visão da empresa como um instrumento exclusivo de lucro parece estar sendo irreversivelmente superada. O planeta e as futuras gerações agradecem.
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1 Disponível aqui.
2 Europaparlament stimmt für Änderung: Europäisches Lieferkettengesetz kann verschoben werden. LTO, 01.04.2025, p. 2.
3 Europaparlament stimmt für Änderung, p. 2.
4 Pläne der EU-Kommission: Lieferkettengesetz verschieben, Berichtspflichten lockern. LTO, 26.02.2025.
5 Europaparlament stimmt für Änderung, p. 2.
6 Buschmann füchtet Bürokratiemonster: Warum die FDP die Lieferketten-Richtlinie blockiert. LTO, 12.06.2024, p. 2.
7 Buschmann füchtet Bürokratiemonster, p. 1.
8 Europaparlament stimmt Lieferketten-Richtlinie zu. LTO, 24.04.2024, p. 3.
9 Buschmann füchtet Bürokratiemonster, p. 2.
10 Buschmann füchtet Bürokratiemonster, p. 2, 3.
11 Europaparlament stimmt Lieferketten-Richtlinie zu, p. 1.
12 No mesmo sentido: GRABOSCH, Robert. A lei de devida diligência em cadeias de fornecimento (LkSG). Publicação: Friedrich Ebert Stiftung, 2025, p. 4.
13 Europaparlament stimmt für Änderung, p. 2.
14 Europaparlament stimmt für Änderung, p. 2.
15 PL 752/2022, p. 24.
16 GRABOSCH, Robert. Unternehmen und Menschenrechte. Friedrich Erbert Stiftung, 2019, p. 8-9.