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Entrevista: Carlos Eduardo Konder Lins e Silva

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Atualizado às 09:03

Nesse Dia do Advogado, 11 de agosto, a coluna German Report presta uma homenagem a todos os causídicos na pessoa do advogado Carlos Eduardo Konder Lins e Silva. Filho do lendário criminalista Evandro Cavalcanti Lins e Silva, Carlos Eduardo viu o pai ser aposentado compulsoriamente da função de ministro do Supremo Tribunal Federal em 16 de janeiro de 1969 com base no Ato Institucional n. 5 (1968), que fechou o Congresso Nacional, suspendeu os direitos e garantias individuais, permitiu a cassação de mandatos políticos e intensificou a repressão política no país, dando início aos chamados "anos de chumbo" da ditadura militar.

Carlos Eduardo tem uma história peculiar. Ao contrário dos filhos de ministros que vivem à sombra da toga do pai, ele tem luz própria e construiu sua carreira independe do pai. A fim de evitar inevitáveis comparações com o pai criminalista, Carlos Eduardo migrou para a área cível, onde atuou como advogado, desbravando a partir da década de 1970 a área da consultoria empresarial internacional no Rio de Janeiro.

Ele, contudo, foi além e mudou de lado do balcão ao exercer a função de diretor de diversas empresas estrangeiras no Brasil, retornando à advocacia no começo dos anos 2000. Atualmente, é sócio da banca Domingues, Cintra, Napoleão, Lins e Silva Advogados, atuando como advogado e árbitro em processos arbitrais no Brasil e no exterior.

Nessa entrevista, Carlos Eduardo faz uma retrospectiva de sua carreira, fala sobre seu pai e sobre o Supremo Tribunal Federal, que conheceu de perto como assessor do Ministro Antonio Martins Villas Boas, refletindo, ao final, sobre os atuais desafios da advocacia e do Judiciário. Dessa forma, ele propicia ao leitor uma visão privilegiada sobre acontecimentos históricos importantes para a advocacia e o Judiciário brasileiros, servindo de inspiração para aqueles que sonham com a meritocracia na nossa sociedade. Confira!    

Como é ser filho de Evandro Lins e Silva? Alguma vez pesou para você ser filho de uma pessoa tão importante para a nossa história?

Com certeza, pesou muito por causa da comparação inevitável que as pessoas fazem entre um pai tão preparado e um filho sem o mesmo brilho. Por isso, eu me orientei em uma carreira de advocacia completamente diferente. Ele era criminalista e eu sempre transitei no direito privado. Então, isso orientou muito a minha carreira.

Vocês chegaram a trabalhar juntos em algum momento ou a dividir escritório?

Trabalhamos em alguns casos, mas nunca tivemos escritório juntos. Meu pai gostava de trabalhar sozinho, mas eu participei em alguns processos dele e ele me ajudou a redigir algumas coisas minhas, sempre com muita harmonia. Mas nunca estagiei com ele.

Eu trabalhei um período no Supremo Tribunal Federal com outro ministro, Antônio Martins Villas Boas. Naquele tempo, os ministros não tinham um gabinete estruturado. O gabinete era formado por um contínuo, uma secretária e eu. E quando ele se aposentou, não deixou nenhum processo pendente, porque ele realmente trabalhava. Foi uma experiência muito útil, pois pude ver como os ministros trabalhavam antigamente e também aprendi muita coisa. Minha função era pesquisar, buscar livros na biblioteca, datilografar algumas coisas, mas eu jamais vi um voto do ministro e não tinha ideia como ele votaria uma questão antes da sessão, porque era ele quem redigia seus votos. O sigilo era total. Entendo que hoje em dia os juízes estejam muito sobrecarregados, mas acho que aquele sistema preservava muito a higidez das decisões.

Como era a rotina do seu pai quando ministro no Supremo Tribunal Federal?

