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German Report

Decisões do STJ e STF alemão.

Karina Nunes Fritz
terça-feira, 7 de julho de 2020

Entrevista: Prof. Dr. Newton De Lucca

A coluna de hoje do German Report traz uma entrevista exclusiva com um dos maiores comercialistas da atualidade: Newton de Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre, doutor e livre-docente pela USP, Newton de Lucca é um poeta que o Direito roubou da literatura, para a sorte da ciência jurídica. Apesar da paixão cedo aflorada pela literatura, perceptível em suas produções literárias e em sua escrita elegante, o destino o levou inicialmente à advocacia, atividade que exerceu até ser indicado ao cargo de desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª região, Corte que ele presidiu entre 2012 a 2014. Membro de diversos institutos, como a prestigiosa Academia Paulista de Direito, Newton de Lucca é atualmente Vice-Presidente do Instituto Latino-americano de Derecho Privado e Presidente da Comissão de Proteção ao Consumidor, no âmbito do comércio eletrônico, do Ministério da Justiça. A docência e a pesquisa científica do direito são uma constância em sua vida. Em 1977, apresentou dissertação de mestrado sobre os "Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito", sob orientação de Fabio Konder Comparato, que o orientou no doutorado com a tese "A cambial extrato", defendida em 1981. Sua visão vanguardista o levou a apresentar, em 1986, tese de livre-docência sobre o "Regime jurídico da empresa estatal no Brasil", no qual sustentou a necessidade de edição de lei para as estatais, a qual só vem a lume trinta anos depois com a lei 13.303/2016. Da mesma forma, quando pouco se discutia sobre direito do consumidor no Brasil, Newton de Lucca apresentou tese pioneira sobre a "Teoria geral da relação jurídica de consumo", com a qual concorreu à vaga de professor titular na USP. Embora não tenha alcançado a titularidade, o trabalho é considerado uma das mais profundas análises sobre o - ainda controverso - conceito e elementos da relação jurídica de consumo, haja vista a discussão em torno da teoria do finalismo aprofundado, que permite albergar empresas vulneráveis sob o manto protetor do Código de Defesa do Consumidor. Jurista atento à realidade de seu tempo, Newton de Lucca começou a se interessar desde cedo pelo espaço virtual, sendo um dos mais proeminentes estudiosos do direito digital, dedicando especial atenção aos contratos eletrônicos, blockchain, criptomoedas e ao sensível problema da proteção de dados pessoais. Prova disso é que desde 2000, leciona a disciplina de "direito do espaço virtual" no programa de pós-graduação da USP, tendo vários escritos a respeito que influenciaram decisivamente a construção teórica desenvolvida nessa matéria. A titularidade na cátedra de Direito Comercial no Largo do São Francisco viria com mais um estudo de fôlego e coragem, dessa vez sobre a ética no direito empresarial. Da ética geral à ética empresarial é a obra daí resultante, publicada pela Quartier Latin, em 2009. O tema é, por óbvio, de grande atualidade, principalmente em ambientes de corrupção estrutural generalizada, como o nosso, no qual a compliance é poderoso instrumento contra as corruptelas das empresas. Atento à (re)valorização da eticidade no direito, Newton de Lucca vê a ética como instrumento de combate à corrupção, alheio a qualquer ceticismo acadêmico que pretenda taxar sua ideia de utópica. Fã incondicional de Carlos Drummond de Andrade, Newton de Lucca é, para além de humanista, um vanguardista no Direito, que luta contra a petrificação do pensamento jurídico. Humilde, definiu-se pelas negativas, em um de seus recentes poemas: "Já não é mais professor de Literatura. Não escreve novelas para a televisão. Não pronunciou conferências no exterior sobre literatura brasileira. Não recebeu nunca nenhum grande prêmio literário. Não frequentou as academias de letras e, muito menos, tentou fazer parte de alguma delas. Jamais foi candidato ao Senado ou à Câmara dos Deputados." Não obstante, cravou seu nome na história do direito brasileiro, poder-se-ia acrescentar, rogando vênia pela falta de estilo. Nessa entrevista, Newton de Lucca faz valiosas análises sobre o momento excepcional que estamos vivendo com a crise sanitária, social e econômica provocada pelo coronavírus, convidando-nos à reflexão. Confira: GR: A pandemia de Covid-19 impactou duramente as empresas em todo o mundo e muitos governos anunciaram amplos pacotes de socorro às pequenas, médias e grandes empresas, o que inclui desde a concessão de crédito e garantias estatais até a aquisição temporária pelo Estado de ações das companhias, como aconteceu recentemente com a companhia aérea alemã, Lufthansa. Estamos vivendo uma nova fase de intervencionismo estatal na economia e, em caso positivo, em que medida isso é indispensável à recuperação da economia? NL: Entendo que não se trata, propriamente, de uma nova fase de intervencionismo estatal na economia, mas de uma forma, já prevista − na Constituição da República e no Estado Democrático de Direito por ela consagrado −, de intervenção do Estado na ordem econômica. Diante da extrema gravidade da crise sanitária causada pela covid-19, o Estado tinha, evidentemente, o poder-dever de atuar na mitigação dos efeitos financeiros, econômicos e sociais dessa crise, fazendo-o, inicialmente, pela edição do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março do corrente ano de 2020, que reconheceu o estado de calamidade pública existente no País. GR: Diante desse movimento de reintervenção, muito percetível no exterior, surge a questão de como lidar com o intervencionismo mínimo postulado pela Lei de Liberdade Econômica em tempos de pandemia. A lei é adequada para solucionar problemas em tempos de pandemia? NL: A Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabeleceu normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, instituída pela lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, postula, sem dúvida nenhuma, um intervencionismo mínimo por parte do Estado brasileiro, enquanto incentivadora dessa liberdade de iniciativa. Foi editada, portanto, antes do advento da pandemia, não sendo absolutamente adequada para solucionar os problemas em tempos de pandemia. Mas as normas emergenciais, de caráter transitório, dadas à estampa após o período de pandemia do coronavírus (a covid-19), por outro lado, não têm como propósito alterar ou revogar normas existentes, como ficou claro pela redação do art. 2º da lei 14.010, de 10 de junho último ("A suspensão da aplicação das normas referidas nesta Lei não implica sua revogação ou alteração") e sim, apenas, suspendê-las. Acresce que o Preâmbulo da Constituição e vários dos seus artigos deixam claro que o Brasil é um Estado Social, no qual a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, e a justiça são os valores supremos de uma sociedade. O eventual conflito entre Estado Social e intervencionismo mínimo deve ser resolvido com a inafastável prevalência do primeiro. GR: Seguindo a orientação da intervenção mínima, a lei 14.010/2020 previa em seu art. 7º, vetado pelo Presidente, que aumento da inflação, variação cambial e até a substituição do padrão monetário não seriam considerados eventos imprevisíveis a legitimar a revisão ou a resolução dos contratos. A norma, caso aprovada, afetaria inúmeros contratos atrelados ao dólar, prejudicando negócios no setor aéreo, energia, mineração e siderurgia, que já amargam prejuízos em razão do coronavírus. Deve o legislador qualificar abstratamente fenômenos econômicos, presentes em momentos de crise, como fatos previsíveis a fim de impedir o Judiciário de reequilibrar os contratos? NL: Entendo que não. Andou bem o Presidente da República, a meu ver, ao vetar esse art. 7º da lei 14.010/2020, que dispunha no sentido de que não seriam considerados fatos imprevisíveis o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização e até mesmo a substituição do padrão monetário, para os efeitos dos arts. 317, 478, 470 e 480 do Código Civil, com base no interesse público. A despeito da intensa controvérsia doutrinária e jurisprudencial existente sobre a matéria, sobretudo quando um desses fatos econômicos deva ser ou não considerado imprevisível, entendo caber ao Poder Judiciário a análise do caso concreto para saber da aplicabilidade ou não dos institutos da força maior, do caso fortuito, das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva. GR: Com a crise econômica, decorrente da crise de saúde pública, parece que o empresariado vai atravessar um período sombrio nos próximos anos. O Senhor acha que são necessárias alterações legislativas no campo da recuperação judicial e falência para lidar com as dificuldades financeiras das empresas? NL: Não tenho a menor dúvida de que são necessárias medidas emergenciais de socorro às empresas em crise. Nesse sentido, urge que o PL 1.137/2020, já aprovado pela Câmara dos Deputados, seja igualmente aprovado pelo Senado e, posteriormente, sancionado pela Presidência da República. Tenho a impressão de que se torna necessário fazer, antes de mais nada, uma distinção entre o que seja reforma circunstancial e reforma estrutural. A reforma preconizada pelo PL 1.137/2020 é, nitidamente, uma reforma de caráter circunstancial, isto é, destinada a regular este período particularmente grave em que estamos vivendo. Já o Projeto de Lei 6.229, de 2005, propõe uma reforma de caráter estrutural, submetendo também os créditos tributários à recuperação judicial. Tal afirmação não significa, porém, que alguma alteração do PL 1.137/2020 não possa ter caráter, igualmente, estrutural. Exemplificativamente, quando o art. 1º do PL dispõe que: "Art. 1º Esta Lei institui medidas de caráter emergencial destinadas a prevenir a crise econômico-financeira de agentes econômicos e altera, em caráter transitório, o regime jurídico da Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência, de que trata a lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005", está, evidentemente, promovendo um alargamento considerável do âmbito da proteção normativa, com a adoção do conceito de agente econômico, passando a ser destinatários dela, não apenas as sociedades empresárias, mas todas as pessoas jurídicas de direito privado, o produtor rural e o profissional autônomo que exerça regularmente suas atividades. Mas o objetivo fundamental desse PL, sem dúvida, muito mais do que fazer essa ou aquela alteração estrutural, foi dar um fôlego adicional a todas as empresas em dificuldade. GR: Poderia nos dizer, em resumo, no que consiste esse fôlego dado às empresas em dificuldade pelo PL 1.397/2020? Em linhas gerais, pode-se dizer que o PL em questão prevê algumas etapas diversas. Inicialmente, foi previsto um prazo de trinta dias (anteriormente, esse prazo era de sessenta dias) para que seja afastada não apenas a incidência de multas de mora, como, igualmente, a excussão judicial e extrajudicial das garantias reais, fiduciárias, fidejussórias e de coobrigações; a decretação de falência; e a resilição unilateral de contratos bilaterais. Tal é o que está estabelecido pelo art. 3º, constante do Capítulo I, relativo ao sistema de prevenção à insolvência. Passado esse período inicial de verdadeiro "respiro" para as empresas em crise - solução emergencial adotada pelo PL, a meu ver impossível de ser questionada −, segue-se um segundo período - este, sim, de caráter sabidamente polêmico −, denominado negociação preventiva, de caráter transitório, durante o qual o agente econômico terá direito de tentar negociar com seus credores, evitando o pedido de recuperação judicial ou a falência. Frise-se que, a despeito de essa negociação preventiva ser possível ao agente econômico somente no período da entrada em vigor da lei até 31 de dezembro do corrente ano de 2020, nada impede que o Poder Judiciário venha a adotar essa ampliação do conceito dos destinatários da lei 11.101/2005, igualmente para o futuro, tal como aconteceu, há poucos dias, com o pedido de recuperação judicial da Universidade Cândido Mendes, uma associação civil sem fins lucrativos, com mais de cem anos de história na educação do País... A decisão judicial de primeira instância − acertadamente, a meu ver − deferiu o pedido. A par de tais mudanças, houve várias outras, de caráter pontual, destinadas a aprimorar, principalmente, a recuperação extrajudicial, infelizmente pouco aproveitada em nosso meio. GR: As pequenas empresas foram as mais afetadas pela crise de saúde pública e econômica, provocadas pelo coronavírus. As pequenas empresas são adequadamente protegidas pelas leis concursais e recuperacionais vigentes? NL: Não obstante a disposição constitucional expressa no sentido de conferir-se às microempresas e empresas de pequeno porte tratamento jurídico diferenciado (art. 179 da CF), sempre as considerei como as grandes olvidadas da ordenação jurídica nacional, especialmente em matéria falimentar e recuperacional. Grande olvidadas, quero dizer, não sob o prisma da falta de proteção normativa expressa, já que esta sempre existiu, mas no sentido de estímulo concreto e efetivo, mediante concessão de linhas de crédito especiais e medidas análogas. Tal situação de completo abandono, no entanto, parece ter sido superada, pelo menos parcialmente, com a edição da Lei 13.999, de 18 de maio último, que instituiu o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) para o desenvolvimento e o fortalecimento dos pequenos negócios. É claro que o socorro prestado pelo Poder Público aqui no Brasil não pode ser comparado, nem de longe, com o que foi investido na Alemanha e nos Estados Unidos da América, países de poderio econômico muito maior do que o nosso. GR: Tramita no Congresso o PL 1.137/2020 que institui medidas de caráter emergencial destinadas a prevenir a crise econômico-financeira de agentes econômicos e altera, em caráter transitório, o regime jurídico da recuperação judicial, da recuperação extrajudicial e da falência. O Senhor acha que as medidas propostas são aptas efetivamente a cumprir seu desiderato? NL: Sem embargo das numerosas críticas existentes a respeito do PL em pauta, especialmente as relativas ao instituto da negociação preventiva, entendo que ele é muito melhor do que ficarmos inertes. Talvez o maior problema dele seja o seu aspecto serôdio. Ele já devia ter sido aprovado há mais tempo. Estamos no mês de julho e, desde março último, muitas empresas estão sendo fechadas, à míngua de um regime jurídico que lhes permita sobreviver. Não desconheço, é claro, o teor de algumas críticas formuladas a esse modelo da negociação preventiva, calcadas, sobretudo, na necessária intervenção do Poder Judiciário, que já se acha, como se sabe, absolutamente sobrecarregado de processos. Pondera-se, nessa linha de argumentação, o seguinte: no momento em que se pretende desafogar o Poder Judiciário da enorme sobrecarga de trabalho que já pesa sobre seus ombros, qual seria o sentido para que se exija sua presença prévia numa negociação de caráter eminentemente extrajudicial? Argumenta-se, também: sendo a formação profissional do magistrado exclusivamente voltada para fazê-lo imparcial, independente, íntegro, idôneo etc. -, qual seria a conexão para que ele esteja qualificado a autorizar uma negociação de caráter privado? Penso ser este o grande nó górdio a ser desatado no momento. Não se discute que, de um lado, o estímulo à negociação e à mediação seja medida absolutamente impostergável, sendo certo que vários países do mundo têm se esforçado na busca de incentivos aos procedimentos de pré-insolvência e de negociação, estimulando os credores à celebração de acordos com o devedor, sendo benéfico todo e qualquer esforço tendente à utilização dos institutos da mediação e da conciliação, seja como método eficaz de solução de controvérsias, seja, principalmente, para que tal método se torne um sucedâneo pré-processual da propositura de novas ações judiciais. Mas também é certo, por outro lado, ainda não ter, entre nós, uma cultura amplamente favorável à celebração de acordos... E, além disso, se já existe um fundado temor no sentido de que o Poder Judiciário não se acha preparado para receber os milhares de pedidos de Recuperação Judicial que nele irão provavelmente desaguar, não seria desarrazoado fazer com que ele tenha presença necessária na negociação preventiva, ainda que seja apenas para verificar se houve, efetivamente, a queda de 30% do faturamento do devedor, comparado com a média do último trimestre correspondente de atividade no exercício anterior, de conformidade com o § 2º do art. 6º do PL em tela? Acresce argumentar, neste sentido, que algumas projeções estimam - talvez um tanto exageradamente − que mais de cinco mil pedidos de recuperações judiciais deverão ocorrer até o fim deste ano de 2020... Se esse Poder já se acha absolutamente sobrecarregado de processos, será razoável que ele deva intervir numa negociação de caráter privado, causando-lhe uma sobrecarga ainda maior? GR: Muito tem se falado na importância do financiamento, público e privado, para as empresas em tempos de coronavírus. O que esperar em termos de financiamento público de um Estado que só intervém minimamente na economia? NL: Penso que o verdadeiro problema não está na eventual antinomia entre financiamento público, de um lado, e intervenção mínima na economia, de outro, mas na falta de recursos financeiros do Governo Federal para dar o devido socorro às empresas nacionais. Se tais recursos existissem, como ocorre com vários outros países do mundo, não haveria Declaração de Direitos de Liberdade Econômica que impedisse o necessário espaço de respiro a ser dado às empresas, sejam micro, pequenas, médias ou grandes, pois todas elas acham-se sufocadas por uma crise sem precedentes na história, semelhante, apenas, ao que ocorreu na centúria passada, no ano de 1929. Veja-se o que aconteceu, por exemplo, com os Estados Unidos da América em 2008. Um pacote, aprovado às pressas pelo congresso estadunidense, destinou nada mais, nada menos, do que aproximadamente setecentos bilhões de dólares de dinheiro do contribuinte americano para socorrer os banqueiros. Desde a quebra do Bear Stearns, até outubro de 2008, o governo estadunidense e a Reserva Federal já haviam despendido cerca de dois trilhões de dólares na tentativa de salvar as instituições financeiras daquele país. O que estou querendo dizer é que as tais "soluções de mercado" ficaram evidentemente para trás. A frase por mim ouvida, não faz muito: "Ainda bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus, porque esse monstro está permitindo que os cegos enxerguem que apenas o Estado é capaz de dar soluções a determinadas crises" chega a ser risível, com o perdão da expressão. Como se já não bastasse o absurdo de alguém desejar, num ímpeto de incontrolável fúria, que a espécie humana possa vir a ser destruída por um vírus, toca às raias do disparate supor que tal tragédia seria benéfica para mostrar que só o Estado é capaz de dar soluções a determinadas crises... Ora, parece ter faltado ao ilustre prolator da fatídica frase aquele conhecimento elementar de que não se discute mais, nos dias que correm, se o Estado deve ou não interferir diante de determinadas crises. Basta retrocedermos pouco mais de dez anos, como atrás se frisou. Sabe-se que a crise econômica dos Estados Unidos da América - curiosamente um país considerado de economia liberal e não estatizante -, ocorrida nos anos de 2007-2008, foi fruto de uma conjuntura econômica global que se sentiu uma durante crise financeira internacional, inquestionavelmente precipitada pela falência do tradicional banco de investimento estadunidense Lehman Brothers, fundado em 1850. Em efeito dominó, outras grandes instituições financeiras quebraram, no processo também conhecido como "crise dos subprimes". Sabe-se, igualmente, que para evitar um verdadeiro colapso, o governo optou por reestatizar as agências de crédito imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac, que haviam sido privatizadas em 1968. Tais agências passaram a ficar sob controle governamental, por tempo indeterminado, injetando US$ 200 bilhões nas duas agências, considerada a maior operação de socorro financeiro feita por aquele governo. Em outubro de 2008, a Alemanha, a França, a Áustria, os Países Baixos e a Itália anunciaram pacotes que somavam 1,17 trilhão de euros de ajuda a seus sistemas financeiros. O PIB da Zona do Euro teve uma queda de 1,5% no quarto trimestre de 2008, em relação ao trimestre anterior, a maior contração da história da economia da zona. Enfim, o que estou tentando dizer é que o socorro brasileiro às empresas não tem sido suficiente, é certo, mas isso ocorre pela falta de recursos disponíveis para tanto. GR: Na Alemanha, a legislação emergencial proibiu o despejo e suspendeu o pagamento dos alugueis residenciais e comerciais, durante o período de lockdown (abril a junho), desde que o locatário demonstrasse não poder pagar a renda sem prejuízo de sua subsistência e que essa dificuldade decorreu das medidas de combate à pandemia, regra que vale até para empresas. A lei 14.010/2020, contudo, entrou em vigor sem qualquer proteção aos inquilinos. Como o Senhor vê o problema das empresas que estão tendo que pagar os alugueis mesmo com as portas fechadas? NL: Com efeito, a lei 14.010/2020, previa, em seu artigo 9º, a proibição de concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo promovidas de acordo com a Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro deste não de 2020. Este artigo, porém, foi objeto de veto do Presidente da República, sob o argumento de que a proposição seria contrária ao interesse público "por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença da locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo, dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio". Escusava dizer que estamos numa espécie de círculo vicioso. Se se protege o inquilino devedor, de um lado, desprotege-se o locador credor, de outro. Este, por sua vez, também pode ser locatário de outro imóvel e, à míngua do recebimento dos aluguéis a que tem direito, não poderá pagar ao seu locador, de outro. De forma que a ponderação que me parece a mais sensata de todas é aquela que recomenda a procura de um acordo entre locatários e locadores. Só depois de esgotadas todas as possibilidades de negociação, caberá bater às portas do Judiciário, que fará uma apreciação individualizada de cada caso. Deverá ele aplicar o princípio de que os contratos devem ser cumpridos (pacta sunt servanda) ou deverá levar em conta a onerosidade excessiva, prevista no art. 317 do Código Civil?... Os magistrados, de maneira geral, têm reconhecido a excepcionalidade da situação de pandemia, como não poderia deixar de ser, mas como promover o equilíbrio contratual entre as partes? Assim é que alguns julgados estabeleceram uma redução de 50% no valor do aluguel enquanto perdurar a pandemia; outros reduziram em 40% o valor do aluguel, por um período de 90 dias; outros, ainda, resolveram suspender, temporariamente, o pagamento do aluguel; houve, finalmente, quem também suspendesse o pagamento, pois o despejo não permitiria o isolamento social determinado pelas autoridades sanitárias... Mais do que nunca, talvez, as virtudes da tolerância e do bom-senso deveriam nortear as decisões das pessoas... GR: Muitos contratos empresariais foram afetados por essa inesperada crise econômica mundial, só equiparável, segundo o FMI, à grande depressão de 1929. Diante desse quadro, qual a importância de se readaptar os contratos? NL: Penso que a readaptação deverá ser feita na grande maioria dos casos concretos, utilizando-se da aplicação da onerosidade excessiva. Mas a análise individual dos contratos será sempre imprescindível, pois se há setores que estão sofrendo prejuízos consideráveis, outros há que estão ganhando com a crise. Não se pode aceitar, é claro, que haja enriquecimento sem causa por parte de quem deixa de adimplir o contrato, tendo totais condições de fazê-lo... GR: Ninguém sabe ao certo quando a LGPD vai entrar em vigor, pois até o Parlamento tem tentado prorrogar sua vocatio legis justamente durante a pandemia, quando as pessoas deveriam ser protegidas contra a coleta e tratamento indevido de seus dados pessoais, como mostrou a recente tentativa do governo de obrigar as telefônicas a transferir dados dos usuários ao IBGE. Qual o prejuízo para o país e para os direitos fundamentais dos cidadãos com a falta da lei? NL: Rigorosamente falando e ciente de minha condição de magistrado, penso que deveria me declarar suspeito por razões de foro íntimo (risos...) Brincadeiras à parte, tenho de confessar que, de há muito, vinha me queixando do estado de anomia jurídica em que nos encontrávamos (e, de certo modo, ainda nos encontramos...) até o advento da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Principio, então, com uma consideração de ordem puramente pessoal. Trata-se da experiência vivida por mim, ao tempo de exercício da advocacia, nas décadas de setenta, de oitenta e de boa parte da de noventa da centúria passada. Antes de ser algum ensinamento doutrinário, fruto da reflexão e do estudo, é apenas aquele "saber das experiências feito", de que nos fala o grande poeta Camões, nas estrofes de Os Lusíadas, na boca do Velho do Restelo... Ocorria, então, que grupos empresariais vinham ao meu escritório com o propósito específico de constituir uma sociedade mercantil, hoje designada sociedade empresária, com capital nacional e estrangeiro, recorrentemente chamada de "joint-venture". A certa altura dos entendimentos, indagava-me o grupo empresarial alienígena sobre o sistema de proteção de dados pessoais existente aqui no Brasil. Via-me eu, então, na contingência de explicar que ainda não tínhamos um sistema normativo de proteção de dados, propriamente dito, mas que possuíamos disposições constitucionais a respeito da proteção da intimidade, da privacidade, da honra etc. E uma lei de proteção de dados? Qual é a lei existente aqui no Brasil sobre a matéria? - perguntavam-me os empresários estrangeiros. Não me restava alternativa, então, senão a de confessar que não tínhamos uma lei de proteção, tal como ocorria na Europa, mas que, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência pátrias, nunca se deixou de levar em conta as preciosas lições do direito comparado, diante de eventual lacuna do sistema normativo vigente. Lamentavelmente, porém, à míngua de uma lei específica de proteção de dados pessoais - anomia que persistiu, como é sabido, até o advento da LGPD, em agosto de 2018 -, o grupo empresarial do exterior, quase sempre, acabava por desistir do negócio. Agora, finalmente, temos as leis 13.709, de 14 de agosto de 2018, e 13.853, de 8 de julho de 2019, a respeito da matéria, mas, muito mais do que disposições legais, torna-se necessário o desenvolvimento de uma cultura voltada à proteção de dados, sendo indispensável que o nosso país, neste momento, leve em conta a significativa experiência que pode ser extraída no plano do direito comparado. Feita tal contextualização, passo a responder à pergunta formulada. É claro o prejuízo, tanto para o País, quanto para os direitos fundamentais dos cidadãos, por causa da falta da lei em vigor. E, como se tal não bastasse, há quem pretenda adiar ainda mais a sua vigência. Tanto a Argentina, quanto o Uruguai, já possuem leis sobre proteção de dados pessoais, a primeira, desde o ano 2000, e o segundo, desde 2008, tendo ambos o reconhecimento da União Europeia de oferecerem o mesmo grau de proteção daquele bloco. E, para complicar um pouco mais a situação, temos uma dificuldade não muito simples quanto à vigência da lei 13.709: muitos artigos deverão entrar em vigor no dia 3 de maio de 2021; os arts. 52 a 54, por seu turno, só entrarão em vigor, certamente, em 1º de agosto de 2021; já os arts. 55-A, ,55-B, 55-C, 55-D, 55-E, 55-F, 55-G, 55-H, 55-I, 55-J, 55-K, 55-L, 58-A e 58-B, por uma espécie de lapsus calami do legislador de 2019, ao editar a Lei nº 13.853, teriam entrado em vigor no dia 28 de dezembro de 2018 (!!!), o que não faria sentido nenhum. É de se supor, em nome do bom-senso, que tais artigos deverão entrar em vigor somente no dia 28 de dezembro de 2021. Seja como for, é de lamentar-se que uma lei, dada à estampa tão tardiamente, ainda venha com tal dificuldade relativamente à sua vigência...
Não é de hoje que o Judiciário alemão tem combatido a coleta indevida de dados pessoais pelo Facebook. E isso, por uma razão muito simples: a prática prejudica não apenas os usuários, mas também a concorrência. Foi o que disse semana passada o Bundesgerichtshof, a corte infraconstitucional alemã. A coleta predatória de dados Atualmente, não é mais novidade para ninguém que quem se registra no Facebook acaba fornecendo uma série de dados pessoais à empresa, os quais variam desde dados sobre a pessoa até informações referentes ao aparelho e à conexão utilizada para se conectar à plataforma. Sabe-se hoje também que a empresa coleta uma infinidade de dados do usuário quando ele utiliza a plataforma, que é, por assim dizer, a fonte direta de coleta de dados pela empresa. Mas, além dessa fonte direta, a companhia liderada por Mark Zuckerberg é alimentada diariamente com dados provenientes de fontes indiretas, como WhatsApp e Instagram, pertencentes ao conglomerado digital. Não só: a empresa ainda consegue sugar dados de qualquer internauta que, surfando despretensiosamente num site qualquer, clicar no botão de curtida do Facebook, chamado plug in, instalado no site. Detalhe: isso ocorre ainda quando o internauta sequer tenha perfil no Facebook. O Tribunal de Justiça Europeu já se manifestou sobre essa específica prática, em 2019, provocado por consulta do Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Düsseldorf, na Alemanha, comentado aqui nessa coluna. De posse de toda essa infinidade de dados pessoais, o Facebook traça um perfil individual do usuário, mais preciso que qualquer psicólogo bem qualificado, e vende esse perfil para diversas empresas interessadas em ofertar produtos e serviços para o usuário. No mundo digital, é exatamente o fato de ser uma fonte inesgotável de dados que faz o (alto) valor de mercado do Facebook, segundo o Bundeskartellamt (BKartA), a agência antitruste alemã. As condições gerais de uso do Facebook, elaboradas unilateralmente pela empresa e aceita pelos usuários, permitem evidentemente a coleta, o processamento e a utilização dos dados coletados, dando aparência de legalidade às práticas comerciais da empresa. Afinal, por meio delas, o usuário concede uma licença de uso gratuita à empresa em troca da utilização da plataforma de comunicação. Mas, a verdade é que os usuários aderentes são obrigados a dar sua concordância com a ampla coleta e tratamento de dados, sob pena de não fazer parte da maior rede social do planeta, havendo aqui verdadeira imposição unilateral das condições contratuais, sem qualquer possibilidade de negociação. E, ademais, os usuários pagam com seus dados pessoais pelo uso da plataforma. Afinal, o conto da carochinha de que o usuário usaria de graça a plataforma caiu por terra quando o mundo começou a entender o modelo de negócio desenvolvido pelo Facebook e se deu conta de que os dados pessoais são o ouro do século 21. O que, de fato, ocorre é que o Facebook cede o uso da plataforma digital em troca dos valiosos dados pessoais dos usuários, o que configura um contrato oneroso sui generis, no qual a contraprestação não se dá em dinheiro, mas na cessão do uso dos dados pessoais, que a empresa converte em milhões de dólares com muita habilidade. Mas aqui surgem dois problemas. O primeiro é que a coleta dos dados é feita sem o consentimento expresso e consciente do usuário, que sequer tem mecanismos para recusar a coleta dos seus dados, em clara afronta ao art. 6, inc. 1, alínea a) da lei alemã de proteção de dados. O segundo, é que a empresa suga não apenas dados na própria plataforma, mas também em outras plataformas e, dessa forma, lesa não apenas os usuários, mas também a concorrência. Diante da coleta desenfreada de dados pessoais e de sua comercialização, o órgão antitruste alemão percebeu que, no frigir dos ovos, essa prática do Facebook configura, no plano do direito concorrencial, abuso da posição dominante no mercado, conduta vetada no § 19, inc. 1 da lei antitruste - Gesetz gegen Wettbewerbsbeschränkungen (GWB). O processo administrativo no Bundeskartellamt Por conta disso, o BKartA instaurou processo administrativo contra a empresa por violação do art. 6, inc. 1, alínea a) da lei de proteção de dados e do § 19, inc. 1 da GWB. Para a agência antitruste, o Facebook domina o mercado alemão enquanto fornecedor de rede social de comunicação e abusa de sua posição dominante ao coletar ilegalmente dados pessoais de usuários e internautas, dentro e fora de sua plataforma. Por isso, em 2019, o Bundeskartellamt determinou a suspensão imediata da coleta de dados sem o consentimento livre, expresso e individualizado de seus usuários, afirmando que os termos de uso do conglomerado não legitimam a prática. Assim, o BKartA impôs ao Facebook o dever de pedir autorização ao usuário sempre que pretender coletar seus dados em qualquer plataforma, facultando ao titular recusar a coleta de dados. Ou seja: não basta a autorização genérica no momento da criação da conta no Facebook, tem que haver concordância prévia para toda e qualquer coleta de dados. Contra essa decisão, o Facebook interpôs recurso ao Tribunal de Justiça de Düsseldorf, que ainda não se manifestou sobre o caso. Nada obstante, o Oberlandsgericht Düsseldorf levantou dúvidas acerca da assertividade da decisão do BKartA e recebeu o recurso interposto com efeito suspensivo, de modo que a proibição do órgão anticoncorrencial permaneceu inexequível. Trata-se da decisão OLG Düsseldorf Az VI-Kart 1/19 (V), proferida em 26/8/2019. Segundo a Corte estadual, nem toda conduta ilegal no domínio do mercado configura violação ao direito concorrencial, sendo indispensável a prova de rígido nexo causal para a configuração do suporte fático descrito no § 19 I GWB, ausente no caso concreto. Segundo o OLG Düsseldorf, a concordância do usuário no tratamento dos dados pessoais resultaria de ato de autonomia privada e não do aproveitamento, pelo Facebook, de uma situação de necessidade ou de falta de alternativa do usuário. Além disso, disse o Tribunal, o BKartA não demonstrou como a coleta de dados obstrui deslealmente a concorrência. A decisão do Bundesgerichtshof A Corte de Karlsruhe, entretanto, discordou do entendimento do OLG Düsseldorf e cassou a decisão que atribuiu eficácia suspensiva do recurso. Segundo o BGH, é inegável a posição dominante do Facebook no mercado alemão de redes sociais e que a empresa abusa dessa posição. A decisão provisória foi tomada pela Câmara (Senat) especializada em direito concorrencial semana passada, dia 23/6/2020. Segundo a Corte, o fato do usuário não ter possibilidade de impedir a coleta de seus dados, inclusive fora da plataforma do Facebook, viola não apenas a autonomia pessoal do usuário, mas também seu direito à autodeterminação informacional, tutelado expressamente na lei alemã de proteção de dados. Além disso, as condições de uso do Facebook são aptas a prejudicar excessivamente a concorrência, pois o acesso do Facebook a uma base tão imensa de dados fortalece sua posição no mercado, contribuindo para a lucratividade de seu modelo de negócio. Dessa forma, o poder excessivo do Facebook sobre os dados pessoais de bilhões de pessoas dificulta que seus potenciais concorrentes tenham êxito no mesmo mercado. Por isso, o BGH confirmou a decisão do órgão antitruste, que determinou a imediata paralisação da coleta abusiva de dados. Essa coleta só pode ser feita com a prévia concordância, livre e ativa, do titular todas as vezes que a empresa pretender realizar a coleta, permitindo-lhe, inclusive, desautorizar o procedimento. Agora, o Facebook tem quatro meses para apresentar ao Bundeskartellamt mecanismos hábeis a colher o consentimento prévio dos titulares dos dados pessoais. As repercussões da decisão Embora tenha apenas retirado a eficácia suspensiva do recurso interposto pelo Facebook, a decisão do BGH provocou reação imediata, pois dá uma clara orientação ao Tribunal a quo. Ela foi saudada pelo Presidente do Bundeskartellamt, Andreas Mundt, que alertou para algo hoje muito evidente: dados são um fator decisivo para o poderio econômico e isso vale principalmente no mercado digital. Quando dados pessoais são coletados e utilizados ilegalmente, é necessário a intervenção do órgão antitruste a fim de evitar abusos no poder de mercado, disse1. Não é de hoje que as práticas abusivas do Facebook vem sendo denunciadas na Europa. A coleta ilimitada e generalizada de dados, inclusive fora de sua própria plataforma, afronta o sentido e o fim último da lei de proteção de dados e reduz a pó o direito fundamental à autodeterminação informacional, componente inafastável da autonomia privada. Essa coleta predatória não pode ser chancelada com o pálido consentimento, colhido de forma genérica e sem qualquer possibilidade de recusa pelo usuário. Da mesma forma, não se pode tolerar que players privados do mercado pretendam alterar, através de termos de uso unilaterais e abusivos, os princípios e regras estruturantes do direito vigente nos países, como têm feito mundo afora o Facebook e outros conglomerados digitais no afã de escapar às normas impositivas de direito obrigacional, contratual e, não por último, sucessório, como dá prova a discussão em torno da herança digital, que esses conglomerados têm alimentado com o inebriante discurso da proteção da privacidade e intimidade, embora reste evidente o interesse comercial por trás da cortina de fumaça. A proteção de dados no Brasil No Brasil, a proteção de dados pessoais ainda está engatinhando, mas tem sido feita, de forma consequente, pelo Judiciário com base na Constituição vez que a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) tem tido adiada sob os mais diversos subterfúgios. Um dos últimos atos desse drama foi protagonizado pelo próprio Parlamento, que, com o PL 1.179/2020, pretendeu adiar a LGPD para 2021. Após muitas críticas, o citado projeto foi modificado e, transformado na lei 14.010/2020, acabou adiando a vigência das sanções administrativas para agosto de 2021. Ninguém sabe, contudo, quando a LGPD entrará em vigor, pois a MP 959/20 também adiou sua vigência para maio de 2020. Lamentável, porém, ver o próprio Parlamento adiar a LGPD justamente durante um período sensível como o da pandemia de Covid-19, quando dados pessoais dos cidadãos estão sendo coletados para fins de combate à propagação do coronavírus, tanto pelo Estado, como por particulares. Na Alemanha, onde a vida começa a voltar ao "novo normal", muitos empregadores estão coletando dados pessoais - inclusive dados sensíveis, como informações sobre a saúde dos funcionários - para poder adotar medidas de proteção eficientes no local de trabalho, protegendo os demais funcionários. Se lá essa coleta está sendo devidamente acompanhada e fiscalizada pelos agentes de proteção de dados, o mesmo não ocorrerá por aqui, caso tais dados sejam coletados, até porque falta, além do diploma legal, órgão competente para tal. Mas não só. Em alguns lugares já se encontram detectores de temperatura corporal, câmeras com reconhecimento facial e aplicativos para rastrear pessoas infectadas ou suspeitas de contaminação. Não custa lembrar ainda que o governo Federal baixou a MP 954/20 determinando que as empresas de telefonia móvel e fixa enviassem os dados de seus clientes ao IBGE sob a (vaga) justificativa de que tais dados seriam utilizados em pesquisas e trabalhos desenvolvidos na área de saúde, com vista ao enfrentamento dos efeitos da pandemia do coronavírus. O STF, porém, manteve a suspensão do repasse dos dados de pessoas físicas e empresas ao IBGE, determinada inicialmente pela Min. Rosa Weber em sede de medida cautelar na ADI 6.387 sob a justificativa de que a medida colocava em risco o direito à intimidade, privacidade e proteção de dados pessoais dos cidadãos, violando a Constituição. Um dos muitos pontos problemáticos era que a MP 954/20, além de não explicar claramente como e para quê os dados seriam utilizados, não apresentava qualquer mecanismo apto a proteger os dados pessoais contra acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida, bem como não assegurava o sigilo e o anonimato dos dados, pondo em risco direitos fundamentais das pessoas. Aqui vale lembrar que a questão da proteção de dados pessoais diz respeito não apenas à tutela da autodeterminação informacional do cidadão, mas à tutela do Estado democrático de direito, diante do risco, real no mundo contemporâneo, de controle das pessoas e de manipulação de dados para fins políticos. __________ 1 Facebook muss das Datensammeln stoppen. In: www.tagesschau.de, 23/6/2020.
O coronavírus tem alterado drasticamente a rotina e os hábitos das pessoas em todo o mundo. O distanciamento social ainda é, infelizmente, a medida mais efetiva para conter a virulenta propagação da pandemia, a despeito de outras medidas não menos importantes. Essas medidas de combate à pandemia têm provocado não só sensíveis restrições aos direitos fundamentais (principalmente liberdade de ir e vir e liberdade de exercício de atividade econômica), mas também inúmeras limitações no dia a dia das pessoas. E, diante dessa nova realidade, as pessoas estão tendo que mudar, adaptar e reinventar as formas de trabalhar, estudar, se divertir e, por vezes, conviver. E nesse processo, a tecnologia tem sido fundamental. Até mesmo a comemoração daqueles momentos mais especiais, como aniversários e casamentos, precisou ser reinventada e a solução tem sido realizar esses eventos no mundo virtual, a fim de evitar aglomerações e o contágio entre as pessoas. Lê-se com frequência notícias de criativas e divertidas festas realizadas com amigos e familiares ao vivo no WhatsApp, Instagram ou qualquer outra plataforma que permita o encontro virtual das pessoas. Mais surpreendentes têm sido as celebrações de casamentos virtuais, algo impensável até bem pouco tempo. Em Recife, o magistrado da 1ª vara de Registro de Família realizou uma cerimônia de casamento por meio de chamada de vídeo no WhatsApp. Segundo ele, "essa é uma novidade trazida pela necessidade de tentar, dentro de uma situação de pandemia, minimizar os efeitos para as partes"1. Dessa forma, quem ainda não marcou o casamento, mas não quer - ou não pode - esperar o fim da pandemia, pode entrar em contato com o cartório para agendar um horário e, no dia e hora marcada, o juiz faz a conferência com os noivos, o oficial do registro e as testemunhas. Nem tudo, contudo, é feito virtualmente, pois todo o procedimento antecedente de apresentação de documentos (ainda) precisa ser feira de forma presencial, sendo apenas a celebração realizada virtualmente, embora não surpreenda se em breve todo o procedimento passar a ser feito via online2. A inovação conta com o apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, por meio do Provimento n. 100, de 28/5/2020, estabeleceu normas gerais sobre a prática de atos notariais eletrônicos por meio do sistema e-Notariado, permitindo, dentre outras inovações, que a captação do consentimento das partes para o ato seja feita por videoconferência. Por isso, uma das ferramentas mais utilizadas na celebração do casamento virtual tem sido a Webex Meeting, disponibilizada inicialmente pelo CNJ para a realização de audiências e sessões, mas que, diante da realidade da Covid-19, tem sido empregada para a realização de casamentos virtuais. Segundo relatório da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de Pernambuco (Arpen-PE), só no período de 17 de março a 30 de abril desse ano foram realizados no Estado 432 casamentos por videoconferência. Segundo o site do CNJ, o uso dessa tecnologia representa inegável conquista para a racionalidade, a economia orçamentária, eficiência, segurança jurídica e desburocratização, sem prejuízo da autenticidade, da segurança e da eficácia dos atos praticados3. Diante disso, e pelo andar da carruagem, tudo indica que o casamento virtual veio para ficar, assim como entrada do Poder Judiciário no mundo digital. Mas nem todos os obstáculos têm sido contornados no mundo da Covid-19 e alguns momentos marcantes não estão sendo presenciados nem física, nem virtualmente. Na Alemanha, um pai foi proibido de vivenciar um momento único em sua vida: o nascimento do filho. Na verdade, dos filhos gêmeos. O caso aconteceu na cidade de Leipzig. O marido queria acompanhar a esposa na sala de parto a fim registrar a chegada ao mundo dos gêmeos, mas foi impedido pela clínica da Universidade de Leipzig, onde o parto aconteceria. Ele entrou, então, com medida liminar alegando a abusividade da decisão da clínica. Segundo o marido, a decisão era irrazoável, porque ele poderia manter o distanciamento mínimo de 1,5 metro para o corpo médico e de enfermagem na sala de parto. Além disso, ele estava disposto a fazer o teste para comprovar que não estava acometido de Covid-19 e a usar as roupas adequadas, fornecidas pelo hospital, para reduzir ainda mais o risco de contágio. A clínica universitária, em contestação, contraditou todos os argumentos, aduzindo, em síntese, que essas medidas seriam insuficientes para impedir, com segurança, um eventual contágio de Covid-19 durante o parto. Além disso, as normas internas da clínica de combate ao coronavírus proíbem a presença de familiares na sala de parto. Aliás, aqui merece ser dito, que essa regra tem sido adotada por inúmeras clínicas e hospitais na Alemanha. Diante disso, o colegiado de primeira instância denegou a liminar requerida, dando ganho de causa à clínica. Trata-se do processo VG Leipzig Az. 7 L 192-20, julgado em 9.4.2020 pelo Tribunal Administrativo (Verwaltungsgericht). Segundo a decisão, o teste anterior de Covid-19 seria insuficiente para legitimar a presença do pai na sala de parto. Isso porque, ainda quando o pai testasse negativo para Covid-19 antes do parto, isso não garantiria segurança suficiente para excluir totalmente o risco contágio de todas as pessoas presentes na sala. O mesmo se diga em relação à utilização das indumentárias, incluindo máscaras e luvas. Ademais, há de se ter em vista que, nas atuais condições, os hospitais não dispõem de roupas de proteção em quantidade suficiente para disponibilizá-las aos acompanhantes das parturientes, disse a decisão. O julgado assinalou que é perfeitamente compreensível o interesse do pai de participar e acompanhar o nascimento dos filhos, mas que o interesse público na preservação do funcionamento do hospital, respeitando suas normas de segurança, deveria prevalecer sobre o interesse particular no caso concreto. As regras internas da clínica universitária, que proíbem a entrada de acompanhantes durante o período de pandemia, têm por fim evitar o contágio e garantir o direito à saúde e à vida das pessoas expostas e são, nesse sentido, proporcionais, concluiu o Verwaltungsgericht. Resta saber se o pai, que perdeu o momento único do nascimento dos gêmeos, irá continuar a briga e recorrer da decisão para, eventualmente, receber dano moral. __________ 1 Casamento pela internet é opção para oficializar união durante a pandemia. G1, 14/5/2020. 2 Coronavírus: casamentos por videoconferência se tornam opção em Pernambuco. Matéria publicada em 18.5.2020 no site do CNJ. Acesso: 18/6/2020. 3 Cartórios do interior de Minas Gerais já podem realizar casamentos virtuais. Matéria publicada em 21/5/2020 no site. Acesso: 18/6/2020.
Nos últimos tempos, frequentes são os discursos hostis ao diálogo e à integração internacional. Mesmo no mundo jurídico, acostumado desde o berço com a pesquisa comparada, ouve-se aqui e acolá que o que se aplica alhures, não se aplica aqui, pois temos uma "cultura" e "tradição" diferente dos outros povos, donde a necessidade de se priorizar soluções próprias, seja lá o que isso signifique. É desnecessário gastar tinta para demonstrar a inconsistência desses argumentos, pois, a despeito das raízes históricas, sociológicas e culturais de cada país e cada povo, nós partilhamos - juntamente com europeus e latinoamericanos - da cultura e dos valores fundamentais do mundo ocidental, cuja tradição cultural se formou historicamente com base na moral judaico-cristã, na filosofia grega e no direito romano. Fazemos parte, por assim dizer, da civilização ocidental e da tradição jurídica romano-germânica, tal como Portugal, Espanha, Itália, França e Alemanha, apenas para citar as fontes mais perenes de diálogo comparado. Talvez por isso, a sociedade ocidental enfrente os mesmos desafios, apimentados pelas particularidades locais. E a intolerância tem sido um fenômeno presente tanto na sociedade brasileira, como alemã - guardada, evidentemente, a devida ressalva quanto ao grau e à tolerabilidade da sociedade para com essas posturas. Um exemplo de intolerância e preconceito contra a identidade de gênero e diversidade sexual ganhou as páginas dos jornais alemães semana passada. O caso ocorreu na cidade de Dresden, a famosa "Veneza alemã", que foi totalmente destruída durante a 2ª Guerra Mundial por bombardeios aliados. O imbróglio O imbróglio surgiu quando a Secretaria da Justiça do Estado de Sachsen (Saxônia) comunicou que iria hastear, no último dia 11/6/2020, a chamada bandeira gay, a qual pretende, na verdade, com suas diversas cores, exprimir a diversidade humana em todos os seus aspectos. O objetivo era reforçar a necessidade de respeito e tolerância às pessoas não pertencentes ao gênero socialmente dominante da heterossexualidade. In continenti, um cidadão entrou com medida liminar para impedir a colocação da bandeira em frente ao prédio público, o que acabou acontecendo em ato presidido pela Secretária de Justiça, Katja Meier, do Partido Verde (Grüne). Ele alegou que o hasteamento da bandeira em local pertencente ao Poder Público fere de morte o dever de neutralidade do Estado. Além disso, violaria seu direito fundamental à liberdade negativa de visão de mundo (negative Weltanschauungsfreiheit), bem como o dever estatal de proteção da família, consagrado no Art. 6, inc. 1 da Lei Fundamental de Bonn, vez que a bandeira arco-íris exprime a ideia de desconstrução, no plano metapolítico, da imagem social da família heteronormativa. Por fim, aduziu que o hasteamento seria um ato inadmissível do Poder Público. O Tribunal Administrativo de Dresden - Verwaltungsgericht (VG) - órgão de primeira instância, julgou improcedente o pedido. Trata-se do processo Az. 6 L 402/20, julgado na última quinta-feira, dia 12.6.2020. A decisão do VG Dresden Segundo o Tribunal, o hasteamento da bandeira arco-íris não ofende direitos do autor da ação, nem mesmo seus direitos fundamentais. Inicialmente, o Verwaltungsgericht assinalou que o autor da ação não pode deduzir nenhum direito subjetivo a partir das normas administrativas que disciplinam a colocação de bandeiras em prédios públicos, as quais são preceitos internos voltados para a Administração Pública. Em seguida, afastou qualquer ofensa aos direitos fundamentais do autor. Segundo os juízes, a bandeira arco-íris é um símbolo de tolerância e aceitação da diversidade de formas de vida. Ela não interfere de forma alguma no campo de proteção da família e do casamento, pois não postula a eliminação das uniões heterogêneas, representando muito mais um símbolo suprapartidário de tolerância e diversidade. Por isso, ela sequer pode ser vinculada com exclusividade a um partido político, estando, à toda evidência, em clara harmonia com a Lei Fundamental. A colocação da bandeira arco-íris no prédio público, durante o fim de semana, a fim de chamar atenção ao problema da intolerância de gênero, também não ofende a liberdade de crença e visão de mundo do autor, disse a decisão. A chamada Weltanschauungsfreiheit encontra fundamento, na Alemanha, no Art. 4 da Lei Fundamental (Grundgesetz), no qual o constituinte consagrou o direito fundamental - e humano - de crença ou liberdade religiosa (Religionsfreiheit). Esse direito permite a qualquer pessoa exercer, livre e publicamente, suas crenças individuais sob a forma de uma religião, ideologia ou visão de mundo. O Art. 4 da Grundgesetz possui dois âmbitos de proteção: positivo e negativo. Sob o aspecto positivo, esse direito fundamental assegura a liberdade de formar, externar e agir em conformidade a uma convicção religiosa, crença ou visão de mundo. Fala-se, nesse sentido, em positive Weltanschauungsfreiheit. Por outro lado, sob a ótica negativa, ele protege a liberdade do indivíduo de não professar qualquer crença, visão de mundo ou ideologia, configurando-se a negative Weltanschauungsfreiheit. E foi a esse aspecto negativo da liberdade de crença que o autor da medida interditória recorreu, alegando que sua liberdade negativa havia sido violada, posto que a bandeira gay exprime uma cosmovisão de equiparação de pessoas e relacionamentos do mesmo sexo, da qual ele não compartilha. Dessa forma, sua ostentação por um ente estatal ofenderia sua liberdade negativa. Mas, obviamente, o juizado de primeira instância não acolheu a alegação e afirmou que a liberdade negativa de cosmovisão não protege, em absoluto, o indivíduo de se confrontar com outras crenças e visões de mundo, carecendo o pleito do autor de qualquer amparo legal. O problema da intolerância de gênero A decisão do Tribunal Administrativo de Dresden não causa surpresa, pois a Alemanha tem um antigo histórico de proteção das minorias, pelo menos desde a refundatação do ordenamento jurídico pela Lei Fundamental de 1949. Ela serve, muito mais, para mostrar que o mundo ocidental enfrenta, em maior ou menor medida, muitos problemas comuns, o que torna frutífero - e necessário - um diálogo internacional, inclusive no plano jurídico. Em tema de respeito à identidade de gênero, muito ainda precise ser feito para combater o preconceito e a intolerância social, inclusive na própria Europa, avantgarde em tantas questões. Basta recordar, nesse sentido, que em maio deste ano a Hungria proibiu a mudança de sexo em documentos de identidade e o reconhecimento jurídico das pessoas transgêneros. O Parlamento húngaro, onde o governo ultraconservador do primeiro-ministro Viktor Orbán detém ampla maioria, aprovou alteração constitucional proibindo a mudança em certidões de nascimento, casamento e óbito do sexo atribuído no nascimento1. A medida contraria claramente a orientação vigente na União Europeia, da qual a Hungria faz parte desde 2004. Nos Estados Unidos, a intolerância também tem mostrado sua face: no dia 12.6.2020, o governo alterou a sessão 1557 do Patient Protection and Affordable Care Act (ACA), revogando o dever médico de tratar indivíduos de acordo com sua identidade de gênero. Esse dever, instituido em 2016, foi retirado sob a justificativa de que isso violaria os "direitos de consciência" dos prestadores de cuidados de saúde e suas convicções éticas fundamentais, ou seja, a chamada objeção de consciência. Na prática, isso significa que os médicos podem se recusar a partir de agora a prescrever tratamentos hormonais ou a realizar cirurgias de readequação sexual em pessoas trans sob o pálido argumento da objeção de consciência2. A Alemanha permite a mudança de sexo nos documentos pessoais desde a década de 70, quando o Tribunal Constitucional alemão reconheceu esse direito fundamental à partir da dignidade humana e do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, ancorados nos arts. 1, inc. 1 e 2, inc. 1 da Lei Fundamental3. Na época, ainda se condicionava a mudança de gênero à realização da cirurgia de transgenitalização, ideia que acabou sendo recepcionada pela chamada lei dos transexuais (Transexuellengesetz), em vigor desde 19814. Essa exigência, contudo, foi finalmente declarada inconstitucional pelo Bundesverfassungsgericht em 2011. Na verdade, há muito tempo a Corte vinha declarando a inconstitucionalidade de vários dispositivos da lei, que precisa urgentemente de reforma. O último e mais importante passo da Suprema Corte alemã em prol do reconhecimento da identidade de gênero deu-se em 2017, com o reconhecimento da existência de um terceiro gênero (intergênero), ao lado do masculino e feminino, pois pessoas há que não se deixam enquadrar, inclusive biologicamente, em nenhum dos dois gêneros tradicionais. Dessa forma, o Tribunal Constitucional alemão rompeu definitivamente o sistema jurídico binário de gênero, decisão comentada nesta coluna em outra oportunidade. A situação no Brasil No Brasil, a alteração de registro civil sem mudança de sexo, isto é, sem cirurgia de transgenitalização só passou a ser definitivamente admitida em março de 2018, após o julgamento pelo STF da ADI 4275. Mas o pioneirismo coube ao STJ, que no REsp. 1.626.739/RS, julgado em maio de 2017 sob relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, admitiu o registro independentemente da cirurgia. Em relação às pessoas intergênero, um grupo ainda ignorado e discriminado entre nós, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul publicou, em 2019, importante provimento para modificar as regras de registro de nascituros com Anomalia de Diferenciação Sexual (ADS). O provimento permite lançar no registro de nascimento o sexo como ignorado, constando no campo destinado ao nome a expressão "RN de"(Recém-Nascido de), seguido do nome de um ou ambos os genitores. Após o diagnóstico dos especialistas sobre o sexo biológico do bebê, os genitores ou responsáveis pela criança podem fazer a retificação do registro, com a indicação do sexo e com o nome escolhido diretamente no cartório, de forma totalmente gratuita. A medida foi saudada - com razão - como inovadora, devido ao ineditismo entre nós. Mas a regra existe desde o século 19 na Alemanha e na Áustria, onde se podia permanecer com o sexo indefinido. Os alemães, entretanto, deram um passo adiante com o reconhecimento do terceiro gênero: não querem mais ter um gênero indefinido, mas sim uma identificação positiva de gênero diverso e intermediário: o intergênero. Soa, então, um tanto anacrônico falar em anomalias de diferenciação sexual, que dificultam a identificação do sexo do recém-nascido. Mais anacrônico ainda permitir que médicos tentem fazer a distinção sexual por meio de complexos exames e, por vezes, intervenções cirúrgicas traumáticas a fim de definir se a criança é do gênero masculino ou feminino e, dessa forma, adequá-la aos padrões em seus registros pessoais. Melhor talvez seria reconhecer que existem pessoas que simplesmente não se enquadram biologicamente no sistema de gênero binário masculino-feminino, como já ocorre em diversos países. Nessa seara deveria valer o lema: o que não é doença, não precisa de cura. E a ninguém, exceto à própria pessoa, deveria ser concedido o poder de decidir tamanha invasão na esfera psicofísica, causa de profundas dores físicas e psicológicas para o resto da vida. Dessa forma, embora hoje os transgêneros tenham vários direitos reconhecidos, especialmente após essas decisões judiciais e após a atuação legiferante do Conselho Nacional de Justiça que, suprindo a omissão legislativa, regulou o assunto no Provimento 78, de 28.6.2018, muito ainda há de ser feito para se conferir igualdade material as essas pessoas. Isso passa não só por medidas interventivas do Legislador, mas também por medidas afirmativas concretas do Poder Público de promoção e concretização dos direitos fundamentais e humanos das pessoas trans e intergênero. E, no que tange à promoção da dignidade do ser humano, o Estado não pode ser neutro. __________ 1 Agradeço a Artur Ferrari de Almeida, doutorando na Universidade de Freiburg (Alemanha), pelas críticas e sugestões ao texto. Confira-se a matéria jornalística: Hungria proíbe que transgêneros alterem sexo em documentos. Deutsche Welle, 19/5/2020. 2 Confira notícia postada pela Profa. Luciana Dadalto, intitulada "Objeção de consciência médica e população LGBTQI+ - o retrocesso americano", no Instagram @lucianadadalto. 3 BVerfGE 49, 286 - 1 BvR 16/72, julgado em 11/10/1978. 4 A Transexuellengesetz (TSG) entrou em vigor em 1/1/1981 e sofreu a última alteração em 20.7.2017.
Em fins de maio, o governo da chanceler Angela Merkel anunciou a aquisição de ações da maior empresa aérea do país, a Lufthansa, a fim de evitar a falência da companhia, profundamente afetada pela paralisação das atividades aéreas desde 11/3/2020, quando a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia de Covid-19. Esse fato é de extrema relevância, porque se trata do primeiro grande resgate de uma empresa, por meio de participação acionária, em decorrência do coronavírus. O governo alemão, como outros congêneres, passou boa parte do século 20 se desfazendo de participações em empresas, só permanecendo acionista em antigos monopólios estatais, como os correios (Deutsche Post), a telefônica Deutsche Telekom e o Commerzbank, cujas ações foram adquiridas durante a crise financeira global de 2008. A própria Lufthansa, fundada em 1953, iniciou seu processo de desestatização nos anos 60 e foi totalmente privatizada em 1997. Mas o impacto do coronavírus na tessitura social logo deixou claro ao governo da chanceler Angela Merkel que as empresas e os cidadãos não seriam capazes de sair das crises sanitária, social e econômica sem a ajuda do Estado. Por essa razão, o primeiro grande conjunto de medidas de combate ao coronavírus, aprovado em março desse ano pelo Parlamento, previu um "pacote de proteção social" (Sozialschutzpaket) para auxílio emergencial às pessoas físicas e jurídicas mais duramente afetadas pela pandemia, bem como a criação de um fundo de estabilização econômica (Wirtschaftsstabilisierungsfond), de 100 bilhões de euros, destinado a ajudar na recuperação de grandes empresas. E, dentre as medidas previstas, já constava, ao lado da concessão de garantias estatais, a participação acionária temporária do poder público como forma de ajudar grandes empresas a se recuperar do sintoma mais agudo do SARS-CoV-2: a crise econômica, que ameaça levar à ruína companhias dos mais diversos setores. Dessa forma, a participação acionária do governo alemão na Lufthansa tem sido vista como a colocação em prática dessas medidas e como o cumprimento da promessa da chanceler de que o Estado não deixaria ninguém só. O acordo de participação acionária é, em essência, um pacote de resgate ou salvamento (Rettungspaket) para a companhia, pois teve o claro objetivo de evitar a falência da empresa, duramente afetada pelas medidas de isolamento social, como, aliás, todas as companhias aéreas. Apenas para se ter uma ideia da dimensão dos prejuízos econômicos amargados pela empresa, estima-se que a Lufthansa vem perdendo em torno de 1 milhão de euros por hora (!) desde o cancelamento em massa dos voos domésticos e internacionais. Em abril último, a companhia transportou cerca de 3 mil passageiros, uma redução brutal em relação aos 350 mil no mesmo período do ano anterior. 95% da frota permanece parada em decorrência das proibições de viagens impostas em várias partes do mundo para conter a disseminação da doença. Para completar o quadro clínico dramático, a empresa ainda terá que desembolsar aproximadamente 1,8 bilhões de euros a passageiros por estornos de voos1. E, com a flexibilização gradual das restrições, a previsão é de que apenas 160 das 760 aeronaves voltem a circular2. Ciente da prolongada redução de suas atividades, mesmo após a suspensão das medidas de shutdown, a empresa negociou intensamente com o governo e representantes da Comissão Europeia a ajuda necessária para sobreviver ao período de vacas magras, que se avulta no horizonte. Até que em 25.5.2020, as partes chegaram a consenso acerca dos pontos do acordo, que prevê a ajuda de 9 bilhões de euros do governo alemão para a companhia. Mas o socorro teve inúmeras condições. E, em troca do auxílio financeiro, a empresa assumiu inúmeros compromissos, dentre os quais o de devolver o dinheiro aos contribuintes e assegurar os postos de trabalho para evitar demissões em massa3. Trata-se do maior resgate corporativo realizado pelo governo alemão desde o início da crise do coronavírus. O governo justificou o auxílio alegando que a Lufthansa representa uma parte importante da infraestrutura crítica do país e, por isso, é interesse nacional a intervenção do Estado para a estabilização da empresa, que antes da pandemia se encontrava operacionalmente saudável e rentável. As bases do acordo Com o acordo, o governo alemão, além de adquirir a participação de 20% das ações da empresa, ainda injetará 5,7 bilhões de euros em capital sem direito a voto, uma espécie de participação silenciosa na empresa, que poderá, entretanto, ser convertida em uma participação acionária adicional de 5%, com a qual terá poder de veto contra aquisições hostis. Esse foi, aliás, um dos objetivos principais do governo, ou seja, evitar que a empresa, crucial para a infraestrutura da Alemanha, fosse vendida a investidores estrangeiros, que passariam a ter o controle sobre a companhia. Isso reflete uma preocupação acentuada após a pandemia, quando o coronavírus provocou a queda dos mercados financeiros e o baixo preço das ações de diversas empresas listadas nas bolsas de valores. De fato, as notícias dão conta que companhias e governos, cônscios de seu papel estabilizador das disrupções no mercado, estão preocupados com aquisições indesejadas de capital social de empresas estratégias por investidores estrangeiros, principalmente fundos de investimento, que, segundo consta, pretendem aproveitar o momento de crise e preço baixo das ações para ir às compras. Especula-se que os fundos de investimento disponham de cerca de US$ 1 trilhão para gastar na aquisição de ações a fim de assumir de facto o controle de importantes companhias em diversos países4. De forma simplista, pode-se dizer que a aquisição hostil ocorre quando uma companhia, listada na bolsa de valores, é adquirida por outra companhia ou por grande investidor sem o consentimento da diretoria da empresa adquirida, visando, em regra, assumir seu controle acionário. E, em tempos atuais, tem surgido um componente explosivo a essa fórmula: a aquisição por motivações políticas, o que tem levado empresas e governos a criar mecanismos de defesa contra esse tipo de aquisição. Na Espanha, um dos países mais castigados pela Covid-19, o governo impediu a compra por estrangeiros de mais de 10% do capital social de companhias estratégicas. Nos EUA, as próprias empresas já estão comprando nas bolsas suas ações a fim de impedir o avanço dos fundos de investimentos. Esse é um problema que pode surgir no Brasil se o país entrar no radar dos investidores estrangeiros, famintos por oportunidades baratas em empresas de infraestrutura e telecomunicações. As companhias já estão com as antenas ligadas, mas resta saber se o governo vai seguir o exemplo europeu e proteger áreas estratégicas ao desenvolvimento nacional. No caso da Lufthansa, esse foi, como dito, um dos pontos cruciais no processo de negociação da participação acionária do Estado na companhia, pois o governo alemão queria ter poder de veto contra aquisições hostis, inclusive para proteger milhares de empregos. Retornando aos termos do acordo celebrado com a Lufthansa, cabe mencionar ainda que o governo alemão ocupará assentos no Conselho de Administração e no Comitê de Auditoria da companhia. A ideia não é intervir no dia-a-dia da empresa, mas protegê-la contra aquisições hostis e controlar a aplicação dos recursos para que a operação não se transforme em um saco sem fundo. Dentre as obrigações assumidas pela companhia, destaca-se a renovação da frota de forma mais benéfica aos consumidores, a renúncia a pagamentos futuros de dividendos e limites de pagamento a seus executivos5, medidas que, por sinal, têm sido sugeridas no mundo corporativo para combater os efeitos da Covid-19. Por pressão da Comissão Europeia, a companhia deve ainda ceder direitos de pouso e decolagem, nos aeroportos de Munique e Frankfurt am Main, a empresas aéreas concorrentes. Trata-se do chamado slot, que indica a faixa de tempo e espaço que a companhia aérea utiliza para os procedimentos de decolagem e aterrisagem. As medidas de estabilização da Lufthansa incluem, por fim, um empréstimo de três anos no valor de 3 bilhões de euros do banco estatal KfW (equivalente ao BNDES) e de instituições bancárias privadas. A participação estatal na Lufthansa tem caráter temporário e se limitará ao período necessário para que a empresa se recupere do baque econômico sofrido com a pandemia. O momento exato ainda é incerto e vai depender do desenvolvimento da empresa, mas o governo estima vender sua participação social até o final de 2023, quando a companhia estiver rentável novamente. Por isso, ao lado do pacote de medidas estabilizadoras, companhia e o governo pretendem planejar em breve a estratégia de saída (Exit-Strategie) do quadro de acionistas. Mas o grande obstáculo tem sido a Comissão Europeia, que precisa aprovar ao acordo. De fato, Bruxelas tem feito exigências visando a proteção da concorrência no mercado interno europeu, como a controvertida cessão de direitos de pousos e decolagens a concorrentes nos principais aeroportos da Alemanha. O objetivo é evitar que os pacotes emergenciais de ajuda financeira dos estados provoquem distorções desproporcionais à concorrência. O setor aéreo pede socorro Seguindo o exemplo da Lufthansa, outras grandes companhias aéreas, como o consórcio Air France-KLM e as norte-americanas United e Delta Airlines, estão buscando ajuda junto a seus governos para superar os efeitos colaterais da pandemia6. O mesmo deve acontecer por aqui, pois o caos financeiro do setor aéreo tem dimensão global. Aliás, uma das peculiaridades dessa crise é que o vírus tem provocado disrupções e colapsos em diversos setores nos quatro cantos do planeta e não apenas de forma local. Ou seja: os problemas são os mesmos, ainda quando agravados por condicionantes locais. A grande dúvida aqui parece ser se o Estado brasileiro - que tem defendido a bandeira da intervenção mínima na economia, como dá provas a Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019) - vai adotar medidas efetivas e protetoras de setores estratégicos para o país. A realidade sempre se impõe e é fato inegável que o coronavírus tem exigido, em todo o mundo, a intervenção estabilizadora do Estado na economia. O Velho Continente tem dado bons exemplos de como concretizar o Estado social e democrático de Direito em tempos de pandemia, até porque lá o laissez-faire, laissez-passer é um capítulo superado da história. Vale lembrar as palavras de Judith Martins Costa que, perguntada sobre a adequação da LLE à onda intervencionista imposta pelo coronavírus, afirmou que "a pandemia mostrou-nos agora o grande equívoco dos seus fundamentos axiológicos. É uma lei que anda na contramão da História e, no meu modo de ver, natimorta"7. Por ironia do destino, o coronavírus mais parece, entre nós, uma revolta dos fatos contra a lei. __________ 1 Bundesregierung und Lufthansa einigen sich auf Staatshilfe-Paket. Süddeutsche Zeitung, 25/5/2020. 2 Lufthansa e governo alemão acertam pacote de resgate de 9 bilhões de euros. Deutsche Welle Brasil, 26/5/2020. 3 Bundesregierung und Lufthansa einigen sich auf Rettungspaket. Der Spiegel, 25/5/2020. 4 Empresas se protegem de tentativas de tomar controle. O Globo, 20/4/2020. 5 Corona-Hilfspaket für Lufthansa steht: Droht nun ein Konflikt mit der EU? Legal Tribune Online, 26/5/2020. 6 Lufthansa e governo alemão chegam a acordo para ajuda de ? 9 bilhões. Forbes Brasil. Acesso: 8/6/2020. 7 Entrevista à coluna German Report. Migalhas, 2/6/2020.
terça-feira, 2 de junho de 2020

