A cadeia de custódia da prova digital nas investigações internas: Desafios e implicações jurídicas
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Atualizado em 29 de abril de 2025 08:26
Resumo: O presente artigo aborda a importância da cadeia de custódia da prova digital nas investigações internas, no contexto empresarial. Analisando a lei processual penal e o posicionamento dos tribunais superiores sobre a cadeia de custódia das provas, traça um paralelo com as investigações internas, que igualmente devem ser regidas pela garantia da integridade e da admissibilidade das evidências, destacando os desafios enfrentados por empresas e profissionais que executam tais procedimentos investigatórios.
1. Introdução
A crescente onda de digitalização da vida humana trouxe novos desafios. Tal movimento deixa claro a mudança em vários setores da economia, de modo que as atividades empresariais também estão caminhando naquele sentido, quando já não estão integralmente instaladas no ambiente digital. No mesmo sentido, é evidente que os conflitos estarão também inseridos na lógica daquela digitalização da humanidade, deixando os profissionais das ciências criminais atentos à também crescente dos crimes cometidos no ambiente corporativo (a chamada "criminalidade corporativa"1). Quando da inserção de cadeias digitais e sistemas naquele ambiente, a vulnerabilidade para fraudes, corrupção e vazamento de informações confidenciais se acentua. E nesses casos, as evidências digitais desempenham papel crucial para quem trabalha com investigações internas, e a manipulação inadequada dessas provas pode comprometer sua integridade e, consequentemente, sua admissibilidade, quando necessárias serem levadas aos processos judiciais, destacando a forçosa atenção à cadeia de custódia.
2. A cadeia de custódia da prova digital
A cadeia de custódia se refere ao conjunto de procedimentos adotados para preservar a integridade e autenticidade de uma evidência, desde sua coleta até a apresentação e utilização na atmosfera judicial.
Nesse sentido, observa-se que a preocupação com a cadeia de custódia veio a ser ressaltada inicialmente pela norma ABNT NBR ISO/IEC 27037:2013 (que tem por "finalidade padronizar o tratamento de evidências digitais"), seguido do próprio legislador brasileiro, quando incluiu ao CPP, por meio da lei 13.964/19 (a chamada lei anticrime), o art. 158-B, que define dez etapas para aqueles procedimentos: Reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte, recebimento, processamento, armazenamento, descarte.
Além daquela inclusão, a lei 13.964/19 também introduziu o art 158-A naquele mesmo diploma legal, estabelecendo a responsabilidade do agente público pela preservação da prova desde seu reconhecimento até sua apresentação em juízo3, reforçando a importância do cuidado quando da coleta das provas.
Por claro, quando falamos de provas digitais, o mesmo procedimento deve ser observado, ainda que algumas etapas apresentem aparente dificuldade em ambiente diverso do físico. E muito embora a norma reforce a atenção que o agente público deve ter quando manuseia as provas, tal cuidado se transfere a qualquer profissional que esteja inserido em processos investigatórios, visto que a cadeia de custódia das provas poderá ser questionada a qualquer tempo e em qualquer procedimento.
Nas investigações realizadas no âmbito empresarial surgem desafios específicos em relação à cadeia de custódia da prova digital, em especial.
Na prática, percebe-se a falta de padronização, com a ausência de normas uniformes para a coleta e preservação de evidências digitais que pode levar a práticas inconsistentes e comprometedoras, a vulnerabilidades de segurança, visto que as provas digitais estão sujeitas a outras ameaças digitais que podem comprometer sua integridade, as questões de privacidade, quando a coleta de evidências digitais pode envolver informações pessoais, exigindo um equilíbrio entre direitos individuais e necessidade da própria investigação, ou ainda a ausência de capacitação profissional, que pode resultar em erros na manipulação das evidências4.
3. Implicações jurídicas da quebra da cadeia de custódia
Importante ressaltar que a atenção com a cadeia de custódia da prova não se trata de preciosismo, tendo em vista que a quebra daquela cadeia pode levar à inadmissibilidade da prova digital, conforme estabelecido pelo art. 157, do CPP:
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
§ 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
§ 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.
§ 4o Vetado
§ 5º O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão5.
Ainda, conforme decisão da 5ª turma do STJ (AgRg no RHC 143.169-RJ), é possível dizer que são inadmissíveis as provas digitais que não possuam registro documental dos procedimentos adotados para garantir sua integridade, autenticidade e confiabilidade. No julgamento, aquele Tribunal Superior reconheceu que houve quebra da cadeia de custódia porque os dados foram acessados por terceiros (a própria instituição vítima) antes da perícia policial, e não houve qualquer documentação sobre a coleta e manuseio dos dispositivos eletrônicos apreendidos.
Segundo o relator da decisão, a ausência de registro sobre o trajeto da prova e dos métodos técnicos empregados inviabilizaria a confiabilidade, comprometendo a licitude do material obtido e também das provas derivadas:
Em outras palavras, não é a simples violação de alguma regra protocolar que fundamenta a declaração de inadmissibilidade das provas neste caso, mas sim a constatação de que a acusação e a polícia não tiveram nenhum cuidado com a documentação de seus atos no tratamento da prova, nem apresentaram nenhuma outra prova que garantisse a integridade do corpo de delito submetido à perícia. Nesse cenário, a quebra da cadeia de custódia, com gravíssimo prejuízo à confiabilidade da prova manuseada sem o menor profissionalismo pela polícia, parece-me evidente6.
Por claro, tal decisão reforça a essencial observância rigorosa da cadeia de custódia em ambientes empresariais sujeitos a procedimentos investigatórios. A atuação de modo não documentado pode prejudicar não apenas a validade da prova, mas também a legitimidade da investigação como um todo, devendo atenção redobrada quando do acesso aos sistemas informatizados, haja vista a complexidade em atender as etapas de custódia apontadas pela própria norma processual penal.
Nesse sentido, destaca-se a importância de se registrar detalhadamente cada etapa da custódia das provas angariadas nas investigações internas (em especial, a manutenção do chamado código hash quando se trata de provas digitais), documentando-se rigorosamente as fases de coleta, armazenamento e análise de evidências digitais, na intenção de resguardar a futura admissibilidade do material.
4. Conclusão
Tem-se, nesse sentido, que a cadeia de custódia da prova - em especial das digitais - é um componente essencial para a efetividade das investigações internas no contexto empresarial. Garantir a integridade e autenticidade das evidências digitais não apenas fortalece o processo investigativo, mas também assegura a admissibilidade nos processos judiciais, evitando-se nulidades processuais.
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1 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558, mai./ago. 1988.
2 OLIVEIRA, V. M. ISO 27037 Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital. Disponível aqui. Acesso em: 10 abr. 2025
3 JANUÁRIO, T. F. X. Cadeia de custódia da prova e investigações internas empresariais: possibilidades, exigibilidade e consequências processuais penais de sua violação. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 2, 29 ago. 2021.
4 JANUÁRIO, T. F. X. Cadeia de custódia da prova e investigações internas empresariais: possibilidades, exigibilidade e consequências processuais penais de sua violação. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 2, 29 ago. 2021.
5 BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
6 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no RHC nº 143169-RJ. Recorrente: R.L.S.M. Recorrido: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Relator: Des. Jesuíno Rissato (Desembargador convocado do TJDFT). Brasília, 07 de fevereiro de 2023. Lex: jurisprudência do STJ