Meu pai trabalhava em casa até meio dia, pois as sessões começavam às 13h e retornava para casa entre 17h e 18h. Mas continuava produzindo, porque ele era bem cônscio de sua obrigação de trabalhar e estudar os casos. Ele estudava muito e naquele tempo, sem internet, as pessoas tinham que buscar os livros na biblioteca e ficar trabalhando. Mas meu pai, assim como os demais ministros, tinha um secretário jurídico, um cargo criado em 1963. E o primeiro secretário jurídico do meu pai foi o Fábio Konder Comparato e o segundo, o José Paulo Sepúlveda Pertence. Um nível espetacular. Na época, o Fábio tinha acabado de voltar de Paris, onde fez doutorado e morou em Brasília por quase dois anos para poder trabalhar nessa função. Ele é meu primo, pois sua mãe é irmã da minha. E o Pertence era Promotor de Justiça e trabalha com a matéria que meu pai mais atuava. Dois juristas brilhantes. Pertence foi um dos desdobradores do meu curso de direito penal. Durante uma aula, colocou aos alunos uma das questões para testar o conhecimento dos alunos. Perguntou se libertar uma pessoa presa ilegalmente constituía crime e concluiu que se tratava de legítima defesa da liberdade de terceiro.  Conversei com meu pai e no dia seguinte disse a ele que discordava. E, citando autores italianos e o Código Penal toscano, trazidos por meu pai, afirmei que a conduta configurava o crime de exercício arbitrário das próprias razões, pois fazia-se justiça pelas próprias mãos. Nós brincávamos com esse episódio, mas o fato é que durante dois anos dois ou três anos tive um curso de direito em Brasília excepcional!

Quais os casos do seu pai que mais lhe marcaram?

Meu pai fez muita defesa criminal. Na época, era muito jovem e não pude participar. Eu assisti, contudo, o famoso julgamento da Ângela Diniz em Cabo Frio, bem como casos de defesa dativa, como um júri que ele fez de um suposto infanticídio no tribunal do júri em que havia uma ré revel. Meu pai era um advogado extremamente competente e, sobretudo, convincente. Ele não era um orador condoreiro, mas argumentava e convencia. Ele mostrava o quão óbvio era aquilo que estava dizendo. Se você quiser ouvir um trabalho dele, recomendo um podcast na Rádio Novelo sobre o crime da Praia dos Ossos. Fiz um depoimento longo sobre a defesa dele, com a qual fiquei muito impressionado. Ele também advogou no impeachment do Fernando Collor. Foi o advogado dos signatários do pedido de impeachment, ou seja, dos presidentes da OAB e do ABI. Quando o Collor renunciou no meio do julgamento, meu pai defendeu a tese de que não assiste ao criminoso o direito de desistir de seu processo, que deve ser levado até o final. E o Senado confirmou esse entendimento e condenou o Collor. Então, podemos dizer que meu pai atuou na função de advogado de defesa do Brasil. Esse caso foi muito rumoroso e nessa época meu pai já era um homem de 80 anos. Foi uma coisa difícil e trabalhosa, de muita repercussão. Algo extraordinário.

Seu pai pertenceu à Corte de 1963 a 1969, uma época de muita efervescência política. Como era naquela época a relação dos ministros do STF com a imprensa?

Era extremamente formal e distante, pois nem a imprensa procurava, nem eles procuravam a imprensa, apesar de toda aquela efervescência política. Mesmo naqueles casos mais rumorosos, em que os repórteres viviam ao redor, havia um distanciamento. Aliás, a cobertura do judiciário era pequena. Poucos jornais cobriam o que o Supremo fazia, apesar da relevância de muitas decisões. E os ministros não gostavam, vamos dizer. Então, se você pegar os jornais da época só apareciam aqueles casos mais rumorosos, envolvendo um habeas corpus, por exemplo. Pessoalmente, nunca vi um repórter no gabinete do meu pai ou onde trabalhei, nunca soube que tenha aparecido alguém por lá. Então, se havia, podemos dizer que era extremamente raro. Acho até que as pessoas tinham um certo respeito em se aproximar dos ministros e isso ajudava muito a manter o distanciamento da mídia.