Entrevista: Judith Martins Costa

A coluna German Report tem a honra de entrevistar a Profa. Dra. Judith Martins-Costa, uma das mais brilhantes civilistas brasileira da atualidade. Autora da mais completa obra sobre a boa-fé no Direito Privado, Judith Martins Costa é livre-docente e doutora pela Universidade de São Paulo, onde defendeu a tese: Sistema e cláusula geral: a boa-fé no processo obrigacional. Discípula de Clóvis do Couto e Silva, de quem foi orientanda até o falecimento do festejado autor, Judith Martins Costa aprofunda e dá continuidade à ideia de obrigação como processo, enfrentando, com verticalidade, as complexas funções da boa-fé no nosso sistema jurídico. A obra A boa-fé no direito privado, publicada recentemente pela editora Saraiva, virou um clássico da literatura jurídica nacional e leitura obrigatória para todos que se ocupam do tema, principalmente da boa-fé nas obrigações e nos contratos. A vasta produção científica da autora estende-se por todos os ramos do Direito Civil e da Metodologia Jurídica, merecendo destaque o famoso Comentários ao novo código civil, da editora Forense, no qual aborda, em dois volumes, o adimplemento, inadimplemento e a extinção das obrigações, bem como a atualização do primeiro tomo do Tratado de Direito Privado de Pontes de Miranda, juntamente com Jorge Cesa Ferreira da Sliva e Gustavo Haical, coleção publicada em 2012 pela editora Revista dos Tribunais. Judith Martins Costa é uma das mais renomadas pareceristas brasileiras, atuando como advogada e árbitra em câmaras nacionais e internacionais, além de requisitada conferencista em universidades nacionais e estrangeiras. Ao German Report ela concedeu entrevista exclusiva, refletindo sobre esse dramático período de crise de saúde pública no qual o mundo está mergulhado e que tem afetado profundamente a sociedade e a economia. Ela fala, com absoluta propriedade, sobre os mecanismos postos à disposição do intérprete para tentar debelar os efeitos nocivos do coronavírus nos contratos, apontando os méritos e deficiências do Código Civil, sem perder de vista as recentes alterações legislativas provocadas pela Lei de Liberdade Econômica e pelo PL 1.179/2020. Confira a entrevista: GR: O coronavírus afetou profundamente a economia mundial. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o mundo está entrando em uma recessão só equiparável à grande depressão de 1929. Como o coronavírus pode afetar os contratos, mecanismo fundamental de circulação da riqueza? Como você bem observa, o contrato é o instrumento, por excelência, da circulação da riqueza. Estamos atravessando uma pandemia que já empobreceu e empobrecerá ainda mais a economia mundial, atingindo a capacidade produtiva, o crédito, o consumo. Já por isso haveria um impacto nos contratos. Mas há mais, há impacto direto. Uma relação contratual pode ser diretamente afetada pela pandemia quando, por relação causal, o fato da pandemia, ou fato diretamente por ela causado - por exemplo, desabastecimento, como a falta de determinado insumo; decretos impedindo ou restringindo a circulação em espaços comerciais; o desemprego, a insolvência - implicar riscos extraordinários aos contraentes, ou excessiva onerosidade, ou impossibilidade do cumprimento. Num mundo globalizado, os contratos são as fibras do tecido conectivo da economia mundial. Isto significa que as perturbações no curso normal da relação contratual acabam tendo um duplo reflexo: no cenário micro-econômico e no cenário macro-econômico. Nós, juristas do Direito Privado, trabalhamos com relações micro-econômicas (assim, o contrato entre A e B, a sociedade entre C, D e F). Mas não podemos simplesmente eclipsar o fato de - em razão da configuração do sistema econômico mundial - os particulares contratos atingidos pelo extraordinário e pelo imprevisível fato da pandemia não serem unidades isoladas, não serem átomos. Teremos que lidar com esse paradoxo: como fato jurídico - que também é cada contrato - não diz respeito apenas aos interesses dos dois polos que se alocam em sua estrutura como parte credora e parte devedora. GR: O nosso Código Civil não disciplina expressamente a hipótese de impossibilidade temporária da prestação, que tem se apresentado em várias situações contratuais atualmente. Como construir esse regime no direito brasileiro? A Impossibilidade será temporária e não definitiva quando for possível prever que a situação de impossibilidade, física ou jurídica, pode passar e a prestação ainda for útil ao credor, pois o adjetivo "definitivo" que qualifica a impossibilidade não traduz um critério naturalístico, mas um critério jurídico. Assim, na impossibilidade temporária a extinção da dívida não ocorre, desde que ainda possa ser atingida a finalidade da prestação, com utilidade para o credor. A impossibilidade temporária, então, apenas retarda o cumprimento. O devedor não incorre em mora e nem se extingue a dívida. É verdade que o Código Civil não tem disciplina expressa de ordem geral para a hipótese de impossibilidade temporária, salvo no que diz com (i) o afastamento dos efeitos da mora e da própria responsabilidade civil (arts. 393 e 396) no caso de força maior ou caso fortuito, que é espécie de impossibilidade superveniente não imputável e (ii) salvo a possibilidade de opor as exceções sinalagmáticas (arts. 476 e 477). Mas se lermos o Código Civil com atenção, veremos que há disciplina para hipóteses topicamente situadas e há outras eficácias que dessa hipótese derivam. A primeira é a suspensão da exigibilidade da prestação enquanto perdurar a situação de impossibilidade, ou, mesmo, a suspensão parcial da exigibilidade. Embora não haja regra geral, há regras previstas, por exemplo, para o contrato de empreitada (art. 625, inc. I); e o contrato de transporte (arts. 741 e 753). No art. 567, pode-se, analogicamente, em relação de locação, pretender a redução proporcional do aluguel enquanto durar a situação de impossibilidade de plena fruição do imóvel. A própria noção de prestação que se extrai do Código Civil é a de uma atividade voltada a proporcionar uma utilidade para o credor, isto é, um resultado útil. Embora escondido no parágrafo único do art. 395, o topos da utilidade da prestação para o credor é da maior relevância em todo o sistema das perturbações da relação obrigacional. Pois bem: a partir dessas indicações tópicas, como construir uma solução para a hipótese de impossibilidade temporária que tenha amparo sistemático? Penso que se for possível prever que a situação de impossibilidade pode ser temporária, (i) a extinção da dívida não ocorre, desde que ainda possa ser alcançada a finalidade da prestação, é dizer: o resultado prometido ao credor. A impossibilidade temporária, então, apenas retarda o cumprimento, sem que possam ser atribuídos ao devedor os efeitos da mora (Código Civil, art. 396). Mas outras distinções devem ser feitas: (ii) se a impossibilidade temporária incide sobre negócio jurídico fixo, assim considerado aquele cujo cumprimento não pode (por sua natureza ou pela vontade das partes) ser realizado noutro dia, ela se transformará em impossibilidade definitiva; (iii) embora passageira a impossibilidade, e mesmo quando não se tratar de um negócio jurídico fixo, o fato da prestação não atingir a finalidade a que fora predisposta poderá dar ensejo à resolução, transmutando-se, então, em impossibilidade definitiva, a depender de ter sido ou não atingido o interesse do credor à prestação; e igualmente, (iv) é a prestação considerada extinta se, em vista do tipo de obrigação, ou a natureza do objeto a ser prestado, o devedor não pode ser considerado obrigado a executá-la, como é o exemplo de uma pianista não poder comparecer ao recital marcado para certa data se naquele dia faleceu seu filho (casos de "impossibilidade moral"). GR: Pode-se dizer que o Código Civil possui um regime uniforme de adaptação do contrato diante de profundas alterações posteriores nas circunstâncias, como as causadas pelo coronavírus? Há um regime, mas não é nem uniforme, nem, na minha opinião, plenamente satisfatório no que diz com o regramento das alterações das circunstâncias, especialmente quando causadas por excessiva onerosidade superveniente. É certo que, em razão do princípio da atipicidade (art. 425) as partes têm ampla margem para regrar, no contrato, fórmulas de adaptação do contrato às circunstâncias supervenientes. Serão, então, soluções contratuais. Quanto às soluções legais, há um cardápio variado no Código Civil: temos as cláusulas gerais dos arts. 187 e 422 (a primeira vedando condutas negociais disfuncionais; a segunda, direcionando a um comportamento contratual probo, correto); temos as exceções sinalagmáticas nos arts. 476 e 477 (a primeira, exceção de contrato não cumprido; a segunda, exceção de inseguridade). E temos, ainda, as regras acerca da excessiva onerosidade superveniente. Especificamente quanto à essa hipótese, há o art. 317, cujo enunciado, de redação defeituosa, foi feito para regrar a correção monetária nas obrigações pecuniárias. Porém, no curso da tramitação do Projeto de Código Civil - com a superveniência das regras sobre correção monetária - o enunciado perdeu seu sentido original. O que ali se determina é, caso haja "desproporção manifesta", oriunda de motivos imprevisíveis, entre o valor que a prestação tinha quando da conclusão do contrato e o momento de sua execução, pode-se pedir ao juiz que determine o "valor real" da prestação, o que por si só é fonte de muitos questionamentos, a começar por determinar o que é o "valor real" de uma prestação; há o art. 478, cuja redação é também defeituosa ao exigir o requisito da "extrema vantagem" para a outra parte, o que afasta a incidência da regra (tornando-a, pois, inservível) quando há um jogo de "perde/perde", como agora se verifica em tantas situações causadas pela pandemia; há a possibilidade de revisão equitativa, mas nos limites traçados pelo art. 479, isto é: por iniciativa da parte a quem foi dirigida a pretensão resolutória, nos termos do art. 478; há uma ampla possibilidade revisional no art. 480, mas para um campo contratual mais restrito, qual seja, o dos contratos unilaterais. E, ainda, uma ou outra regra topicamente situada, como a do art. 625, incisos I e II que leva a diversa solução: o empreiteiro pode suspender a obra, se caracterizada força maior ou se, por dificuldades imprevisíveis de execução, decorrer excessiva onerosidade. GR: Quando, afinal, um contrato pode ser adaptado segundo o Código Civil? Além das adaptações por via da autonomia privada - da maior importância, embora às vezes minimizadas - há, como regras gerais, aquelas que já referi, isto é: as derivadas do art. 317, para as obrigações pecuniárias e do art. 479, para os contratos bilaterais, quando o réu (isto é, a parte contra quem foi dirigido o pedido resolutório, nos termos do art. 478) oferecer a modificação equitativa. Não há nenhuma cláusula geral de adaptação às circunstâncias, como, por exemplo, o art. 437 do Código Civil português. E não podemos esquecer que o parágrafo único do art. 421, incluído pela lei 13.974/19 - "Lei da Liberdade Econômica" -, ainda determina a incidência, nos contratos paritários, do que chama de "princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual". Em suma: penso ser muito estrito esse regime. Nos contratos regidos pelo Código Civil, a possibilidade de adaptação em razão de fonte legal é demasiadamente reduzida, embora seja muito ampla quando derivada de fonte contratual. Em contrapartida, no âmbito das relações regidas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), as possibilidades de adaptação são amplíssimas em razão do art. 6º, inc. V. GR: O Projeto de Lei 1.179/2020, que institui um regime jurídico transitório para relações jurídicas privadas, diz no art. 7o que não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins do art. 317, 478, 479 e 489 do Código Civil, o aumento de inflação, variação cambial, desvalorização ou substituição do padrão monetário. Como a Senhora analisa esse dispositivo diante das consequências econômicas imprevisíveis da crise de saúde pública? Penso que a regra do art. 7 não é das mais felizes, embora sempre ressalve o alto espírito público dos seus autores. A razão está em que, no meu modo de ver, não se pode - tecnicamente - congelar em texto de lei, abstrato e geral, o que é imprevisível e extraordinário. A imprevisibilidade e a extraordinariedade têm relevância no que concerne ao seu impacto no sinalagma contratual, e, portanto, na prestação em concreto. Um mesmo fato extraordinário - vamos pensar num fato da natureza, uma enchente avassaladora - pode provocar ou nenhum efeito num contrato; ou o efeito de aumentar os custos do devedor, apenas; ou o de causar excessiva onerosidade para ambas as partes, de modo a incidir o art. 478; ou mesmo de ser causa de impossibilidade superveniente não imputável ao obrigado, com efeito liberatório, conforme o art. 234, se for obrigação de dar, por exemplo. E ainda há uma razão de ordem prática: se o art. 7 foi projetado com a intenção de brecar a enxurrada de ações revisionais com fundamento na imprevisibilidade e extraordinariedade, talvez tenha sido fechada a porta errada. Quantitativamente, ao menos, os pedidos de revisão tendem a se enquadrar em situações regidas pelo CDC, e não pelo Código Civil, cujas duas hipóteses gerais de revisão ou resolução por excessiva onerosidade superveniente - arts. 317 e 478 a 480 - são, como acabo de referir, estritíssimas. E o CDC simplesmente não prevê a imprevisibilidade e extraordinariedade como elemento do suporte fático de sua principal regra revisional - art. 6º, inc. V, 2ª parte - que é, como também já referi, amplíssima: bastam a superveniência do fato e a sua excessiva onerosidade, não se cogitando imprevisibilidade. GR: Alguns instrumentos internacionais de soft law, bem como os códigos da República Tcheca e da Romênia falam em um dever das partes de renegociar o contrato diante de modificações posteriores nas circunstâncias. O Código Civil alemão e francês, contudo, que sofreram significativas reformas, respectivamente, em 2002 e 2016, não instituíram tal dever material. A Senhora acha que seria possível deduzir a partir da cláusula geral da boa-fé objetiva um dever de renegociar? Com todo o imenso respeito que tenho aos colegas que sustentam diferentemente, penso não ser possível deduzir do art. 422 do Código Civil um dever geral de renegociar. Há duas ordens de razão para o meu pensamento. A primeira é que o princípio da boa-fé, tal qual posto no art. 422, é fonte de um dever de colaborar para com o adimplemento do contrato e não para refazer o contrato. Há um caráter finalístico e imediato da ligação entre o princípio e o adimplemento satisfativo do contrato como pactuado. É claro que, sem afastar esse dever legal, as partes podem pactuar a mútua colaboração para o atingimento de fins específicos, por exemplo, para atuarem em vista do "completamento" de um contrato incompleto, mas, neste caso, não estaremos falando de um dever legal, mas de um dever contratual. As partes podem considerar mais conveniente aos seus mútuos interesses não minudenciar ex ante todas as particularidades da conduta devida, então estabelecendo obrigações genéricas (como um dever de melhores esforços ou um dever de agir segundo a boa-fé para o alcance de tal ou qual ato), e detalhando a conduta no curso da execução contratual. Estas hipóteses não se confundem com um dever legal de renegociar as bases contratuais, mas configuram um dever contratual de ajustamento, ou completamento, conforme o caso. A segunda razão, é que lidar com o Direito implica a arte de fazer distinções. Há contratos em que o estabelecimento de um dever de renegociar poderia, eventualmente, ser oportuno e desejável, desde que a regra legal impositiva desse dever também trouxesse critérios e requisitos tecnicamente bem definidos e os tipos de contrato em que esse dever incidiria. Penso em contratos duradouros, que estabelecem um intenso vínculo de pessoalidade entre as partes; ou em contratos de organização, para-associativos ou mesmo nos chamados "contratos existenciais", atinentes a necessidades essenciais da pessoa humana, como a moradia. Em outros contratos, diferentemente, em que a contraposição de interesses é evidente, como na compra e venda, a imposição por lei de um tal dever poderia ser até mesmo disfuncional ao tipo. Igualmente, penso num contrato de mandato com um advogado, fundado em um vínculo tão intensamente fiduciário: caberia obrigar as partes, ex vi legis, a uma renegociação? Além do mais, se estabelecido na lei um dever de renegociar, deveriam vir igualmente previstos os critérios, os requisitos e as consequências, para minimizar o oportunismo (a parte em situação mais favorável poderá vir a praticar moral hazard) e para evitar o abuso do julgador na fixação das consequências do seu descumprimento. Por exemplo: o incumprimento gera pretensão à indenização? Se assim for, como quantificá-la? Ou gera pretensão a uma multa? Qual seria o seu fundamento legal? Ou a imposição de astreintes? Novamente, qual a base legal? Deve-se prever a possibilidade de o próprio julgador revisar o negócio se as partes não renegociarem? A renegociação se dá com um credor, aleatoriamente escolhido pelo devedor, ou com os eventualmente vários credores de um mesmo devedor? Nesse caso, como proceder? Seria extensível a essa hipótese o mecanismo da par conditio creditorum? Quem estabeleceria a preferência? Além do mais, creio ser correto estruturar a intensidade da incidência do princípio da boa-fé conforme (dentre outros critérios) o tipo do interesse envolvido: mea res agitur; tua res agitur; nostra res agitur, como propus em outra sede. Logo, mesmo se perspectivado esse dever legal de renegociar como uma possibilidade teórica, em face ao nosso ordenamento, ocorrem-me essas dúvidas e perplexidades no que diz com a sua concreta implementação. GR: A paralisação das atividades econômicas, em decorrência do combate à propagação do coronavírus, tem comprometido a renda de milhares de pessoas em todo o mundo. Como a Senhora analisa o problema provocado pelo coronavírus no âmbito da locação residencial nas hipóteses em que o locatário tem sua fonte de renda comprometida pela suspensão do exercício de atividade profissional ou econômica e não tem condições de continuar pagando o aluguel sem comprometer sua subsistência? A locação residencial é o setor que mais dificuldades apresenta em razão dos aspectos extrapatrimoniais envolvidos, tanto para o locatário - que se vê ameaçado de ficar sem sua moradia - quanto para o locador. Não é raro encontrar, na parte locadora, uma pessoa que vive exclusivamente daquela renda de um ou de poucos imóveis nos quais investiu ao longo da vida como uma espécie de poupança para o período de sua aposentadoria. Penso que nessas circunstâncias, além do caminho da negociação - para acordar, por exemplo, uma redução temporária do valor do aluguel - poderia ter havido uma previsão legislativa para estabelecer casos de redução e de suspensão temporária do valor, desde que em sua redação estivessem bem marcados os requisitos exigíveis de ambas as partes. GR: Como solucionar esse problema na locação comercial, especialmente em estabelecimentos comerciais em shopping centers? No meu modo de ver, a locação comercial comum é bastante distinta da locação em shopping center. Neste, há um caráter de "contrato de organização" que implica deveres suprapessoais. Além do mais, há de distinguir: de que "problema" estamos tratando: da dificuldade de prestar? De uma excessiva onerosidade superveniente, pois nem toda dificuldade de prestar se caracteriza como excessiva onerosidade, no sentido jurídico? De uma impossibilidade de prestar, ainda que temporária? E essa impossibilidade temporária é parcial ou é total? O primeiro passo para dar uma resposta precisa seria a delimitação de que tipo de locação se trata e de que tipo de efeito o fato da pandemia gerou para o contrato. Uma possível solução, no caso de impossibilidade temporária, seria a de invocar, para o aluguel fixo, analogicamente, o art. 567 do Código Civil como já muito bem proposto pela Profa. Aline Valverde Miranda Terra e como está também na doutrina de Pontes de Miranda. Assim, na hipótese de haver causa para a impossibilidade temporária e parcial, não imputável nem ao locador nem ao locatário, de vir a ser fruída, totalmente ou em parte, a coisa locada, o locatário poderia pedir a "redução proporcional" do aluguel mínimo, pelo período em que a plena fruição da locação está impedida, desde que sejam observados certos condicionamentos, por exemplo: que haja nexo causal entre a comprovada diminuição do rendimento e o fato do fechamento do shopping e, quanto a outras despesas geradas pelo contrato, que seja garantida a proporcionalidade entre a redução as despesas havidas pelo empreendimento em prol do interesse comum. GR: A determinação de fechamento temporário das escolas tem suscitados intensos debates acerca da legitimidade - ou não - da redução das mensalidades escolares, mesmo naqueles colégios que têm oferecido aulas online para seus alunos. Como a Senhora analisa o problema do coronavírus nos contratos de prestações desses serviços no ensino básico? Essa é outra questão complexa, que não admite respostas simplistas. Em linha de princípio, não penso haver razão jurídica para alterar esses contratos se a prestação de serviços continua a ser oferecida. A disciplina legal da prestação de serviços é silente a este respeito. Os colégios têm despesas permanentes, inclusive com a remuneração dos professores que, aliás, muitas vezes estão tendo um trabalho adicional, pois estão se esforçando para se adaptar e ministrar as aulas online. Pode haver dificuldades, mas onde estaria a impossibilidade (razão de ordem fática ou jurídica pela qual a prestação se torna irrealizável?) ou a excessiva onerosidade (não houve aumento, muito menos aumento excessivo, no valor da mensalidade)? Talvez se possa pensar em impossibilidade para o credor da prestação de serviços - o aluno - quando, pela carência financeira de sua família, não puder adquirir os equipamentos necessários para seguir as aulas online nem esses lhes forem oferecidos pela instituição de ensino. Teria que se examinar, então, se o fim a que direcionada a prestação foi atingido (hipótese de impossibilidade pelo desaparecimento do fim). Nesse caso específico, caberia a liberação da prestação de pagar a mensalidade, pela incidência do art. 248. GR: A Lei de Liberdade Econômica guiou-se, dentre outros, pelo princípio da intervenção mínima do Estado no exercício das atividades econômicas, orientação estendida até à interpretação dos contratos, como deixa claro o parágrafo único introduzido ao art. 421 do Código Civil. Por outro lado, a crise de covid-19 está exigindo, em todo o mundo, uma intervenção maior do Estado na economia e na Europa tem-se falado em um momento de concretização do Estado Social. Em que medida a LLE vai na contramão dessa nova onda intervencionista, na qual o Estado tem sido chamado a proteger os cidadãos e a ajudar na estabilização da economia? R. Além dos muitos e graves problemas técnicos da LLE, já de antemão percebidos pela doutrina não áulica que apontou a dificuldades de ordem lógica e sistemática daquela Lei (sublinhando inclusive a sua muito confusa redação), a pandemia mostrou-nos agora o grande equívoco dos seus fundamentos axiológicos. É uma lei que anda na contramão da História e, no meu modo de ver, natimorta.
Dentre as inúmeras questões discutidas no âmbito da responsabilidade civil em tempos de pandemia de Covid-19, uma das mais espinhosas diz respeito a saber se - e em caso positivo, sob quais pressupostos - o Estado pode responder pelas perdas patrimoniais sofridas por empresas em decorrência da adoção das medidas de combate ao novo coronavírus. O Landgericht (LG) de Heilbronn, município pertencente ao Estado de Baden-Württenberg, no sudoeste da Alemanha, parece ter tomado a primeira decisão sobre o tema no país. O caso envolveu uma cabelereira, cujo salão de beleza fora fechado em março por conta das medidas governamentais de combate à pandemia de Covid-19. A proprietária moveu ação indenizatória, com pedido de liminar, contra o Estado de Baden-Württemberg, alegando ter amargado perdas consideráveis em razão do fechamento do estabelecimento comercial, além de estar arcando com altos custos operacionais como aluguel e seguros, requerendo, por fim, a título de antecipação de tutela, a liberação imediata de 1 mil euros. Ela fundamentou sua pretensão no § 56 da Lei de Proteção contra Infecções - Infektionsschutzgesetz (IfSG) - que regula a prevenção e o combate de doenças infectocontagiosas no país. Dentre as medidas de prevenção e combate a esse tipo de patologia, na qual se enquadra o novo coronavírus, a lei prevê no § 31 a competência dos agentes públicos para proibir, total ou parcialmente, o exercício de atividade profissional por pessoas doentes, suspeitas de estar doente ou de ser transmissoras da doença (ainda quando já curadas), bem como qualquer pessoa que possa carregar o agente patogênico (no caso: o SARS-CoV-2), de modo que exista, no caso concreto, o risco de propagação da doença. Em caráter excepcional, o § 56 prevê a concessão de indenização às pessoas afetadas pela medida de suspensão do exercício de atividade econômica. A decisão de Heilbronn O LG Heilbronn, contudo, negou a liminar e julgou improcedente o pedido. Trata-se do processo Az. I 4 O 82/20, julgado em 29.4.2020. De início, a sentença assinalou que a autora já fora contemplada com o auxílio estatal de 9 mil euros, previsto na Lei do Coronavírus como ajuda social destinada a profissionais liberais e pequenas empresas, os mais duramente atingidos pela suspensão temporária do exercício da atividade econômica (veja a lei alemã aqui). Independentemente disso, contudo, fato é que a autora não tem qualquer pretensão ressarcitória contra o Estado em decorrência das perdas patrimoniais sofridas, disse o juízo de primeiro grau. De acordo com a sentença, embora os profissionais liberais possam se enquadrar no círculo de pessoas tuteladas na Lei de Proteção contra Infecções, a autora não tem direito a indenização por não se enquadrar na hipótese legal disciplinada pela Lei de Proteção contra Infecções. Segundo o § 56, inc. 1 da IfSG, as pessoas indicadas no citado § 31 (doentes e suspeitos de ser portadores, transmissores ou hospedeiros), impedidas de exercer sua atividade profissional, podem receber uma compensação em dinheiro pela perda da renda sofrida, desde que preenchidos certos pressupostos. Dentre eles, é necessário, por exemplo, que a pessoa tenha adotado medidas de proteção - como se vacinado ou observado outras medidas profiláticas legalmente prescritas ou recomendadas pelo Poder Público - que poderiam ter evitado a vedação do exercício das atividades. O § 56, inc. 2 e 3 da IfSG estabelece os parâmetros para o cálculo da compensação, que, em regra, mede-se pela extensão da renda perdida. Em casos excepcionais de risco existencial, as pessoas indicadas na norma podem requerer ainda, além da compensação pela paralisação, o ressarcimento de despesas operacionais vencidas e não pagas durante o período de inatividade profissional. Essas, contudo, não são ressarcíveis em sua integralidade, mas apenas em "extensão adequada", ressalta o inciso 4 do § 56 da Lei de Proteção contra Infecções. Ocorre que - argumentou a sentença - na situação da atual pandemia de Covid-19, a atividade profissional da autora não foi paralisada em decorrência de infecção, suspeita ou ameaça de infecção da autora individualmente considerada, ou seja, de uma ameaça concreta, mas sim em consequência de medida governamental geral e abstrata, válida para toda a população. Isso distinguiria a atual situação de Covid-19 da hipótese descrita na norma protetiva da Lei de Proteção contra Infecções, não havendo espaço para uma aplicação analógica do § 31 da IfSG ao caso sub judice, pois não há lacuna legal a ser colmatada, concluiu a sentença. Até porque, ponderou o LG Heilbronn, o auxílio emergencial do coronavírus, concedido pelo Estado a profissionais liberais e pequenas empresas, já seria uma espécie de compensação pelos danos decorrentes do shutdown. Outro argumento levantado na ação para justificar a pretensão ressarcitória da cabelereira seria o dever de indenizar do Estado mesmo em hipóteses de atos lícitos, como na desapropriação. Essa analogia também foi afastada na sentença ao argumento de que a indenização por desapropriação se justifica diante da garantia da propriedade, prevista no Art. 14 da Lei Fundamental, mas, no caso concreto, não está em jogo o direito de propriedade, mas apenas uma expectativa de ganhos decorrente do exercício de atividade econômica. As repercussões da decisão A decisão do LG de Heilbronn é, certamente, apenas a primeira de muitas que devem ocupar o Judiciário alemão nos próximos anos. As críticas à decisão não tardaram a surgir. Aduz-se a inaptidão do caso para figurar como precedente judicial. A uma, porque o Judiciário seria tímido no reconhecimento dessas pretensões ressarcitórias. A duas, porque a autora não conseguira demonstrar, no âmbito da ação cautelar, o risco concreto à sua existência mínima, vez ter recebido há pouco o auxílio social da covid-19. Dessa forma, afirma-se, muito ainda precisa ser discutido acerca da espinhosa questão da responsabilidade civil do Estado pela perda de rendimento de profissionais liberais e empresas em decorrência das medidas de contenção da pandemia de Covid-19, principalmente quando o particular lesado não receber auxilio social, dizem os críticos. O assunto já começa a ocupar espaço aqui no Brasil. É bem verdade que a primeira e mais imediata resposta a essa questão é negativa, vez que as medidas governamentais de isolamento social e lockdown visam tutelar no caso concreto bem de maior hierarquia axiológica: a vida e a saúde da população. Mas o tema dá pano para mangas, pois muitos pretendem justificar a responsabilidade estatal com base na teoria do fato do príncipe, na medida em que os atos estatais adotados para combate à pandemia provocaram repercussão direta e imediata sobre os negócios de muitos administrados. Em linhas gerais, para a responsabilização do Estado nesses casos, o particular precisaria provar - à par dos demais requisitos da responsabilidade civil - que o ato estatal foi desnecessário, inadequado ou desproporcional, i.e., excessivo no grau de restrição aos direitos (liberdade de iniciativa econômica) do lesado. O grande obstáculo que, em superficial análise, se opõe aos pedidos indenizatórios é que as medidas governamentais adotadas pela maioria dos estados - no caso brasileiro, pelos governos estaduais e municipais - atendem às orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), que, com base em estudos técnicos, concluiu que a melhor forma no momento de evitar o alto índice de contágio e mortalidade, bem como o colapso do sistema de saúde público, seria a instituição da quarentena, com a proibição temporária de circulação e do exercício de atividades não essenciais. Isso se corrobora pela existência de risco concreto (e elevado!) de contágio, pela insuficiência da rede de saúde pública - não só no Brasil, como no mundo - para tratar adequadamente as pessoas contagiadas, pelo caráter temporário das medidas restritivas e pela permissão de funcionamento de estabelecimentos aptos a oferecer seus produtos e serviços por meio online. Dessa forma, pesado será o ônus argumentativo para quem pretender pleitear o ressarcimento desse tipo de dano. Interessante notar que o problema da responsabilização não se apresenta apenas diante da decisão de instituir as medidas, mas se põe ainda - e, talvez, com mais intensidade - na decisão de flexibilização das medidas, quando o Poder Público terá que avaliar, ponderar e decidir quais atividades poderão ou não voltar a ser desenvolvidas. Intensa tem sido a discussão na Alemanha, onde as medidas de flexibilização já se iniciaram, sobre a (in)constitucionalidade da liberação ou não de determinadas atividades e estabelecimentos comerciais. Assim, tem-se debatido acesamente, porque, por exemplo, partidas de futebol foram autorizadas, mas ensaios de orquestras não; porque cafés e pequenos bares podem reabrir, mas casas de jogos não. Acalorada tem sido ainda a discussão, inclusive no Judiciário, de só permitir a reabertura de estabelecimentos comerciais com área de até 800 m2, continuando fechados shoppings e lojas de departamentos maiores, que teriam - alega-se - condições de atender as medidas de segurança e de higiene exigidas em lei. A isso acresça-se o agravante de que alguns estados federados possuem regras mais rígidas que em outros, de modo que alguns estabelecimentos continuam fechados em algumas cidades, enquanto em outras não. Aqui, abre-se um campo fértil para discutir a necessidade, adequação e proporcionalidade dos critérios utilizados pelo Poder Público para a liberação gradativa da atividade econômica, principalmente considerando o imenso prejuízo que daí pode advir para o particular impedido de exercer sua atividade econômica. Uma coisa parece certa: na Alemanha, onde o Estado não aproveitou a pandemia para tentar se blindar de quaisquer responsabilidades, como tenta-se aqui com a edição da MP 966/2020, a discussão acerca da responsabilidade civil por atos ou omissões do Poder Público, durante a crise do coronavírus, será acalorada.
terça-feira, 19 de maio de 2020

