Por que temer a inteligência artificial?
terça-feira, 9 de setembro de 2025
Atualizado em 8 de setembro de 2025 11:03
A coluna German Report desse mês tem a honra de receber o contributo de Geraldo Miniuci Ferreira Júnior, professor associado do Departamento de Direito Internacional da Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Direito e diplomacia, nosso convidado é doutor e livre-docente em Direito Internacional, com pós-doutorado na área de filosofia realizado no Cebrap - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, onde trabalhou como pesquisador entre 2007 a 2009.
Sua formação diplomática no renomado Instituto Rio Branco o levou à Alemanha, onde serviu na Embaixada do Brasil em Bonn, com passagens por Beirute, Bucareste e Georgetown. Assessorou, durante um período, a Comissão Nacional da Verdade, órgão oficial temporário, criado pela lei 12.528/11, com o objetivo de investigar e esclarecer violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar.
Com vasto campo de pesquisa, Geraldo Miniuci tem se dedicado recentemente a temas centrais do cenário internacional, como migrações, Direito e religião em perspectiva comparada, e Direito e psicologia das massas.
Nesse ensaio, ele reflete sobre o comportamento do ser humano de deixar - voluntariamente! - de utilizar o próprio intelecto para delegar a tarefa de pensar a máquinas mais rápidas e supostamente mais inteligentes, o que traz em si o risco de regresso ao chamado "estado de minoridade" kantiano, caracterizado pela incapacidade de utilizar o próprio intelecto sem a orientação de outrem. Confira!
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Que a humanidade faz inegáveis progressos no campo tecnológico, disso ninguém discordará. Desde a invenção da roda, apenas para pegar um exemplo que remonta a cerca de 3.500 anos antes da era comum1, até os dias de hoje, foram incontáveis as criações produzidas pela engenhosidade humana. Talvez não seja exagero dizer que a inteligência artificial, no campo da ciência da computação, representa, nos dias que correm, o ápice dessa evolução, dado o potencial que ela traz consigo.
Se, a partir da roda, foi possível o desenvolvimento de instrumentos que revolucionaram o transporte e a produção de bens, o surgimento da inteligência artificial, ao que tudo indica, terá impacto em praticamente todas as áreas do saber e do fazer: do Direito à medicina, passando pela arquitetura e engenharia, máquinas - que aprendem em ritmo mais veloz do que o humano - mudarão as relações e a execução do trabalho.
Em razão das implicações que traz consigo, essa invenção suscita temores de toda sorte. Não será, porém, a primeira vez na história da humanidade que o desenvolvimento tecnológico provoca medos e resistências. Basta lembrarmos dos levantes contra a automação na indústria têxtil inglesa, no século XIX, realizados por artesãos que viam a modernização então em curso como fenômeno que levaria ao desemprego.2
O surgimento da inteligência artificial, contudo, indo muito além das relações de produção, suscita um outro tipo de temor, o de que as "máquinas inteligentes" sejam menos um "recurso tecnológico que pode vir a agregar maior valor ao potencial criativo humano"3 do que uma criatura que possa sair de controle e dominar o criador. Fará sentido que nos deixemos levar por distopias dessa natureza? Devemos, como seres humanos, temer as máquinas e acreditar que elas possam realmente levar-nos a viver algo semelhante ao retratado no filme Matrix?
Desde o surgimento do Iluminismo, entendido como "linha filosófica caracterizada pelo empenho em entender a razão como crítica e guia a todos os campos da experiência humana"4, atribui-se à observação científica a condição de melhor ferramenta para entender a realidade e resolver problemas, em oposição à tradição e à fé religiosa cega e acrítica.
Para Kant, "o Iluminismo é a saída dos homens do estado de minoridade devido a eles mesmos. Minoridade é a incapacidade de utilizar o próprio intelecto sem a orientação de outro."5 A independência dos Estados Unidos e a revolução francesa, tidos como movimentos que se inspiraram no Iluminismo, são exemplos de acontecimentos políticos que deram início a uma nova era, a era da razão.
A julgar pelo que se observa nos dias de hoje, em que pessoas já apresentam comportamento patológico de gente viciada em celulares, há, de fato, motivos para temer que o ser humano, voluntariamente, desista de utilizar o próprio intelecto e delegue a tarefa de pensar para máquinas mais inteligentes e mais rápidas do que ele, regressando assim ao estado de minoridade referido por Kant. Devemos, de fato, temer por isso? Estaremos, mesmo, a ponto de renunciar à nossa autonomia em favor de máquinas?