Em países, como a Alemanha, os magistrados se fecham em uma sala para deliberar sobre um caso sem celulares, computadores, tablets, munidos apenas de papel e caneta para preservar a integridade da decisão e por questões de segurança cibernética. Em sua opinião, os ministros - sobretudo do STF - estão muito expostos atualmente? Acha positivo para a justiça e o Judiciário o televisionamento das sessões via TV Justiça?

Eu sou um pouco crítico em relação à TV Justiça, pois acho importante preservar a imagem dos ministros do Tribunal Constitucional. Talvez a sociedade e a classe dos advogados achem isso positivo, mas, a meu ver, o sigilo das discussões protege a intimidade e a independência do juiz. Hoje em dia, a pressão da opinião pública sobre os tribunais é brutal e isso é um dos grandes problemas do Judiciário, pois é muito difícil para ele manter sua independência diante da maciça pressão sofrida da mídia e da opinião pública. Há casos de tanta repercussão, sobretudo em matéria criminal, que os advogados têm até receio de aceitar devido à publicidade negativa que aquilo vai gerar. De modo geral, acho que toda essa publicidade é negativa para o Judiciário. A transparência das seções do Legislativo é essencial, pois esse é um órgão que representa o país e a sociedade. Mas não vejo vantagens em juízes discutirem em público assuntos privados, questões comerciais ou até sigilosas, que envolvam segredos de negócio.

Alguns magistrados, principalmente de cortes superiores, têm contas em redes sociais. A entrada na arena pública contribui para quebrar o respeito pelo magistrado ou pela liturgia do cargo? 

Acho bem preocupante o uso de redes sociais por magistrados. Parece-me muito importante manter um pouco da aura e da distância do cargo e, sobretudo, não opinar sobre questões que posteriormente serão julgadas.  

A perda de credibilidade e/ou confiança no STF, guardião da Constituição, pode ameaçar a nossa democracia?

Havia uma crença no passado de que os tribunais podiam errar, mas que o Supremo Tribunal Federal era sempre confiável. Essa mística, de que existe um tribunal onde o bom direito será acolhido, precisa ser preservada. Se começam a surgir dúvidas quanto a isso, há evidentemente um enfraquecimento de todo o sistema democrático e do sistema dos três poderes. Estamos assistindo isso agora nos Estados Unidos, onde a Supreme Court está se tornando aparentemente uma Corte político-partidária. Logo, não surpreende a queda de sua popularidade e credibilidade em decorrência dessa politização, como as pesquisas têm demonstrado nos últimos anos.

O Supremo Tribunal Federal está sob ataque do presidente Donald Trump, que condicionou o fim do tarifaço ao encerramento do processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Como você vê isso?

A mistura entre assuntos comerciais e questões de direito interno de um país soberano merece crítica. O não-envolvimento na política de outro país é um princípio básico da diplomacia, ainda que nem sempre obedecido. Além desse fato lamentável, assisto com preocupação ao desmonte de uma ordem mundial dos negócios que prevalecia, a despeito de trancos, desde 1945 e que assegurou um crescimento econômico invejável no período.

Você é favorável à instituição de um mandato com prazo determinado para os ministros do Supremo Tribunal Federal?

Acho que um mandato seria uma ideia boa, algo em torno de 15 anos. Nosso modelo tem inspiração norte-americana. Lá, os ministros são vitalícios e alguns chegam quase aos 90 anos na Corte, algo arriscado. Então, acho que a ideia do mandato não desvirtua em nada e seria uma ideia interessante a se pensar. Agora, propostas de emendas constitucionais visando permitir ao Legislativo suspender as decisões do Supremo Tribunal Federal são inaceitáveis. Isso lembra muito a discussão na Constituição de 1937, que permitia ao presidente da república deixar de cumprir decisões do Supremo Tribunal Federal se entendesse que elas eram contrárias à Constituição, o que, evidentemente, é uma violação terrível do equilíbrio entre os três poderes. Dessa forma, acho que devemos preservar nosso sistema atual tal como ele se encontra.