Entrevista: Professor Dr. Nils Jansen

A coluna German Report inicia hoje uma série de entrevistas com diversas personalidades do mundo jurídico, nacional e internacional, para tratar sobre variados temas de interesse na atualidade. O intuito, ainda, é apresentar ao leitor brasileiro - em alguns casos, homenagear - grandes juristas contemporâneos, que contribuem com suas ideias e seus escritos para o desenvolvimento da ciência jurídica ocidental. E com grande alegria inauguramos essa série com um dos mais proeminentes civilistas e comparatistas da nova geração: Prof. Dr. Nils Jansen, titular da cátedra de Direito Privado Alemão e Europeu, Direito Romano e História do Direito Privado na Universidade de Münster (Alemanha). Nils Jansen estudou Direito, Filosofia e Política em Passau. Foi assistente de Robert Alexy na Christian-Albrecht-Universidade em Kiel, onde doutorou-se, em 1997, com a tese "A estrutura da justiça", tendo sido seu artigo, nela baseado, agraciado com o prêmio Young Scolar pela Associação Internacional de Filosofia Jurídica e Social. Em seguida, Jansen tornou-se assistente de Reinhard Zimmermann na Universidade de Regensburg e, durante esse período, desempenhou a mesma função na Universidade de Cambridge. Em 2002, ele escreveu sua tese de livre-docência com o tema: "A estrutura do direito da responsabilidade". No mesmo ano, assumiu a cátedra de Direito Civil, Direito Romano, História do Direito Privado e Filosofia do Direito na Universidade de Augsburg. Em seguida, foi chamado para a Universidade Heinrich Heine, em Düsseldorf e, desde 2006, é professor titular na Universität de Münster, onde preside o Instituto de História do Direito e o Núcleo de Excelência de Religião e Política. Suas pesquisas comparatistas o levaram como professor visitante à Duke University, EUA (2008), St. John's College em Oxford (2009) e Universidade de Stellenbosch na África do Sul (2015). Em 2014, ele recusou uma nomeação como Regius Chair of Civil Law na Universidade de Oxford, dedicando-se na Alemanha à pesquisa das bases fundamentais do direito europeu e do direito obrigacional, contratual e da responsabilidade civil. Ao German Report, ele concedeu gentilmente essa entrevista, falando sobre os efeitos do coronavírus nos contratos e alertando para a necessidade de adaptação dos pactos. Confira: GR: Os efeitos do novo coronavírus sobre muitos contratos em andamento têm sido graves. Quais mecanismos jurídicos o Código Civil alemão (BGB) coloca à disposição do contratante afetado para compensar ou corrigir esses efeitos maléficos? O BGB dispõe de mecanismos tanto no direito geral das obrigações, como no direito contratual para debelar as dificuldades que podem surgir no curso de relações obrigacionais duradouras, ou seja, em relações contratuais nas quais prestações devam ser cumpridas durante longo período de tempo. As disposições especiais de direito contratual têm, em princípio, aplicação prioritária e o BGB, conforme o tipo contratual, faz valorações de risco especiais, geralmente unilaterais. Assim, por exemplo, no direito de locação, o impedimento pessoal de uso da coisa locada não conduz à liberação do dever de pagar o aluguel, nos termos do § 537 I 1 BGB. Essa regra é válida ainda, nos termos do § 578 II BGB, no caso em que o arrendatário não pode exercer seu direito de uso por razões relacionadas à sua pessoa. Em caso de contratos de viagem (contratos de prestação de serviços de turismo), a lei, por outro lado, imputa o risco econômico ao organizador, mesmo em casos de circunstâncias extraordinárias e inevitáveis, conferindo ao viajante (contratante) uma pretensão à restituição do valor pago. Se uma das partes não pode (mais) executar a prestação, afasta-se, nos termos do art. 275 BGB, o dever de cumprir a prestação tornada impossível. Por outro lado, o dever de realizar a contraprestação também se extingue, nos termos do § 326 I 1 BGB, de forma que dentro do quadro da impossibilidade os deveres de prestação principais, oriundos da relação obrigacional, não mais são devidos. Permanecem hígidos, entretanto, os deveres de prestação e contraprestação parcialmente possíveis. A fim de permitir uma extinção completa da relação contratual em casos de impossibilidade, pode-se lançar mão da resolução contratual (§ 326 V BGB). As relações obrigacionais de longa duração podem ainda ser desfeitas por motivo justificável, nos termos do § 314 BGB, sem se observar um prazo de resilição (denúncia), quando então os interesses de ambas as partes precisarão ser ponderados. Todas essas normas têm em comum o fato de que elas não admitem uma compensação ou correção. A aplicação desses dispositivos a relações contratuais perturbadas pela pandemia transfere o risco de uma situação excepcional apenas para uma das partes. Uma solução flexível, que permita uma adaptação posterior do contrato, só pode ser feita no caso de perturbação da base do negócio, nos termos do § 313 BGB. GR: Quando o § 313 BGB pode ser aplicado nesse contexto? Em princípio, o § 313 BGB tem caráter subsidiário em relação às normas acima mencionadas, de modo que ele não se aplica, por exemplo, em casos de impossibilidade da prestação. Entretanto, em certas situações fáticas falta certa clareza acerca de quando o § 275 BGB poderia ser aplicado, pois alguns casos de impossibilidade de realização da prestação podem ser compreendidos como alteração substancial das circunstâncias, nos termos do § 313 I BGB, quando a realização e o recebimento da prestação estiverem igualmente dificultados. Por exemplo, no caso de restrições relacionadas à pandemia, é indiferente se o agente público vetou a execução ou a aceitação da prestação, isto é, se decretou o isolamento social e com isso perturbou o recebimento de prestações ou se determinou o fechamento de determinados estabelecimentos e, dessa forma, proibiu a execução de prestações. A aplicação do § 313 BGB aqui depende de verificar se, de acordo com a valoração do contrato, se trata de risco comum, que deve ser suportado por ambas as partes ou se, ao contrário, se trata de risco unilateral (por exemplo: capacidade de pagamento), quando, em princípio, o § 313 BGB não tem aplicação. Quando ocorre, então, uma perturbação na base do negócio? É necessária a conjugação de um elemento real com os elementos hipotético e normativo. É necessário que as circunstâncias ou, pelo menos, a representação das partes, presentes no momento da conclusão do contrato, tenham se alterado (elemento real) de forma tão fundamental que se possa admitir que elas só teriam celebrado o contrato com outro conteúdo (elemento hipotético). Isso vale ainda quando as condições contratuais gerais contenham aparentemente uma regra sobre isso (exemplo: regra sobre cancelamento de jogos de futebol), pois com essa regra as partes certamente não tinham em vista uma paralisação de várias semanas da vida pública. Portanto, a parte que poderia - ou deveria - contar com uma possível modificação de determinadas circunstâncias, tem que suportar esse risco, pois ela teve a chance de trazer isso para as negociações e alocar diferentemente os riscos. Não é, evidentemente, o caso da atual pandemia. Excepcionalmente, pode a parte ter que suportar o risco de alterações, ainda quando imprevisíveis, como, por exemplo, em casos de operações em bolsas de valores, nas quais a parte assume conscientemente os riscos da especulação. Nesses casos, uma pandemia como a de agora ou uma guerra não suprimem a base do negócio, ainda quando essa circunstância não tenha sido considerada na formação do preço. Para desencadear as consequências jurídicas do § 313 BGB (adaptação ou extinção do contrato), é necessário finalmente que a manutenção do vínculo seja irrazoável (elemento normativo). Aqui, é impossível, por natureza, dar uma definição clara, de modo que a irrazoabilidade precisa ser apurada no caso concreto. Por isso, jurisprudência e parte da doutrina hesitam em aplicar o § 313 BGB, pois temem que a regra deixe margem (ao contrário do § 275 BGB) para decisões não uniformes no plano dos efeitos jurídicos. Caso o risco não seja imputado à esfera de responsabilidade de nenhuma das partes, a repartição do risco tem que ser equilibrada. GR: Em caso de perturbação na base do negócio, as partes devem primeiro tentar um acordo e, se não conseguirem, deve o julgador adaptar o contrato. Há, de fato, um dever de renegociação em decorrência do princípio da boa-fé objetiva (§ 241 II c/c § 242 BGB)? A partir da regra geral da boa-fé objetiva não se deduz um dever de renegociar nos casos de quebra da base do negócio (§ 313 BGB). Entretanto, o BGH (Corte infraconstitucional) considera que isso resulta dos efeitos da adaptação do contrato e, caso a contraparte se recuse a renegociar, poderia surgir até uma pretensão indenizatória, nos termos do § 280 BGB. Uma parte da doutrina, contudo, nega a existência desse dever, primeiro porque a proposta de positivá-lo na Reforma do BGB de 2002 foi rejeitada e, segundo, porque esse dever de negociar construtivamente é difícil de ser concretizado. GR: O que o juiz deve observar no caso de uma revisão do contrato? No caso de uma revisão judicial do contrato, o julgador deve observar os interesses de ambas as partes e, de modo algum, apenas os interesses da parte prejudicada. O risco geral não pode ser deslocado nem sobre uma, nem sobre a outra parte, a fim de se evitar um resultado severo. O risco, não imputado contratualmente a nenhuma das partes, precisa ser repartido de acordo com as peculiaridades do caso individual, de forma a tornar novamente razoável a execução do contrato. Aqui, a intervenção do julgador precisa se manter mínima e só pode ir até o estritamente necessário, considerando a circunstância não antevista. GR: A Lei alemã do Coronavírus suspendeu temporariamente, no Art. 5 § 2 I, o dever de pagamento dos alugueis, beneficiando, em princípio, até grandes empresas como Adidas e H&M, que logo anunciaram a suspensão do pagamento dos alugueis de suas lojas. Como o BGB pode impedir ou sancionar condutas oportunistas no contexto da pandemia de covid-19? Através do Art. 5 § 2 I modificou-se o EGBGB (Lei de Introdução ao BGB), de forma que os locadores não têm direito de denunciar o contrato caso os alugueis, vencíveis entre 01.04.2020 e 30.06.2020, fiquem em aberto e não sejam quitados até 30.06.2022 (em geral, o direito de denúncia já pode ser exercido a partir do momento em que o locatário está em mora de, pelo menos, dois alugueis). Além disso, a falta de pagamento tem que decorrer dos efeitos da pandemia. Exatamente por isso, criou-se grande indignação pública contra a Adidas e H&M, pois as pessoas acharam que esses grupos não sofreram restrições em sua capacidade de pagamento por conta da pandemia. Em casos como esses, o juiz poderia recorrer ao caráter corretivo do § 242 BGB quando esse tipo de conduta se mostrar inaceitável segundo a boa-fé objetiva. Prioritariamente deve-se fazer uma interpretação restritiva do texto legal, de forma que o Art. 5 § 2 I não seja aplicado a empresas com liquidez, ainda quando elas sejam afetadas pelos efeitos da pandemia. GR: No Brasil tem-se discutido intensamente a questão acerca de quem tem que suportar o risco do fechamento, por agentes públicos, de estabelecimentos comerciais, principalmente em shopping centers. Como solucionar essa questão sob a ótica da dogmática obrigacional? No direito locatício, um vício poderia restar configurado quando o estabelecimento comercial não mais se mostrar adequado para a venda de produtos. Pode ainda ser entendido como vício uma circunstância exterior ao objeto da locação, como, por exemplo, o fechamento do estabelecimento por ordem de autoridade pública. Em caso de vício que cessa totalmente a utilidade da coisa, o aluguel reduz-se a zero, de modo que não mais seria devido o pagamento e o risco seria imputado unilateralmente ao locador. Isso, contudo, é inaceitável à luz do § 313 do BGB quando o fechamento do estabelecimento é determinado pelo Poder Público e se dirige, da mesma forma, a locatários e locadores. Nesse caso, tratar-se-ia de risco comum, de modo que decisivo seriam as regras sobre a quebra da base do negócio. A adaptação do contrato, necessária nessas situações, vai depender do impacto que eventual redução no volume de vendas vai provocar no negócio do locatário, por exemplo, se as vendas poderão ser recuperadas no futuro. As partes conseguem avaliar isso muito melhor que um juiz, de modo que a renegociação aqui seria muito mais eficiente. GR: No Brasil, foi aprovado recentemente no Parlamento um Projeto de Lei para fazer frente aos efeitos da pandemia do coronavírus nas relações jurídicas de direito privado. O art. 7o do Projeto diz que não se consideram fatos imprevisíveis, para fins de revisão ou extinção do contrato, o aumento da inflação, a variação cambial, desvalorização ou substituição do padrão monetário. Como o Senhor analisaria uma regra como essa se o Parlamento alemão a tive introduzido na lei alemã do coronavírus? A inflação - enquanto fenômeno permanente, mas moderado - não é vista hoje na Alemanha como um evento imprevisível. A inflação acompanha a economia há muitas décadas. Apenas uma hiperinflação, como a que ocorreu na Alemanha, por exemplo, nos anos 20 do século passado em decorrência da crise econômica mundial, é considerada um evento imprevisível. Não por acaso o Reichsgericht (Tribunal Imperial) realizou pela primeira vez a revisão e adaptação dos contratos por quebra da base do negócio justamente quando ele se viu confrontado com casos nos quais os contratos estavam desequilibrados por causa da hiperinflação da época. Quando o Parlamento alemão quisesse excluir do campo de aplicação do § 313 BGB uma alteração a nível monetário, tão imprevisível e extrema como essa, então isso seria realmente passível de crítica. GR: A Corte infraconstitucional brasileira (STJ), em algumas decisões, parte do princípio de que em países de economia instável, como o Brasil, até mesmo o aumento elevado da inflação ou uma considerável desvalorização da moeda são eventos previsíveis, de modo que o devedor deve cumprir a prestação ainda quando extraordinariamente onerosa. Nesse contexto, como poderiam as partes calcular seus riscos antes da celebração do contrato? Esse nível de inflação não pode evidentemente ser considerada, desde o início, pelas partes na composição do preço. Só restaria às partes acordar por meio de cláusulas que elas só estariam vinculadas às suas obrigações até um determinado nível inflacionário ou acordar, por exemplo, desde o início, uma adaptação escalonada do contrato à inflação ou, ainda, um dever de renegociar o preço. GR: Por que é importante reequilibrar a paridade dos contratos? Em decorrência da liberdade contratual, as partes são livres para se obrigar dentro do quadro daquilo permitido. Uma perturbação imprevisível, porém, afeta as partes em um momento no qual elas já fizeram, de alguma forma, a alocação dos riscos. Essa perturbação altera, em última instância, o significado do acordo e quebra, com isso, a confiança na fidedignidade do pactuado. Caso não houvesse um mecanismo de adaptação dos contratos desequilibrados, a liberdade contratual seria restringida ou se tornaria sem sentido. Em última análise, o contrato restaria ameaçado enquanto instituição do direito civil. GR: O Senhor é reconhecido, principalmente na Europa, por seu trabalho de comparatista. O direito brasileiro é marcado, desde sua origem, pelo comparativismo, inicialmente com o direito português, depois com o francês, alemão e italiano. Nada obstante, ouve-se aqui e ali discursos adversos a teorias alemãs. Como um discurso nacionalista pode prejudicar o desenvolvimento do direito comparado e da ciência jurídica e, nesse contexto, qual a importância do direito comparado para o desenvolvimento do direito nos ordenamentos jurídicos nacionais? Creio que por trás da resistência contra pensamentos jurídicos alienígenas escondem-se possivelmente experiências coloniais. A exportação do direito foi - e ainda é, para atores como os EUA - durante muito tempo um instrumento de influência político-econômica. É evidente que determinadas nações tenham aqui "conjunturas" em determinados períodos: durante muito tempo importou-se o direito das ordens jurídicas "mães" e, posteriormente, dos atores dominantes. Que a transferência de direito e de conhecimento científico por esse modo possa ter uma conotação insípida, não significa necessariamente que se deva recusá-la. Muitos países aprenderam e se beneficiariam das teorias constitucionais e da experiência de grandes cortes constitucionais como a Supreme Court norte-americana, depois do Tribunal Constitucional alemão e atualmente do Tribunal Constitucional sul-africano. A comparação do direito e a recepção de teorias "alienígenas" podem sempre enriquecer uma ordem jurídica. Nem sempre precisam participar desse processo mecanismos coloniais. Deve-se tomar o cuidado de não se rejeitar, de plano, teorias pelo simples fato delas terem sido desenvolvidas em um determinado país. Uma comparação jurídica segura, que analisa diferentes regras de diferentes ordenamentos jurídicos e examina, com imparcialidade, sua utilidade para o próprio direito, pode resguardar contra mecanismos de influência indevida. Esse tipo de comparação científica do direito só pode enriquecer significativamente qualquer ordem jurídica.
As medidas governamentais de combate à pandemia de Covid-19, principalmente o isolamento social e a paralização de atividades econômicas não essenciais, têm provocado impactos das mais diversas ordens na vida das pessoas e na sociedade como um todo. Há poucos dias, o Prof. Dr. Christoph Schönberger, da Universidade de Konstanz (Alemanha), em Editorial da revista Juristische Arbeitsblätter, alertava para os efeitos maléficos da pandemia sobre a democracia, em decorrência das restrições às liberdades fundamentais, as mais profundas já implementadas desde o período do pós-guerra. Diz ele que o simples fato das pessoas não poderem mais se reunir, seja para fazer manifestações, seja para entrar juntas em comunhão com Deus ou simplesmente para bater papo nos bares subtrai um pouco da base social da democracia, ancorada na interação diária dos cidadãos1. O mesmo se diga em relação às sessões (presenciais) parlamentares, suspensas por conta do alto risco de contágio. É no Parlamento onde os cidadãos, fisicamente ausentes, se fazem representar pelos parlamentares para discutir e decidir medidas importantes para o país. Por essa razão, o Parlamento representa, segundo Schönberger, o coração da organização estatal democrática, sendo sua conservação imprescindível para a vitalidade da democracia2. Essa discussão serve para mostrar que os impactos da pandemia de Covid-19 são muito profundos e multifários, não se restringindo, em absoluto, às repercussões sociais, econômicas ou jurídicas, apenas as mais evidentes no auge da crise. Sob o aspecto econômico, é certo que todos estão a sofrer, em maior ou menor medida, os impactos das medidas de combate à pandemia. Mas inegável que são os profissionais liberais e as pequenas empresas os mais duramente afetados pelas determinações governamentais. Não por acaso, estados de diversos países estão elaborando planos de ajuda e recuperação, bem como concedendo subsídios a essas pessoas a fim de garantir que elas tenham um mínimo para sobreviver durante o período agudo de crise. Nesse sentido, na Alemanha, o Parlamento aprovou lei concedendo auxílio social a profissionais liberais e pequenas empresas, cujos valores variam de 9 mil a 15 mil euros3 e no Brasil, a lei 13.982/2020 criou auxílio emergencial mensal no valor de R$ 600,00, pelo período de três meses, para trabalhadores informais, microempreendedores individuais, contribuintes individuais da Previdência Social e desempregados. Foi exatamente esse auxilio governamental que um consultor tributário pretendeu penhorar para quitar dívida resultante de serviços de consultoria prestados e não pagos. O caso ocorreu em Colônia. O empresário possuía débito em aberto com o consultor referentes a honorários por serviços prestados nos anos de 2014-2015. Tão logo a ajuda social foi depositada na conta bancária do devedor, em 2.4.2020, o consultor requereu a penhora de parte dos 9 mil euros. O empresário alegou, em defesa, que está com suas atividades paralisadas desde o início das medidas de contenção da pandemia e que aquela quantia era indispensável à própria subsistência e de sua família. O consultor manifestou-se novamente nos autos alegando que o empresário não merecia proteção, pois possuía um automóvel de razoável valor, podendo muito bem quitar suas dívidas. O juiz da Comarca de Bergisch Gladbach deu razão ao devedor, razão pela qual os autos subiram ao Landgericht de Colônia. Trata-se do processo LG Köln Az. 39 T 57/20, julgado em 23.4.2020. Segundo a decisão, a ajuda emergencial do governo tem por fim primordial garantir a existência econômica mínima das pessoas e ajudar as pequenas empresas a superar os gargalos de liquidez enfrentados durante o período agudo de crise, evitando a falência. Essa destinação constava expressamente do ofício no qual o Município liberava o valor, no qual lia-se - preventivamente - expressa proibição ao banco, no qual o numerário seria depositado, de realizar qualquer compensação de dívidas. No documento constava que "a ajuda imediata outorgada tem que ser utilizada, em sua totalidade, para a compensação das dificuldades econômicas diretamente provocadas pela pandemia do coronavírus. A V. Sa., enquanto receptor(a), cabe a decisão de avaliar quais as dívidas de alta relevância para assegurar sua existência (ex: débitos de aluguel, de fornecedores) e, dessa forma, utilizar prioritariamente essa subvenção". E, reforçando o fim visado pelo legislador emergencial, o ofício da autoridade outorgante afirmava: "A ajuda imediata se dará com o pagamento único por três meses, exclusivamente para amenização da situação financeira emergencial da empresa ou do profissional autônomo afetado em conexão com a pandemia de Covid-19. A ajuda imediata serve principalmente para superar os gargalos de liquidez, surgidos desde 1 de março de 2020, conexos à pandemia de Covid-19. Não compreendem as dificuldades financeiras ou de fornecimento anteriores a 1 de março de 2020". Por isso, a sentença de primeiro concluiu pela vinculação do auxílio à finalidade prevista na lei, negando consequentemente o pedido de penhora feito pelo credor. O Landgericht Köln, em sua decisão, sublinhou que a vinculação do crédito a um fim específico não precisa, contudo, ser deduzida diretamente da lei, como ocorre comumente em normas outorgantes de subsídios estatais. "Ela [vinculação ao fim] pode resultar da natureza da relação jurídica e, em casos de prestações públicas, das disposições administrativas que estabelecem as normas ou que as interpretam... Segundo esse critério, a ajuda imediata do corona, como o juízo de primeiro grau corretamente reconheceu, deve ser entendida, sem mais, como vinculada à finalidade, pois ela serve comprovadamente ao fim mencionado de garantir a existência econômica do favorecido e para superar os gargalos atuais de liquidez, decorrentes da pandemia de corona", disse a Corte. Dessa forma, o LG Köln reconheceu que o consultor não estaria protegido, enquanto credor, pela vinculação específica do auxílio emergencial e que esse auxílio não se presta à satisfação de dívidas anteriores do beneficiário, mas sim, em princípio, a fazer frente aos atuais custos operacionais da empresa ou às necessidades elementares dos profissionais liberais. Isso, por si só, exclui e afasta quaisquer medidas executivas dos credores, enquanto essas forem inconciliáveis com a finalidade do auxílio emergencial. O LG Köln deixou em aberto se caberia penhora por dívidas atuais oriundas de contratos de locação, leasing ou fornecimento. De qualquer forma, a penhora do auxílio estatal por dívidas não relacionadas à pandemia de Covid-19 contrariaria o fim da norma, a vontade do legislador e seria extremamente injusta, concluiu o Landgericht Köln. Da decisão ainda cabe recurso, mas ela se ampara em argumentos bem estruturados, que levam em conta a situação de dificuldade financeira de pessoas físicas e jurídicas em decorrência da pandemia de Covid-19, bem como a finalidade de proteção da lei e do auxilio emergencial, qual seja, garantir o mínimo existencial àqueles mais afetados pela crise financeira, decorrente da crise pandêmica. Nesse sentido, ela serve de reflexão entre nós para quando o Judiciário brasileiro se deparar com pedidos de execução e penhora sobre valores recebidos a título de ajuda emergencial, os quais, infelizmente, ainda não estão chegando - por gargalos político-burocráticos - a seus destinatários. A ressaltar, ainda, que a decisão não afastou tout court todas as medidas executórias, mas apenas aquelas incompatíveis com a finalidade última do auxilio emergencial, o que deixa margem para discussão acerca da penhora por débitos essenciais, como as dívidas alimentares. __________ 1 Die Demokratie in den Zeiten der Pandemie. JA Editorial 5/2020, p. 1. 2 SCHÖNBERGER, Christoph. Op. cit., p. 2. As palavras de Schonberger ecoam com mais intensidade por aqui diante das repetidas agressões às instituições, liberdades e valores democráticos que se está presenciando em tempos recentes no Brasil. O último ataque foi a agressão a jornalistas no dia 3.5.2020, quando se comemora o Dia da Liberdade de Imprensa, o que causou reação de repúdio por parte do STF e do Senado. Confira-se, dentre outras, a matéria: Toffoli: "Não há solução para a crise fora da democracia". O Globo, 7.5.2020. 3 Confira-se a Lei alemã do coronavírus.
A Alemanha começa lentamente a afrouxar as medidas de combate ao novo coronavírus, que deu azo à adoção de rígidas medidas de emergência nos últimos meses. Na semana passada, o governo da chanceler Angela Merkel anunciou ter acordado com os governos estaduais um plano prevendo as primeiras medidas de retorno à normalidade no país. As medidas não serão adotadas uniformemente por todos os Estados, mas segundo as conveniências de cada cidade ou região. As novas regras Em princípio, as pessoas podem sair às ruas, mas observando a distância mínima de 1,5m para os demais. Apesar da liberação, o governo exorta veementemente as pessoas a permanecerem o máximo possível em casa. Até 31/8/2020 estão proibidas grandes aglomerações como jogos, shows, festas populares e eventos, cabendo a cada estado regular as peculiaridades do caso. O uso de máscaras não é obrigatório, isto é, não está sujeito a pena de multa ou detenção, consistindo em exortação do governo aos cidadãos. Isso vale principalmente para os transportes coletivos como metrôs, ônibus e bondes. Os estabelecimentos vão abrir gradualmente. Creches e escolas permanecem fechadas, em princípio, até 4/5/2020. Primeiro, devem reabrir as turmas mais adiantadas e apenas depois a das crianças menores. No Estado da Bavária, particularmente afetado pela pandemia, a previsão é de que as aulas retornem só em 11/5/2020. Apenas estabelecimentos comerciais de no máximo 800 metros quadrados devem reabrir, desde que comprovem a capacidade de manter as regras de higiene exigidas pelo governo. Independente do tamanho do local, podem voltar a funcionar as livrarias, lojas de bicicletas e concessionárias de veículos. Mas bares, restaurantes e clubes permanecem fechados, o que tem suscitado acessas discussões acerca da legitimidade dos critérios adotados para permitir a reabertura1. A discussão envolve principalmente os templos religiosos, que permanecem de portas fechadas aos fiéis, que só encontram consolo nas celebrações onlines oferecidas atualmente. E a questão que se coloca é por que concessionárias devem voltar a funcionar, enquanto igrejas, sinagogas e mesquitas não, embora observem as regras de higiene e distancia mínima. Isso representa, argumentam alguns, não sem razão, grave interferência no exercício do direito fundamental à liberdade religiosa dos cidadãos, que justamente nessa hora deveria ter mais peso que meros interesses patrimoniais dos fabricantes de automóveis. Ainda permanecem sob estrito isolamento os abrigos de idosos e pessoas com deficiência, que precisam de proteção especial diante da covid-19. Para eles, o governo trabalha em um plano especial de reabertura, a fim de evitar o completo isolamento social das pessoas. Por conta dessas regras, já começaram a pipocar no Judiciário pedidos liminares para reabertura de estabelecimentos comerciais, fechados pelas medidas governamentais de combate à pandemia de covid-19. O caso de Bremen A famosa loja de departamento Karstadt Sport e duas redes de restaurante entraram na Justiça questionando a constitucionalidade do decreto da Cidade Hanseática de Bremen de limitar a 800m2 a área máxima dos estabelecimentos comerciais autorizados a retomar o funcionamento. Segundo as autoras, a medida é desproporcional e representa um tratamento discriminatório injustificável face aos grandes estabelecimentos comerciais, os quais podem melhor garantir a observância das medidas de proteção contra o contágio, principalmente determinações de higiene e distância entre o público no local. Em contestação, o Poder Público afirmou que a limitação da área dos estabelecimentos justifica-se na medida em que é mais fácil para estabelecimentos menores observar as medidas de higiene no local e fiscalizar o cumprimento da distância mínima entre seus frequentadores. Essa medida máxima (800m2) não é aleatória, mas utilizada no direito municipal para diferenciar os estabelecimentos grandes dos menores. O Tribunal Administrativo (Oberverwaltungsgericht) de Bremen deu razão ao Poder Público. Tratam-se dos processos OVG Bremen Az. 1 B 109/20, julgado em 22.4.2020 e Az. 1 B 107/2020, de 23.4.2020. Segundo a Corte, a regra fixada é proporcional e justificada. É bem verdade, disse o OVG Bremen, que as grandes lojas e estabelecimentos comerciais poderiam garantir a observância das medidas de proteção contra o coronavírus, mas ainda é preocupante os efeitos da reabertura sobre o trânsito de pessoas no local. Diante do estágio atual de saúde pública, ainda é necessário limitar as possibilidades de contato físico entre as pessoas, o que facilmente ocorreria nas grandes lojas de departamento, como a Galeria Kastadt e os restaurantes que lá funcionam. No caso dos restaurantes, mesmo a manutenção de considerável distância entre as mesas não seria uma medida plenamente adequada para impedir com segurança o contato - e o contágio - entre as pessoas, ressaltou o Tribunal. O caso de Bayern Ontem, entretanto, o Tribunal Administrativo (Verwaltungsgerichtshof) da Bavária chegou a conclusão diametralmente oposta à dos colegas de Bremen. Trata-se do processo BayVGH Az. 20 NE 20.793, julgado em 27.4.2020. O Tribunal considerou inconstitucional a regra que só permite a reabertura de estabelecimentos com, no máximo, 800m2. Segundo a decisão, essa regra viola o tratamento isonômico garantido no art. 3, inc. 3 da Lei Fundamental (Grundgesetz), prejudicando desproporcionalmente as grandes lojas e restaurantes. Isso ainda mais se justifica diante do fato de que essa regra não vale (inexplicavelmente) para concessionárias, lojas de bicicletas e livrarias. Só nos resta agora aguardar as cenas dos próximos capítulos, pois os processos devem subir ao Bundesverwaltungsgericht, corte máxima da jurisdição administrativa, que fica localizado na histórica cidade de Leipzig. __________ 1 Das sind die aktuellen Corona-Regeln. Süddeutsche Zeitung, 15/4/2020.
As diversas medidas de combate à pandemia de covid-19 adotadas no mundo inteiro têm restringido vários direitos fundamentais dos cidadãos. Na Alemanha, o isolamento social não tem cunho facultativo, à cargo do bom senso do cidadão, mas tem caráter obrigatório, sujeito a multa ou pena de prisão. Essas sanções encontram previsão tanto na lei federal de prevenção e combate a doenças infectocontagiosas, conhecida como Infektionsschutzgesetz (IfSG), de 20/7/2000, recentemente alterada em 10/2/2020 por ocasião da pandemia da covid-19, quanto em diversas leis ou decretos estaduais. Nesse sentido é o Decreto do Estado de Hessen, região onde se encontram, dentre outras cidades, Frankfurt am Main e Gießen. E o imbróglio começou em Gießen, onde ativistas pró-democracia queriam organizar um protesto chamado: "Fortalecimento da saúde ao invés de enfraquecimento dos direitos fundamentais - proteção contra vírus, não contra pessoas". O caso Os organizadores informaram a prefeitura de Gießen acerca da passeata, planejada para acontecer na sexta-feira passada, 17/4/2020, com a presença limitada de trinta pessoas e a observância das devidas medidas de segurança, como uso de máscaras e a manutenção da distância de 1,5m entre os participantes, com marcações no chão indicando as posições. O problema começou, porque a prefeitura proibiu a passeata ao argumento de que o Decreto estadual acerca das medidas de combate ao novo coronavírus proibia, em seu § 1, inc. 1, a aglomeração na rua de mais de duas pessoas que não morassem na mesma residência. Além disso, disse o município, os organizadores não poderiam garantir que os participantes obedeceriam a regra de distância mínima para os demais, colocando em risco, dessa forma, a ordem e a segurança públicas. Um dos organizadores do protesto recorreu da decisão, mas a prefeitura manteve-se inarredável em sua posição. Isso fez com que ele entrasse com ação judicial perante o juízo administrativo, que possui jurisdição especializada na Alemanha. O juízo de primeira instância - Verwaltungsgericht Gießen - negou, em 9/4/2020, o pedido para realização da passeata, sentença confirmada em grau de recurso pelo Verwaltungsgerichtshof de Hessen, em 14/4/2020, no processo 2 B 985/20. O autor interpôs, então, queixa constitucional com pedido de liminar perante o Tribunal Constitucional em Karlsruhe alegando violação de seu direito fundamental de reunião e manifestação, consagrado no art. 8 da Lei Fundamental (Grundgesetz). Trata-se do processo BVerfG 1 BvR 828/20, julgado em 15/4/2020. A decisão do Bundesverfassungsgericht A Corte Constitucional julgou procedente a queixa constitucional impetrada, reconhecendo a restrição indevida à liberdade de reunião e manifestação, com o que o protesto acabou ocorrendo, como previsto, na última sexta-feira. Essa foi a primeira demonstração política realizada no país em tempos de pandemia de covid-19. No dia 4/4/2020, alguns ativistas se reuniram em Berlim para protestar contra as limitações excessivas aos direitos fundamentais provocadas pelas medidas de combate ao coronavírus, mas a polícia rapidamente dissolveu a aglomeração, que acabou sendo frustrada1. Segundo o 1o. Senado da Corte, o art. 8, inc. 1 da Lei Fundamental assegura a todos os alemães o direito de se reunir de forma pacífica e desarmados, independentemente de comunicação ou autorização. Esse direito pode, contudo, ser restringido por lei quando se tratar de reuniões ao ar livre, nos termos do inc. 2 do art. 8 da Grundgesetz (GG). Segundo a Corte, o Decreto estadual de Hessen (Verordnung zur Bekämpfung des Corona-Virus, de 14/3/2020, alterado em 30/3/2020) não contém uma proibição geral de aglomerações com mais de duas pessoas. O § 1, inc. 1 do referido diploma diz apenas que o contato com outras pessoas, não residentes no mesmo imóvel, deve se limitar ao mínimo absolutamente necessário. Além disso, a análise da compatibilidade da demonstração pública com a vedação do Decreto estadual precisa ser feita considerando todas as circunstâncias do caso concreto, sob pena de se esvaziar o conteúdo do art. 8, inc. 1 da Lei Fundamental. Segundo o BVerfG, não foi essa, contudo, a postura da municipalidade, que simplesmente proibiu a realização do protesto sem considerar todas as circunstâncias do caso, inclusive que a manifestação iria observar as medidas de proteção ordenadas para evitar o contágio do covid-19, como a manutenção da distância mínima entre os partícipes e o uso de máscaras apropriadas. Dessa forma, concluiu o Bundesverfassungsgericht, as cortes inferiores violaram o direito fundamental à livre associação do autor da queixa constitucional, razão pela qual o protesto, como dito, acabou se realizando. Protesto em Stuttgart No mesmo sentido foi a decisão BVerfG 1 BvQ 37/20, prolatada pelo 1o. Senado da Corte em 17/4/2020. Dessa vez, o caso envolvia a proibição de ato público na praça do castelo (Schlossplatz), no centro de Stuttgart, capital do Estado Baden-Württemberg. O protesto também visava chamar atenção para os efeitos das medidas de combate à pandemia sobre os direitos fundamentais dos cidadãos, os quais, não custa lembrar, formam a ordem axiológica nuclear do sistema jurídico alemão, na visão da Corte Constitucional alemã. O lema da demonstração em Stuttgart dava um recado muito claro ao Parlamento e ao Governo: "Não abrimos mão dos 20 primeiros artigos da Constituição. Exigimos o fim do regime de exceção!". A proibição das instâncias administrativas justificava-se no fim legítimo, perseguido pelo ato interditório, de proteger a saúde e a vida das pessoas contra o alto risco de contágio do vírus SARS-CoV-2. A medida estaria ainda em sintonia com as recomendações do Instituto Robert Koch, que recomenda a proibição de aglomeração de pessoas em espaços públicos em razão do virulento poder de propagação do novo coronavírus. Isso ainda mais se justificava, disse o Tribunal Administrativo de Baden-Württemberg, pois os organizadores da passeata, ao contrário de Gießen, não previram medidas para minimizar o risco de contágio, como a distribuição de máscaras ou a colocação de placas ou faixas a indicar a distância mínima exigível entre os demonstrantes. Dessa forma, Além de ter uma finalidade legítima, o ato do Poder Público era adequado, necessário e proporcional diante do atual cenário de pandemia, concluiu a Corte de apelação. Mas nesse processo a Corte Constitucional reafirmou novamente a relevância e o significado do direito à livre reunião e manifestação do art. 8 da GG, que tem papel constitutivo em uma ordem estatal livre e democrática, como a alemã2. Daí decorre, disse o BVerfG, que leis infraconstitucionais não podem atingir o "núcleo duro", isto é, a essência desse direito, que é expressão da liberdade de formação da opinião pública. O art. 8, inc. 1 da Lei Fundamental, disse a Corte, protege a liberdade do indivíduo de, juntamente com outras pessoas, participar de discussões e manifestações destinadas à formação da opinião pública, inafastável no Estado democrático. Por isso, qualquer restrição a essa liberdade precisa ser lida à luz da significação fundamental do art. 8, inc. 1 da GG, acentuou o BVerfG. Daí decorre que qualquer intervenção só pode ser admitida para proteger bens jurídicos de igual status axiológico e sob a estrita observância da proporcionalidade. A restrição ao direito à livre reunião não pode ser feita em abstrato pelo Poder Público ou pelo Parlamento, mas apenas in concreto, considerando todas as circunstâncias do caso individual, disse o Bundesverfassungsgericht, o que não ocorreu no caso sub judice. E é dever dos órgãos competentes adotar uma postura cooperativa com os organizadores de manifestações e, ao invés de simplesmente proibir, buscar no caso concreto a adoção de medidas efetivas para minimizar riscos de contágio durante as demonstrações. As repercussões das decisões Essas duas decisões do Tribunal Constitucional alemã são de extrema relevância na atual quadra da história, na qual direitos fundamentais estão sendo restringidos por conta das medidas governamentais e legislativas de combate à pandemia de covid-19. E a Corte mandou um recado claro ao Governo e ao Parlamento: que não vai tolerar intervenções nos direitos fundamentais que não se justifiquem no caso concreto. Dito em outras palavras: os direitos fundamentais não podem ser limitados de forma ampla e abstrata, mas apenas dentro dos limites estritamente necessários e exigíveis no caso concreto, sempre preservando o núcleo duro de cada direito fundamental, sob pena de se aniquilar sua própria essência. No que tange especificamente ao direito à livre reunião e manifestação, não cabe uma proibição geral dos protestos ao argumento da proteção da vida e da saúde face ao coronavírus. É preciso que a proibição se dê com base nas circunstâncias e dentro dos limites do caso individual, considerando o risco concreto de contágio e as medidas de proteção cabíveis no caso concreto. Além disso, é dever do Poder Público cooperar com os organizadores de demonstrações, a fim de auxiliá-los a adotar medidas para redução do risco de contágio, como a limitação do número de participantes, redução da duração do protesto, uso obrigatório de máscaras, colocação de placas ou marcações no chão indicando a medida mínima de distância entre as pessoas, etc. Em razão dessas duas decisões da Corte Constitucional, ocorreram no fim de semana protestos em várias cidades a revelar a preocupação da sociedade alemã com as restrições aos direitos fundamentais dos cidadãos frente ao Estado, ainda que em caráter temporário e com a finalidade específica de combate à pandemia. Essa preocupação já é sentida no Brasil, embora a sociedade ainda não tenha se mobilizado nesse sentido, como fez a alemã. E o quadro parece ainda mais alarmante diante da suspensão, proposta pelo PL 1.179/2020, da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, que representa importante instrumento de defesa do indivíduo contra a coleta e o processamento indiscriminado dos dados pessoais (inclusive os sensíveis) durante o período de exceção do coronavírus. __________ 1 Kein generelles Demonstrationsverbot. Tagesschau, 16.4.2020. 2 O Tribunal há tempos assinala o papel constitutivo desse direito para o Estado de Direito. Confira-se, dentre outros julgados: BVerfGE 69, 315 e 128, 226.
