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Desafios e impactos da IA após 10 anos do marco civil da internet

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Atualizado em 22 de setembro de 2025 10:53

MCI - Marco Civil da Internet, instituído pela lei 12.965/14, consolidou-se como o principal marco regulatório do ambiente digital brasileiro, estabelecendo princípios e direitos fundamentais voltados à proteção da dignidade humana, da liberdade de expressão e da privacidade no uso da rede. Ao longo da última década, essa legislação cumpriu papel estruturante, funcionando como verdadeira "constituição da internet" no país. Seu mérito inicial foi criar balizas mínimas de segurança jurídica para cidadãos, empresas e Estado, em um momento em que a internet ainda era marcada pela expansão acelerada do acesso e pela ausência de diretrizes claras sobre responsabilidade e direitos digitais.

Contudo, ao completar dez anos de vigência do MCI, o cenário tecnológico revela transformações profundas que desafiam a suficiência do modelo normativo originalmente concebido. A ascensão da inteligência artificial, somada à crescente capacidade de coleta e tratamento de dados em larga escala, introduziu novas dinâmicas que impactam a comunicação, a política, os negócios e a vida social. O resultado é um ambiente em que os pilares do MCI - como a liberdade de expressão, a neutralidade da rede e a proteção de dados - precisam ser revisitados sob a ótica de tecnologias capazes de moldar percepções, comportamentos e até decisões de consumo e voto.

Para os empresários, compreender essa evolução é decisivo para seus negócios. O MCI não é apenas um texto jurídico distante: ele define parâmetros para a operação de plataformas, e-commerces, empresas de tecnologia, telecomunicações e qualquer organização que lide com dados e serviços digitais. A partir dele, decorrem responsabilidades que influenciam diretamente a confiança dos consumidores, a reputação corporativa e até a viabilidade de modelos de negócio. A análise de dez anos de sua aplicação, portanto, não é apenas um exercício acadêmico, mas uma ferramenta estratégica para entender riscos, oportunidades e responsabilidades no mercado digital.

O MCI surgiu como resposta à necessidade de consolidar princípios que assegurassem a internet como espaço democrático, plural e inclusivo. Sua elaboração contou com amplo debate público e participação multissetorial, o que reforçou o caráter de carta de princípios para o ambiente digital brasileiro. Desde o início, destacou-se a preocupação em garantir a liberdade de expressão e de comunicação, em proteger a privacidade e os dados pessoais, em preservar a neutralidade da rede como condição para o tratamento isonômico de informações e em assegurar a estabilidade, a segurança e a funcionalidade do ecossistema digital. Essas garantias foram acompanhadas da previsão de responsabilidades proporcionais para os diferentes agentes que atuam na rede, sempre com a preocupação de equilibrar a proteção do usuário e a segurança jurídica das empresas.

A concepção do MCI levou em conta a constatação de que, no ambiente digital, os indivíduos frequentemente se encontram em situação de vulnerabilidade. Como destacam as pesquisadoras Santos e Araujo (2017), a tecnologia potencializa formas de controle sobre a conduta humana, colocando a privacidade e a intimidade em risco constante. Essa vulnerabilidade explica por que o legislador considerou nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que limitassem a liberdade de expressão ou violassem garantias de privacidade, reconhecendo que o consentimento obtido no ambiente digital pode ser ilusório, muitas vezes fruto de um simples clique sem verdadeira compreensão das consequências.

O MCI prevê sanções que vão desde advertências até multas que podem alcançar 10% do faturamento de um grupo econômico no Brasil. Embora raramente aplicadas em sua forma mais severa, essas penalidades demonstram que a legislação já contém instrumentos capazes de impactar significativamente operações empresariais. Com a chegada de novas propostas normativas, como o PL 2.338/23, que busca estabelecer direitos e responsabilidades específicas para o uso da inteligência artificial, a tendência é que o nível de exigência aumente. Nesse contexto, as empresas que não se anteciparem às demandas de compliance digital correm o risco de enfrentar custos elevados de adaptação ou mesmo restrições operacionais.

Outro impacto central decorre da dinâmica de engajamento das plataformas. A lógica algorítmica, orientada por métricas de atenção e permanência, favorece conteúdos polêmicos, sensacionalistas ou capazes de despertar emoções negativas intensas. Ainda que não seja essa a intenção das empresas que utilizam as plataformas para fins comerciais, elas se tornam inevitavelmente participantes de um ecossistema que privilegia a viralização da desinformação e do discurso extremado. Esse fenômeno gera custos indiretos, como a necessidade de gerir crises reputacionais, monitorar narrativas falsas e investir em estratégias de comunicação preventiva.

Do ponto de vista social, os impactos são igualmente significativos. A exposição contínua a conteúdos moldados por algoritmos pode reforçar bolhas de informação, aprofundar polarizações políticas e comprometer a qualidade do debate público. A esfera digital, que o marco civil buscou preservar como espaço participativo e plural, corre o risco de se tornar um terreno marcado pela manipulação e pela erosão da confiança. Para os empresários, esse não é apenas um problema abstrato: sociedades mais polarizadas e menos confiantes tendem a ser menos estáveis, o que repercute diretamente no ambiente de negócios.

A análise dos dez anos do marco civil da internet evidencia que sua importância não diminuiu, mas tornou-se mais complexa. A lei permanece como alicerce normativo fundamental, sobretudo, por consagrar princípios de liberdade de expressão, neutralidade da rede e proteção da privacidade. No entanto, a ascensão da inteligência artificial e a lógica algorítmica de engajamento trouxeram novos desafios que extrapolam os horizontes originais do MCI. 

Para os empresários, o recado é claro: não se trata apenas de acompanhar mudanças legais, mas de compreender que a sustentabilidade dos negócios digitais depende de práticas éticas, transparentes e responsáveis. O risco reputacional, regulatório e social de ignorar essas questões é elevado. Ao mesmo tempo, há oportunidades significativas para empresas que se posicionarem na vanguarda da governança algorítmica e da proteção de direitos digitais, construindo relações de confiança duradouras com consumidores e parceiros.

O futuro regulatório brasileiro, indicado pelo PL 2.338/23 e pela LC 205/25 de Goiás, aponta para uma agenda em que a inteligência artificial será cada vez mais objeto de escrutínio jurídico e político. O desafio consiste em encontrar o equilíbrio entre promover a inovação e assegurar que essa inovação não comprometa valores fundamentais como a dignidade humana e a qualidade da esfera pública. O marco civil da internet, ao completar pouco mais de uma década, permanece como um marco histórico, mas sua atualização e complementação serão indispensáveis para que continue cumprindo sua função de proteger a liberdade, a privacidade e a confiança em um ambiente digital cada vez mais permeado pela inteligência artificial.

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1 BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 24 abr. 2014. Disponível aqui. Acesso em: 2 set. 2025.

2 BRASIL. Projeto de Lei nº 2.338, de 2023. Estabelece normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento e uso responsável da inteligência artificial no Brasil. Aprovado pelo Senado Federal em 10 dez. 2024. Em tramitação na Câmara dos Deputados em 2025. Disponível aqui. Acesso em: 2 set. 2025.

3 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos; ARAUJO, Marilene. O tempo e o espaço. Fragmentos do Marco Civil da Internet: paradigmas de proteção da dignidade humana. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, p. 1159-1183, 2017. DOI: Disponível aqui.