Enquanto na Alemanha há uma preocupação do Legislativo em proteger e fortalecer o Tribunal Constitucional contra eventuais ataques de partidos antidemocráticos, no Brasil assiste-se, de certa forma, a um movimento contrário tendo em vista as diversas propostas de emenda constitucional visando limitar o tempo no cargo dos ministros, ampliar as hipóteses de crime de responsabilidade, facilitar o impeachment dos ministros e até permitir ao Congresso sustar a eficácia de decisões do Supremo Tribunal Federal. Essa crise institucional já levou a uma ruptura no passado, com o esvaziamento do poder da Corte e a aposentadoria compulsória de seus ministros, dentre os quais seu pai. Como você vê essa situação?

De fato, a partir de 1964 nós vivenciamos um conflito praticamente aberto entre o Executivo e o Judiciário, principalmente com o Supremo Tribunal Federal, pois o Judiciário se achava jungido à Constituição de 1946. Esse conflito decorria do fato de que o Ato Institucional n. 1, que era para ser o único, mas foi seguido sucessivamente por outros, dizia que ficava mantida a Constituição de 1946 com as mudanças constantes daquele ato. Recordo-me das aulas de direito constitucional em que o Min. Eduardo Ribeiro (STJ) afirmava, para a surpresa dos alunos, que o AI n. 1 não havia revogado praticamente nada da Constituição de 1946. Afora o poder de cassar mandato, demitir funcionário público e outras coisas, o direito à liberdade de imprensa continuava em vigor, bem como a liberdade de ir e vir e, em grande medida, os direitos e garantias fundamentais. Então, essa visão fez com que o STF entrasse em conflito com o Executivo logo após os primeiros dias do "movimento", sobretudo por conceder habeas corpus a presos políticos, o que era uma heresia para os militares, que se achavam impedidos de fazer seu "trabalho de limpeza".

Interessante recordar que grandes jornais da época, como O Estado de São Paulo, faziam editoriais contundentes contra o Supremo Tribunal Federal, afirmando não ser admissível que a "revolução" se submetesse às decisões da Corte. Posteriormente, o jornal foi submetido a censura, mas antes apoiou o autoritarismo. Havia, assim, entre os poderes uma grande tensão decorrente da aplicação da Constituição de 1946 pelo STF, principalmente em matéria de habeas corpus. Era uma crise atrás da outra e, várias vezes, pensávamos que a crise levaria à ruptura. Então, veio o Ato Institucional n. 2, que aumentou o número de ministros do Supremo Tribunal Federal para tentar criar uma dissidência na Corte. Mas a medida foi infrutífera, porque os novos ministros continuaram decidindo como os antigos. Por fim, resolveram acabar totalmente com independência do Tribunal, reduzindo novamente para onze o número de seus membros, mas subtraindo todo o poder da Corte de julgar qualquer matéria política e habeas corpus. Isso tudo com o famigerado Ato Institucional n. 5 e meu pai foi aposentado compulsoriamente, praticamente um mês após sua edição.

Como você e sua família receberam a notícia da aposentadoria do seu pai?

Foi algo inacreditável. Nós não imaginávamos que isso fosse de fato acontecer, apesar da campanha massiva para que meu pai fosse aposentado, iniciada logo após a tomada do poder em abril de 1964. Houve realmente uma campanha para que alguns ministros do Supremo Tribunal Federal fossem aposentados. Inicialmente, os mais visados foram meu pai e o Hermes Lima, mas logo passaram a englobar o Victor Nunes Leal, que também foi aposentado. Foi uma campanha partidária, embora não encampada pelo governo, movida pelo pessoal mais fanático da extinta UDN, como o Carlos Lacerda e outras pessoas da linha mais radical da direita, com a participação de grandes jornais da época. Mas não se imaginava que aquilo realmente fosse acontecer até porque o presidente Castelo Branco fez uma visita oficial ao Supremo logo na primeira semana depois de sua eleição.