Finalizando a série de análises das principais alterações emergenciais promovidas no direito contratual alemão pela Lei para Amenização dos Efeitos da Pandemia de COVID-19 no Direito Civil, Falimentar e Processual Penal (Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht), aborda-se hoje a moratória concedida aos mutuários nos contratos de mútuo. Como exposto nas duas últimas colunas, a chamada Corona-Gesetz, aprovada em 27.3.2020, instituiu uma moratória aos contratos de consumo essenciais de longa duração e suspendeu temporariamente o pagamento dos alugueis de locações residenciais e comerciais, proibindo o despejo ou denúncia da locação por falta de pagamento dos alugueis vencíveis no período de abril a junho de 2020, se o devedor não tiver condições de honrar seus compromissos em razão das medidas governamentais de combate da pandemia de covid-19. Além dessas medidas, outra importante mudança temporária no campo obrigacional foi a moratória concedida nos contratos de mútuo a consumidores, prevista no Art. 5 § 3 da lei do coronavírus. Cabe aqui recordar que, nos termos do § 14 do Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), consumidor é apenas a pessoa natural que celebra negócio para fins (exclusivo ou preponderantemente) privados, isto é, que não utiliza o produto ou serviço para o exercício de sua atividade profissional ou comercial1. A lei fala em Verbraucherdarlehensverträge, a indicar que apenas poderá ser postergado o pagamento do mútuo concedido a consumidor para fins particulares, restando excluído do benefício legal os contratos de mútuos celebrados para fins profissionais, bem como os celebrados por empresas para fins comerciais. Segundo o Art. 5 § 3, inc. 1 da lei alemã, nos contratos de mútuo a consumo, celebrados antes de 15.3.2020 (termo inicial das restrições governamentais de combate à pandemia de covid-19), ficam postergadas por três meses as pretensões do mutuante à devolução e o pagamento do principal, juros e amortizações, vencíveis entre 1o. de abril a 30 de junho de 2020, quando o cumprimento tornar-se irrazoável para o mutuário devido à redução de sua renda em decorrência das medidas extraordinárias de combate à pandemia de covid-19. Considera-se irrazoável o cumprimento da prestação, nos termos do 2o. período do Art. 5 § 3, inc. 1 da lei, principalmente quando ele pôr em risco a subsistência do devedor ou daqueles que dele dependam. A lei emergencial trabalha com o conceito jurídico da irrazoabilidade, bastante utilizado no direito alemão, que pode ser entendido como insuportabilidade de cumprimento da obrigação, colorido pela valoração adicional de que tal situação extrapola os limites do razoável e da consideração exigidos pelo mandamento da boa-fé objetiva. Do exposto, conclui-se que a lei prorroga até setembro de 2020 o vencimento das prestações que seriam exigidas de abril a junho, de modo que a falta de pagamento pelo mutuário não configurará mora. A lei não diz como essas três prestações (referentes aos meses de abril, maio e junho) deverão ser pagas, deixando, em princípio, à livre negociação das partes. Se elas, todavia, não chegam a acordo, o prazo do contrato prorroga-se, em princípio, por três meses (Art. 5 § 3, inc. 5, período 1o.). Esse prazo poderá, contudo, ser estendido pelo governo, via decreto, por até doze meses, nos termos do Art. 5 § 4, inc. 1, alínea 3, se a situação social (aqui incluindo o exercício de atividade comercial e profissional) ainda não tiver se normalizado no país. A moratória legal não é obrigatória, podendo o consumidor afastá-la se optar por continuar pagando as prestações normalmente ou por meio de acordo com o mutuante. Com efeito, nem todos são afetados pela crise econômica do coronavírus. Dessa forma, pode ocorrer que o consumidor não sofra inicialmente os impactos negativos da crise, porque, por exemplo, continua a receber seu salário regularmente, hipótese na qual ele deve continuar a pagar suas dívidas. Mas se, entretanto, sua situação financeira se alterar em razão da crise econômica, ele pode lançar mão da moratória legal e suspender temporariamente o pagamento daquelas parcelas (abril a junho) ainda não pagas. Em respeito à autonomia privada dos contratantes, o Art. 5 § 3, inc. 2 da lei permite às partes renegociar o contrato e fazer uma repactuação da dívida ou disciplinar diferentemente a forma como se dará o pagamento das prestações mensais, juros e amortizações. Segundo o Art. 5 § 3, inc. 3, é proibido ao mutuante resolver o contrato em decorrência da mora, do considerável agravamento da situação patrimonial do consumidor ou da depreciação da garantia até o fim do prazo da moratória. As partes não podem dispor diferentemente dessa regra, colocando em desvantagem ao consumidor. O mutuante deve entrar em contato com o consumidor para renegociar o contrato e propor medidas para a quitação do débito. É o que prescreve o Art. 5 § 3, inc. 4 da Corona-Gesetz. Embora a lei vise proteger em primeira linha apenas o consumidor, o Art. 5 § 3, inc. 8 autoriza o governo a ampliar a concessão de moratória por decreto a pequenas e médias empresas. Como se trata de lei emergencial temporária, o prazo da moratória iniciou em 1.4.2020, data da entrada em vigor das novas regras sobre direito contratual2, e finda, em princípio, em 30.9.2020, nos termos do já mencionado art. 5 § 4, inc. 1, alínea 3. Um dos dispositivos mais criticados da regulação dos contratos de empréstimo de consumo é art. 5 § 3, inc. 6, que afasta a moratória quando - considerando todas as circunstâncias do caso individual, inclusive as alterações nas condições de vida das partes, provocadas pela pandemia de covid-19 - ela se mostrar efetivamente irrazoável para o mutuante. Isso, porque o legislador emergencial não fez a mesma ressalva em relação aos contratos de locação, cuja exigibilidade dos alugueis ficou suspensa sem excepcionar expressamente os casos em que o locador não poderá suportar a dilação do pagamento, deixando ao Judiciário a decisão no caso concreto. Além disso, no mútuo bancário haverá na outra ponta uma instituição financeira, que poderá, em tese, valer-se do dispositivo, embora algumas vozes afirmem, com razão, que somente com grande dificuldade as instituições financeiras conseguirão provar que a moratória lhes seria absolutamente insustentável. De qualquer forma, o legislador extraordinário instituiu a possibilidade de moratória nessa área importante dos contratos de mútuo, permitindo ao devedor prejudicado pela crise econômica provocada pela pandemia de covid-19 adiar o cumprimento dessas obrigações no período mais crítico de isolamento social e paralização das atividades. Esse sacrifício exigido dos credores retira seu fundamento de legitimidade do princípio da solidariedade social e do Estado Social, que por meio da lei de emergência procura tutelar a parte mais fraca na relação contratual: a pessoa física que não pode, total ou parcialmente, exercer sua atividade profissional. Sem dúvida, o mesmo pode-se dizer em relação às pequenas e médias empresas, que também amargam grandes prejuízos com a inesperada crise econômica provocada diretamente pelo coronavírus. Não por outra razão, a lei reserva a competência para o governo estender via decreto a moratória aos contratos de mútuo celebrados por empresas de pequeno e médio porte, caso as análises confirmem a antevista dificuldade financeira por elas enfrentadas. A situação no Brasil No Brasil, o PL 1.179/2020 - aprovado dia 3.4.2020 pelo Senado Federal e elaborado sob inspiração de leis estrangeiras, dentre as quais a alemã - não faz menção aos contratos de mútuo, nem mesmo em sua versão original. Recorde-se que o Projeto foi aprovado amputado da suspensão do pagamento dos alugueis até 30.10.2020 e que, no campo contratual, a única alteração prevista é a suspensão do direito de arrependimento, consagrado no art. 59 do Código de Defesa do Consumidor, para produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos, adquiridos para entrega domiciliar (delivery), como consta de seu art. 8o. Algumas emendas apresentadas ao Projeto de Lei visaram proteger os consumidores de nos contratos de mútuo, como as Emendas 22 e 23, do Senador Plínio Valério, que objetivavam suspender por 120 dias o vencimento de parcelas de: (a) empréstimos consignados feitos por maiores de 60 anos, quando o desembolso superar 20% dos vencimentos do devedor e (b) financiamentos habitacionais, se o mutuário tiver sofrido decréscimo patrimonial. Da mesma forma, a Emenda 29, que pretendia permitir a redução da prestação do empréstimo consignado em razão de redução salarial e a Emenda 33, que visava instituir moratória e parcelamento em financiamentos habitacionais. Todas essas emendas foram rejeitadas ao argumento de que envolviam temas de alta complexidade e que, portanto, o foro mais adequado para sua discussão e regulação seria por meio de outro projeto de lei3. Diante disso, tramita no Senado Federal o PL 1.200/2020, de autoria do Senador Rodrigo Cunha, que institui uma moratória em contratos essenciais, bancários, securitários (inclusive seguros de saúde) e educacionais em favor dos consumidores afetados economicamente pela pandemia de covid-19. O Projeto é uma iniciativa da Professora Cláudia Lima Marques (UFRGS), Káren Rick Danillevicz Bertoncello e Clarissa Costa de Lima, que elaboraram o anteprojeto sob inspiração da legislação alemã4, ora comentada. Em apertada síntese, o PL 1.200/2020 institui em seu art. 2o uma moratória até 30.6.2020 das obrigações pecuniárias de consumidores (pessoas físicas apenas!) com vencimento a partir de 1.4.2020, relativas aos contratos acima mencionados, celebrados antes de 20.3.2020. Com isso, alteram-se as datas de vencimentos das obrigações, vedando-se consequentemente a incidência de juros moratórios, honorários advocatícios e cláusulas penais, bem como a utilização de medidas de cobranças de débitos, inclusive inscrição em cadastros de inadimplentes (art. 2o § 1o). O montante dos débitos, vencidos durante o período da moratória, deverão ser pagos em doze parcelas mensais à partir de 30.6.2020, sem incidência de juros, mas com correção monetária, nos termos do § 2o do art. 2o. O art. 2o § 3o do Projeto prevê, contudo, a possibilidade do juiz estender a moratória até 30.9.2020 em caso de doença, morte na família ou outro caso grave, devendo o consumidor pagar o montante dos débitos, vencidos durante o período da moratória, em doze parcelas mensais à partir de outubro de 2020, sem incidência de juros, mas com correção monetária. No que tange aos contratos de mútuo, aqui analisados, nota-se que o PL 1.200/2020 confere uma proteção mais ampla que a lei alemã do coronavírus na medida em que abrange os contratos bancários, financeiros e de crédito ao consumidor pessoa física, nos termos de seu art. 6o. O art. 6o § 1o do PL 1.200/2020 veda por completo, durante o período da moratória, os débitos em conta corrente ou descontos em folhas de salários ou proventos, mesmo que tenham sido contratados na modalidade de crédito consignado. Não custa lembrar que o crédito consignado, modalidade de empréstimo no qual as parcelas são descontadas diretamente na folha de pagamento ou deduzidas do benefício do INSS, teve papel importante para a expansão do crédito para consumo no Brasil e, consequentemente, para o endividamento excessivo de parte da população5. Por essa razão, aguarda aprovação na Câmara o PL 3.515/2015 que, dentre outros pontos, cria instrumentos e normas para prevenir o superendividamento da pessoa física6. Retornando ao PL 1.200/2020, seu art. 6o § 2o prevê que os contratos de financiamento, inclusive os imobiliários, poderão ser imediatamente rescindidos até 30.6.2020, a pedido do consumidor, sem incidência de cláusulas penais, mediante o pagamento do principal e dos juros devidos até a data da rescisão. A rigor, o PL 1.200/2020 assemelha-se bastante à lei emergencial aprovada pelo Parlamento alemão na medida em que regula tanto os contratos de consumo essenciais (água e esgoto, energia elétrica, gás, telefonia, internet), quanto os contratos de mútuo. Mas, adaptado à realidade brasileira, ele amplia a tutela a outras relações contratuais, não abarcadas pela Corona-Gesetz, a fim de proteger os consumidores pessoas físicas que forem efetivamente afetados pela crise econômica decorrente da crise pandêmica. A questão agora é saber se o PL 1.200/2020 conseguirá ser aprovado no Senado e na Câmara dos Deputados. __________ 1 Decisivo para a qualificação jurídica de consumidor é o fim (Zweck) do negócio no momento de sua celebração, considerando o conteúdo e as circunstâncias do contrato. Em caso de contrato marcado por dupla finalidade, o enquadramento do contratante como consumidor vai depender da finalidade preponderante: se preponderar o caráter pessoal e privado do negócio, o contratante será considerado consumidor e gozará das vantagens concedidas pela lei para tal situação jurídica. Dentre outros, confira-se DÖRNER, Heinrich. In: Reiner Schulze (coord.), Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. 8 ed. Baden-Baden: Nomos, 2014, §§ 13 e 14, Rn. 1-2, p. 41. 2 As diversas alterações legislativas, previstas na lei geral do covid-19, entram em vigor em datas diferenciadas, nos termos de seu art. 6. 3 Projeto de lei 1.179/2020, p. 21. 4 PL 1.200/2020 , Justificação, p. 9. Confira-se o artigo: LIMA MARQUES, Claudia; BERTONCELLO, Káren R. D.; COSTA DE LIMA, Clarissa. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da pandemia de covid-19: pela urgente aprovação do PL 3.515/2015 de atualização do CDC e por uma moratória aos consumidores. Revista de Direito do Consumidor 129 (2020), p. 14ss. 5 Empréstimo consignado: características, acesso e uso. Documento elaborado pelo Banco Central do Brasil, p. 118. Disponível aqui. Acesso: 11/4/2020. 6 Para uma visão atual sobre o Projeto, confira-se: LIMA MARQUES, Claudia; BERTONCELLO, Káren R. D.; COSTA DE LIMA, Clarissa. Op. cit., p. 9 ss.
Dando seguimento à análise da chamada Lei para Amenização dos Efeitos da Pandemia de COVID-19 no Direito Civil, Falimentar e Processual Penal (Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht), na coluna de hoje analisa-se mais uma importante medida, de relevante cunho social, introduzida pela lei emergencial alemã: as alterações nos contratos de longa duração. Como dito em outra oportunidade, a lei da covid-19, aprovada em 27.3.2020, faz parte de um pacote de medidas elaborado pelo governo alemão, que abrange alterações pontuais e temporárias nos campos do direito civil, falimentar, societário e processual penal. Na semana passada, analisaram-se as novas regras vigentes para os contratos de locação residencial e comercial. Em suma, elas suspendem o direito do locador de promover ação de despejo ou de denunciar o contrato por falta de pagamento dos alugueis vencidos durante no período de abril a junho de 2020, desde que a inadimplência do devedor tenha sido causada pelas medidas proibitivas de circulação ou de restrição à atividade econômica, impostas para o combate da proliferação da covid-19 (clique aqui). Além dessa medida, de evidente cunho social, outra sensível alteração no direito civil, mais especificamente no direito contratual, foi a introdução do direito temporário do devedor de recusar o cumprimento da prestação de contratos de longa duração. O art. 5 § 1 (1) da lei fala expressamente em Leistungsverweigerungsrecht, i.e, em direito de recusar [o cumprimento] a prestação, de caráter temporário e excepcional. Trata-se, em suma, de uma moratória e o mencionado § 1 do art. 5 da lei usa a expressão Moratorium, atípica na língua alemã, que encontra em Stundung seu correspondente. Essa moratória não se aplica a qualquer contrato, mas apenas aos de longa duração e, dentre esses, apenas àquelas relações contratuais essenciais à manutenção da existência das pessoas ou à adequada continuidade das empresas de pequeno porte (ex: energia, gás, água, telefone e internet, etc.). Pressuposto fundamental, portanto, para a concessão da moratória é a essencialidade da prestação para as pessoas físicas e os pequenos empresários. Além disso, o devedor deve demonstrar, num juízo de razoabilidade, que a impossibilidade temporária de cumprimento da obrigação decorreu diretamente das medidas governamentais de combate à pandemia de covid-19. Não se trata de um dever absoluto de prova de toda a cadeia causal, mas de demonstrar a verossimilhança das alegações. Assim, presume-se a causalidade quando o devedor mostra ter dificuldades ou estar impedido de exercer sua atividade profissional ou que houve queda significativa em sua renda ou receita, de modo que o adimplemento colocaria efetivamente em risco sua sobrevivência econômico-financeira. Da mesma forma, a comprovação de que a falta de pessoal ou de materiais, decorrente da proibição de circulação, o impede de realizar a prestação. Obviamente, problemas outros, não decorrentes da crise pandêmica, mas a essa eventualmente até anteriores, não autorizam o devedor a pleitear a moratória. A moratória só se aplica a contratos celebrados antes de 8.3.2020, termo inicial em que os agentes de saúde pública na Alemanha começaram a determinar o confinamento obrigatório da população e o fechamento de diversos estabelecimentos comerciais no país. Note-se que, como noticiado em outro canal, o recolhimento da população não tem na Alemanha caráter meramente exortativo, mas obrigatório, estando sua transgressão sujeita a pena de multa ou prisão1. Como se trata de lei emergencial temporária, o prazo da moratória inicia-se em 1.4.2020, data da entrada em vigor das novas regras sobre contratos de longa duração2, e finda em 30.6.2020, nos termos do já mencionado art. 5 § 1 (1) da apelidada Corona-Gesetz. Ou seja, o devedor tem um prazo de três meses para respirar diante da dificuldade financeira provocada pela pandemia do novo coronavírus. A lei permite ao governo, porém, prorrogar por decreto a moratória até 30.9.2020 se a vida social, a atividade econômica de várias empresas ou a atividade profissional de muitas pessoas continuar a sofrer consideráveis restrições através da pandemia de covid-19, nos termos do art. 5 § 4 (1) 2 da mencionada lei. O art. 5 § 1 (3) da Corona-Gesetz prevê, contudo, que a moratória não será permitida quando pôr em risco - efetivamente - a sobrevivência do credor, só restando ao devedor, nesse caso, optar pelo desfazimento do contrato. Em respeito à autonomia privada, o art. 5 § 1 (5) da lei permite que as partes contratantes negociem uma solução diversa paga o cumprimento desses contratos, desde que isso não implique em desvantagens para o devedor. Isso significa dizer que a moratória legal de três meses tem caráter subsidiário. Dessa forma, em síntese, a moratória legal incide sob os seguintes pressupostos: (a) em contratos de longa duração essenciais para consumidores e pequenas empresas, (b) celebrados antes de 8.3.2020, (c) desde que as medidas de combate à covid-19 dificultem o cumprimento da prestação, (d) colocando em risco a subsistência do devedor e (e) o credor tenha condições financeiras de suportar a moratória, e, por fim, (f) desde que as partes não tenham acordado solução diversa. Disso se conclui que não se trata da institucionalização de um "direito ao calote", mas tão somente de garantir ao devedor prejudicado o direito de adiar o cumprimento de importantes prestações em face da crise econômica provocada pela pandemia de covid-19. E isso apenas para aqueles contratos mais fundamentais para a sobrevivência econômica dos consumidores e das pequenas empresas, assim definidas em lei. Essa medida se justifica pela evidente dificuldade financeira que as pessoas físicas e jurídicas estão passando em decorrência das medidas governamentais adotadas para a contenção e o combate da propagação da pandemia de covid-19. Essas medidas deram causa imediata à paralização ou restrição do exercício das atividades profissionais por milhares de pessoas e das atividades econômicas das empresas, afetando em cheio as empresas de pequeno porte, que não possuem gordura financeira suficiente para suportar sequer o período de três meses de confinamento da população e restrição da atividade comercial. A lei emergencial tem, portanto, nítido caráter social e solidário, exigindo o sacrifício de ambos os contratantes com o fim exclusivo de postergar - não de exonerar - o cumprimento das obrigações. A situação no Brasil No Brasil, o Senado Federal aprovou na sexta-feira passada, dia 3.4.2020, o PL 1.179/2020, elaborado por uma comissão de juristas sob a coordenação do i. Min. Antônio Carlos Ferreira (STJ) e do Prof. Dr. Otávio Luiz Rodrigues Junior (USP), atendendo a iniciativa do e. Min. Dias Toffoli (STF). O Projeto de Lei dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado no período da pandemia do coronavírus. O Projeto será agora analisado na Câmara dos Deputados e, se aprovado, fará alterações legislativas pontuais, mas importantes, no âmbito do direito civil, consumidor, societário e concorrencial, algo similar - pelo menos, em sua estrutura - ao que foi feito pela lei alemã do coronavírus. No campo contratual, que aqui interessa, o Projeto foi aprovado amputado de importante alteração inicialmente prevista para os contratos de locação: a suspensão do pagamento dos alugueis até 30.10.2020, data em que - presume-se - estariam afastadas as restrições à liberdade de locomoção e ao exercício da atividade econômica, impostas pelo combate à pandemia. Fora os contratos locatícios, o PL 1.179/2020 regulou os contratos de consumo para decretar a suspensão do direito de devolução - consagrado no art. 59 do Código de Defesa do Consumidor - de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos, adquiridos para entrega domiciliar (delivery), como consta de seu art. 8o. Algumas emendas apresentadas ao Projeto de Lei visaram proteger os consumidores de contratos essenciais de longa duração. Assim, por exemplo, a Emenda 31, da Senadora Zenaide Maia, propôs a inclusão de dispositivos proibindo a suspensão - até 30.10.2020 - do fornecimento de água, energia elétrica, gás e serviços de telefonia e internet. A proposta foi, contudo, rejeitada pelo Senado ao argumento de que os contratos de serviços essenciais inserem-se no campo do direito administrativo, escapando ao escopo da proposição, que se limitaria a matérias específicas de direito privado3. Os arts. 6, inc. X e 22 do Código de Defesa do Consumidor, entretanto, tratam da prestação de serviços públicos em geral, atraindo essas relações contratuais para o âmbito de incidência da lei consumerista, de caráter preponderantemente privado. Talvez por isso a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não vacile em aplicar o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de serviços essenciais. Pela mesma razão, Alemanha (art. 5 § 1 (1) da lei do coronavírus) e Espanha (art. 29 do Real Decreto-ley 11/2020) trataram de regular esses contratos essenciais de longa duração em suas leis que disciplinam, em caráter temporário e emergencial, certas relações jurídicas de direito privado. O art. 5 § 1 (1) da lei alemã tem em vista regular justamente tais contratos, os quais são essenciais para a preservação da existência digna das pessoas e para o funcionamento básico das empresas. A Exposição de Motivos (Begründung) da lei é expressa ao dizer que a moratória de três meses visa evitar que consumidores e pequenas empresas, os mais duramente afetados pela crise do coronavírus, sejam privados da prestação de serviços essenciais como energia, gás, telecomunicações em geral e água4, sendo certo que se trata de conceito jurídico indeterminado apto a abranger, no caso concreto, outros situações contratuais. Dessa forma, é de lamentar que o Senado tenha perdido a oportunidade de inserir disposições específicas sobre o tema no PL 1.179/2020, principalmente diante do consenso mundial de que a crise pandêmica provocou a crise econômica que já se inicia, impedindo muitos consumidores, bem como micros e pequenas empresas, de continuar a honrar seus compromissos durante esse período virulento. Essa é uma realidade inegável, que afeta o mundo inteiro. Em briefing à imprensa, a diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, afirmou semana passada que a pandemia de covid-19 criou uma crise financeira "como nenhuma outra" e que o mundo já entrou em recessão5. Raghuram Rajan, ex-economista-chefe do FMI e ex-presidente do Banco Central da India, comentando as ações coordenadas de bancos centrais no exterior de cortar as taxas de juros, disse ser necessária uma interferência estatal em favor das pessoas nesse momento, porque elas não têm dinheiro guardado e nem podem sair para trabalhar6. A Exposição de Motivos do Real Decreto-ley 11, promulgado na Espanha em 31.3.2020, afirma expressamente que a crise sanitária está tendo um impacto direto na economia e na sociedade, na cadeia produtiva e no dia-a-dia dos cidadãos, bem como nos mercados financeiros. Além do impacto sobre a economia global, a Exposición de Motivos reconhece um fato aparentemente incontestável: que as medidas governamentais de contenção da pandemia implicam a redução da atividade econômica e social, de forma temporária, para o tecido produtivo e social, restringindo a mobilidade e paralisando as atividades de numerosos setores7. Diante disso, não surpreenderá se a Câmara dos Deputados ao menos reinserir no PL 1.179/2020, ainda que com alterações, a necessária regulação dos contratos de locação, permitindo a suspensão do pagamento dos alugueis se o locador tiver condições financeiras de suportar a moratória, a exemplo do que vem sendo feito na Europa. __________ 1 Confira-se a postagem no Instagram (@karinanfritz15) "Bußgeldliste NRW", acerca das medidas sujeitas a multa e prisão. 2 As diversas alterações legislativas, previstas na lei geral do covid-19, entram em vigor em datas diferenciadas, nos termos de seu art. 6. 3 Confira-se o parecer final apresentado pela Senadora Simone Tebet, p. 21. 4 No original: "Damit wird für Verbraucher und Kleinstunternehmen gewährleistet, dass sie insbesondere von Leistungen der Grundversorgung (Strom, Gas, Telekomunikation, soweit zivilrechtlich geregelt auch Wasser) nicht abgeschnitten werden, weil sie ihren Zahlungspflichten nicht nachkommen können". 5 Reportagem no jornal Valor Econômico, de 4.4.2020. 6 Entrevista a Robinson Borges, Valor Econômico, 3.4.2020. 7 Real Decreto-ley 11, de 31.3.2020, publicado no diário oficial espanhol em 1.4.2020, Sec. I, p. 27885.
Como noticiado na semana passada, em primeira mão, aqui no Migalhas, o Parlamento alemão aprovou no prazo recorde de um dia, em 25/3/2020, um conjunto de medidas propostas pelo governo da chanceler Angela Merkel para amenização dos efeitos do coronavírus SARS-CoV-2 no país. De início, chama atenção já o título do pacote, que não tem a pretensão de aplacar ou controlar os efeitos da pandemia, mas tão só de amenizar e isso revela uma profunda consciência do momento extraordinário que o mundo está vivendo. E a Alemanha, que já esteve no fundo do poço da história e experimentou crises econômicas sem precedentes, mostrou que sabe bem do que está falando. O pacote contém várias medidas executivas e legislativas que, no geral, alteram a legislação vigente, em caráter excepcional e temporário, por conta da pandemia do coronavírus. Não se tratam, portanto, de medidas gerais para qualquer epidemia, mas tão só para essa em especial. Resumidamente, dentre as principais medidas políticas aprovadas destacam-se as seguintes: Ajuda financeira a hospitais, clínicas e profissionais envolvidos no combate à pandemia do covid-19 Concessão de "indenização" aos pais que precisam ficar em casa para cuidar dos filhos em razão do fechamento das escolas e creches, todas praticamente públicas Liberação de cerca de 51 bilhões de euros como ajuda imediata a pequenas empresas e profissionais liberais atingidos pelas restrições ao exercício da atividade econômica Criação de fundo de estabilização econômica para ajudar na recuperação da liquidez de grandes empresas A essas medidas somam-se várias leis temporárias nos campos do direito civil, falimentar, societário e processual penal. A lei - denominada Lei para Amenização dos Efeitos da Pandemia do COVID-19 no Direito Civil, Falimentar e Processual Penal (Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht) - foi publicada no Diário Oficial (Bundesgesetzblatt) em 27/3/2020. No que diz respeito às alterações no direito civil, destacam-se: (a) moratória em contratos de longa duração, de caráter essencial, para consumidores e pequenas empresas em geral, que, na Alemanha, não são consideradas consumidores, embora sejam adequadamente tutelas; (b) moratória em contratos de mútuo celebrados pelas pessoas anteriormente indicadas e (c) suspensão do direito de requerer o despejo e denunciar a locação por falta do pagamento dos alugueis. Dentre essas medidas, hoje abordar-se-á a quem tem gerado mais polêmica desde a aprovação da lei, qual seja, as alterações no direito de locação. Alterações no direito de locação Com a nova lei, o legislador interveio para se antecipar às milhares de ações de despejo e denúncia por falta de pagamento dos alugueis no período da chamada Coronakrise e tentar reequilibrar o mercado locatício, redistribuindo os riscos inerentes aos contratos de locação. Na justificativa do projeto de lei enviado ao Parlamento, o governo explica que para conter o avanço da pandemia provocada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) foi necessário ordenar, em março de 2020, o recolhimento das pessoas em suas residências e determinar o fechamento de inúmeros estabelecimentos, como escolas e creches públicas, restaurantes, bares, cinemas, teatros, escritórios e demais estabelecimentos comerciais e profissionais a fim de evitar a propagação da doença por meio do contato entre as pessoas. Essas medidas, porém, deram causa à perda considerável de renda por parte de muitas pessoas, que retiram seu sustento - e o de suas famílias - dessas atividades. Para os inquilinos de imóveis residenciais e comerciais, a perda ou redução considerável da renda coloca-os em situação de extrema vulnerabilidade, pois a legislação vigente permite que o locador promova a ação de despejo após dois meses de atraso, total ou parcial, do aluguel, denunciando a locação, nos termos do § 543, inc. 1 do BGB. Por isso, é de se esperar que, em decorrência da crise epidêmica, haja um atraso em massa no pagamento dos alugueis e encargos locatícios em função da perda ou redução da renda pelas pessoas físicas e jurídicas. E, diz o Projeto, apenas uma parte das pessoas afetadas poderá receber as ajudas sociais do Estado como seguro-desemprego e ajuda moradia, de acordo com os requisitos exigidos e a urgência que a situação requer. O mesmo vale para as empresas, que dependerão de ajuda financeira estatal para sobreviver à crise. Para tentar contornar a situação, a lei proíbe o locador de imóveis residenciais e comerciais de promover o despejo do locatário por eventual falta de pagamento dos alugueis vencidos entre 1.4.2010 a 30.6.2020, período estimado, em princípio, para durar as restrições nas atividades econômicas e a proibição de circulação das pessoas. Os principais pontos da lei temporária de locação são: a) Restrição do direito de denunciar a locação Durante o mencionado período, o aluguel é devido, mas o locador não pode exigir o pagamento e nem denunciar o contrato por esse motivo. Pressuposto inafastável é que a inadimplência decorra das dificuldades financeiras enfrentadas pelo locatário por conta das medidas excepcionais de combate à pandemia do coronavírus. Isso significa que os locatários que se virem forçados a deixar de pagar o aluguel, por não possuírem meios suficientes para fazê-lo sem pôr em risco sua subsistência, não sofrerão consequências jurídicas imediatas. Atente-se que apenas fica suspenso o direito de denunciar o contrato por falta de pagamento das parcelas devidas entre abril e junho de 2020. Dessa forma, o locador pode promover a denúncia por outros motivos previstos na lei geral, como o uso do imóvel de forma contrária ao acordado ou a necessidade própria efetivamente demonstrada. b) Caráter supletivo da regra Em respeito à autonomia privada, essa adaptação contratual prevista na lei tem caráter supletivo, podendo as partes, de comum acordo, negociar e acordar solução diversa, como, por exemplo, a redução do valor do aluguel, com a continuidade regular de seu pagamento. Entretanto, o art. 5 § 4 (2) da lei ressalva que o acordo não pode prejudicar o inquilino. Essas regras se aplicam tanto para os contratos de locação (residencial e comercial), quanto para os contratos de arrendamento, nos termos do art. 5 § 4 (3) da lei em comento. c) Período de inadimplência Em princípio, o locador só não pode despejar o inquilino em mora por falta do pagamento dos alugueis vencidos no período de abril a junho de 2020 (período de crise). Entretanto, se esse período não for suficiente para controlar a propagação adequada da pandemia e houver necessidade de que as pessoas permaneçam confinadas e os estabelecimentos fechados, o art. 5 § 4 (1) 2 da lei permite que o governo prorrogue esse prazo, por decreto, até 30/9/2020. E a justificativa é evidente: ninguém consegue dizer, nesse momento, com segurança, até quando as medidas restritivas da circulação e do comércio serão necessárias para evitar a proliferação desenfreada do novo coronavírus. d) Período de suspensão do despejo O locatário que não pagar na data aprazada o aluguel, incorrerá em mora e ficará obrigado a pagar todos os encargos moratórios. Mas ele não precisará quitar tudo de uma só vez a partir de 1/7/2020, pois isso, à toda evidência, sobrecarregaria enormemente os inquilinos, que durante esses noventa dias antecedentes tiveram suas fontes de renda comprometidas. Por isso, o art. 5 § 2 (4) da lei concede o prazo de 02 (dois) anos para que os locatários inadimplentes - em relação ao período indicado, i.e., abril a junho de 2020 - quitem suas dívidas junto aos locadores, seja de uma só vez ou de forma parcelada. Com isso, os inquilinos têm até 30.6.2022 para saldar os débitos surgidos no período de restrição da circulação e do comércio para conter o avanço da pandemia do covid-19. Isso significa, na prática, que o direito de promover o despejo e a denúncia da locação por falta desses pagamentos só poderá ser exercido pelo locador a partir de julho de 2022. e) Relação de causalidade Diante da impossibilidade de quitar o aluguel, cabe ao locatário - nos termos do art. 5 § 2 (1) da lei - demonstrar a verossimilhança de suas alegações, mostrando a relação de causa e efeito entre a pandemia do covid-19 e a ausência da prestação. A lei fala expressamente em fazer crível essa conexão (Zusammenhang glaubhaft zu machen), o que é algo mais brando do que fazer a prova do nexo causal. Repise-se que essa regra especial só vale para os pagamentos em aberto no período de crise de três meses indicado. Dessa forma, se o locatário já estiver em mora ou faltar com o aluguel após a suspensão das medidas restritivas da liberdade econômica e de ir e vir, o locador poderá manusear a ação de despejo normalmente. f) Beneficiados Em princípio, todos os inquilinos poderão ser beneficiados pela lei, pois a norma se refere genericamente a locatários. Na justificativa do Projeto de Lei, o governo fala em pessoas físicas e empresas, sem especificar quais empresas (pequenas, médias ou grandes) estariam contempladas com a possibilidade de, diante de grave dificuldade econômica, suspender temporariamente o pagamento dos alugueis. Diante da generalização legal, conclui-se que qualquer locatário poderá ser contemplado desde que demonstre a impossibilidade de pagar os alugueis em razão das circunstâncias de combate à pandemia. Primeiras críticas à lei As primeiras críticas à lei do coronavírus já começaram a surgir. Parte delas foi desencadeada quando grandes empresas - como Adidas, Puma e a sueca H&M, que faziam lucros enormes até então - anunciaram a suspensão do pagamento dos alugueis por estarem sem entradas em decorrência do fechamento de suas lojas físicas. In continenti, a Ministra da Justiça, Christine Lambert, representando o governo, classificou de imoral e inaceitável as declarações dos conglomerados, frisando que a lei visa ajudar apenas as empresas que realmente não tenham condições de pagar o aluguel e não aquelas que só estão preocupadas com a redução dos lucros. Isso ainda mais se justifica diante do crescimento exponencial das vendas onlines e, principalmente, porque a lei do coronavírus não fornece base legal para o comportamento abusivo dessas empresas, antecipou a Ministra da Justiça. Todos precisam fazer sacrifícios, principalmente aqueles que possuem gordura suficiente para enfrentar a crise, disse1. Diante da chuvarada de críticas à postura egoísta e antisolidária, a Adidas voltou atrás e afirmou que não irá suspender o pagamento aos locadores pessoas físicas, mas apenas os alugueis devidos a imóveis pertencentes a grandes fundos imobiliários e seguradoras. O episódio, contudo, mostrou uma fragilidade da lei de emergência: a falta de critérios mais rígidos para a suspensão do pagamento dos alugueis pelas empresas. Sem isso, corre-se o risco que grandes empresas tentem abusar do permissivo legal por razões meramente oportunistas. Outro ponto criticado é que a lei jogaria o problema da crise nos ombros dos locadores. Na visão do governo, porém, não há transferência de ônus aos locadores, vez que os locatários terão que pagar os alugueis atrasados com os encargos moratórios. Trata-se apenas de impedir temporariamente que milhares de locadores sejam despejados num momento em que eles têm suas fontes de rendas comprometidas pelas medidas de combate ao coronavírus. O que se pretende, em última análise, é impedir que a crise do coronavírus provoque uma crise de moradia, que atinja mutatis mutandis as empresas, dificultando ainda mais a recuperação econômica do país. Para o governo, a pandemia do coronavírus colocou à sociedade alemã o grande desafio de ser solidária, pois, no fundo, trata-se de concretizar o mandamento da solidariedade, dividindo entre as partes os riscos da crise epidêmica. Parece evidente que o mesmo pode-se dizer para a sociedade brasileira. A questão é: somos de facto uma sociedade solidária? __________ 1 Confira-se a matéria: Adidas will zumindest privaten Vermietern die Miete zahlen, publicada no jornal Die Welt, em 29/3/2020 Acesso: 29/3/2020.
terça-feira, 24 de março de 2020

