Teremos sentenças e acórdãos produzidos por Inteligência Artificial? CNJ diz que não, mas é preciso ficar atento
sexta-feira, 7 de março de 2025
Atualizado em 6 de março de 2025 08:27
Em nossa última coluna, comentamos a aprovação, pelo Senado, do projeto de lei que regulamenta o uso da inteligência artificial (IA) no Brasil, agora a caminho da Câmara dos Deputados. Como é difícil traçar uma previsão sobre o tempo de aprovação de um projeto de lei, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) adiantou-se e atualizou uma antiga resolução1 disciplinando o tema.
A pergunta que sem dúvida mais preocupa a advocacia é se juízes, desembargadores e ministros passarão a utilizar a IA na elaboração de sentenças e acórdãos. E, aprofundando o debate, quais serão seus limites e eventuais proibições? O devido processo legal e o contraditório estarão assegurados?
Passemos às respostas.
Ao atualizar a resolução 332/20 (imagine o quanto a IA evoluiu nestes quase 5 anos!), o CNJ trouxe uma série de garantias e direitos a serem observados e respeitados, dentre os quais a auditabilidade das ferramentas de IA, a proteção dos dados pessoais e a sempre importante - quiçá imprescindível - supervisão humana no uso da tecnologia.
O artigo 2º, que traz os fundamentos de desenvolvimento, governança, auditoria, monitoramento e uso responsável da IA no Judiciário delimita, em seu inciso V, que a supervisão humana deve estar presente "em todas as etapas do ciclo de desenvolvimento e utilização" das ferramentas e prevê o uso das tecnologias de IA "como ferramentas auxiliares para aumentar a eficiência e a automação dos serviços judiciários meramente acessórios ou procedimentais e para suporte à decisão"2. Assim, numa primeira interpretação, parece-nos que o julgador não poderá socorrer-se da IA para elaboração do dispositivo de uma decisão.
Neste tópico, de suporte à decisão judicial, não há dúvida de que as soluções tecnológicas dotadas de inteligência artificial podem trazer significativo avanço na prestação jurisdicional, em tarefas como resumo de peças processuais, análise de fatos e provas produzidas, elaboração do relatório e pesquisa jurisprudencial e doutrinária. Em tais atividades, o maior risco estaria ligado justamente à falta de supervisão humana3, o que foi afastado.
Outro ponto que mereceu a devida atenção está no inciso VIII do mencionado artigo 2º, que traz entre os fundamentos da resolução "a proteção de dados pessoais, o acesso à informação e o respeito ao segredo de justiça". Para o desenvolvimento de ferramentas de IA, é necessário farto tratamento de dados e os processos judiciais possuem um número muito grande de dados pessoais, inclusive sensíveis, por vezes protegidos pelo segredo de justiça.
Faz-se necessária então a análise minuciosa de quais dados pessoais poderão ou não ser utilizados para o treinamento das ferramentas de IA e que medidas de mitigação de riscos devem ser tomadas antes e durante o uso, como por exemplo a anonimização dos dados. Quem milita no contencioso conhece exemplos de casos corretamente autuados para preservação do sigilo (somente com as iniciais dos nomes das partes) e que posteriormente, por descuido, têm os nomes completos revelados por figurarem na decisão judicial. O risco multiplica-se se uma ferramenta de IA oferecer ao julgador, como precedente a ser observado, um acórdão que estava sob segredo de justiça.
Também a preocupação com segurança da informação e cibernética está prevista (como fundamento, no art. 2º, inc. XI, e como princípio do uso da IA no Judiciário, no art. 3º, inc. III). Nós brasileiros somos bombardeados diariamente por uma infinidade de chamadas telefônicas, e-mails, mensagens de texto (SMS) ou de WhatsApp indesejadas. São anúncios não solicitados, robôs de telemarketing, golpes e fraudes de toda espécie, graças à comercialização generalizada de nossos dados. O incômodo (para dizer o mínimo) tem potencial de ser multiplicado se os dados de processos judiciais forem acessados por meio de brechas no sistema de processo eletrônico ou nas soluções de IA implementadas na Justiça.
Não à toa, recentemente ganhou grande repercussão e tornou-se preocupação até da OAB o chamado golpe do falso advogado, em que golpistas entram em contato com partes de um processo, identificando-se como advogado ou funcionário de escritório de advocacia e solicitando o pagamento de suposta taxa, imposto ou custa processual para viabilizar a liberação de um crédito decorrente de êxito no processo. Para convencer a vítima, os golpistas têm em mãos os dados da pessoa e do processo que ela participa.