Esse ato foi interpretado como um sinal de que não haveria agressão ao Tribunal, pois, se houvesse a intenção de fazer alguma coisa, ele não teria ido cumprimentar todos os ministros do Supremo, inclusive aqueles mais visados. Mas, em 1969, em razão do AI-5, três ministros foram aposentados compulsoriamente e dois foram forçados a se aposentar quando o número dos juízes da Corte reduziu-se outra vez para onze e todo o poder do Tribunal foi suprimido, assim permanecendo até 1988. Então, nós já vivemos esses conflitos institucionais, mas acho que hoje em dia o Supremo Tribunal Federal tem muito mais força do que tinha naquele tempo e tem mostrado essa força de maneira bastante elogiável, principalmente no esforço para manter a Constituição e a integridade das eleições.

Vocês se sentiram ameaçados e/ou pensaram em sair do país na época?

Não. O máximo que podiam fazer já haviam feito. Depois da aposentadoria, meu pai voltou a advogar. Nós saímos de Brasília e voltamos para o Rio. Na verdade, ninguém queria ir para Brasília e minha mãe tinha horror à cidade. Brasília era uma cidade pequena, com cerca de 80 mil habitantes, não tinha trânsito, nem mesmo sinal de trânsito. Eu conhecia praticamente todo mundo. A vida girava praticamente em torno do Plano Piloto, com poucas atividades culturais, embora em torno da UnB houvesse exposições, palestras, etc. Mas, evidentemente, depois de 1964 a Universidade passou por uma situação difícil e, em 1965, a decapitaram completamente. Nos últimos dois anos em Brasília, moravam só eu e meu pai. Foi uma fase muito interessante, porque pude conviver com ele intensamente.

Você se formou na UnB. Quais os professores que mais lhe marcaram durante o curso de direito?

Eu me formei em direito na UnB no final de 1966, em pleno regime militar. Vários professores me marcaram muito. O Min. Victor Nunes Leal, professor de direito constitucional, foi excepcional, assim como o Valdir Pires, que se tornou posteriormente governador da Bahia e consultor geral da república. Entre os mais jovens, Eduardo Ribeiro, Pertence, o baiano Carlos Costa, professor de história das ideias jurídicas e de filosofia do direito, bem como Roberto Lira Filho, professor de direito penal. O corpo docente da UnB era de primeira grandeza.

O que fez após retornar formado ao Rio de Janeiro?

Depois que me formei, arrumei trabalho em um escritório de advocacia aqui no Rio, onde fiquei por décadas. Naquela época, o Miguel Lins, grande amigo de meu pai, tinha um conhecido escritório de advocacia na área cível. E lá acabei criando uma área para mim, de consultoria empresarial internacional, na qual acabei me especializando, sobretudo porque naquele tempo o escritório não tinha clientes estrangeiros. Eu desenvolvi essa área, porque falava inglês, ao contrário dos demais. Recordo-me que comecei com um único cliente norte-americano e, a partir daí, descortinou-se esse nova nicho que mudou a minha vida completamente, pois fui me ligando às companhias e acabei diretor de algumas delas. Em 1990, saí do escritório para ser presidente de uma companhia multinacional, a Reynolds Alumínium, que naquela época era a segunda maior empresa de alumínio do mundo. Eles tinham atividades no Brasil não só no campo da mineração, mas sobretudo na área da fabricação de latas. Presidi a companhia durante uns dez anos: primeiro, fui responsável pela área jurídica e, posteriormente, presidente da companhia no Brasil, na Argentina e no Chile.

Como foi a experiência de migração do direito para a área empresarial?