Coronavírus bate à porta do Judiciário alemão

O mundo está mergulhado em uma pandemia sem precedentes. Atualmente, não se fala em outra coisa a não ser no novo coronavírus (Covid-19). É compreensível, tendo em vista que desde o fim da 2a Guerra Mundial a população não convivia com tantas medidas restritivas da liberdade, inclusive econômica. Nem mesmo após o fatídico 11 de setembro de 2001, quando o mundo assistiu atônito aos ataques terroristas nos EUA. O pior: é só o começo, dizem as apocalípticas previsões. Junto com o vírus, avulta no horizonte uma grave recessão econômica mundial, cruel para países como o Brasil, que ainda estava se recuperando da crise econômica de 2014, agravada pelas turbulências políticas dos últimos anos. Na Alemanha, o coronavírus também domina o debate público. E com a chamada Corona-Krise, já vigoram oficialmente inúmeras restrições, dentre as quais a de circulação. Em regra, só se pode sair na rua sozinho ou, no máximo, com mais uma pessoa. Ou seja, é proibido reunirem-se em público mais de duas pessoas, exceto familiares. Ao entrar em contato com outras pessoas na rua e em espaços públicos, deve-se manter a distância mínima de 1,5m e, em todos os casos, observar as medidas de higiene. Ainda está permitido sair de casa para trabalhar (se for impossível realizar a atividade via home office), fazer compras, ir ao médico ou à farmácia, ir à casa de alguém sob seus cuidados (ex: pais idosos, que dependam de cuidados diários), participar de compromissos inadiáveis, fazer esportes e se movimentar ao ar livre. Terminantemente proibido são reuniões festivas de pessoas em casa e espaços públicos ou privados. E a polícia e agentes públicos têm o poder de vigiar e sancionar, em caso de desobediência das regras. As penas variam de multa a prisão. Restaurantes estão fechados, exceto para fornecimentos delivery. A mesma regra para qualquer tipo de comércio, exceto os de necessidades estritamente básicas como mercados, farmácias, correios, bancos, postos de gasolina, etc. Essas medidas duram, em tese, até o início de abril. Coronavírus e o Judiciário O coronavírus está em todo lugar e já chegou aos tribunais, que tentam se preparar para lidar com a pandemia. Os primeiros processos já começam a pipocar. Dois advogados de Munique entraram dia 18/3/2020 com um pedido liminar no Tribunal Constitucional, em Karlsruhe, a fim de interromper o andamento de dois processos criminais contra seus clientes. Alguns atos processuais deveriam ocorrer nos próximos dias. Adam Ahmed, um dos causídicos, diz que a medida visa evitar a propagação do coronavírus. "Trata-se de uma questão de risco de contaminação e transmissão para todos os envolvidos no processo", disse ele, que criticou a falta de uma orientação geral, vez que, por enquanto, cada tribunal tem decidido como enfrentar a crise. Recorde-se que na Alemanha não há um órgão legiferante como o Conselho Nacional de Justica. Ministério da Justiça quer alterar o CPP alemão Por conta disso, o Ministério da Justiça está estudando a hipótese de criar uma regra única que permita aos tribunais suspender os processos em andamento por um período mais longo que o atualmente permitido. Segundo o atual Código de Processo Penal alemão - Strafprozessordnung (StPO) - julgamentos ou audiências só podem ser suspensos, em regra, por no máximo quatro semanas. Segundo o projeto de lei, esse período deve ser estendido para, no máximo, três meses e dez dias. Com isso, evita-se que vários prazos tenham que começar a contar desde o início, disse o porta-voz do Ministério da Justiça. Certo, porém, que caberá a cada tribunal decidir sobre a realização ou não de qualquer ato processual. As alterações deverão ser inseridas na Lei de Introdução ao Código de Processo Penal (Einführungsgesetzt zur Strafprozessordnung) A Ordem dos Advogados (Deutsche Anwaltsverein) alerta, contudo, contra "frenéticas alterações" na ordem processual penal e, por isso, sugere que fique claro que essas regras excepcionais ficarão restritas à situação atual. De modo geral, apenas julgamentos e audiências absolutamente necessários têm sido realizados na maioria das varas e tribunais alemães. Exemplos são casos envolvendo prisão, prescrição iminente ou outros prazos que devam ser necessariamente obedecidos, bem como em casos de processos pendentes, em estágio avançado, com risco de ser reiniciados. Na área cível não é diferente: apenas audiências urgentes estão sendo realizadas, principalmente questões relacionadas a família e guarda, nas quais há a necessidade de garantir proteção contra violência ou tutelar o bem-estar da criança. Por essas razões, as audiências dos processos de Adam Ahmed devem ocorrer nos próximos dias. Até, porque o Tribunal Constitucional negou, em 19/3/2002, o pedido liminar impetrado. Advogado denuncia juiz por tentativa de lesão corporal Por conta da discussão em torno da realização ou não de julgamentos e audiências, o advogado Thomas Pfister denunciou um magistrado da Comarca de München por tentativa de lesão corporal por ele não ter adiado a realização de uma audiência em processo criminal por tentativa de homicídio. Segundo o denunciante, o juiz teria "criado conscientemente" uma situação de risco e, ao denegar o pedido de adiamento da audiência, assumiu o risco de expor os presentes na sala de audiência a elevado risco de contaminação. De acordo com a denúncia, haviam na sala mais de cinquenta pessoas e isso configuraria um evento com elevadíssimo risco de contágio, a justificar a remarcação da audiência. A denúncia foi rejeitada ao argumento de que a Justiça precisa continuar funcionando, mesmo em tempos de propagação da doença, pois o Judiciário é parte fundamental do sistema. Além disso, inexistiam indícios de que havia na sala uma pessoa infectada ou que tenha tido contato anteriormente com infectados. Apesar do insucesso do causídico, a orientação do Ministério da Justiça é que haja atualmente o mínimo possível de audiências. Como dito no início, isso é só o começo. Infelizmente, o pior ainda está por vir.
Em tempos de quebra das bolsas por causa do impacto do corona vírus na economia, vale à pena recordar caso paradigmático, julgado em 2011, no qual o Bundesgerichtshof fixou as linhas gerais para a responsabilidade de bancos por falhas informacionais em investimentos de capital, firmando o entendimento de que mesmo investidores com experiência no mercado financeiro precisam ser adequadamente esclarecidos em relação a produtos financeiros altamente complexos. O caso A autora da ação indenizatória era uma empresa de médio porte que havia celebrado dois contratos CMS Spread Ladder Swap com outro banco, em 2002, com prazo de vigência de dez anos. Em 2005, o banco réu aconselhou a autora, com base em estudos e analises apresentadas em PowerPoint, a reduzir os altos juros que a onerava nos citados contratos swap. Para tanto, sugeriu a celebração de um novo contrato de swap, durante reunião com o administrador e o procurador da empresa, que era economista de formação. A empresa, então, celebrou contrato com o réu, em fevereiro de 2005, segundo o qual as partes se obrigavam a pagar juros reciprocamente, dentro de um determinado período, com taxas variadas, fixadas no contrato. Durante a reunião, onde as vantagens do novo contrato swap foram apresentadas pelo réu, foi informado à autora que seu risco de perda era "teoricamente ilimitado", mas omitiu-se a informação de que o contrato possuía desde o início um valor de mercado negativo em torno de 4% do valor de referência. Fato é que o negócio não se desenvolveu como prognosticado pelo banco e a empresa investidora amargou altos prejuízos já em 2005. Em 2006, a autora impugnou o contrato e arguiu sua nulidade por dolo, desfazendo o negócio em 2007 com um débito em torno de 566.850,00 euros. O processo A autora moveu, então, em 2008, ação indenizatória contra o banco requerendo o pagamento de 541.074,00? mais juros, bem como todos os prejuízos amargados em decorrência do contrato de swap, a serem apurados judicialmente. Ela alegou a nulidade do contrato por ofensa aos bons costumes (§ 138 BGB) e ao mandamento de transparência do § 307, inc. 1, frase 2 do BGB. Além disso, ela fora maliciosamente enganada pelo banco, o que configura o dolo do § 123 BGB, além de ter sido aconselhada indevidamente, vez que o réu não a esclareceu suficientemente acerca dos riscos do swap e, por fim, ainda sugeriu um negócio que não correspondia à sua disponibilidade de assunção de riscos e nem ao fim visado com o investimento. A ação foi julgada improcedente em primeira e segunda instância. A decisão do OLG Frankfurt a.M. Segundo o Oberlangesgericht Frankfurt am Main, o contrato de swap celebrado entre as partes não ofende os bons costumes, pois a autonomia privada permite a celebração de negócios arriscados. Além disso, um negocio arriscado não viola os bons costumes pelo simples fato do contratante só conseguir auferir ganho do negócio sob circunstâncias favoráveis. Segundo o Tribunal de Justica de Frankfurt a.M., o negócio também não era intransparente, nos termos do § 307 I 2 BGB, pois a fórmula de cálculo dos pagamentos a serem feitos pela empresa ao banco estava claramente formulada e tinha sido negociada individualmente entre as partes. Ou seja: não se tratava de fórmula padrão em contrato de adesão. O OLG ponderou ainda ser improvável que o banco pudesse explicar de modo mais compreensível o modelo complicado de negócio acordado entre as partes. Isso não teria maiores consequências, segundo a Corte, porque a empresa tinha conhecimento e experiência em investimentos de capital, não sendo carente de proteção como um consumidor. Isso afastava a responsabilidade do banco por falha na informação, que, no caso, o Tribunal entendeu ter sido adequadamente prestada. Ademais, na reunião a autora estava representada por seu procurador, que era economista, podendo-se, portanto, esperar que ele tenha compreendido a estrutura do contrato de swap e as fórmulas matemáticas utilizadas. Isso libera o banco réu de investigar e apurar a disposição da autora de assumir altos riscos. O Tribunal entendeu que a consultoria prestada fora adequada ao objeto, pois, embora o CMS Spread Ladder Swap não se destine estruturalmente a assegurar contratos de crédito, todo investimento de capital, que pode gerar ganhos na hipótese de um desenvolvimento satisfatório, serve, em geral, para reduzir os encargos dos juros suportados pelo contratante. Por fim, disse o OLG Frankfurt a.M. que o banco não precisava ter informado à empresa investidora de que o contrato possuía um valor negativo de mercado, no momento da conclusão da operação, porque esse valor representa uma compensação na hipótese de encerramento antecipado do contrato, configurando uma compensação ao banco e, portanto, um valor puramente teórico. A decisão do BGH O Bundesgerichtshof, contudo, julgou procedente o recurso de Revision interposto pela autora. Trata-se do processo BGH XI ZR 33/10, julgado em 22/3/2011. De início, o BGH entendeu que, ao final da apresentação do PowerPoint, quando a autora ficou convencida da utilidade de celebrar o contrato swap com o réu, as partes celebraram um contrato de consultoria por meio do qual o banco obrigou-se a prestar consultoria adequada à autora. O conteúdo e a extensão dos deveres de recomendação e conselho medem-se segundo as circunstâncias do caso individual. Para isso, o banco deve levar em conta o conhecimento e experiência do investidor, sua disposição de correr riscos, o fim perseguido com o investimento e os riscos gerais do mercado, como a conjuntura e o desenvolvimento do mercado de capital. No caso em análise, o BGH considerou que o banco não se desincumbiu do ônus de prestar uma consultoria adequada ao cliente investidor e ao objeto do investimento. a) Dever de investigar o perfil e os objetivos do investidor Com efeito, o objeto recomendado - contrato CMS Spread Ladder Swap - era um negócio tão arriscado que se poderia chamar de uma loteria ou aposta especulativa (spekulative Wette). Contudo, não há indícios que indiquem que a autora buscasse esse tipo de investimento, que, de tão complicado, só poderia ser compreendido por quem tivesse conhecimento de matemática financeira. O banco tem o dever de investigar - antes de realizar suas recomendações e/ou sugestões ao cliente - o nível de conhecimento e experiência do investidor, sua disposição de assumir riscos e o fim perseguido com o investimento, disse a Corte de Karlsruhe. Trata-se de um dever de investigar e de se informar acerca do cliente, denominado no vernáculo alemão de Erkundigungspflicht. Esse dever vem previsto expressamente na lei alemã de valores mobiliários (§ 31, inc. 2 WpHG) e o banco só fica dele dispensado quando já conheça o perfil do investidor, seja porque já o assessora há algum tempo, seja em decorrência de suas práticas anteriores. b) Dever de recomendar produto financeiro adequado Segundo frisou a Corte infraconstitucional, ainda quando o banco tenha alertado para um risco de perda "teoricamente ilimitado", ele não pode presumir - tendo em vista a alta complexidade estrutural do produto financeiro - que o cliente que celebra esse contrato esteja disposto a assumir riscos tão altos. Ao contrário: é dever do consultor só recomendar produtos financeiros que atendam aos fins visados pelo investidor. Por isso, o banco réu deveria ter se certificado de que a empresa autora tinha realmente consciência de que o risco ilimitado de perda não era apenas teórico, mas uma possibilidade real e ruinosa. c) Experiência e conhecimento do investidor Contrariamente à opinião do OLG Frankfurt a.M., o BGH afirmou que era irrelevante no caso o fato do representante da empresa ter formação em economia. A jurisprudência pacífica da Corte afirma que a qualificação profissional do investidor, por si só, é insuficiente para presumir que ele tenha conhecimento e experiência em operações de investimento de capital, salvo se existem concretos indícios para isso. Mas esses indícios não foram demonstrados nas instâncias probatórias, disse o BGH. As atividades de procurador de uma empresa de médio porte, produtora de produtos de limpeza, não permite concluir que aquele tenha conhecimento dos riscos específicos do contrato de swap, como também nada diz acerca de sua disposição de assumir riscos. Até porque, os conhecimentos técnicos do investidor deixa intocável o dever do consultor de investigar o fim do investimento e de recomendar um produto àquele adequado. No caso sob judice, o comportamento do investidor não autorizava o banco a concluir pela disposição de assumir riscos, disse o Tribunal, pois os contratos de swap, celebrados em 2002 com outra instituição financeira, eram estruturalmente mais simples e não envolviam riscos tão elevados quanto o celebrado com o banco réu. d) Extensão do dever de esclarecimento Segundo os juízes de Karlsruhe, diante de um produto altamente complexo, o banco é obrigado a garantir que o investidor tenha o mesmo nível de conhecimento que ele próprio, pois só assim o investidor pode tomar a decisão esclarecida - e responsável - de aceitar ou não participar da loteria especulativa. Para isso, ele deve desnudar todos os elementos da fórmula de cálculo dos percentuais variáveis de juros e seus efeitos concretos sobre os possíveis desenvolvimento do spread. e) Dever de defesa dos interesses do cliente Em decorrência do contrato de consultoria, o banco assume ainda o dever de só fazer recomendações no interesse exclusivo do cliente, salientou o BGH. Isso significa que ele deve evitar - e expor ao cliente - os conflitos de interesses que ponham em risco e/ou prejudiquem os interesses do investidor e o fim último da consultoria. No caso concreto, a Corte entendeu que havia um grave conflito de interesse entre o réu e a autora, pois, da forma como estava estruturado o contrato swap, o lucro do banco implicava necessariamente a perda do investidor. E, disse o BGH, enquanto consultor, o banco está obrigado a defender o interesse da empresa investidora e deve atuar visando maximar os lucros dela, não os seus próprios. Dessa forma, o valor negativo de mercado, estruturado desde o início pelo banco, era expressão do grave conflito de interesses existente entre as partes, sendo apto a pôr em risco os interesses da empresa investidora. e) Causalidade Por fim, o BGH aplicou a teoria da presunção do comportamento racional esclarecido para admitir que a empresa investidora, se tivesse sido adequadamente informada e esclarecida da estruturação (para ela desvantajosa) do negócio e do risco certo de perdas altíssimas, jamais teria concluído o contrato naqueles termos. Segundo a Corte, a presunção de que o lesado teria adotado um comportamento racional, se tivesse sido adequadamente esclarecido dos riscos reais do negócio, vale, em princípio, em todas as situações nas quais resta demonstrada a violação dos deveres de informação, esclarecimento e conselho, principalmente quando há um claro conflito de interesses entre o banco e o cliente investidor, quando, então, resta evidente que a falha informacional foi fator determinante para a decisão de investimento (dano) do cliente lesado. Segundo a Corte de Karlsruhe, o fato do diretor da empresa ter concordado em fechar o negócio mesmo sem compreender claramente todas as nuances da operação, antes de configurar culpa concorrente (§ 254 I BGB), exprime a relação de confiança existente entre as partes, a qual deve ser protegida. Com isso, o BGH julgou procedente a Revision interposta pela empresa, condenando o banco ao pagamento do valor pleiteado à título de indenização por falhas na informação em investimentos de capital. A situação no Brasil No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor consagra o dever de informação como um dos deveres cardinais dos partícipes do mercado de consumo e impõe a responsabilidade objetiva para toda a rede de fornecedores de produtos/serviços, com a inversão do ônus da prova como meio facilitador da defesa das pretensões dos consumidores. Os deveres informacionais também podem surgir no bojo de relações paritárias com fundamento na cláusula geral do art. 422 do Código Civil, que consagra a função criadora de deveres laterais de conduta da boa-fé objetiva. Apesar disso, a jurisprudência do STJ tem sido dura com os investidores ao presumir que o investidor - mesmo o investidor-consumidor padrão - conhece os riscos envolvidos em aplicações financeiras1. No REsp. 1.003.893/RJ, julgado em 2010, consta expressamente da ementa que aqueles que se encorajam a investir em fundos arrojados estão cientes do risco do negócio2. Mais surpreendente ainda é a premissa estampada no REsp. 799.241/RJ, de 2013, segundo a qual, em princípio, descabe indenização por danos materiais e morais em aplicações de alto risco3. Esse entendimento contraria a lógica inerente à boa-fé objetiva e esvazia os deveres de informação, esclarecimento e conselho das instituições financeiras, fazendo com que a eficácia prática da Codificação ou do CDC fique totalmente comprometida nessa seara. Com isso, o STJ impõe ao investidor o pesado ônus da auto-informação em uma seara onde nem mesmo o fornecimento de informação ajuda, pois o investidor, em regra, não tem conhecimento técnico suficiente para compreender a estrutura altamente complexa dos produtos/serviços financeiros, onerando, dessa forma, quem precisa de proteção. Embora ambos os ordenamentos jurídicos possuam instrumentos semelhantes e adequados à proteção do investidor diante de falhas de informação, esclarecimento e conselho em aplicações financeiras, a tutela da confiança do investidor tem maior efetividade na Alemanha do que no Brasil. Lá, seja com base em um fictício contrato de consultoria financeira (responsabilidade contratual) ou no contato negocial (responsabilidade pré-contratual), os consultores financeiros - principalmente os bancos - são obrigados a observar uma intensa carga de deveres de consideração. Esses deveres visam não apenas manter a conduta das partes dentro dos padrões ético-jurídicos exigidos pela boa-fé objetiva, mas principalmente garantir uma tomada de decisão (decisão de investir) consciente e auto-responsável, tutelando a autonomia privada material do investidor. Essa tutela alcança, em igual medida, qualquer investidor, seja ele consumidor ou não, desde que presente um desnível estrutural informacional. E isso é feito sem "equiparar" como consumidor aqueles investidores que efetivamente não o são, mantendo-se hígido o conceito de consumidor, bem como sem quaisquer recursos a normas, princípios e valores da Lei Fundamental, como dignidade humana, bem ao sabor do discurso brasileiro contemporâneo. A proteção da confiança do investidor foi - e permanece - construída à partir do Código Civil Alemão (BGB), no seio da dogmática obrigacional, com base nos deveres de consideração, decorrentes do princípio da boa-fé objetiva do § 242 do BGB, embora hoje presente em diversas leis regulatórias do mercado de capitais. __________ 1 Para um aprofundamento do tema, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. A responsabilidade dos bancos por falhas na informação em investimentos de capital: uma análise comparada com o direito alemão. RDCC 8/2016, p. 167-200. 2 STJ, REsp. 1.003.893/RJ, T3, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe 8/9/2010. 3 STJ, REsp. 799.241/RJ, T4, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 26/2/2013.
O Tribunal Administrativo de Münster - Oberverwaltungsgericht (OVG) - proferiu interessante julgado reforçando o direito fundamental de reunião dos cidadãos e a proteção de dados pessoais sensíveis ao julgar ilegal a realização e divulgação em mídias sociais de fotos de pessoas em passeatas públicas. O caso Os autores da ação tiveram suas imagens capturadas em fotos tiradas pela Polícia durante uma passeata, as quais foram publicadas na página oficial da corporação no Facebook e no Twitter. A passeata fora organizada por um dos autores a fim de fazer frente a outra demonstração que ocorreria na cidade de Essen-Steele, no Estado de Nordrhein-Westfalen, a qual tinha cunho aparentemente conservador em relação à identidade de gênero, pois o lema daquela era: "Steele é colorida - Contra racismo! Contra a violência!". Ambas as passeatas foram acompanhadas pela Polícia. Dois policiais fardados fizeram fotos da passeata com câmera digital e postaram no Facebook da corporação de Essen. Nas fotos vê-se em primeiro plano alguns policiais e viaturas da Polícia, mas, ao fundo, os autores aparecem nitidamente no meio da multidão. Eles alegaram que a realização não autorizada das fotos e sua posterior divulgação nas redes sociais, com suas imagens nitidamente capturadas, feriu o direito à autodeterminação informacional (art. 2 I c/c art. 1 I da Lei Fundamental), bem como o direito de reunião, consagrado no art. 8 I da Lei Fundamental. O ato de fotografar demonstrações sem qualquer motivo ou autorização provoca no cidadão a sensação de estar sendo observado pelo Estado, diz a Inicial e isso independe do fotógrafo estar no meio ou às margens da passeata. Além disso, os fotografados não sabem o que será feito com esses dados, principalmente com que fim eles serão utilizados e se - e quando - serão apagados. O Estado alegou na Contestação que as fotos foram tiradas legitimamente durante trabalho policial, que encontra fundamento na permissão geral de busca de informações pela Polícia. Segundo o réu, não houve ofensa ao direito jusfundamental de reunião dos autores, porque a realização das fotos em nada atrapalhou o desenrolar da passeata. Ademais, quem participa de manifestações públicas atualmente precisa contar que pode ser filmado e/ou fotografado. Além disso, a realização e divulgação de fotos faz parte do trabalho da Polícia, não havendo ilegalidade no ato, até porque esse trabalho tem por fim a informação pública e o fortalecimento da "sensação de segurança da população" e da confiança no trabalho da corporação. Ainda há de se notar que os autores não aparecem em primeiro plano nas fotos e que a divulgação das imagens foi razoável e proporcional, pois as redes sociais utilizadas alcançam grande parcela da população interessada em saber o que está acontecendo na cidade. A decisão do Tribunal Administrativo A ação foi julgada procedente em primeira instância e confirmada pelo Tribunal Regional Administrativo de Münster no processo OVG Az. 15 A 4753/18, julgado em 17/9/2019. Segundo o OVG Münster, as reuniões e demonstrações públicas, de status jusfundamental, são expressão da comunicação e do desenvolvimento coletivo e representam uma forma de manifestação e de formação de opinião, indispensável à democracia. O art. 8 I da Lei Fundamental tutela todo esse processo de expressão do cidadão. O direito fundamental de livre reunião pode sofrer restrições por meio de medidas fáticas que tenham efeitos intimidatório e/ou inibitório e que são, por isso, capazes de influenciar a livre formação da vontade e a liberdade de decidir participar (ou não) na manifestação1. Quem precisa contar que sua participação em uma passeata será registrada por agentes estatais e que daí podem surgir riscos à sua pessoa, provavelmente deixará de exercer esse direito fundamental. Isso prejudica não apenas o indivíduo, mas também a própria coletividade, pois a manifestação de opinião coletiva, através dos cidadãos, é um pressuposto condicionante para uma sociedade livre e democrática. A realização de fotos pela Polícia constitui uma violação ao direito fundamental de reunião do art. 8, inc. 1 da Grundgesetz, pois fotos e filmagens são, em princípio, propícias a causar um efeito intimidativo, ameaçador ou manipulador do comportamento dos participantes da passeata. Isso se aplica ainda quando as imagens tenham sido tiradas para ser utilizadas no trabalho policial e a pessoa não apareça em primeiro plano, tendo em vista que as novas tecnologias permitem facilmente individualizá-la e identificá-la, inclusive por meio de reconhecimento facial. Dessa forma, estão em jogo dados sensíveis dos participantes de manifestações, a partir dos quais se pode ainda deduzir acerca da ideologia e posição política dos envolvidos. Dito em outras palavras: é necessária uma base legal para a realização de fotos de manifestantes. A lei alemã que disciplina a realização de reuniões e passeatas (Versammlungsgesetz) só permite a realização de gravações de áudio e/ou imagem quando haja indícios fáticos a amparar a suspeita de um considerável risco para a segurança e ordem públicas (§ 12a I 1 VersG). O Código de Processo Penal e a Lei de Segurança Pública também estabelecem hipóteses nas quais é legítima a coleta de informações de cunho pessoal de manifestantes, como deixa claro o § 12a II VersG. Mas, segundo o Tribunal, nenhuma das hipóteses aplicava-se ao caso em análise. O § 12a II 1 da VersG prescreve ainda que o material coletado deve ser imediatamente destruído após o fim da manifestação ou dos acontecimentos que legitimaram sua coleta, salvo se necessário para a persecução penal dos participantes ou para afastar, no caso concreto, risco de perigo. Segundo o OVG Münster, a justificativa alegada para a realização e divulgação das fotos (informação geral da Polícia) não se deixa subsumir no conceito de defesa da ordem e segurança pública, nem no de persecução penal. Se o objetivo era coletar informações gerais sobre a passeata, a Polícia poderia tê-lo feito sem a realização de fotos dos manifestantes, disse a Corte Administrativa. Dentro desse contexto, ela só poderia ter fotografado seus próprios agentes e o aparato policial (viaturas, armas, etc.). Devido à significação fundamental do tema, o recurso de Revision interposto pelo Estado foi admitido e o caso enviado ao Tribunal Superior Administrativo (Bundesverwaltungsgericht). A situação no Brasil No Brasil, o direito à livre reunião está consagrado no art. 5 XVI da CF, segundo o qual "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente". Mas, salvo melhor juízo, parece que não há lei regulando as situações nas quais a Polícia ou outros agentes públicos podem fazer fotos dos manifestantes. Note-se que a discussão não diz respeito à realização de fotos por particulares (inclusive a imprensa), mas apenas pelo Poder Público, questionando, em última análise, o poder do Estado de vigiar e coletar informações sobre os cidadãos. Por aqui, há controvérsia doutrinária até se uma manifestação precisa ser previamente comunicada ao Poder Público, bastando o anúncio nas redes sociais, bem como se os organizadores (ou o Estado) podem definir o local ou trajeto da passeata, como deixou claro os conflitos entre o Movimento Passe Livre (MPL) e o Governo de São Paulo, em 2016. De qualquer forma, a decisão do Tribunal de Münster, ainda quando passível de reforma, aponta para o importante problema - teórico e prático - da proteção dos dados pessoais e do direito jusfundamental de manifestação dos cidadãos face ao interesse do Poder Público de vigiar e coletar informações sobre os cidadãos. Um exemplo interessantíssimo de colisão de posições jusfundamentais e de eficácia vertical dos direitos fundamentais perante o Estado, a quem cabe primordialmente respeitar, garantir e concretizar esses direitos. __________ 1 Confira-se, dentre outros julgados: BVerfG 2 BvQ 39/15, julgado em 7/11/2015.
Com o reconhecimento das uniões homoafetiva é cada vez mais frequentes uma criança ter de facto duas mães ou dois pais. Basta um olhar atento nas creches e escolas para se constatar essa realidade social. Na Alemanha não é diferente. No país, desde 2001 é possível registrar em cartório relações homoafetiva como união de fato, algo semelhante à união estável entre nós, e desde 2017 o Tribunal Constitucional Alemão, Bundesverfassungsgericht, em histórica decisão, ampliou o casamento para todos: Ehe für alle1. A decisão foi, tal como aqui, uma quebra de paradigma, pois rompeu com o sistema matrimonial heteronormativo consagrado no Código Civil (BGB). Mas, apesar dos casais homossexuais poderem casar ou estabelecer união estável, eles não vêm gozando do mesmo tratamento jurídico que os casais heterossexuais. Pelo menos, não segundo a jurisprudência do Bundesgerichtshof, a Corte infraconstitucional equivalente ao nosso Superior Tribunal de Justiça. Em 2018, a Corte proferiu polêmica decisão negando uma equiparação plena das relações hetero e homoafetivas, segundo o direito vigente. O caso No caso, duas mulheres da Saxônia, que viviam em união homoafetiva registrada, decidiram ter um filho por meio de inseminação artificial heteróloga, com a ajuda do sêmen de um doador. Após o nascimento, elas tentaram registrar a criança em cartório com o nome de ambas como genitora. Aqui vale o registro de que a Alemanha não tem um órgão legiferante como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dita regras em forma de "provimentos". Dessa forma, ao contrário do Brasil, onde o CNJ suprimiu das certidões de nascimento - por meio do Provimento 63/2017 - a referência ao pai e mãe biológicos, constando apenas o neutro termo "filiação", na Alemanha ainda é necessário indicar com precisão a mãe e, eventualmente, o pai da criança. O problema é que o cartório se recusou a incluir o nome da companheira da genitora como mãe da criança. Como mãe foi registrada apenas a mulher que deu à luz a criança. Por essa razão, as duas moveram ação judicial pleiteando a retificação do registro de nascimento a fim de constar o nome de ambas. A ação foi julgada procedente em primeira instância pelo Amtsgericht Chemnitz, que ordenou o cartório inserir a companheira como mãe na certidão de nascimento. O Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Dresden, contudo, revogou a decisão e o caso foi parar na Corte em Karlsruhe. A decisão do Bundesgerichtshof O BGH negou provimento ao recurso (Revision) interposto pela autora. Trata-se do processo BGH Az. XII ZB 231/18, julgado em 10/10/2018. Segundo a Corte de Karlsruhe, o registro de nascimento da criança não estava errado, porque a esposa da mãe biológica não poderia ser considerada genitora jurídica da criança. Tal como o Código Beviláqua, o BGB de 1900 refletia o modelo tradicional de família, no qual coincidiam a parentalidade genética, jurídica e social. Essa realidade começou a mudar em 1997, quando o legislador alemão, empurrado pelas mudanças sociais e pela ciência médica, alterou o chamado direito das crianças no Livro 4 do BGB, atualizando diversas normas, dentre as quais o direito de filiação. Segundo o § 1.591 BGB, introduzido com a reforma, mãe é quem dá à luz a criança. Com essa norma, o legislador alemão rompeu o princípio milenar de que a filiação (materna) decorre sempre da origem genética, pois imputou a posição jurídica de mãe à mulher que efetivamente parir a criança, ainda que essa dela não proceda geneticamente, como ocorre nos casos de barriga de aluguel ou doação de óvulo. A justificativa para a norma é que a mulher desenvolve um grande vínculo emocional com o ser em formação e o Estado não deve contribuir para o rompimento desse laço psicossocial2. Além disso, essa regra permite uma imputação clara e segura da maternidade, como reconhece o Projeto de Lei de reforma do direito de filiação, servindo ainda à tutela do bem-estar do recém-nascido3. Já o § 1.592 BGB define como pai o homem que: (1) for casado com a mãe da criança no momento do nascimento; (2) reconheceu a paternidade ou (3) cuja paternidade foi reconhecida em juízo. Aqui o legislador não pressupõe que a paternidade decorre necessariamente da origem genética, mas trabalha com a presunção de paternidade. Para o que aqui interessa, importante observar que os referidos dispositivos consagram a chamada Eltern-Kind-Zuordnung, i.e., a imputação da criança aos pais e indicam quem pode ocupar a posição jurídica de pais no ordenamento jurídico. E a norma, disse o BGH, pressupõe expressamente dois genitores de gênero distinto. Os dispositivos não podem, segundo o BGH, ser aplicados diretamente à união de duas mulheres, pois isso contraria a vontade do legislador, que, embora estendendo o matrimônio a casais homossexuais, deixou intencionalmente de reformar o direito de filiação no BGB e de regular as questões de filiação em relacionamentos homoafetivos. Também não caberia uma interpretação analógica, porque essa requer similitude das situações fáticas, ausente no caso, pois se tratam de duas mulheres e só uma pode ser mãe biológica. A paternidade por força do vínculo matrimonial retira sua razão e fundamento do fato de que a imputação jurídica da paternidade retrata, em regra, a verdadeira origem da criança. Essa presunção (relativa) de paternidade, subjacente ao § 1.592 BGB, não se aplica à mulher casada - ou em união registrada - com a mãe da criança, pois ela não pode ser um dos genitores biológicos da criança, nascida, na verdade, de inseminação heteróloga do óvulo da mãe com o sêmen do terceiro (doador). Ao contrário, disse o BGH: pode-se excluir, desde o início, que a criança nascida da mãe provenha de sua cônjuge, pois há sempre um pai biológico envolvido no processo de concepção. O parentesco genético-biológico ainda é um critério essencial de imputação da parentalidade, pois representa um importantíssimo vínculo entre os pais e filhos para a maioria das famílias. Isso é admitido, inclusive, pelo Projeto de Lei que pretende reformar o direito de filiação na Alemanha4. Assim, até que ocorra uma reforma no direito de filiação do Código, só resta à companheira da mãe a possibilidade de se tornar genitora jurídica por meio da adoção, concluiu a Corte. O Tribunal refutou ainda a alegação das autoras de que a situação jurídica analisada ofenderia os direitos fundamentais dos envolvidos e a Convenção Europeia de Direitos Humanos. As repercussões do caso A decisão foi recebida negativamente pela comunidade GLBTI+, pois marcada pelo ranço do conservadorismo e atraso em relação a outras ordens jurídicas. Agora, um novo processo tem posto mais lenha na fogueira da discussão acerca da necessidade de reforma do direito de filiação do BGB. Trata-se de ação movida por duas mulheres da cidade de Hildesheim, perto de Frankfurt am Main. A criança nasceu em fevereiro último, fruto também de fertilização com sêmen de um doador. As duas já informaram que vão percorrer todas as instâncias para afastar essa situação degradante de uma ter que assumir o status de mãe por via da adoção. Alegam que, de fato, ambas são mães, pois tomaram em conjunto a decisão de ter filho, consentiram e vivenciaram o processo de inseminação artificial e ouviram as primeiras batidas do coraçãozinho do bebê via ultrassom. Juridicamente, aduzem que as "famílias arco-íris" (Regenbogenfamilien) são discriminadas pela jurisprudência do BGH, até porque no momento do registro da criança, nascida de relacionamentos heterossexuais, não se verifica se o esposo da mãe é realmente o pai biológico da criança, sendo discriminatória a verificação em caso de casais homoafetivos. É provável, portanto, que esse caso vá parar no Tribunal Constitucional e seja julgado pelo mesmo Senado que, de modo avantgarde, quebrou o sistema binário de gênero e reconheceu a existência de um terceiro gênero, situado entre o masculino e o feminino: o intergênero, hoje reconhecido pela em lei5. O Parlamento alemão (Bundestag) há tempos está envolto com a discussão acerca da reforma do direito de filiação. Há pareceres e estudos sobre o tema, bem como um projeto de lei apresentado pela Ministra da Justiça, Katarina Barley, do Partido Socialdemocrata (SPD). Mas falta consenso politico. O Projeto visa, dentre outras coisas, fortalecer as relações homoafetivas e, por isso, prevê que no futuro a esposa/companheira da mãe da criança também se tornará automaticamente mãe, com todos os direitos e obrigações. O Partido Verde (Grünen) já se manifestou pela aprovação da dupla maternidade e/ou paternidade de casais homoafetivos. Mas ainda não há prazo para a discussão da matéria. Na pauta está ainda a reforma do direito de adoção, de modo que o Parlamento só deve votar em bloco as novas regras a fim de evitar normas axiologicamente conflitantes. Segundo estudos, devem existir cerca de 15 mil crianças e adolescentes, abaixo de 18 anos, vivendo em famílias do mesmo sexo. A situação no Brasil Por aqui, o caso ocorrido na Alemanha não encontra problemas, pois o Judiciário - e os próprios cartórios de registro civil - vem permitindo que casais homossexuais registrem a criança com duas mães ou dois pais. Como não há lei específica regulando o assunto, o CNJ apressou-se em suprir parcialmente a lacuna legal com os Provimentos 52/2016 e 63/2017, que disciplina o registro de crianças nascidas por técnicas de reprodução assistida. O art. 16 § 2o. do Provimento 63/2017 - equivalente ao art. 1o, § 2o. do Provimento 52/2016 - reza que no caso de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem referencia à distinção quanto à ascendência paterna ou materna. O registro pode ser feito diretamente no cartório, sem necessidade de processo judicial, desde que apresentando a documentação exigida no art. 17 do Provimento 63/2017. Na prática, uma das discussões que se coloca é se essa facilidade só se aplicaria aos casos de inseminação artificial realizados em clínicas ou se valeria ainda quando a criança fosse fruto de inseminação caseira, prática bastante difundida em razão dos altos custos com os tratamentos de reprodução assistida. Antes do Provimento 63/2017, casais homoafetivos conseguiam, sem maiores dificuldades, registrar a criança nascida de uma delas por meio de inseminação caseira ou pelo método tradicional6. Mas na Europa, o processo não é tão simples assim. Ano passado, o site da BBC Brasil noticiou o caso de vários casais homoafetivos que não conseguiram registrar seus filhos com o nome de ambos. O último desfecho foi a história das mães brasileiras que, em 2019, não conseguiam registrar na França o filho gerado através de reprodução assistida feita na Espanha7. Elas queriam constar como mães no registro, mas apenas aquela que deu à luz teve a legitimidade reconhecida no cartório francês, cabendo à outra apenas a alternativa de adotar a criança para tornar-se oficialmente mãe, tal como vem ocorrendo até agora no direito alemão. Todo esforço de previsão é arriscado, terminando por desaguar em exercício de futurologia. Mas, se o mencionado Projeto de Lei alemão realmente refletir a realidade social, parecem boas a chance do Tribunal Constitucional permitir o registro de duas mães (ou dois pais) no registro das crianças, sem a necessidade de adoção. Vamos aguardar para ver. __________ 1 Após a decisão do BVerfG, o Parlamento alemão aprovou lei extendendo o direito ao matrimônio a pessoas do mesmo gênero, em 20/7/2017, em vigor no país desde 1/10/2017. 2 KEMPER, Reiner. Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. Reiner Schulze (coord.). 8. ed. Baden-Baden: Nomos, 2014. § 1591, p. 1905. 3 Diskussionsteilentwurf des Bundesministeriums der Justiz und für Verbraucherschutz - Entwurf eines Gesetzes zur Reform des Abstammungsrechts, p. 2. 4 Diskussionsteilentwurf des Bundesministeriums der Justiz und für Verbraucherschutz - Entwurf eines Gesetzes zur Reform des Abstammungsrechts, p. 2. 5 Cf. Gesetz zur Änderung der in das Geburtsregister einzutragenden Angaben, de 18.12.2018. A respeito do tema, confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Tribunal Constitucional Alemão admite a existência de um terceiro gênero. Migalhas, 2/1/2018. 6 Casal homoafetivo registra criança com duas mães diretamente no cartório, no Pará. Reportagem de 27/7/2017, publicada no site G1 do Globo. Acesso: 26/2/2020. 7 Mães brasileiras não conseguem registrar filho na França em nome das duas e expõem impasse no Itamaraty. Acesso: 18/8/2019.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Decisões históricas: o caso da fiança - Parte 2