A nova redação da resolução traz ainda a necessidade de respeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal (CF), algo que deve ocorrer "em todas as fases do ciclo de vida da solução de inteligência artificial", inclusive com a adoção de "mecanismos de auditoria e monitoramento contínuos" para garantir a conformidade com a CF e a previsão de acesso às informações sobre possíveis impactos, tanto por parte da OAB, quanto do Ministério Público, se houver "notícia ou indícios de violação a direitos fundamentais" (artigo 5º, parágrafos 1º, 2º e 3º).
Algo essencial para a preservação dos princípios processuais do contraditório e da ampla defesa é a transparência quanto ao uso de ferramentas de IA pelo Judiciário.
Já se tem notícia - no Brasil e no exterior - de advogados confrontados e até mesmo punidos pela utilização inadequada de IA em petições, em geral quando são descobertas as chamadas "alucinações", que são as situações em que a ferramenta de IA inventa dados ou informações, como por exemplo citações doutrinárias ou de precedentes falsos.
Por outro lado, recentemente um advogado tentou, sem êxito, anular uma sentença que supostamente teria sido escrita por inteligência artificial. O Tribunal de Justiça de São Paulo rechaçou a argumentação, que carecia de provas4.
Situações como estas poderiam ser evitadas ou ao menos ter seus impactos relativizados caso não pairassem dúvidas sobre o uso da IA. É neste ponto que entra a necessária transparência, que deve ser promovida por meio de "indicadores claros e relatórios públicos", de modo que os jurisdicionados - e seus advogados - tenham ciência do uso da IA.
O CNJ deu o primeiro passo, ao buscar regulamentar logo no início o uso da IA pelo Judiciário, apontando garantias, fundamentos, princípios e vedações. A medida é salutar, para evitar nova situação de fato consumado, como ocorreu com a adoção de diversas plataformas de processo eletrônico por diferentes órgãos jurisdicionais, até hoje não unificadas e que não se comunicam entre si, o que gera inúmeros transtornos aos advogados que atuam perante distintos tribunais.
Mas ainda há um longo caminho a ser seguido e muito a ser aprimorado quando se fala em garantias processuais. Ao longo dos anos, várias alterações processuais tiveram um início contido, aplicável somente em situações bem específicas, e, com o passar do tempo, foram se expandindo. Os julgamentos monocráticos nos tribunais, a título de exemplo, começaram limitados às hipóteses de não conhecimento do recurso e alguns casos de negativa de provimento e hoje são cabíveis até mesmo para dar provimento a um recurso. De igual modo, os julgamentos conhecidos antes como "por lista"5, no início eram restritos a agravos internos/regimentais e a embargos de declaração e atualmente - inclusive com aval do CNJ - são cabíveis em diversas hipóteses, inclusive em sessões virtuais, algo inimaginável há dez ou quinze anos.
Em conclusão, há que se ter especial atenção a definições como "aferição da adequação dos meios de prova e a sua valoração"; "tipificação e a interpretação de fatos como sendo crimes"; "formulação de juízos conclusivos sobre a aplicação da norma jurídica"; "execução de atos processuais ordinatórios ou de tarefas de apoio à administração judiciária", entre tantos outros previstos no anexo de classificação e riscos da resolução. O perigo é que, com o tempo, haja uma interpretação cada vez mais elástica desses termos e, no médio prazo, possa a decisão judicial vir a ser feita exclusivamente por uma máquina.
Confira a íntegra da atualização da resolução 332/20, aprovada em 18/2/2025 pelo plenário do CNJ.
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1 Confira, a respeito, reportagem do Migalhas de 18/2/2025.
2 A professora da UnB Ana Frazão interpretou de modo diverso o mencionado artigo 2º, inciso V, entendendo que a supervisão humana estaria afastada dos serviços judiciários de suporte à decisão.
3 A supervisão humana é essencial para que sejam corretamente observadas as nuances de cada caso, de modo a se evitar que um entendimento seja adotado apenas por apresentar certa semelhança de situações, sem que sejam levadas em conta as peculiaridades do caso concreto.
4 Vide reportagem do Migalhas de 23/1/2025.
5 Nos julgamentos "por lista", o presidente do órgão julgador apenas mencionava o número dos recursos e o resultado, algo como "nos processos nº 1, 2, 3, 4 e 5 da pauta, foi negado provimento; nos processos 6, 7 e 8 da pauta, foram rejeitados os embargos". Atualmente, estes processos são colocados em sessão virtual e sequer levados a uma sessão presencial de julgamentos.