Na prática, isso já tinha acontecido. Naquele tempo, a lei brasileira exigia que os administradores da sociedade fossem residentes do Brasil. Então, como o cliente estrangeiro não tinha uma pessoa aqui, o advogado acabava assumindo essa função, ainda que por vezes de forma puramente figurativa com o fim de assinar uma procuração para alguém administrar. Mas, com isso, pouco a pouco fui adentrando o mundo das companhias e, após atuar inicialmente como gestor de uma companhia de mineração norte-americana, comecei a trabalhar para outra empresa produtora de estanho, onde tive uma experiência muito interessante e acabei como diretor do departamento jurídico, sem, contudo, largar o escritório, o que foi algo muito desafiador. Fiquei ligado ao grupo Reynolds até que fosse adquirido por outro grupo no exterior.

Como funcionava seu escritório nessa época tendo em vista que você precisava se dividir entre a companhia e a banca?

Quando assumi a direção da companhia, larguei completamente o escritório. O Júlio Rabelo, jovem advogado e meu colaborador, trabalhava comigo na época e quando saí do escritório, essa área internacional do escritório praticamente morreu. Tinha muito trabalho, embora o Brasil não fosse tão regulado quanto hoje. Não havia, por exemplo, tanta regulação ambiental, o Código de Mineração era muito mais simples, etc. Mas encontrávamos grandes obstáculos e incompreensão ao tentar se estabelecer no país.

Só para se ter uma ideia, houve até uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a nossa primeira fábrica de latas no Brasil, onde acabei depondo para explicar o projeto. Na época, uma companhia local detinha verdadeiro monopólio da fabricação de latas (feitas com aço, ao contrário das nossas) e isso impedia que o mercado crescesse. Com forte lobby, tentaram impedir nossa instalação nos acusando até de lavagem de dinheiro, razão pela qual tivemos que responder ao Ministérios da Indústria e do Comércio, Fazenda, etc., culminando com a instauração da CPI para investigar por que vinha essa companhia destruir uma indústria nacional. Nessa época, a economia ainda era muito voltada à proteção do mercado nacional e obter uma licença de importação era uma coisa épica. Uma loucura!

Quando deixou a área empresarial e retornou para a advocacia?

Mais ou menos no ano 2000. Eu continuei a prestar assistência jurídica à companhia que adquiriu a fabricante de latas. Durante sete anos eles me pagaram como a memória da companhia, porque quando uma companhia americana compra outra, a primeira coisa que ela faz é demitir todos os funcionários a fim de reduzir custos e, com isso, a memória da empresa se perde. Então, fiquei como consultor durante vários anos.

Quando não precisaram mais de mim, voltei para a advocacia e abri um escritório próprio, pequeno, com o Julio Rabelo e o Guilherme Domingues. Passei, então, a mexer com sucessões e trust no exterior. A partir daí, minha advocacia mudou bastante, pois passei a ter como clientes muito mais pessoas físicas do que pessoas jurídicas.

Como era a advocacia empresarial em São Paulo nessa época?

O Pinheiro Neto já havia começado bem antes, na década de 40 e 50. Havia alguns escritórios atuando nessa área, como o Nabuco e o Kincaid aqui no Rio de Janeiro. Mas eu fui além, porque, enquanto esses advogados continuavam advogados da empresa, eu mudei de lado e virei diretor. Meu pai, aliás, sempre me dizia que eu não era mais advogado, mas sim empresário. Por outro lado, isso abriu minha mente. Na verdade, estive nos dois lados do balcão. Nos anos 2000, eu voltei a advogar efetivamente, mudei meu ramo de negócio e passei a fazer sucessão familiar e trusts. Por sinal, há um desconhecimento enorme em torno da figura do trust aqui no Brasil, uma desconfiança muito grande. Na época anterior à crise financeira de 2008, quando ainda havia sigilo bancário no mundo, o trust era a maneira mais segura de se criar uma estrutura no exterior absolutamente impermeável, permitindo às pessoas fazerem uma sucessão com bastante flexibilidade. Eu já conhecia o instituto desde quando trabalhava com companhias americanas, porque as pessoas lá tinham trusts.