Dando sequência à análise do caso da fiança, julgado pelo 1o Senado do Tribunal Constitucional Alemão em 19/10/1993 e publicado no repertório BVerfGE 89, 214, hoje analisa-se o processo 1 BvR 1044/89 relacionado à validade de fiança prestada pelo cônjuge do tomador do crédito. Como já dito aqui, a questão central discutida nesses casos era saber até que ponto os tribunais civis devem realizar um controle do conteúdo dos contratos de fiança, celebrados com instituições financeiras, quando familiares do tomador do crédito, desprovidos de patrimônio, assumem como fiadores a garantia de dívida muito elevada. Como explicado na coluna anterior sobre o tema, com frequência os bancos exigiam que familiares próximos do tomador de um crédito, como esposas e filhos, figurassem como fiadores nos contratos de empréstimos. O objetivo não era tanto ampliar a massa patrimonial responsável pelo débito, mas evitar a transferência patrimonial e exercer pressão sobre o devedor a pagar a dívida, sob pena do chamamento dos familiares. 2. O caso da esposa No processo BVerfG 1 BvR 1044/89, a esposa figurou como fiadora de empréstimo do marido no valor de 30 mil marcos alemães, embora fosse uma dona de casa desempregada e sem patrimônio. Com a inadimplência do devedor principal, o banco cobrou dela o pagamento da divida, o que era exorbitante para sua realidade familiar, pois ela jamais se livraria do pagamento da fiança, considerando sua realidade financeira. A instituição financeira ganhou em todas as instâncias. E o argumento principal era que uma pessoa maior sabe, mesmo sem maiores esclarecimentos, que a fiança é um negócio arriscado e, portanto, o banco poderia partir do princípio de que quem assume a garantia de um débito conhece a extensão de seu ato e sabe avaliar seus riscos com responsabilidade. 3. A decisão do BVerfG Com a queixa constitucional movida, o Tribunal deu ganho de causa ao banco, mas assentou as linhas gerais que permitiriam a nulidade da fiança assumida por cônjuge ou companheiro. Com efeito, enquanto no caso da filha do armador (processo BvR 567/89), o Tribunal Constitucional reconheceu a existência de uma dívida exorbitante, que comprometeria o mínimo existencial da fiadora por toda a vida, o caso da esposa seria diferente, pois possuía circunstâncias fáticas distintas. Aqui, segundo o BVerfG, não houve a assunção de uma fiança de extensão difícil de ser avaliada e nem restou comprovado que a fiadora fora pressionada a assinar o documento ou que o funcionário do banco teria minimizado os riscos e a extensão da garantia assumida. Embora o banco tenha condicionado a concessão do crédito à assunção da garantia, não há indícios de que tenha inobservados seus deveres informacionais ou banalizado os riscos da responsabilidade. Como a fiança dizia respeito a crédito de consumo, de valor não extraordinariamente alto, para a cobertura de crédito tomado pelo marido da fiadora, se poderia partir do princípio de que ela própria tinha interesse direto na concessão do crédito, pois se beneficiou do dinheiro. Dessa forma, o BVerfG rejeitou os argumentos da mulher, autora da queixa constitucional, mantendo as decisões anteriores. 4. A importância da decisão A partir dessa decisão histórica do BVerfG, os tribunais inferiores passaram a modificar sua jurisprudência em relação aos contratos de fiança celebrados por instituições financeiras e os familiares do devedor. O próprio Bundesgerichtshof (BGH) alterou sua jurisprudência, passando a admitir a nulidade de fianças exorbitantes celebradas por descendentes, cônjuge, companheiros e noivos, ou seja, pessoas que estão vinculadas emocionalmente ao devedor principal. Um dos fundamentos seria o § 138 BGB, que, logo no caput proclama: "Um negócio jurídico contrário aos bons costumes é nulo". A frase 2 do dispositivo proclama a nulidade dos negócios usuários dizendo que também é nulo o negócio jurídico através do qual alguém, explorando a situação de necessidade, a inexperiência, a falta de discernimento ou uma significativa falta de vontade de outrem, obtém para si ou para terceiros vantagens patrimoniais que estão em clara desproporção com a prestação. Em suma, a norma visa combater o abuso do poder econômico. Para a aplicação do dispositivo, decisivo é o conteúdo do negócio jurídico celebrado e, em razão disso, o § 138 BGB tem aplicação não apenas aos contratos, mas a todos os tipos de negócio jurídico exorbitantemente desestruturados1. A nulidade da fiança de familiares decorre com uma conjuntura de fatores. Dentre eles, o primeiro e principal é que no caso concreto haja uma grave desproporção entre a extensão da fiança e a capacidade financeira do fiador, ou seja, que o fiador fique excessivamente endividado. Nesses casos, salvo prova em contrário, presume-se que a responsabilidade pela dívida foi assumida sem uma avaliação racional da situação e dos riscos financeiros, sendo o resultado da inexperiência e/ou da vinculação afetiva do fiador ao devedor. Em segundo lugar, é necessário que essa grave desproporção seja perceptível para o banco e que ele tenha se aproveitado da inexperiência do fiador. Esse requisito, entretanto, pode ser - e é com frequência - relativizado na prática na medida em que a instituição financeira, considerando o fim último do contrato de fiança, tem o ônus de verificar previamente a situação patrimonial do fiador. Em terceiro lugar, o fiador não pode obter uma vantagem direta do crédito afiançado. Se ele se beneficia do crédito, mesmo uma garantia excessivamente onerosa pode ser considerada válida pela ausência da contrariedade aos bons costumes. É o caso do filho, fiador de dívida contraída pela empresa familiar, da qual ele é diretor ou do fiador que é coproprietário do objeto financiado ou cuja empresa participa do projeto financiado com o crédito concedido pelo banco. Algumas decisões apontam a nulidade da fiança, mesmo sem grave desequilíbrio financeiro, quando o banco influencia de forma inadmissível a liberdade de decisão do fiador, por exemplo, ao banalizar os riscos assumidos ou omitir os graves riscos do fiador ou exigir a fiança do cônjuge após ter liberado parte do empréstimo. As linhas gerais da fiança de familiares são aplicadas, em princípio, também a fianças assumidas por empregado diante de dívidas do empregador, mas não a fianças assumidas por sócios por dívidas da sociedade2. No Brasil, os bons costumes (gute Sitten) não são aplicados como limite à autonomia privada como na Alemanha, onde o § 138 BGB tem vasta aplicação. Lá, a autonomia privada não é restringida e limitada apenas pelo quadro normativo, mas também por princípios da moral jurídica e social, enraizados na sociedade ou imanentes aos princípios e valores do ordenamento. Trata-se, em apertada síntese, de exigências comportamentais extrajurídicas, que resultam de regras de convivência comum da sociedade ou dos valores e princípios fundamentais da ordem jurídica. Dentre os inúmeros casos subsumidos no § 138 BGB como negócios contrários aos bons costumes e sancionados com nulidade, cita-se - além da fiança exorbitante de familiares - os negócios usuários, que nunca foi tratado com o devido cuidado entre nós. __________ 1 DÖRNER, Heinrich. Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. In: Reiner Schulzer (coord.). 8. ed. Baden-Baden: Nomos, 2014 , p. 136. 2 Nesse sentido: BGH NJW 2003, p. 59.
A Corte infraconstitucional alemã, Bundesgerichtshof, decidiu que os planos de saúde são obrigados a cobrir tratamento de inseminação artificial mesmo em mulheres maduras. A decisão foi publicada no dia 2/1/2020. Trata-se do processo BGH IV ZR 323/18, julgado em 4/12/2019. O caso O autor da ação sofria de criptozooespermia, enfermidade caracterizada pela baixa concentração de espermatozoides, razão pela qual estava impossibilitado de gerar uma criança por meios naturais. Ele acionou em juízo o seguro de saúde para pedir ressarcimento de cerca de 17.500 ? (euros) referentes aos custos de quatro ciclos de fertilização in vitro, realizados com injeção intracitoplasmática de espermatozoides e transferência embrionária. A empresa recusou a cobertura do procedimento alegando que o caso do autor não teria preenchido os pressupostos configuradores do tratamento médico, exigidos pelo § 1, inc. 2, alínea 1 das condições contratuais gerais. Um deles estava relacionado com a idade da esposa do autor, na época com 44 anos e, por isso, situada em faixa etária com alto risco de aborto. O processo O autor obteve sucesso em primeira e segunda instância. O Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Bremen considerou que as quatros tentativas de fertilização poderiam ser entendidas como um tratamento médico necessário, nos termos do § 1, inc. 2 do contrato. Além disso, a prova pericial realizada atestara que existia, no mínimo, 15% de chance da transferência embrionária conduzir à gravidez desejada e que a esposa do autor era uma mulher sadia reprodutivamente. Segundo o OLG Bremen, importante era que o tratamento poderia conduzir, com certa probabilidade, à concepção, sendo irrelevante como a gravidez se desenvolveria, ou seja, se havia grande ou pequena probabilidade da criança nascer com vida ou se a taxa de aborto era ou não alta na faixa etária na qual se enquadrava a esposa do autor. Trata-se do processo OLG Bremen, 3U 7/17, pulicado em 26/11/2017. A decisão do BGH A Corte julgou improcedente o recurso de Revision interposto pela empresa de seguro de saúde. Segundo o BGH, é evidente que a infertilidade orgânica do paciente se caracterizava como moléstia, nos termos do contrato e que as medidas adotadas (inseminação artificial) visavam suplantar ou minorar esse problema, configurando, portanto, um procedimento médico necessário, com previsão de cobertura pelo seguro de saúde. De acordo com a prova médica acostada aos autos, havia uma probabilidade de êxito no tratamento de pelo menos 15%, apesar da idade da mulher. Ou seja: era possível que o tratamento conduzisse, com "certa probabilidade", a uma gestação tardia, pois a esposa do autor não apresentava condições pessoais que pudessem reduzir adicionalmente a chance de gravidez. De acordo com a jurisprudência da Corte, só não seria realista uma perspectiva de êxito quando a probabilidade da transferência embrionária conduzir à gravidez fosse tão baixa que a chance de concepção sequer alcançasse o patamar de 15%. Para a Corte de Karlsruhe, ao contrário do sustentado pelo plano, decisivo era que o tratamento conduzisse à gravidez, independentemente de como essa se desenvolveria, ou seja, independente da criança vir ou não a nascer. Por isso, o BGH afirmou que a necessidade do tratamento médico (inseminação artificial) se mede pela probabilidade da concepção e não pela chance de êxito da gravidez. Por essa razão, irrelevante no caso a alta taxa de aborto na faixa etária da esposa do autor, até porque o objeto do tratamento da infertilidade era a gravidez em si e não o risco de aborto, disse o Tribunal de Karlsruhe. A uma, porque o objetivo da inseminação artificial é apenas a indução da gravidez e não a prevenção ou eliminação do aborto, já que não visa, em primeira linha, garantir o pelo desenvolvimento da gravidez ou afastar circunstâncias que ponham em risco o parto, sobre as quais o tratamento não tem necessariamente influência. A duas, porque o risco de aborto faz parte do risco de vida geral suportado pelos pais, independentemente da criança ter sido gerada naturalmente ou com ajuda médica, disse a Corte. Diferente seria a hipótese em que, por conta de problemas de saúde próprios dos genitores, seria pouco provável que a criança nascesse com vida. Mas isso não foi ventilado no caso concreto1. Por isso, concluiu o BGH confirmando a pretensão do autor ao ressarcimento dos custos e afirmando que o direito à autodeterminação (Selbstbestimmungsrecht) do casal, de status jusfundamental, compreende a decisão de concretizar o desejo de ter um filho em idade avançada, assumindo evidentemente os riscos relacionados à idade que esse empreendimento envolve. E esse desejo não se submete a um controle judicial quanto à sua necessidade. A importância da decisão A decisão da Corte infraconstitucional é importante, porque fortalece o direito à reprodução tardia das mulheres, apesar do alto risco de aborto. O alto risco de aborto, registrado em estatísticas, não é, por si só, suficiente para que os seguros de saúde recusem a cobertura dos custos da inseminação artificial, sublinhou a Corte. Decisivo é a chance da mulher engravidar e não a de vir a dar à luz. Com isso, mesmo mulheres mais velhas passam a ter seus direitos reprodutivos concretizados pelo Judiciário alemão, devendo ser os custos do tratamento de inseminação artificial custeados pelos seguros de saúde privados. A situação no Brasil Aqui no Brasil, os planos de saúde, em regra, não cobrem os tratamentos de inseminação artificial. E o STJ não considera abusiva a cláusula contratual que exclui a cobertura de inseminação artificial2. Na Alemanha, ao contrário, a regra é os planos arcarem com esses custos, pois até mesmo o seguro de saúde obrigatório - subvencionado pelo Estado e chamado seguro legal de saúde ou Gesetzliche Krankenversicherung - cobre três tentativas de inseminação artificial. Cada Estado, contudo, é livre para financiar outras tentativas. Assim, no estado de Niedersachen (Baixa Saxônia) foram autorizadas em 2019 mais de três mil casos de tratamentos de inseminação artificial, ao custo de 2,89 milhões de euros, além das tentativas frustradas cobertas pelos seguros de saúde, pois faz parte do programa do governo local o fomento da natalidade3. E olha que na Alemanha domina a teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais no direito privado, tão criticada por aqui... __________ 1 No mesmo sentido: OLG Celle, processo 8 U 209/13, julgado em 24/4/2014. 2 Confira-se, dentre outros, o recente julgado: REsp. 1.761.246/RO, Rel. Min. Nancy Andrighi, T3, j. 2/4/2019, DJe 4/4/2019. 3 BGH zur künstlichen Befruchtung: Kostenübernahme auch bei später Mutterschaft. In: Legal Tribune Online, 3/1/2020. Acesso: 3/1/2020.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Decisões históricas: o caso da fiança - Parte 1