Ora, se a minoridade é um estado ao qual se regressará por conta de uma capitulação perante máquinas inteligentes, inventadas pelo engenho humano, isso significa que o desenvolvimento da razão caminha por vias distintas das vias que os indivíduos percorrem no seu processo de amadurecimento; do contrário, não haveria retrocesso.
Entendamos: o progresso tecnológico decorre do desenvolvimento da razão, e cada avanço obtido significa um caminho sem retorno. Ninguém voltará a realizar cirurgias cardíacas hoje como se realizava no passado; ninguém fará restaurações dentárias como se fazia noutros tempos; ninguém empregará as técnicas de produção têxtil utilizadas na Antiguidade, se máquinas mais modernas executam com maior precisão e eficiência as mesmas tarefas do setor.
Enfim, são inúmeros os exemplos para ilustrar que aquilo que se desenvolve a partir da razão, isto é, a partir da ciência e de sua objetividade, significa um passo adiante, sem retorno a estágios mais primitivos do progresso humano. Por isso, admitir um regresso à minoridade será como aceitar que a maioridade não decorre da razão, da ciência, mas de algum outro processo, cujo desenvolvimento não é linear e isento de contradições e que percorre caminhos distintos daquele percorrido pela objetividade.
Se, no entanto, acreditarmos que a razão permitiu a emancipação do ser humano, não haverá por que temer um retorno à minoridade. Mas, terá o indivíduo alcançado, de fato, sua maioridade e passado a usar o intelecto sem a orientação de outro?
Não é o que a história nos mostra. Afinal, o que aconteceu na revolução francesa foi tão-somente a substituição do Deus universal pela Pátria provinciana, pois não há como unificar coletividades formadas por sujeitos em permanente estado de minoridade, sem que haja a figura de um pai a quem possam adorar, um pai que lhes imponha disciplina e despertem temor reverencial, um pai representado por um sacerdote ou por um militar, quando não por ambos.
O ser humano já era menor, antes da inteligência artificial. O ser humano já era menor antes de qualquer avanço tecnológico e permaneceu nessa condição. A razão foi capaz de desenvolver a inteligência artificial, mas não de emancipar o sujeito, que, agora, poderá delegar a máquinas a tarefa de pensar e continuar, assim, como eterno infante, que envelhece biologicamente, sem nunca se ter emancipado, sem nunca ter consciência de si mesmo e de suas mais primitivas pulsões, às quais permanece atado.
Por isso, há mais motivos para temer a inteligência natural do que a artificial, porque a inteligência natural, ao contrário da artificial, tem um componente emotivo, pulsional, que permite a manipulação dos indivíduos e a dominação social sem violência física.
Talvez a inteligência artificial venha potencializar aquilo que a publicidade e a propaganda política já fazem há muito tempo, num caso, criando desejos de consumo e, no outro, sedimentando valores políticos e sociais, sem que os atingidos se deem conta. Com engenhosas estratégias de comunicação das massas, atinge-se o lado emocional de toda a gente, que passará a desejar produtos de que não precisa e a odiar quem nunca odiou.
Ao contrário da ciência e da técnica, o desenvolvimento da história não é linear, nem coerente. Muito pelo contrário. A história é repleta de contradições. Na Idade Média (476-1453), conhecida como idade das trevas, criaram-se a universidade e o livro; na Idade Moderna (1453-1789), queimavam-se bruxas. Na nossa era, a era Contemporânea, em que os valores do iluminismo se encontram sedimentados, universidades foram fechadas, livros, queimados, e judeus, mandados para a câmara de gás.
É muito difícil afirmar que, em comparação com o período medieval, tenhamos melhorado qualitativamente como pessoas. Somos o resultado de contradições: se, na revolução francesa, padres foram guilhotinados e membros do clero, forçados a jurar fidelidade à república então nascente, hoje o laicismo e a religiosidade convivem lado a lado, numa síntese que coloca Deus acima de tudo e a Pátria acima de todos.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Abbagnano, Nicola. "Iluminismo". In: Dicionário de filosofia". São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 534
5 Abbagnano, Nicola. "Iluminismo". Id.