O trust é mais do que um planejamento sucessório, é uma maneira de organizar a vida da pessoa. Teoricamente, você passa toda a sua fortuna ao trustee, mas tudo se baseia em uma palavra: confiança. Na estrutura do trust, você tem o trustee, o settlor (instituidor) e o protector, que é a pessoa que protege o trust e que tem certos poderes. Não tive casos de trust que tenham dado errado, mas tive problemas com o protector de um trust, pois o dinheiro estava com determinado banco e o cliente deu uma ordem para fazer uma operação e eles se recusavam a fazer alegando que a operação era extremamente arriscada, o que me forçou a usar meu poder de remover o trustee (banco). Foi a única vez em que tive problemas. Mas hoje o trust perdeu força com a quebra do sigilo bancário, que só existe ainda praticamente nos Estados Unidos, onde há estruturas bastante fechadas. No Brasil é muito fácil quebrar o sigilo bancário, que, por sinal, não tem a função de proteger crimes, mas sim de proteger a intimidade das pessoas. Então, o trust no Brasil não tem nenhuma utilidade prática. Acho curiosa a proposta do novo Código Civil de recriar o fideicomisso, com uma feição de trust, embora ambos sejam bem diferentes.

Em quais áreas atua atualmente?

Atuo muito na arbitragem, principalmente em questões comerciais e societárias. É uma experiência extremamente interessante, porque o trabalho dos advogados costuma ser muito bom. Mas tive um caso em que levamos oito anos para constituir o tribunal arbitral, porque as partes recusavam a indicação de todos os árbitros. Passamos por uns dez ministros aposentados do STF e STJ, desembargadores e todos eram recusados por um lado e pelo outro, como represália. Isso é algo que a Lei de Arbitragem deveria encarar, pois é uma forma de impedir a arbitragem. É, no fundo, um abuso de direito. Aliás, hoje há um abuso em questionar os árbitros a posteriori, depois da decisão desfavorável. Penso que o Judiciário deveria punir esses comportamentos de má-fé. Acho que a lei, na verdade, deveria exigir o depósito do valor do débito para permitir um questionamento da arbitragem na justiça. Aqui no Brasil temos o problema do desvirtuamento das instituições e a arbitragem virou uma primeira etapa para o processo judicial, o que enfraquece e desmoraliza evidentemente a arbitragem.

Como vê hoje o uso da inteligência artificial na advocacia? Isso vai nivelar os advogados e dificultar para o cliente separar os bons dos maus profissionais?

A gente não sabe ainda a extensão desses programas de inteligência artificial. Fala-se muito, mas sabe-se pouco sobre os desdobramentos disso. Eu acho que na área da ciência é possível que a IA ajude muito, mas talvez seja exagerada a ideia da capacidade da inteligência artificial. O problema maior me parece ser a falta de inteligência dos humanos. Mas acho que ainda é cedo para julgarmos. Meu maior receio, contudo, é que as decisões judiciais sejam entregues completamente à máquina, seja por falta de tempo ou por preguiça do julgador. Há muitos problemas éticos e de outras naturezas aqui envolvidos e penso que estamos depositando uma super confiança nisso tudo. Essa confiança tão grande me parece prematura. Mas, por enquanto, prefiro aguardar para ver como isso vai funcionar na prática.

Qual conselho você daria para os jovens advogados?

Quando o Ayatolah Khomeiny tomou o poder no Irã, ele extinguiu a classe dos advogados e determinou que todos fossem "treinados em profissão mais útil". Essa é uma saída fácil: mudar de carreira. Para os persistentes, aconselho que evitem se isolar no vasto campo do direito. A especialização é uma coisa útil, mas deve-se tentar expandir o conhecimento para ter ao menos uma noção dos muitos ramos da ciência jurídica. Afora o conhecimento jurídico, é indispensável integrar-se no mundo. Isso se faz através da leitura de qualquer assunto e traz elementos para argumentar e melhora o estilo ao escrever. Os advogados devem ler de tudo, pois isso abre horizontes e expande o conhecimento. Lembro-me de um antigo advogado no Rio que dizia haver aprendido falência lendo Balzac...