BVerfG libera familiares de honrar dívida de valor exorbitante Um dos casos mais emblemáticos acerca da eficácia dos direitos fundamentais no direito privado é o chamado caso da fiança ou Bürgerschaftsentscheidung, julgado pelo 1o Senado do Tribunal Constitucional Alemão em 19/10/1993. Trata-se, a rigor, de dois processos: 1 BvR 567/89 e 1 BvR 1044/89, publicados no repertório BVerfGE 89, 214. A questão central da queixa constitucional era saber até que ponto os tribunais civis podem ser obrigados pela Lei Fundamental (Grundgesetz) a submeter os contratos de fiança, celebrados com instituições financeiras, a um controle de seu conteúdo, quando familiares do tomador do crédito, embora desprovidos de patrimônio, assumiam como fiadores a garantia exorbitante de uma dívida. Para entender o caso Na Alemanha da década de 70, era comum que os bancos exigissem que familiares próximos do tomador de um crédito, como esposas e filhos, figurassem como fiadores dos contratos de empréstimos. Isso geralmente ocorria em empréstimos concedidos a donos de empresas de pequeno e médio porte. O objetivo não era apenas ampliar a massa patrimonial responsável pelo débito, pois muitos contratos de fiança eram celebrados sem verificação da situação patrimonial do fiador. O objetivo principal era, na verdade, evitar transferência patrimonial e exercer pressão sobre o tomador do crédito para honrar a dívida, sob pena do chamamento dos familiares fiadores. A prática era tão intensa que os tribunais civis se ocuparam por quase dez anos com casos de superendividamento de familiares, que não tinham desde o início condições nenhuma de garantir o débito. As instâncias inferiores não hesitavam, em sua maioria, em fazer um controle judicial do conteúdo desses contratos de fiança. Uma das linhas de argumentação desenvolvida apoiava-se na cláusula geral dos bons costumes, do § 138 I BGB: seriam nulos, por contrariedade aos bons costumes, os contratos de fiança celebrados com fiadores inexperientes, ligados ao devedor por laços familiares e que, em caso de inadimplência, teriam que suportar uma dívida exorbitante, capaz de aniquilar a própria existência. A outra linha argumentativa amparava-se na cláusula geral da boa-fé objetiva, prevista no § 242 BGB: faltava nesses contratos informação e esclarecimento suficiente acerca da gravidade do risco assumido pelo fiador, de modo que o banco violava, no mínimo culposamente, os deveres pré-contratuais de informação e esclarecimento, incorrendo em responsabilidade pré-contratual por falhas informativas. O Bundesgerichtshof, porém, rejeitava os argumentos favoráveis ao controle judicial do conteúdo dos contratos de fiança. A principal justificativa era que uma pessoa maior sabe, mesmo sem maiores esclarecimentos, que a fiança é um negócio arriscado. Portanto, o banco poderia partir do princípio de que quem assume a garantia de um débito conhece a extensão de sua ação e sabe avaliar seus riscos com responsabilidade. Esse posicionamento sofria duras críticas da doutrina1 e era desconsiderado em muitos casos nas instâncias inferiores, que não seguiam a tese da Corte infraconstitucional. Por conta disso, o 11o. Senado do BGH começou a mudar sua jurisprudência na década de 90 para realizar o controle das cláusulas abusivas dos contratos de fiança, celebrados por familiares, desde que comprovado um exorbitante desequilíbrio estrutural no contrato2. Na maioria dos casos, contudo, a Corte infraconstitucional decidia pela validade do negócio e pela responsabilidade do fiador. Isso fez com que muitos fiadores recorressem ao Tribunal Constitucional alegando ofensa à garantia fundamental da autonomia privada material. O caso da fiança da filha do armador O processo BVerfG 1 BvR 567/89 teve origem em primeira instância no Landgericht Stade e foi apreciado pelo Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) Hamburg e, na sequência, pelo BGH, em decisão de 16/3/1989, proferida no processo BGH IX ZR 171/88. Nesse caso, o pai da autora da queixa constitucional, um construtor, dobrou junto ao banco seu limite de crédito, de 50 mil para 100 mil marcos alemães, colocando a filha, à época com 21 anos, como fiadora. No contrato de fiança, assinado em 29/11/1982, dentre as inúmeras cláusulas pré-fixadas, constava a assunção de garantia por todas as dívidas existentes e futuras, bem como a renúncia ao benefício da ordem e à exceção de invalidade e prescrição, possível no direito alemão. O aumento do crédito foi concedido apesar da fiadora não ter patrimônio suficiente para honrar a dívida. Ela não tinha formação definida e ganhava apenas 1.150 marcos por mês em uma fábrica de peixes. Em outubro de 1984, o pai da fiadora mudou de ramo e virou armador, razão pela qual pegou um financiamento no banco de 1,3 milhões de marcos para a comprar um navio. Como o empréstimo não foi pago, o banco cobrou 2,4 milhões de marcos da fiadora pelas dívidas do pai. A filha, então, entrou com ação pedindo a nulidade da fiança. O banco contra-atacou com reconvenção cobrando o pagamento da dívida mais juros. O banco obteve sucesso em primeira instância. Mas o Tribunal de Justiça de Hamburg reformou a decisão ao argumento de que o banco violara o dever pré-contratual de esclarecimento, incorrendo em responsabilidade pré-contratual por falha informacional. Na visão do OLG Hamburg, em regra, o credor não precisa esclarecer o fiador acerca dos riscos gerais da fiança. Entretanto, ele responde quando, com seu comportamento, induz a erro o fiador, por exemplo, banalizando a extensão dos riscos e da responsabilidade assumida e, dessa forma, influencia decisivamente a decisão negocial do fiador. Esse foi o caso dos autos, afirmou o Tribunal de Hamburg, pois o funcionário do banco conhecia a dimensão do risco que a jovem fiadora estava assumindo e, nada obstante, banalizou o negócio afirmando precisar de sua assinatura apenas por uma questão formal. Em grau de recurso, o BGH suspendeu a decisão do Tribunal de Hamburg e julgou improcedente o recurso interposto pela fiadora. Ela, então, moveu queixa constitucional alegando, em síntese, que o BGH havia violado seus direitos fundamentais consagrados nos arts. 1, inc. 1 e 2, inc. 1 da Grundgesetz (GG), bem como o princípio do Estado-Social. Do princípio da dignidade humana, previsto no art. 1 I GG, resulta o dever do Estado de proteger o indivíduo contra necessidades materiais, pois quando o ser humano é obrigado a viver abaixo de condições mínimas de vida, violada resta sua dignidade. Do art. 2 I GG resulta o dever do Estado de intervir para impedir que empresas dominantes do mercado adotem um comportamento antissocial e abusem de sua liberdade contratual, anulando na prática - e de forma indigna - a liberdade contratual do outro contratante. Nesse caso, a dívida era tão alta que a fiadora, nesse meio tempo mãe solteira e vivendo de ajuda social do Estado, não tinha condições sequer de pagar os juros mensais do débito. A decisão do BVerfG Trata-se do processo BVerfG 1 BvR 567/89. De início, o Tribunal Constitucional observou que o caso sob análise tinha particularidades que os distinguia dos casos normais de garantia de crédito, pois desde o início era perceptível para o banco que a fiadora não tinha condições em vida de pagar a dívida, salvo se algum evento extraordinário alterasse sua situação patrimonial. Ela se obrigou pelo risco da empresa do pai em uma extensão que em muito superava sua situação financeira, disse o Tribunal. Portanto, ela assumiu um risco extraordinariamente alto sem ter qualquer interesse financeiro no crédito assegurado. Por isso, ela alegou em juízo que o banco violou os deveres pré-contratuais de consideração (vorvertragliche Rücksichtspflichten) e se aproveitou de sua inexperiência comercial em prol de seus próprios interesses. Nada obstante, observou a Corte constitucional, o BGH não viu razão para realizar um controle do conteúdo contratual. Com isso, deixou de verificar se - e em que medida - os contratantes realmente decidiram livremente acerca da conclusão e do conteúdo do contrato, o que mostra que o BGH desconsiderou a autonomia privada, garantida nos direitos fundamentais, afirmou o Tribunal Constitucional. A Suprema Corte assinalou que, de acordo com sua mansa e pacífica jurisprudência, a formação das relações jurídicas pelos indivíduos, segundo suas vontades, constitui um componente da liberdade geral de ação (allgemeine Handlungsfreiheit). O art. 2, inc. 1 da Lei Fundamental garante a autonomia privada como a "autodeterminação do indivíduo na vida jurídica", disse o BVerfG. A autonomia privada, contudo, é necessariamente limitada e precisa de uma moldagem jurídica. O legislador infraconstitucional precisa moldar a ordem jurídica privada de forma a garantir à autodeterminação do individuo um espaço de atuação adequado na vida jurídica, sob pena dessa garantia jusfundamental (autonomia privada) ser esvaziada. E ao moldar a autonomia privada, o legislador ordinário está vinculado às diretrizes objetivas emanadas dos direitos fundamentais. Mas na organização da ordem jurídica privada o legislador enfrenta um problema de concordância prática, diz o BVerfG, pois no comércio jurídico participam titulares de direitos fundamentais de mesmo nível hierárquico, que possuem interesses diversos e perseguem frequentemente objetivos contrapostos. Como todos os partícipes do comércio jurídico gozam da proteção do art. 2 I GG e podem se socorrer da garantia jusfundamental da autonomia privada, não pode valer apenas o direito dos mais fortes. Essas posições jusfundamentais em colisão precisam ser analisadas em sua inter-relação e ser limitadas de forma que possuam o máximo de efetividade para todos. Segundo a Corte Constitucional, no direito contratual, normalmente a compensação adequada dos interesses contrapostos resultada vontade das partes. Mas se uma parte tem um peso tão considerável, que praticamente pode determinar unilateralmente o conteúdo do contrato, não se pode mais falar em autodeterminação, mas em heterodeterminação, pois o conteúdo do contrato é determinado pelo outro contratante. O Tribunal ressalta, contudo, que a ordem jurídica não precisa adotar medidas para todas as situações nas quais o poder de negociação de uma das partes é em maior ou menor medida restringido pela outra. Por razões de segurança jurídica, não pode um contrato ser questionado ou corrigido por qualquer perturbação no equilíbrio negocial. No entanto, diz a Corte, quando há uma inferioridade estrutural de uma parte face à outra e os efeitos do negócio são extraordinariamente gravosos para a parte mais fraca, a ordem jurídica privada precisa reagir e disponibilizar meios de correção. Isso decorre da garantia jusfundamental da autonomia privada (art. 2 I GG) e do princípio do Estado Social (art. 20 I, art. 28 I GG). E, para o Bundesverfassungsgericht, o direito contratual alemão disponibiliza esses instrumentos corretivos, pois, apesar do legislador histórico do BGB/1900 ter partido de um modelo formal de igualdade das partes, o Tribunal Imperial (Reichsgericht), desde cedo, distanciou-se dessa ótica e adotou uma "ética material de responsabilidade social", como sublinhou Franz Wieacker em seu famoso escrito: Industriegesellschaft und Privatrechtsordnung (1974), ou seja, "Sociedade industrial e ordem jurídico-privada". Atualmente, disse o BVerfG, "há amplo consenso de que a liberdade contratual só serve como um meio adequado de compensação de interesses quando existe uma relação de forças equilibradas das partes e que equilibrar a paridade contratual destruída é uma das principais tarefas do direito civil vigente". Nesse contexto, continua a Corte, "as cláusulas gerais do Código Civil têm significado central. O texto do § 138, inc. 2 BGB exprime isso de forma especialmente clara. Lá são designadas típicas circunstâncias que conduzem necessariamente a uma inferioridade negocial de uma das partes contratuais, dentre as quais sua inexperiência. Se a parte prevalente tira proveito dessa fraqueza para impor seus interesses de forma evidente, isso conduz à nulidade do contrato. O § 138, inc. 1 BGB vincula, de modo geral, o efeito da nulidade à violação dos bons costumes". E continua a Corte Constitucional: "Efeitos jurídicos diferentes resultam do § 242 BGB. A ciência jurídica do direito civil é, no resultado, unânime no sentido de que o principio da boa-fé objetiva representa um limite imanente ao poder de formação contratual e fundamenta a autorização para um controle judicial do conteúdo do contrato". Ainda que exista discussão acerca dos pressupostos e da intensidade desse controle conteudístico, diz o Tribunal, para a avaliação constitucional do caso é suficiente saber que o direito vigente coloca instrumentos à disposição do juiz para reagir adequadamente ao desequilíbrio estrutural dos contratos. Por isso, concluiu o BVerfG, os tribunais civis têm o dever de atentar, na interpretação e aplicação das mencionadas cláusulas gerais, para que os contratos não sirvam como meio de heterodeterminação. Se os contratantes negociaram um regramento contratual juridicamente equilibrado, desnecessário o controle do conteúdo contratual. Mas se esse conteúdo for excessivo para uma das partes e manifestamente desproporcional, enquanto equilíbrio de interesses, os tribunais não podem se contentar com a conclusão de que "contrato é contrato", afirmou o BVerfG criticando a justificativa do BGH. Eles precisam, ao contrário, verificar se o regramento contratual é o resultado de forças estruturalmente desiguais durante as negociações e, eventualmente, intervir, corrigindo o pactuado, através das cláusulas gerais do direito civil. Como isso será feito e a qual resultado se chegará, é uma questão do direito ordinário, ao qual a Constituição deixa amplo campo de atuação. Contudo, ocorre a violação da garantia jusfundamental da autonomia privada quando o problema da disparidade contratual é ignorado pelos tribunais ou esses tentam corrigi-lo com meios inadequados. A decisão atacada do Bundesgerichtshof, concluiu o Tribunal Constitucional, violava essa garantia jusfundamental, pois a fiança celebrada fora vista e valorada como um contrato normal, com interesses correspondentes e riscos perceptíveis e avaliáveis. Todos os argumentos trazidos pela autora da queixa constitucional, com os quais ela queria comprovar sua fraqueza na fase das negociações, foram afastados pelo BGH ao argumento de que ela era maior de idade e deveria ter se certificados dos riscos por conta própria, disse o BVerfG. Mas isso é insuficiente. O risco da responsabilidade assumida com a fiança, sem que a fiadora tivesse qualquer interesse pessoal no negócio, foi extremamente alto e extraordinariamente difícil de se avaliar, até para pessoas mais experientes, pois não estava indicado no contrato sequer a base de cálculo dos custos e juros do crédito, nem delimitado pelo quê a fiadora realmente responderia. É irrealístico imaginar que uma jovem de vinte e um anos, sem qualquer qualificação profissional, identificasse esses riscos antes da contratação. No caso de uma clara e aguda inferioridade do contratante, é imprescindível ver como o contrato se formou e como as partes, principalmente as estruturalmente superiores, se comportaram. E, no entanto, o BGH afastou qualquer dever de esclarecimento e alerta da instituição financeira, disse o BVerfG. Até mesmo a pressão exercida pelo funcionário do banco para que a fiadora assinasse o contrato e a banalização dos riscos foram desconsideradas pelo BGH, afirmou a Corte Constitucional. Tudo isso não se coaduna com a tutela da autonomia privada, garantida pela Lei Fundamental, de modo a não se sustentar a decisão do BGH, concluiu o Tribunal Constitucional. Por isso, a Corte proclamou que a decisão do Bundesgerichtshof de 16.03.1989 (BGH IX ZR 171/88) violava a autora da queixa constitucional em seu direito fundamental do art. 2, inc. 1 da Lei Fundamental, reenviando o processo ao BGH para novo julgamento. A relevância da decisão O caso da fiança é considerado na Alemanha o leading case da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no direito contratual, pois nela o Tribunal Constitucional afastou a validade de um contrato de fiança por ofensa à garantia constitucional da autonomia privada. Essa decisão teve profunda repercussão na Europa e, na sequência, no Brasil, onde a discussão em torno da eficácia horizontal - direta ou indireta - dos direitos fundamentais teve início após a Constituição de 1988. No Brasil, a doutrina fornece frequentemente como exemplo de eficácia horizontal (direta) dos direitos fundamentais no direito contratual o bizarro caso do arremesso de anões, diversão que animava os frequentadores de alguns estabelecimentos franceses em pleno século 20. Aqui, a violação à dignidade da pessoa humana é tão evidente que se dispensa maiores argumentações para justificar a nulidade dos contratos celebrados entre os estabelecimentos comerciais e os anões arremessados. Bem mais complexos, no entanto, são os casos de fianças de familiares, nos quais as garantias são firmadas formalmente de modo incólume, mas materialmente maculadas pela disfunção da autonomia privada. Nesses casos mais complexos é que se percebe a solidez argumentativa da teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos fundamentais, que penetram no ordenamento jusprivado por meio da hermenêutica dos princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Aqui o Judiciário precisa interpretar, ou melhor, concretizar as cláusulas gerais dos bons costumes e - principalmente - da boa-fé objetiva com seus deveres pré-contratuais de conduta de forma a materializar a autonomia privada, garantida constitucionalmente. Disso decorre o dever do juiz de efetivar o controle do conteúdo dos contratos marcados por um grave desequilíbrio estrutural entre as partes, como em casos semelhantes ao aqui analisado. Um excelente precedente a ser estudado aqui no Brasil, com a profundidade que o tema requer. __________ 1 Dentre outros: TIEDTKE. ZIP 1990, p. 413; GRÜN. NJW 1991, p. 925 e REINICKE/TIEDTKE. ZIP 1989, p. 613. 2 Confira-se a decisão BGH NJW 1991, p. 923.
Juiz pode suprir excepcionalmente o consentimento dos genitores O Judiciário pode suprir o consentimento de um dos genitores quando ele se recusa em concordar com a alteração do nome do filho, disse o Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main, em decisão de 2/1/20201. O caso Os pais da criança eram casados, mas em 2010 o casamento chegou ao fim. A menina ficou morando com a mãe e perdeu totalmente o contato com o pai a partir de 2014. A mãe casou-se novamente e assumiu o nome de família do segundo marido, com quem teve outra filha. Ela requereu, então, em juízo, em 2018, a substituição do sobrenome da primeira filha a fim de que ela também usasse o patronímico do segundo marido, enteado da garota. Aqui deve-se ressaltar uma peculiaridade do direito alemão em relação à formação dos nomes: é muito comum que as pessoas possuam apenas um sobrenome e não vários, como no Brasil ou Portugal e qualquer dos cônjuges pode abandonar seu sobrenome de solteiro para adotar o do outro, embora o mais comum seja a mulher passar a usar o patronímico do marido. Dessa forma, mãe e filha não tinham um sobrenome comum, pois a mãe retirou o sobrenome do primeiro marido para adotar o do segundo e a filha permaneceu com o sobrenome do pai biológico. Assim, é fácil perceber os transtornos na hora de comprovar a filiação da menina. Mas, além disso, pesava no caso concreto, o fato da menina se sentir desconfortável e segregada, como se não fosse parte da família recomposta, pois carregava um patronímico diferente dos demais. O problema é que o pai da garota se recusou a concordar com a troca do sobrenome. Ele alegou estar sofrendo de depressão e não ter condições psicológicas de tomar tão importante decisão naquele momento e que, além disso, o nome de família era o último vínculo que restava com a filha. O processo judicial A lide girava em torno de saber se o consentimento do pai para a alteração do patronímico da menina poderia ser suprido pelo juiz. Não havia, portanto, pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva, que, embora possível, não é reconhecida de forma tão generosa como por aqui, muito menos a multiparentalidade. O pedido foi indeferido em primeira instância, apesar do parecer psicossocial favorável à troca do patronímico. Em decisão de 31/5/2019, o juiz denegou o pedido alegando que a substituição do sobrenome só é admissível em casos excepcionais e que, no caso concreto, não restara demonstrado que a mudança seria imprescindível ao bem-estar da criança. O simples desejo da menor era insuficiente a justificar a medida e meros incômodos por conta da diferença de nomes familiares não atendia o requisito legal da necessidade da alteração, afirmou o magistrado. Mas, em grau de recurso, o Tribunal de Justiça da Comarca de Frankfurt a.M. reformou a decisão. A decisão do OLG Frankfurt Segundo o OLG Frankfurt, decisivo para a alteração do nome é o bem-estar da criança (Wohle des Kindes), nos termos do § 1.618, frase 4 do Código Civil alemão e, para tanto, o Judiciário pode suprir a falta de consentimento do pai. Segundo o § 1.618 BGB, o genitor, com guarda exclusiva ou compartilhada, e seu novo cônjuge podem dar seu patronímico à criança (menor e solteira) que com eles vivam na mesma residência, através de declaração perante o oficial de registro civil das pessoas naturais. A regra vista possibilitar uma maior integração da criança enteada na nova família2. O pedido de alteração do sobrenome pode ser feito logo após o início da constituição do novo núcleo familiar, desde que obedecidos os demais pressupostos exigidos em lei. A mudança pode ser feita por meio da substituição de um sobrenome por outro ou por meio de acréscimo, quando a pessoa excepcionalmente passa a ter um sobrenome composto, como, por exemplo, Fritz-Meier, onde o primeiro patronímico corresponde ao do pai biológico e o segundo ao do cônjuge da mãe. Mas para a alteração não basta a simples vontade do casal. A lei elenca vários pressupostos, os quais vêm sendo interpretados cautelosamente pela jurisprudência devido ao caráter jusfundamental do nome (direito da personalidade) e em consideração ao direito de guarda do outro genitor, caso ele o possua. De acordo com o § 1.618 BGB, para a alteração do patronímico é necessário que a criança seja menor e solteira; que resida na nova família e que a medida corresponda ao melhor interesse da criança. Se ela tiver cinco anos completos, é imprescindível que seja ouvida e sua concordância será tomada perante o registrador juntamente com as declarações individuais do ascendente biológico e seu novo parceiro. Se a criança está sob guarda compartilhada, é necessário o consentimento do outro ascendente, desde que a criança possua seu sobrenome. A intenção da lei é evidentemente proteger o vínculo de filiação e, em última instância, o direito de guarda do genitor que não mora com o filho. Importante salientar que essa redesignação - chamada Einbenennung - só tem como efeito jurídico a alteração do nome, não criando vínculo de parentalidade, nem dever de prestar alimentos. A norma prevê ainda a possibilidade do juiz da vara de família suprir o consentimento do genitor. A jurisprudência do Bundesgerichtshof (BGH) tem sido muito cautelosa e só lançado mão da permissão legal em casos excepcionais nos quais resta evidente a necessidade da alteração do sobrenome. Isso ocorre, por exemplo, quando existam situações concretas que coloquem em perigo o bem-estar da criança e a alteração do nome seja imprescindível para evitar-lhe danos. É imprescindível que a medida atenda ao melhor interesse da criança. Segundo o BGH, nesses casos é necessária uma ampla e adequada ponderação dos interesses em jogo, ou seja, da criança e dos pais, os quais possuem, em princípio, igual status, diz o BGH3. Dessa forma, E o interesse em integrar a criança na família recomposta deve ser considerado tanto quanto o interesse na continuidade do uso do sobrenome, cujo significado ultrapassa a compreensão da própria criança e não pode ser avaliado apenas sob a perspectiva de sua atual situação familiar4, que - diga-se de passagem - pode se alterar no futuro. Além disso, os juízes da Corte de Karlsruhe entendem que, em regra, a manutenção do sobrenome do genitor é um sinal externo da preservação da relação filial, a qual é importante para o bem-estar do filho, principalmente quando o contato entre ambos está enfraquecido ou ameaçado, pois a mudança de nome pode aparentar externamente o rompimento definitivo dos laços familiares5. A decisão divergente do OLG Frankfurt O Tribunal de Frankfurt, contudo, abriu divergência da Corte superior por considerar sua visão "exagerada" e carente de amparo na letra da lei, que fala apenas no bem-estar do menor. Citando doutrina e decisões divergentes de outras cortes inferiores, o Oberlandesgericht afirmou estar convencido de ser desnecessária a comprovação de uma ameaça ao bem-estar da criança para que o juiz possa suprir a vontade do ascendente e autorizar a mudança de sobrenome. É suficiente que essa medida se mostre necessária, pois o legislador distinguiu bem entre necessidade e risco de lesão, disse o OLG Frankfurt. No caso concreto, o Tribunal entendeu que a medida é necessária ao bem-estar da criança, como concluiu o laudo psicossocial acostado aos autos, pois a criança estava extremamente sobrecarregada emocionalmente com a diferença de nomes familiares, especialmente em relação à meia-irmã mais nova. Não se tratava, portanto, de simples desconforto. Como o sobrenome de uma criança é um importante componente de sua personalidade, deve o juiz levar em consideração ainda a vontade do menor, embora o desejo de uma criança de onze anos não seja o fator decisivo para o magistrado suprir a concordância do ascendente biológico em alterar o nome familiar, disse o Tribunal. A Corte ressaltou, porém, que a mudança de patronímico em nada afeta o direito de convivência do pai com a filha, o qual é importante para o desenvolvimento dela, cabendo a ele a decisão de estabelecer o vínculo afetivo quando se sentir preparado. E é dever da mãe apoiar e estimular esse contato, disse o OLG Frankfurt. A situação no Brasil No Brasil, o Código Civil não regula a matéria, como o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). Mas a lei 11.924, de 17.04.2009, conhecida como "Lei Clodovil", de autoria do falecido Deputado Clodovil Hernandes, trata do assunto. Ela introduziu o § 8o ao art. 57 da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973) com a seguinte redação: "O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2o e 7o deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família". O fim da norma é o mesmo: garantir uma maior integração da criança na família recomposta e amenizar constrangimentos. Ela difere da norma alemã, contudo, por duas razões básicas: primeira, só prevê a hipótese de acréscimo do sobrenome do padrasto/madrasta, sem a exclusão do patronímico do genitor; segundo, não requer, por isso, o consentimento do ascendente biológico. De qualquer forma, apesar da previsão legal, parece, salvo melhor juízo, que a regra não tem aplicação prática desapegada do reconhecimento do vínculo socioafetivo, funcionando como uma espécie de estágio anterior à admissão da parentalidade. O Conselho Nacional de Justiça, fazendo as vezes de legislador, também regulou a mudança de nome, mas apenas em caso de reconhecimento da parentalidade, que não era, como dito, objeto de discussão no caso alemão. O Provimento nº 63, de 14/11/2017, do CNJ estabelece regras para o registro extrajudicial da paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade a ser realizado perante o oficial de registro civil das pessoas naturais. Apenas as crianças maiores de 12 anos deveriam expressar seu consentimento, ao passo que os abaixo dessa idade poderiam ter seu sobrenome alterado independente de sua vontade. O Provimento exigia o consentimento pessoal do pai e mãe biológicos, vedando o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo "filiação" no registro de nascimento. Essa normativa foi modificada pelo Provimento nº 83, de 14/8/2019, que introduziu mudanças materiais e procedimentais no reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva. Segundo o Provimento nº 83/2019, somente crianças acima de 12 anos poderão ser registradas por pai/mãe socioafetivo pela via extrajudicial, restando aos menores dessa idade apenas a via judicial. Em todo o procedimento é necessária a intervenção do Ministério Público, o que não ocorria anteriormente. Atendidos os requisitos necessários, inclusive a prova do vínculo afetivo, o registrador, em vez de deferir o pedido, encaminhará o expediente ao Ministério Público para parecer e, se favorável, fará o registro da filiação socioafetiva, com a respectiva alteração do nome. Na hipótese de parecer desfavorável, o registrador arquivará o expediente e comunicará ao requerente, só sendo encaminhado ao juiz em caso de dúvida. O Provimento também exige consentimento dos genitores biológicos, mas não prevê, como o § 1618 do BGB, a possibilidade do juiz suprir esse consentimento, de forma que cabe ao Judiciário decidir casuisticamente a questão. Considerando a corrente amplamente aceita, capitaneada pelo STF no Recurso Extraordinário 898.060, julgado em 21.09.2016, segundo a qual podem coexistir as paternidades socioafetiva e biológica, entre as quais inclusive inexiste hierarquia, não é de surpreender que a vontade contrária do genitor tenha menor - ou nenhum - peso diante da situação fática da parentalidade, até porque a multiparentalidade é admitida mesmo contra a vontade do pai biológico. A justiça gaúcha já decidiu que o pai biológico não pode impedir o acréscimo do sobrenome do padrasto ao da enteada, até porque não há prejuízo na relação biológica anterior, e seu patronímico foi preservado. Trata-se do AI 70058578360, julgado em 10/4/2014 pela 8a. Câmara Cível do TJ/RS, sob relatoria do Des. Rui Portanova. Mas fica a dúvida se seria possível a substituição do sobrenome do ascendente sem o seu consentimento e sem o concomitante reconhecimento da parentalidade socioafetiva, como no caso alemão. __________ 1 Agradeço às amigas Ana Carolina Brochado e Ana Luiza Nevares, grandes expoentes do Direito de Família e Sucessões, pelas pertinentes considerações feitas. 2 Cf. a Exposição de Motivos BT-Drucks. 13/4899, p. 92. Na doutrina, dentre outros: KEMPER, Reiner. In: Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. Reiner Schulze (coord.). 8 ed. Baden-Baden: Nomos, 2014, § 1618, Rn. 1, p. 1955. 3 BGH XII ZB 153/03, julgado em 10.03.2005, p. 6. 4 Nesse sentido: BGH BGH XII ZB 153/03, julgado em 10.03.2005 e OLG Frankfurt a. M. 1 UF 140/19, p. 3. 5 BGH XII ZB 153/03, julgado em 10.03.2005, p. 7.
Não existe nada mais cômodo do que inserir e salvar seus dados pessoais apenas uma vez em um site de compras, pois a partir daí o internauta fica livre da chatice de ter que digitar tudo novamente nas futuras compras. Isso é feito graças à existência de arquivos que armazenam dados do visitante nos sites, chamados de "cookies". Os cookies são arquivos de textos de internet, enviados pelo site ao navegador, que armazenam (aparentemente) temporariamente os dados do internauta quando ele está na rede. Parece não haver limites acerca de quais informações podem ser captadas e armazenadas nos cookies. De fato, eles podem registrar endereço de e-mail, nome, localização do usuário, mas também logins e senhas, as preferências de pesquisa no Google ou outro site de busca, as páginas que você visitou enquanto navegava, os produtos ou serviços pelos quais se interessou, se adquiriu algum deles, etc. E é aqui que mora o perigo, pois ele capta inúmeros dados dos usuários, inclusive dados pessoais. Por conta disso, o Tribunal de Justiça Europeu (TJE), no final de 2019, decidiu que o internauta precisa ser alertado de que seus dados serão coletados por meio de cookies e que ele concorda ativamente, marcando o quadradinho autorizativo do uso dos cookies, para que a coleta e processamento dos dados seja feita validamente. Dito em outras palavras: o site não pode fornecer o consentimento já marcado, de forma que o usuário, para desautorizar o uso dos cookies, precise desmarcar a autorização pré-agendada. Era o que acontecia no site da Planet49, um site de jogos online na Alemanha. Para o internauta participar do jogo, ele tinha que informar o nome e endereço completo, incluindo o CEP. Mas não só. Abaixo desses campos, em destaque, haviam duas caixas de informações. A primeira, autorizava que os "patrocinadores e parceiros de cooperação" da Planet49 enviassem, por meio físico ou digital, ofertas de seus produtos e serviços. Para isso, o internauta tinha que marcar o quadradinho com um "check", manifestando sua concordância. A segunda, contudo, já vinha pré-validada e autorizava o organizador do jogo a instalar cookies, depois da inscrição no jogo, a fim de realizar uma avaliação dos hábitos de navegação do usuário para possibilitar uma publicidade orientada a seus interesses. Para evitar o uso dos cookies, o usuário precisava desmarcar a autorização. A participação no jogo só era possível se, pelo menos, a primeira autorização fosse consentida, isto é, se o internauta autorizasse o envio de publicidade pelos patrocinadores e parceiros da Planet49. Por conta disso, a Associação Nacional de Defesa dos Consumidores moveu ação contra a Planet49 GmbH alegando que a concordância para coleta, armazenamento e processamento de dados estava sendo feita de forma irregular, pois não cumpria os requisitos exigidos pelo § 307, inc. 1 e 2 do BGB, § 12 da Lei de Telecomunicações Eletrônicas e § 7, inc. 2 da Lei Antitruste. O processo na Alemanha Em primeira instância, o juízo da Comarca de Frankfurt am Main julgou parcialmente procedente o pedido. O Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht Frankfurt a.M.) julgou improcedente o pedido por entender que era suficiente a possibilidade do usuário desmarcar a autorização para uso dos cookies, até porque o site dava informações clara e suficientes a respeito de sua utilização. O caso subiu para a corte infraconstitucional - Bundesgerichtshof (BGH) - por meio do recurso de Revision. Como o Tribunal achou que o desfecho do processo dependia da interpretação do art. 5, n. 3 e art. 2, alínea f, da diretiva 2002/58, bem como do art. 2, alínea h, da Diretiva 95/46 e do art. 6, n. 1, alínea a, do regulamento 2016/670, submeteu um questionamento ao TJE. Em síntese, o BGH queria saber se: (1) a coleta, armazenamento e processamento de informações recolhidas pelos cookies seria validamente autorizada pelo usuário quando sua concordância viesse pré-validada no site, devendo o mesmo desmarcá-la para negar o consentimento; (2) se o prestador de serviços deveria informar a duração do funcionamento dos cookies e que terceiros a eles teriam acesso. A decisão do TJE Trata-se do processo TJE C-673/17, julgado em 1º/10/19. Inicialmente, o Tribunal considerou que a coleta de nome e endereço completo por meio de cookies já traduz um tratamento de dados pessoais. De acordo com o art. 5, n. 3 da diretiva 2002/58, o armazenamento de informações ou a possibilidade de acesso a informações já armazenadas no equipamento terminal de um usuário só é permitido se esse tiver dado seu consentimento prévio, com base em informações claras e completas, principalmente sobre os objetivos do processamento. Uma interpretação literal da expressão "dar consentimento" implica, segundo o TJE, necessariamente em uma ação do usuário apta a exprimir seu consentimento. Isso decorre da interpretação sistemática do art. 17 da diretiva 2002/58 c/c art. 2, alínea h, da Diretiva 95/46, que define consentimento como "qualquer manifestação de vontade, livre, específica e informada, pela qual a pessoa em causa aceita que dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objeto de tratamento"1. Nesse sentido, a Corte foi expressa em afirmar que "a exigência de uma 'manifestação` de vontade da pessoa em causa aponta claramente para um comportamento ativo, e não passivo. Ora, um consentimento dado através de uma opção pré-validada não implica um comportamento ativo por parte do utilizador de um sítio Internet."2. Essa interpretação é corroborada pelo art. 7, alínea a, da diretiva 95/46, que exige que o consentimento do internauta seja dado de "forma inequívoca" e, para o TJE, apenas um comportamento ativo, de assinalar conscientemente a autorização de coleta e processamento de dados, pode ser visto como feito de modo inequívoco. Do contrário, seria impossível verificar objetivamente, na prática, se um usuário deu seu consentimento para o tratamento de seus dados pessoais, exceto se ele desmarcou a opção pré-validada, quando então comprovadamente o recusou. Impossível, ainda, determinar se esse consentimento foi dado de modo informado, pois o usuário pode não ter lido a informação que acompanha a opção pré-validada ou sequer ter percebido essa opção, antes de prosseguir sua atividade no site. Dessa forma, concluiu a Corte, o fato do usuário ativar o botão de participação no jogo organizado pela Planet49 é insuficiente para afirmar que ele deu validamente seu consentimento para a colocação de cookies. É necessário, ao contrário, "uma manifestação de vontade 'livre, específica, informada e explícita` do titular dos dados, sob a forma de uma declaração ou de um 'ato positivo inequívoco`, que constitui a sua aceitação do tratamento dos dados pessoais que lhe dizem respeito."3. O TJE salientou, ainda, que todas as informações coletadas e armazenadas requerem concordância inequívoca do usuário, mesmo as que não digam respeito a dados pessoais, nos termos do art. 5, n. 3 da diretiva 2002/58, pois o fim da norma é proteger os usuários de qualquer intromissão em sua esfera privada, independentemente dessa intromissão dizer respeito - ou não - a dados pessoais. Para a Corte, todas as informações armazenadas no equipamento terminal dos usuários de internet - independente de se tratar ou não de dados pessoais - constituem parte integrante da esfera privada do usuário e devem ser protegidas. Em resposta ao segundo questionamento feito pelo BGH, o TJE afirmou que é necessário que o site, organizador do jogo, informe ao usuário a duração do funcionamento dos cookies, bem como a possibilidade ou não de terceiros terem acesso a esses cookies para que cumpra o dever de fornecer previamente informações claras e completas, imposta pelo art. 5, n. 3 da diretiva 2002/58. Aliás, o art. do art. 10 da diretiva 95/46 enumera algumas informações que o responsável pelo tratamento dos dados deve prestar ao titular dos dados coletados, como a identidade do responsável pelo tratamento, as finalidades do tratamento a que os dados se destinam, os destinatários ou categorias de destinatários dos dados, etc. Essa enumeração não é, contudo, exaustiva, mas meramente exemplificativa, disse o TJE, acrescentando que, embora a duração do tratamento dos dados não conste do rol de informações, é evidente que ela tem que ser comunicada. Do contrário, estar-se-ia autorizando um funcionamento longo ou mesmo ilimitado dos cookies, o que, por sua vez, implicaria na coleta de numerosas informações sobre os hábitos de navegação dos usuários. Dessa forma, o Tribunal concluiu afirmando que o prestador de serviços é obrigado a informar ao usuário, dentre outras coisas, que irá utilizar os cookies, prazo de duração ou, não sendo possível, os critérios para se definir esse prazo, bem como quais terceiros terão acesso aos dados coletados. A relevância da decisão A decisão da Corte Europeia tem grande importância, pois põe freio à coleta indiscriminada de dados dos usuários ne internet. Esses autorizam muitas vezes a coleta de dados para acessar o conteúdo de uma página, ler uma notícia, adquirir um produto ou participar de jogos online. Nesse sentido, ela vai munir os Estados-Membros e as agências reguladoras de base jurídica para exigir dos prestadores de serviços a observância - e punir a inobservância - das normas de proteção de dados. A Corte, contudo, não enfrentou a questão importantíssima de saber até que ponto pode-se falar em consentimento livre e informado se o usuário precisa concordar com a coleta de dados, feita por meio de cookies, para acessar o conteúdo de uma página. De qualquer forma, o problema da tutela contra a coleta indiscriminada de dados precisa entrar na pauta do Judiciário brasileiro, pois esse controle ainda é incipiente por aqui. ___________ 1 Nesse sentido, a decisão TJE C-673/17, p. 12. 2 TJE C-673/17, p. 12. 3 TJE C-673/17, p. 13.
terça-feira, 14 de janeiro de 2020

TJE proíbe a venda de e-books usados

A venda de livros usados continua um mercado estável, apesar da era digital - pelo menos na Europa, onde se lê em média mais que no Brasil. Mas é também possível a venda second hand de livros eletrônicos? Segundo o Tribunal de Justiça Europeu, não. Salvo autorização do titular dos direitos autorais. Foi o que decidiu recentemente a Corte, em julgado de 19/12/19, referente ao processo C-263/18. O caso Na origem, o processo foi movido pela associação dos editores holandeses (Nederlands Uitgeversverbond - NUV) e Groep Algemene Uitgevers (GAU) contra a holding Tom Kabinet, uma sociedade editora de livros impressos e digitais, que gerencia um mercado virtual de livros eletrônicos "usados". A NUV e GAU entraram com ação na Comarca de Amsterdam, com pedido de tutela provisória, contra o serviço oferecido pela Tom Kabinet, alegando violação à lei de direito autoral, pois essa geria um "clube de leitura" (Tom Leesclub) que oferecia a seus membros, mediante pagamento, e-books de segunda mão, os quais eram adquiridos pela Tom Kabinet ou doados, a título gratuito, pelos membros do clube. Para realizar a doação, os membros forneciam o link para download do livro e declaravam não conservar uma cópia da obra. A Tom Kabinet, então, baixava o livro e colocava seu selo digital, atestando tratar-se de exemplar adquirido legalmente. Quem cedesse gratuitamente um e-book, ganhava um desconto de 0,99 euro na mensalidade. No início, os e-books podiam ser adquiridos pelo preço de 1,75 euros, mas o associado precisava pagar uma taxa mensal de 3,99 euros pela associação. Depois, a política do clube mudou: acabou com a taxa de associação, mas o preço por livro subiu para 2 euros. Na ação, as autoras pediam que a Tom Kabinet fosse proibida de colocar à disposição do público ou de reproduzir os livros eletrônicos, pois isso violava os direitos autorais dos editores, cedidos a elas via licença. O tribunal de primeira instância de Haia (Rechtbank Den Haag) decidiu suspender o processo e submeter questionamento ao TJE para esclarecer se a venda em segunda mão de e-books configuraria "ato de distribuição", nos termos do art. 4, nº 1 da Diretiva 2001/29 ou se estaria abrangido no conceito de "comunicação ao público", do art. 3, nº 1. da mesma diretiva. Isso era relevante, por sua vez, para saber se esse fornecimento estaria sujeito à chamada "regra do esgotamento" do direito de distribuição, prevista no art. 4, nº 2 da diretiva. Segundo o art. 4, nº 1, os autores possuem o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer forma de distribuição ao público do original de suas obras ou das respectivas cópias, esgotando-se esse direito, nos termos do art. 4, nº 2, no momento da primeira venda ou de qualquer forma de primeira transferência de propriedade na União Europeia, feita pelo titular do direito ou com seu consentimento. Isso não ocorre, contudo, quando se trata de uma comunicação ao público. A decisão do Tribunal de Justiça Europeu Em uma decisão altamente técnica, o TJE deu razão aos editores de livros eletrônicos, que precisam dar autorização para a venda de e-books usados. De início, para solucionar o caso, a Corte sublinhou ser necessário recorrer a diversos métodos hermenêuticos (histórico, lógico-sistemático e teleológico), pois uma interpretação literal dos dispositivos da Diretiva 2001/29 não permitia, de plano, solucionar a questão. Com efeito, a simples leitura dos dispositivos em jogo não permitia concluir se a transferência (download) de um livro eletrônico, para utilização permanente, constitui uma "comunicação ao público", mais precisamente uma colocação à disposição do público de uma obra de modo a torná-la acessível a qualquer pessoa no local e momento por ela escolhido ou se, ao contrário, configuraria um "ato de distribuição", sujeito, então, à regra do esgotamento. Esses são conceitos diferentes no âmbito do direito autoral da União Europeia. Era necessário ler os art. 3, nº 1 e 4, nº 1 da Diretiva 2001/29 conjuntamente, isto é, em interpretação sistemática com as normas do Tratado sobre Direito de Autor (TDA), da Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Segundo o art. 6, nº 1 do TDA, o direito de distribuição é definido como o direito exclusivo dos autores de autorizar a colocação, à disposição do público, do original e de cópias das suas obras, por meio de venda ou outra forma de transferência de propriedade. Para o Tribunal, resulta dos próprios termos dos arts 6 e 7 do TDA que as expressões "cópias" e "original e cópias" se referem exclusivamente a cópias materiais, isto é, objetos materiais postos em circulação, pelo que o art. 6, nº 1 não abrange a distribuição de obras imateriais, como livros eletrônicos. Em razão disso, a transmissão interativa "a pedido", ou seja, o download a pedido do usuário constitui, na visão do Tribunal, uma nova forma de exploração da propriedade intelectual que deve ser abrangida pelo direito do autor de controlar a comunicação ao público, vez que o direito de distribuição não abrangeria tal transmissão, vez que só abarca a distribuição de cópias materiais. Esse entendimento é corroborado, segundo a Corte Europeia, pela exposição de motivos, que serviu de base para a elaboração da Diretiva 2001/29. E aqui, o TJE lançou mão da pela interpretação histórica para fundamentar a decisão. Lá resta claro que a intenção do legislador comunitário era fazer com que qualquer comunicação ao público de uma obra, diferente da distribuição de cópias materiais da mesma, fosse abrangida pelo conceito de "comunicação ao público" e não pelo conceito de "distribuição ao público". Isso se harmoniza com o objetivo ou finalidade da Diretiva 2001/29 (interpretação teleológica), que é estimular o desenvolvimento da sociedade da informação e atualizar a regulamentação dos direitos autorais, adaptando-o às novas formas de exploração de obras. Com efeito, resulta dos considerandos 4, 9 e 10 da referida Diretiva que ela tem por objetivo principal instaurar um elevado nível de proteção dos autores, permitindo-lhes receber uma remuneração adequada pela utilização das suas obras, nomeadamente quando são comunicadas ao público. A fim de alcançar este objetivo, diz o TJE, o conceito de "comunicação ao público" deve ser entendido em sentido lato, nos termos do considerando 23 da Diretiva 2001/29, abrangendo todas as comunicações a público não presente no local de onde provêm as comunicações e, assim, qualquer transmissão ou retransmissão de uma obra ao público, por fio ou sem fio, incluindo a radiodifusão. Do considerando 25 da Diretiva 2001/29, por sua vez, resulta que as transmissões interativas a pedido (download) se caracterizam pelo fato de qualquer pessoa poder ter acesso a partir do local - e momento - por ela escolhido. Por isso, o Tribunal Europeu afirmou que "essa equiparação das cópias materiais e imateriais de obras protegidas para efeitos das disposições pertinentes da Diretiva 2001/29 não foi, em contrapartida, desejada pelo legislador da União quando adotou esta diretiva. Com efeito, como recordado no n.° 42 do presente acórdão, resulta dos trabalhos preparatórios da mesma que se pretendeu estabelecer uma distinção clara entre a distribuição eletrónica e a distribuição material de conteúdos protegidos."1. E isso, por uma simples razão: o fornecimento de um livro impresso e de um livro digital não se equiparam do ponto de vista econômico e funcional. Enquanto um livro impresso se deteriora com o uso e sua revenda, em segunda mão, equivale a um produto efetivamente usado, o livro digital não sofre qualquer alteração com o uso e, quando revendido, trata-se de uma cópia perfeita da obra nova. Nesse sentido, precisa a colocação da Corte ao afirmar que "não se pode considerar que o fornecimento de um livro num suporte material e o fornecimento de um livro eletrónico sejam equivalentes do ponto de vista económico e funcional. Com efeito, como salientou o advogado-geral no n.° 89 das suas conclusões, as cópias digitais desmaterializadas, contrariamente aos livros num suporte material, não se deterioram com a utilização, de modo que as cópias em segunda mão são substitutos perfeitos das cópias novas."2. Além disso, acrescentou o Tribunal, as trocas dessas cópias não requerem esforço nem custos adicionais, de modo que a existência de um mercado paralelo de segunda mão é suscetível de afetar o interesse dos titulares (de receber uma remuneração adequada por suas obras) de forma muito mais significativa do que um mercado em segunda mão de objetos materiais. Dessa forma, o TJE considerou que, uma vez que a Tom Kabinet coloca as obras à disposição de qualquer pessoa que se inscreva no site do clube de leitura, podendo essa pessoa ter acesso a elas a partir do local e no momento escolhido, o fornecimento desse serviço deve ser considerado como a "comunicação de uma obra" (art. 3.°, n° 1, da Diretiva 2001/29), sendo irrelevante que o associado faça ou não o download do livro. Diante disso, o Tribunal de Justiça Europeu concluiu que o fornecimento ao público por transferência (download), para utilização permanente, de um e-book está abrangido pelo conceito de "comunicação ao público", mais especificamente pelo conceito de "colocação à disposição do público" (das obras dos autores) por forma a torná-las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido, nos termos do art. 3.°, n° 1, da Diretiva 2001/29. As repercussões sociais Embora juridicamente bem fundamentada a decisão da Corte Europeia, houve reação por parte dos leitores em toda a Europa e fica claro que eles acreditam - ou esperam - que novos modelos de negócios surjam para facilitar o acesso aos e-books usados, até porque o valor de um e-book quase se equipara ao preço de um livro impresso. O jeito é aguardar para ver como o mercado irá se desenvolver nessa área. ____________ 1 Processo C-263/18, p. 13.   2 Processo C-263/18, p. 14.  
A coluna German Report inicia o novo ano - e a nova década de 2020 - comentando uma das mais importantes decisões da Cour Européenne des Droits de L'Homme, proferidas em 2019. Ela foi comentada na época no canal do Instagram (@karinanfritz15), mas, pela relevância e atualidade, merece ser abordada nessa coluna. Trata-se do caso Pastörs v. Germany, Application n. 55225/14, julgado pela 5a Sessão da Corte, em 3/10/2019. No caso, a Corte de Strasbourg decidiu que negar o holocausto não está abrangido pela liberdade de expressão. Dessa forma, o Tribunal rejeitou queixa movida por Udo Pastörs, ex-chefe do partido ultranacionalista de direita NPD (Partido Nacional Democrata), suposto difusor de ideias neonazistas. Em 28 de janeiro de 2010, o político fez em um pronunciamento no Parlamento Estadual (Landstag) de Mecklenburg-Vorpommern no qual criticou o evento realizado na Casa em memória do holocausto, comemorado anualmente dia 27 de janeiro. Ele e os demais membros do partido não compareceram ao evento como forma de protesto. O "chamado holocausto", disse ele, estaria sendo utilizado para fins políticos e comerciais, inclusive pelos partidos burgueses. Segundo Pastörs, desde o final da 2a Guerra Mundial, os alemães vêm sendo expostos a uma série interminável de críticas e mentiras propagandísticas, cultivadas de maneira desonesta, principalmente por representantes dos chamados partidos democráticos. Para o político, o evento ocorrido na Casa Legislativa nada mais era do que "projeções de Auschwitz", tendo o termo sido empregado como sinônimo de "mentira de Auschwitz", outra expressão frequentemente utilizada por ele. Pastörs afirmou que o evento em memória às vítimas do holocausto seria um "teatro de consternação" de uma "cultura de culpa". Em 2012, o Tribunal da Comarca de Schwerin condenou Pastörs a oito meses de prisão e a multa de 6 mil euros por calúnia e difamação da memória dos milhares de falecidos na tragédia. A sentença foi confirmada pelo Tribunal Estadual de Rostock, que afirmou que Pastörs teria negado o holocausto em sua fala. Ele recorreu ao Tribunal Constitucional em Karlsruhe, o Bundesverfassungsgericht, alegando imunidade parlamentar e violação à liberdade de expressão. Mas a Corte julgou improcedente a queixa constitucional, em 2014, sob o argumento de que a negação do holocausto não estaria abrangida pelo conteúdo do direito fundamental à liberdade de expressão (Meinungsfreiheit). Ao contrário, da forma como feita, a fala de Pastörs caracterizava uma "negação qualificada do holocausto" (qualifizierte Auschwitzleugnung), enquadrável no § 187 do Código Penal, tendo por vítimas os milhares de judeus perseguidos e mortos durante a tirania nazista. O massacre sistemático em massa dos judeus, cometido nos campos de concentração durante a 2a Guerra Mundial, é um fato histórico comprovado, afirmou a Corte Constitucional, de forma que a liberdade de expressão parlamentar não lhe dá o direito de negar a historia e falar absurdos, denegrindo a memória das pessoas mortas em Auschwitz. Diante da condenação, o político recorreu ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos alegando que as cortes alemãs selecionaram indevidamente um pequeno trecho de seu discurso e o interpretaram mal, e que, por isso, a decisão violava sua liberdade de expressão, prevista no art. 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Mas a Corte de Strassburg entendeu que a condenação de Pastörs, na Alemanha, por suas declarações sobre o holocausto não viola seu direito à liberdade de expressão, protegido pelo citado dispositivo. Ao contrário: afronta valores da própria Convenção, pois sua fala só pode ser objetivamente entendida como uma "negação do massacre racista sistêmico dos judeus", ocorrido durante o regime nazista na Alemanha. Sua condenação criminal foi uma interferência proporcional ao "objetivo legítimo perseguido" e, portanto, "necessária em uma sociedade democrática". A Corte acentuou que, em princípio, as manifestações parlamentares são dignas de proteção e necessárias em uma sociedade democrática, razão pela qual os Estados só têm uma margem muito limitada para regular o conteúdo do discurso parlamentar. Carecem, contudo, de proteção aquelas manifestações que - como a de Pastörs - contrariam os valores democráticos da Convenção. A decisão da Corte de Strassburg, na esteira do entendimento do Tribunal Constitucional Alemão, representa uma importante delimitação do conteúdo do direito fundamental à liberdade de expressão, que não pode servir de escudo para afastar condenações, penais ou civis, de qualquer pessoa que dele abuse a fim de atentar contra os valores fundamentais da ordem constitucional, como democracia, liberdade, igualdade e dignidade humana. Excelente precedente a ser seguido no resto do mundo, inclusive por aqui.
terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Animais no local de trabalho

Animais não são coisas - já enuncia há várias décadas o § 90a BGB, inserido em 1990 na codificação alemã em decorrência da lei para o melhoramento da posição jurídica dos animais no Direito Civil. A norma não é letra morta, embora os animais sejam regidos pelo direito dos bens. A sociedade alemã tem uma postura positiva de respeito e proteção dos animais, embora seus defensores reclamem um nível de proteção mais elevado. Na Alemanha, é comum ver principalmente cães em cafés, restaurantes, transportes públicos e até em locais de trabalho. Há, evidentemente, normas que proíbem a presença de animais em determinados locais como hospitais, cozinhas e laboratórios. A razão é evidente: considerações de ordem sanitária, higiênica e de segurança afastam a presença de animais de estimação nesses locais. Mas não há normas gerais na legislação regulando a presença de animais em locais de trabalho ou uma regra expressa que preveja a possibilidade (ou não) do empregado levar o amigo de estimação ao trabalho. Nada obstante, não é incomum encontrar um peludo de quatro patas em escritórios e repartições públicas. Pessoalmente, tive a divertida experiência de conhecer um pequeno "estagiário" no Tribunal Constitucional alemão, em 2016, durante estágio de pesquisa na Corte, realizado no doutoramento. Tratava-se de um cachorrinho maltês, "filho" de um funcionário do Tribunal, que andava tranquilamente pelos corredores próximos à sala do pai e o acompanhava com frequência à cafeteria, onde era por todos mimado. Mas nem sempre reina paz no ambiente de trabalho quando algum colega traz seu peludo de casa. Em um caso oriundo do Tribunal de Munique, os sócios de um escritório começaram a se desentenderem por causa do cão que a sócia levava todos os dias para o trabalho, apesar dos protestos do sócio. Ele, então, moveu ação cautelar com pedido liminar alegando não ter concordado com a presença do animal no escritório. Ele já teria tido experiências ruins anteriores e não gostava de cachorros, principalmente do cheiro. Segundo o autor, o cachorro gostava de usar sua cadeira, latia com frequência e acabava atrapalhando o clima do escritório. O Amtsgericht (AG) München negou o pedido por razões processuais: não havia urgência na medida, pois não restou demonstrado nos autos que o animal era agressivo ou que os colegas de trabalho precisavam temer ataques do cachorro. Mas o Tribunal do Trabalho de Düsseldorf (Landesarbeitsgericht - LAG) encarou a questão de fundo em caso semelhante, decidindo que cabe ao empregador autorizar (ou não) a presença de animais no local de trabalho. Fundamento para tanto é seu poder de direção e instrução, previsto no § 106 da Gewerbeordung, que regulamenta as atividades profissionais. Segundo o dispositivo, cabe ao empregador regular, em detalhes, a atividade laboral, determinando o local, horário e o conteúdo da atividade, bem como o funcionamento da empresa em geral. Essa competência inclui, obviamente, o poder de fixar regras sobre a presença de animais de estimação no local de trabalho. Cabe a ele decidir se - e sob quais pressupostos - um funcionário pode levar um cachorro, um gato ou peixes no aquário para o trabalho. Ele pode condicionar, por exemplo, à raça, tamanho, ao bom comportamento (boas maneiras) do animal, à realização das necessidades fisiológicas em área externa ou ao uso de focinheira ou coleiras. Da mesma forma, pode ao empregador revogar a autorização consentida sempre que o animal perturbe o local de trabalho. Isso acontece quando ele desperta medo ou receio nos colegas e/ou clientes, quando o animal é barulhento ou exala odor desagradável ou ainda quando os cuidados com o animal roubem tempo de trabalho do dono. E esse poder lhe permite vedar casos individuais, ainda quando outros colegas tenham autorização para tanto. Mas o poder de direção não pode configurar um tratamento desigual inadmissível, sendo necessário um motivo justo para o tratamento diferenciado, disse o LAG Düsseldorf. Em regra, é necessário que o animal em questão - diferentemente dos demais - perturbe o funcionamento do local de trabalho para que o tratamento discriminatório se justifique. Trata-se do processo LAG Düsseldorf, Az. 9 As 1207/13, julgado em 24/3/2014. Segundo o Tribunal, é irrelevante, contudo, se o cão é de fato perigoso. É suficiente que o empregador subjetivamente tenha receios em relação ao animal. No caso concreto tratava-se de uma agência de publicidade, onde normalmente há intensa comunicação e muito movimento no local. Por isso, os demais funcionários tinham receios em relação ao cachorro de um dos funcionários. Nesse caso, surge para o empregador deveres especiais de cuidado (besondere Fürsorgepflichte) para com os empregados, sendo justificável a proibição da presença do cão na agência. Por isso, a ação do empregado, a fim de continuar levando o cachorro para o escritório, foi julgada improcedente. Mas os estudos mostram que a presença de um animal de estimação tem efeito positivo não apenas sobre o dono do animal, como ainda sobre o clima de trabalho na empresa, elevando o contentamento e a motivação dos funcionários1. Por isso, várias empresas já permitem que seus funcionários levem animais ao trabalho. No Brasil, já há empresas e espaços pet friedly. Mas, evidentemente, a última palavra cabe ao empregador, responsável por preservar a segurança e a harmonia no trabalho. Thor Larenz, mascote do German Report, seria vetado devido às travessuras. __________ 1 Confira-se a pesquisa realizada por Randolph T. Baker, da Virginia Commonwealth University, em 2012. Bürohund gefällig? Die Gesetzlage zu Tieren am Arbeitsplatz. Acesso: 23/11/2019.
terça-feira, 26 de novembro de 2019

Briga de vizinhos

Há pouco tempo o site do Globo noticiou que uma moradora, mãe de dois gêmeos pequenos, recebeu uma advertência do condomínio em decorrência da infração de "choros e gritos de criança antes das 7h da manha". Segundo ela contou aos jornais, os filhos estavam doentes, com pneumonia, otite, bronquite e tosse, o que já deixa qualquer criança irritada e chorosa naturalmente, principalmente os pequenos. Os vizinhos do prédio, contudo, se irritaram com a situação e fizeram reclamações no condomínio, que acabou notificando a moradora pela "infração". Conviver em sociedade não é fácil. E briga entre vizinhos é um problema no mundo inteiro. Já foi noticiado aqui o caso do proprietário na Alemanha que direcionou, por provocação, as câmeras de segurança para o imóvel do vizinho, razão pela qual fora condenado a retirar os apetrechos. Uma hora, um reclama das árvores que, embora posicionadas dentro do limite permitido, espalham folhas e pólens pelo terreno alheio. Outra hora alguém se queixa do barulho da televisão, do treino musical, das crianças e até do barulho dos sinos das vacas. Os casos vão parar impreterivelmente no Judiciário. E aqui a palavra de ordem tem sido tolerância e razoabilidade. O caso das crianças Na cidade de Trier, o dono de uma taberna de vinho reclamou do barulho das crianças no parquinho localizado próximo a seu estabelecimento comercial. O parquinho destinava-se a crianças de até 12 anos e funcionava de 8h às 13h e de 14h às 20h. Segundo ele, desde a construção do parquinho, seus clientes estavam reclamando do barulho e a clientela estava diminuindo. Ele mandou medir o ruído e constatou que estava acima do permitido pela legislação. Por isso, pleiteou judicialmente a instalação do parque em outro local. O Tribunal Administrativo de Trier julgou a ação improcedente. Trata-se do processo Verwaltungsgericht (VG) Trier 5 K 1542/14.TR, julgado em 28.1.2015. Segundo a Lei de Proteção contra Imissões (Bundesimmissionsschutzgesetz - BImSchG), que regula as imissões danosas ao ambiente, o barulho das crianças provenientes de parques infantis, creches ou escolas não são, em regra, considerados, efeitos danosos ao ambiente (§ 22, inc. 1a BImSchG). Por isso, os valores limites para imissões não se aplicam à zoada produzida pelas crianças, sendo inútil a medição feita pelo autor da ação. Para o Tribunal, a norma do § 22, inc. 1a da BImSchG deixa claro que sob a sociedade recai um mandamento especial de tolerância em relação à zoada produzida pelas crianças. "O barulho de crianças brincando são expressão do desenvolvimento e crescimento infantil e, por isso, em princípio, razoável", disse o Tribunal. Segundo a Corte, a jurisprudência alemã é uníssona no sentido de que as crianças podem fazer barulho, às vezes mais alto que outras fontes de ruídos. Paradigmática nesse sentido é uma decisão do Tribunal Superior Administrativo de 1991 (BVerwG 4 C 5/88, julgado em 12.12.1991). O VG Trier observou que as condições do parquinho (localização, vizinhança, tamanho, equipamentos, etc.) eram adequadas, possuindo brinquedos tecnicamente apropriados para o público do local. Dessa forma, sob o autor da ação recaia um "absoluto mandamento de tolerância" (absolutes Toleranzgebot). O Tribunal salientou, por fim, que estabelecimentos comerciais não gozam de proteção "especial" perante os moradores, de forma que não havia qualquer razão para retirar o parquinho do local. Dessa forma, seria muito improvável uma mãe ser ameaçada de multa, na Alemanha, em casos semelhantes ao ocorrido no Brasil. A bem da verdade, a situação, como noticiada, é, no mínimo, bizarra. O caso dos pólens Em caso julgado em 20/9/2109, o Bundesgerichtshof (BGH) se deparou com a queixa de um vizinho contra a sujeira e imissão natural das bétulas, oriundas do terreno fronteiriço. A bétula é um arbusto típico da região temperada do hemisfério norte, utilizado pelos povos antigos contra mau-hálito e para emagrecimento. O proprietário do imóvel queria que seu vizinho derrubasse três saudáveis arvores de bétula, plantadas a uma distância de mais de dois metros da cerca limítrofe, ou lhe pagasse todo ano, de junho a novembro, 230 euros por mês para custear a limpeza de seu imóvel em razão da sujeira produzida pelas plantas. O juízo da Comarca de Karlsruhe julgou improcedente a ação, mas o Tribunal de Maulbronn deu ganho de causa ao proprietário, condenando o réu a derrubar as árvores. Segundo a sentença, haveria um conflito entre as regras do Código Civil alemão (BGB) e as normas municipais, o qual seria resolvido aplicando a norma do § 1004, inc. 1 do BGB, que concede ao proprietário uma pretensão de abstenção em casos de perturbação da propriedade (esbulho ou turbação), a ser exercida perante o perturbador da posse. Um grau de revisão, o Bundesgerichtshof afastou a incidência da norma ao caso. Trata-se do processo BGH V ZR 218/18, julgado em 20/9/2019. Disse não se tratar de perturbação da posse, mas sim da questão preexistente de saber se o proprietário de um imóvel pode ser responsável por imissões naturais emanadas de seu imóvel, ainda quando ele observe as normas municipais. Se não for responsável, não há qualquer conflito entre o direito municipal e o BGB. Segundo jurisprudência pacífica do BGH, a qualificação como perturbador não decorre apenas da posse ou da propriedade do imóvel, de onde provém a perturbação sobre o terreno vizinho. Exceto nos casos de uma ação direta do proprietário, é necessário verificar se existem motivos materiais que justifiquem imputar-lhe a responsabilidade pelo evento. Isso ocorre quando da forma como o imóvel é utilizado resulta um "dever de segurança" (Sicherungspflicht), ou seja, um dever de evitar inconvenientes ao imóvel fronteiriço. Não se trata aqui de um dever de natureza jurídica obrigacional, é bom que se diga, mas de dever resultante da relação jurídica de vizinhança. Decisivo é que uma análise valorativa do caso concreto permita concluir que o possuidor e/ou proprietário tenha razoavelmente causado o estado perturbador e seja, dessa forma, responsável pela situação. Esse princípio se aplica ainda quando se tratem de incômodos decorrentes de acontecimentos naturais. Mas isso depende da análise de uma conjuntura de fatores, como o uso dado ao imóvel e a possibilidade de controle e/ou prevenção da perturbação. Um imóvel não é considerado adequadamente utilizado quando as plantações são feitas em inobservância das regras de distância impostas pelo direito municipal, disse o BGH. Contudo, é controvertido na doutrina se surge para o vizinho uma pretensão de abstenção (Abwehranspruch), com base no § 1004 I BGB, contra imissões emanadas de plantações, quando as regras e limites impostos pela municipalidade foram observados, como no caso em comento. Há uma corrente que sustenta que a simples observância das normas municipais seria insuficiente para excluir a pretensão do vizinho de exigir do outro uma abstenção quando ele sofre, de fato, interferências em seu imóvel1. A Corte de Karlsruhe aderiu, entretanto, à corrente contrária, que, nesses casos, entende restar desconfigurada a interferência na propriedade alheia ou, reconhecendo-a, a considera insignificante. Segundo a Corte, o conteúdo e extensão da pretensão do § 1004 I BGB são definidos considerando o direito geral de vizinhança, o qual é caracterizado pelo equilíbrio dos interesses opostos dos vizinhos e encontra-se positivado não apenas no Código Civil, mas também em leis municipais. No caso, a lei municipal que fixa os limites e as distâncias das plantações em imóveis fronteiriços é expressão da consideração recíproca e da atenção às particularidades locais, afirmou o BGH. Se, apesar da distância exigida para a plantação de bétulas estar sendo observada, surgem imissões naturais para o imóvel vizinho, como pólen, sementes e folhagens, o proprietário do imóvel está usando regularmente sua propriedade, de acordo com os valores adotados pelo legislador, que autoriza plantações nessas circunstâncias. Diferente do caso do proprietário que deixa espalhar galhos e raízes sobre o imóvel lindeiro, fazendo surgir a pretensão do vizinho de exigir o corte, nos termos do § 1004 I BGB ou até mesmo indenização pelas despesas a mais gastas com a limpeza do terreno (§ 906 II BGB). Nesse sentido, a decisão BGH V ZR 99/03, julgada em 28.11.2003. Seria irrazoável qualificar como perturbador o proprietário em razão de perturbações decorrentes de fenômenos naturais, como a imissão emanada de plantações autorizadas. Logo, não surge para o vizinho a pretensão de abstenção do § 1004 I BGB e nem uma pretensão ressarcitória, com base no § 906 II BGB. Dito em outras palavras: o vizinho é obrigado a tolerar as interferências decorrentes de acontecimentos naturais, exceto aquelas extraordinariamente insuportáveis. Trata-se de um dever de consideração recíproca (Pflicht zur gegenseitigen Rücksichtnahme), oriunda da relação jurídica de vizinhança. O caso do sino das vacas Há anos a briga de vizinhos por causa do barulho do sino de vacas ocupa os tribunais da Bavária. A última disputa chegou ao Tribunal de Justiça de Munique em abril desse ano após reclamações de um casal da pequena cidade de Holzkirchen, insatisfeitos com o ruído e o odor proveniente do terreno vizinho, pertencente a uma pequena agricultora. Na origem, cada um moveu uma ação própria contra a vizinha. No processo movido pelo marido, as partes chegaram a um acordo: as vacas não deveriam ficar na parte norte, mas apenas na parte sul do terreno. O acordo fora cumprido pela agricultora, mas, nada obstante, o barulho ainda permanecia alto, com inconvenientes desagradáveis, como cheiro de esterco e moscas. O autor chegou a exibir o som dos animais na audiência de conciliação, mas o juiz não mudou de opinião, fazendo valer o acordo assinado. O autor interpôs, então, apelação ao OLG München, processada sob o registro Az. 15 U 138/18, julgada em 10.4.2019, mas o resultado não foi diferente. O apelante perdeu parcialmente, porque só fora reconhecido o direito de exigir o confinamento dos animais na parte sul da fazenda. Para o Tribunal, os vizinhos precisam tolerar as imissões naturais vindas da fazenda. O pedido de recurso ao BGH foi negado, mas eles já recorreram da decisão, de forma que talvez o caso suba à Corte em Karlsruhe. Recentemente, a esposa do vizinho moveu outra ação, que ainda aguarda audiência de conciliação. Moral da história: convivência exige tolerância e consideração pelos interesses alheios. __________ 1 Dentre outros: ROTH. Staudinger Kommentar zum BGB. Berlin: De Gruyter, 2016, § 906, Rn. 170.
Desde 1/6/2015 está em vigor na Alemanha a nova lei do direito de locação (Mietrechtsnovellierungsgesetz), de 21/4/2015, que introduziu, dentre outras mudanças, um freio aos valores dos alugueis nas grandes cidades, onde o mercado imobiliário tem se tornado cada vez mais tenso. Em cidades como Berlim, Munique, Hamburgo ou Frankfurt a.M, o valor dos alugueis sobe a cada dia, afastando da cidade cada vez mais famílias da classe média com crianças, incapazes de suportar esses valores. Por isso, uma das promessas de campanha dos partidos foi regular o mercado imobiliário. E isso foi feito através da nova lei, que desde sua entrada em vigor tem causado acesa polêmica, principalmente por causa do limite estabelecido ao valor dos alugueis. O novo direito de locação A lei introduziu o § 556d, inc. 1 do BGB, segundo o qual os alugueis, em áreas com um mercado imobiliário "tenso" (angespannter Wohnungsmarkt), só podem superar até 10% o valor médio local, em contratos de locação residencial celebrados após a entrada em vigor da lei. A lei, portanto, não impõe um tabelamento geral dos alugueis em todo o país. Apenas as cidades - ou áreas específicas delas - com mercado imobiliário tenso podem se socorrer da medida por um prazo máximo de cinco anos. O mercado é qualificado como "tenso" quando o abastecimento da população com imóveis para locação encontra-se especialmente em risco. Nessas condições, os estados estão autorizados pelo § 556d, inc. 2 do BGB a determinar por decreto quais cidades ou regiões são qualificadas como tal, vigorando, a partir de então, o limite máximo de aluguel a ser cobrado. Essa regra não tem eficácia retroativa, vale dizer, os alugueis em curso que já se encontrem acima do valor máximo não serão reduzidos, mas não podem ser elevados em caso de renovação (§ 556e BGB). Berlim foi a primeira cidade a ser classificada como uma área de tensão imobiliária, pois os valores dos alugueis na cidade estão cada vez mais estratosféricos. As ações questionando a inconstitucionalidade da lei In continenti, os proprietários de imóveis e associações se apressaram em alegar a inconstitucionalidade da lei por violação do mandamento da determinação (Bestimmtheitsgebot) do art. 80, inc. 1, alínea 2 da Lei Fundamental, da divisão de competência federal e do mandamento da igualdade, consagrado no art. 3, inc. 1 da Carta Magna. Esse exige um tratamento igualitário dos proprietários em todo o país, mas, com a nova lei, os proprietários passam a estar submetidos a diferentes limites de aluguel, fixados de acordo com o valor médio de cada local. E, argumentam, o fim perseguido pelo legislador não justificaria o tratamento desigual. A primeira queixa constitucional não tardou a aparecer, mas foi julgada improcedente pelo BVerfG, em 24/6/2015, no processo 1 BvR 1360/15, por não ter o autor percorrido a esfera civil antes de chegar ao Tribunal Constitucional e, dessa forma, esgotado todas as possibilidades processuais à disposição para fazer valer seu direito. O Tribunal da Comarca de Berlim chegou a se manifestar, em 2017, pela inconstitucionalidade do § 556d do BGB, mas submeteu a questão ao Bundesverfassungsgericht, já que no sistema constitucional alemão apenas a Corte Constitucional pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei, a fim de evitar a balbúrdia resultante de decisões conflitantes das instâncias inferiores em tema tão sensível como o da (in)constitucionalidade de normas legais. Agora, em 8.7.2019, o Tribunal Constitucional finalmente teve a oportunidade de decidir a questão, proclamando a conformidade do novo § 556d do BGB à Lei Fundamental. A decisão do BVerfG A recentíssima decisão diz respeito aos processos BVerfG 1 BvL 1/18, 1 BvR 1595/18 e 1 BvL 4/18, julgados em 18.7.2019. Para a 3a. Câmara do 1o. Senado da Corte, o freio ao valor dos alugueis não viola a garantia constitucional da propriedade, a liberdade contratual e nem o princípio geral da igualdade. A restrição à propriedade é justificada De início, o BVerfG admitiu que a regulação dos valores dos alugueis atingem o direito de propriedade, tutelado constitucionalmente, dos proprietários de imóveis destinados a locação, mas essa violação é justificada, tratando de uma admissível restrição ao conteúdo da propriedade. A uma, porque é proporcional. É de interesse público evitar a preterição e a evasão de grupos populacionais menos abastados das áreas das cidades mais procuradas e a regulamentação do valor dos alugueis é medida apropriada a alcançar esse objetivo, pois evita preços estratosféricos em mercados disputados e pode, ao menos, criar condições para o acesso desse mercado a locatários menos favorecidos. A duas, porque a intervenção é necessária para alcançar os objetivos pré-estabelecidos. Aqui a Corte reconheceu que outras medidas poderiam ter sido adotadas pelo legislador para minimizar ou eliminar a situação de necessidade imobiliária nessas regiões, como, por exemplo, fomentar a construção de novas moradias ou ampliar a concessão de ajuda de aluguel, que na Alemanha não é dada a abastados funcionários públicos, mas à classe mais necessitada da população. Mas além dessas medidas custarem caro ao erário, não estaria claro elas produziriam um efeito igual a curto prazo como a limitação dos alugueis. A três, porque a regulação do valor dos alugueis é uma medida razoável tanto para locadores, como para locatários. Para o BVerfG, o legislador sopesou bem os interesses em conflito dos proprietários e da coletividade. O conteúdo da garantia da propriedade não é imutável É importante ter em mente, assinalou o Tribunal, que a garantia da propriedade não implica que o conteúdo da posição jurídica proprietária permaneça intocável para todo o sempre. Com efeito, o legislador infraconstitucional pode modificar ou aperfeiçoar uma regra já criada, ainda quando piorem e se agravem as possibilidades de aproveitamento da posição proprietária existente. Não cabe aqui falar em proteção da confiança, disse o BVerfG: na área do direito locatário, de relevância social e política incontestável, o locador tem que contar com frequentes alterações legislativas, não podendo confiar legitimamente na imutabilidade de uma situação jurídica favorável. A confiança de poder obter com o imóvel a renda mais alta possível não é tutelada pela garantia da propriedade, disse a Corte de Karlsruhe. Por outro lado, os proprietários têm a segurança de que a limitação do valor dos alugueis só ocorrerá se os pressupostos fixados na lei forem preenchidos. Essa avaliação cabe aos governos locais, mas, caso se faça uma avaliação errada da região, os locatários podem questionar a decisão administrativa em juízo. Além disso, o valor máximo do aluguel é calculado de acordo com o valor médio de mercado na região e a limitação só pode durar no máximo cinco anos. Dessa forma, a restrição imposta não representa uma perda permanente para os locadores ou uma ameaça à substância da coisa locada ou ainda a perda de uma possibilidade razoável de uso. A restrição à propriedade não viola a liberdade contratual O Tribunal afastou ainda o argumento de que a restrição à posição proprietária violaria a liberdade contratual, protegida constitucionalmente pelo art. 2, inc. 1 da GG (Grundgesetz). Isso, porque a intervenção, pelo acima exposto, manteve-se dentro dos limites da ordem constitucional, estando em harmonia com o princípio da proporcionalidade. A restrição à propriedade não viola o princípio constitucional da igualdade Da mesma forma, a Corte Constitucional afastou o argumento de que a medida geraria um tratamento desigual entre os locatários, na medida em que alguns estariam sujeitos a limites máximos de aluguel e outros não. Para a Corte isso não se justifica, porque há uma diferença considerável entre os mercados imobiliários regionais e isso obviamente justifica o tratamento desigual das situações. Já o valor médio de mercado é - também sob a ótica constitucional - um critério diferenciador adequado para apontar as diferenças entre os mercados imobiliários regionais, sendo irrazoável imaginar uma limitação uniforme para todo o país, que ainda desconsideraria a capacidade financeira dos locatários. A relevância da decisão A decisão do Tribunal Constitucional tem, à toda evidência, grande relevância jurídica e social, pois legitima a intervenção do Estado-Legislador, em prol da sociedade, no direito de propriedade de proprietários de imóveis destinados à locação, equilibrando o mercado a fim de evitar que os grandes centros se transformem em reinos habitados por privilegiados. Sob o aspecto jurídico, o Tribunal deixou claro a possibilidade do legislador infraconstitucional, com proporcionalidade, intervir restritivamente na situação jurídica proprietária, desde que a substância ou núcleo duro do direito permaneça preservado. Um ótimo exemplo a ser seguido em outros cantos.
Nos dias 8 e 9 de novembro último, ocorreu em Karlsruhe, cidade sede dos Tribunais superiores da Alemanha - Bundesgerichtshof (BGH) e Bundesverfassungsgericht (BVerfG) - o Congresso Anual da Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung (DLJV) ou Associação Luso-Alemã de Juristas. A associação fora criada pelo professor emérito da Universidade de Heidelberg, Erick Jayme, a fim de fomentar o intercâmbio jurídico entre os países de língua germânica e portuguesa. Atualmente, é presidida pelo prof. Dr. Stefan Grundmann, catedrático da Humboldt Universidade de Berlim, e tenho a honra de ocupar o cargo de Secretária-Geral da associação. O tema do congresso desse ano foi "Digitalisierung und Verfahren", ou seja, Digitalização e Procedimento. O objetivo era abordar, em última análise, alguns aspectos dos impactos da internet e do desenvolvimento tecnológico no Direito. Dentre os participantes, professores, advogados e magistrados da Alemanha, Portugal, Brasil e da África portuguesa. O prof. Ingo Sarlet, da PUC/RS, abriu o Congresso falando sobre o estado atual do Direito ao esquecimento na jurisprudência brasileira, expondo ao público presente, com precisão, os leading cases Aida Cure e Chacina da Candelária. Em seguida, o prof. Reinhard Singer, titular da Humbold Universidade, abordou os entraves na Alemanha para o processamento do direito dos consumidores na era da digitalização, expondo em detalhes as frequentes operações de cessões das pretensões pelos consumidores a empresas especializadas na cobrança de créditos. A ministra do BGH, Dra. Johanna Schmidt-Rätsch, que também é professora na Humboldt Universidade, abordou a problemática dos impactos da digitalização no direito obrigacional e processual. Segundo ela, a despeito de todo o desenvolvimento, as decisões automatizadas não são uma realidade na Alemanha, pois as máquinas não conseguem substituir o homem na realização de juízos de valores. Esse é o mesmo sentir da ministra do BVerfG, Dra. Sibylle Kessal-Wulf, que, após o evento, fez uma belíssima visita guiada no Tribunal Constitucional aos participantes do congresso. Para ela, os juízes são insubstituíveis. Além disso, enquanto funcionários públicos custeados pelo contribuinte, são eles quem devem efetivamente julgar os casos que chegam para análise. A Prof. Lisiane Wingert Ordy, da UFRGS, fez uma análise sobre processo e digitalização no Brasil, abordando os resultados positivos e negativos após uma década de processo eletrônico. O prof. Eduardo Vera-Cruz, da Universidade de Lisboa, trouxe um contrapondo sobre o tema digitalização e procedimento à partir do direito angolano, que é fortemente influenciado pelo direito lusitano em razão da colonização. Falar de digitalização do direito em um país onde os estudantes não tem acesso à internet é um contrassenso, mas ao mesmo tempo uma necessidade, diante do processo - em curso - de desenvolvimento do Direito africano. António Barreto Menezes Cordeiro, professor da Universidade de Lisboa, discorreu, de forma crítica e amparado em sólida doutrina, acerca das controvérsias em torno da natureza jurídica do direito à identidade informacional, mostrando que, sob a ótica da dogmática jurídica, não se pode, de plano, sustentar a natureza de direito fundamental, ao contrário do que apressadamente fazem alguns. Muito ainda há que se discutir a respeito. Laura Schertel Mendes, professora do Instituto de Direito Público (IDP Brasília), falou sobre decisões automatizadas e os direitos dos jurisdicionados sob uma análise comparativa entre o direito de proteção de dados brasileiro e europeu. A prof. Dulce Lopes, da Universidade de Coimbra, expos sobre a circulação dos documentos autênticos na União Europeia, abordando os problemas de sua autenticidade e veracidade. Finalizando, houve um painel sobre os impactos da era digital no direito sucessório. O dr. Carl Friedrich Nordmeier, juiz em Frankfurt a.M. e profundo conhecedor do direito brasileiro, falou sobre as recentes alterações em nosso direito das sucessões, abordando os reflexos da decisão do STF que equiparou a união estável ao casamento. A dra. Lena Kunz, Professora em Heidelberg, falou sobre herança digital na jurisprudência alemã, comentando o leading case do assunto, o Caso Facebook (clique aqui), já comentado nessa coluna e decidido em 2018 pelo BGH. Ela é uma das maiores experts do assunto na Alemanha e comenta o tema no famoso comentário ao código civil alemão: Staudinger Kommentar zum BGB, publicado pela prestigiosa editora De Gruyter. Tive a honra de encerrar o congresso, em mesa com a prof. Lena Kunz e a min. Johanna Schmidt-Räntsch, falando do tema da herança digital no Brasil. Ilude-se quem pensa que os contratos de uso das grandes plataformas digitais de comunicação, como o Facebook, são gratuitos. Essa suposta gratuidade significa apenas que não há contraprestação em dinheiro. Os contratos de uso de plataformas digitais se caracterizam pela existência do sinalágma prestação versus contraprestação. De um lado, a empresa "cede" o uso da plataforma digital ao usuário e esse, de outro, cede gratuitamente o uso de todos os seus dados pessoais, os quais são lidos, analisados e processados pelos mais modernos programas e transformados em rico material comercializável.Os dados pessoais viraram a moeda de troca ou o ouro do século 21. Não se tratam de informações avulsas sobre um indivíduo, mas sim do perfil com as ideias e as preferências de bilhões de usuários da rede, os quais são comercializador para empresas que oferecem os mais variados tipos de produtos e serviços.É ledo engano pensar que a exigência de criação de username e password visa proteger a privacidade do usuário. Isso visa, ao contrário, garantir a segurança da rede como um todo. Nada tem a ver, portanto, com uma preocupação de proteger a intimidade e privacidade dos usuários. Menos ainda objetiva impedir os herdeiros de acessar a conta do titular falecido. Tanto isso é verdade que os contratos de uso de plataformas são celebrados na internet sem qualquer consideração à pessoa do usuário, inclusive sem sequer a verificação acerca da (real) identidade do usuário. Os inúmeros perfis falsos o comprovam. Não se sustenta, portanto, a ideia difundida pelos grandes conglomerados digitais de que o usuário tem uma expectativa maior de sigilo e privacidade no mundo digital que no analógico, pois enquanto no mundo digital suas correspondências seriam protegidas por senhas, no mundo físico ele sabe que cartas e diários serão transmitidos com a morte aos herdeiros. A rigor, isso não passa de uma falácia, porque há milênios a humanidade conhece o fenômeno da sucessão hereditária, cuja função, aliás, não se limita à transmissão patrimonial, mas visa também garantir clareza e segurança jurídica. Os conglomerados digitais não têm legitimidade para, afastando o princípio da sucessão universal, criar um cemitério digital, a cuja portão apenas eles têm a chave que - diga-se de passagem - dá acesso a um tesouro inestimável. Assim, os contratos de uso de plataformas digitais são transmitidos automaticamente aos herdeiros do usuário falecido, que assumem sua posição jurídica e adquirem, dessa forma, o direito de ter acesso à contas dos perfis do de cujus. Do contrário, todo o conteúdo lá armazenado - inclusive o conteúdo pessoal (existencial), como fotos, mensagens e vídeos íntimos - ficariam sob o poder do Facebook ou de qualquer outro gigante digital. E o ordenamento jurídico brasileiro (a rigor, ocidental) não fornece qualquer subsídio que indique ter o Facebook maior legitimidade que os herdeiros para se apropriar do conteúdo existencial de seus usuários ou de decidir o destino dele.
terça-feira, 5 de novembro de 2019

Testamento como última chicana

Ao contrário do Brasil, onde poucas pessoas se preocupam em fazer em vida disposições para depois da morte, na Alemanha há uma cultura em se fazer testamento. O problema lá tem sido algumas exigências e condições que os autores da herança têm imposto aos herdeiros e legatários. Não raro, procura-se vincular a herança ou legado a condições consideradas inadmissíveis pela ordem jurídica. Não raro, em alguns testamentos o autor da herança condiciona seu recebimento à visita periódica do herdeiro ou a um número mínimo de visitas por ano ou àquele filho que dele cuidar na velhice. Também surgem promessas de deixar um pedaço maior do bolo hereditário se a filha se separar ou se o filho deixar a vida errante e se casar. As situações fornecem material de vida suficiente para a produções de grandes comédias hollywoodianas. A coisa tem ganhado tamanha proporção que o Fórum de Direito Sucessório de Munique divulgou há pouco que a maioria dos testamentos no país contém condições a serem preenchidas pelos herdeiros e legatários. Eles alertam, contudo, que isso não pode significar um mecanismo de pressão e, principalmente: não se pode pretender "comprar" afeto, atenção ou cuidado dos herdeiros. Isso vale principalmente quando há a explosiva combinação de "coação" e altas cifras. A jurisprudência tem beneficiado os herdeiros sempre que as condições impostas pelo de cujus restringem consideravelmente sua liberdade de decisão, colocando-os quase em uma situação de coação. Nesses casos, não raro as condições impostas são declaradas nulas por contrariedade aos bons costumes, preservando-se o direito fundamental à herança dos herdeiros, previsto no art. 14 da Lei Fundamental (Grundgesetz). Condicionar o recebimento da herança à conclusão dos estudos ou ao alcance de determinada idade (maioridade) são cláusulas consideradas válidas pelos tribunais. Há pouco, entretanto, o Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main considerou nula a condição imposta por um avô aos netos, segundo a qual esses só fariam jus à herança se o visitassem, no mínimo, seis vezes por ano. Trata-se do processo OLG Frankfurt a.M Az. 20 W 98/18, julgado em 5/2/2019. No caso, o avô dispôs em testamento que sua esposa e o filho do primeiro casamento deveriam ficar com 25% cada um da herança. O restante ficaria para os dois netos menores, descendes de outro filho do falecido, que nada receberia. Pressuposto, contudo, para o recebimento da herança era a visita regular do avô, que morava em outra cidade. Essa condição era conhecida da família e, por isso, os pais pressionavam os meninos a visitar o avô, mas eles se recusavam a ir na frequência exigida. Após a morte do avô, a viúva e o filho do primeiro casamento requereram que a parte destinada aos menores lhes fosse atribuída, pois os meninos não visitaram o falecido com a frequência exigida. Os meninos, então, impugnaram a cláusula testamentária. Para a Corte, o avô ultrapassou os limites da liberdade de testar, exercendo uma coação sobre os netos, contrária aos bons costumes. Isso, porque a exigência invadia a liberdade de decisão (Entscheidungsfreiheit) e de condução de vida (Lebensführung) dos jovens, tolhendo a decisão livre e espontânea dos netos de decidir se e quando visitar o avô. O OLG Frankfurt a.M. ressaltou, contudo, que a contrariedade aos bons costumes de uma condição precisa ser analisada com cuidado e razoabilidade, pois a liberdade de testar do autor da herança está garantida na Lei Fundamental. Cada um tem o poder de determinar a sucessão de seus bens, como garantido pela liberdade de testar. Dessa forma, a invalidade deve ser exceção. Disse o Tribunal: "Em princípio, é de se garantir a liberdade de testar de um autor da herança, protegida na Lei Fundamental. Precisa-se, então, ser possível conformar a ordem de sucessão conforme suas próprias representações. A contrariedade aos bons costumes só pode ser admitida em casos excepcionais especialmente grassos. As barreiras do caso excepcional sempre é ultrapassada quando a condição imposta pelo autor da herança, considerando-se as circunstâncias altamente pessoais ou econômicas, submete a pressão a liberdade de decisão do receptor condicional da doação e, através da expectativa das vantagens patrimoniais, deve-se dirigir comportamentos, os quais pressupõem, geralmente, um livre convencimento interno da pessoa"1. Mas é inadmissível que o autor da herança pretenda "comprar" com a herança um determinado comportamento dos herdeiros. Tamanha invasão na condução da vida de outrem não é tolerada pela ordem jurídica e nem abrangida no âmbito normativo da liberdade de testar do de cujus, disse o Tribunal. A nulidade da condição, conduto, não implica a nulidade da condição de herdeiro, de forma que os netos, no caso em comento, receberam o quinhão que lhes foi destinado em testamento. __________ 1 Grundsätzlich sei zwar die im Grundgesetz geschu¨tzte Testierfreiheit eines Erblassers zu gewährleisten. Es mu¨sse möglich sein, die Erbfolge nach seinen eigenen Vorstellungen zu gestalten. Die Sittenwidrigkeit einer Bedingung könne nur in besonders schwerwiegenden Ausnahmefällen angenommen werden. Die Grenze zu einem solchen Ausnahmefall sei dann u¨berschritten, "wenn die von dem Erblasser erhobene Bedingung unter Beru¨cksichtigung der höchstpersönlichen oder wirtschaftlichen Umstände die Entschließungsfreiheit der bedingten Zuwendungsempfänger unzumutbar unter Druck setzt und durch das Inaussichtstellen von Vermögensvorteilen Verhaltensweisen bewirkt werden sollen, die regelmäßig eine freie innere Überzeugung des Handelnden voraussetzen".