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A expansão do conceito de fraude econômica e o dilema da responsabilização penal da inteligência artificial

terça-feira, 3 de junho de 2025

Atualizado às 10:26

O Direito Penal Econômico, definido por Bajo Fernandez1 como "conjunto de normas de Direito Penal que tutela a ordem econômica entendida como a regulação jurídica da intervenção estatal na economia e é o conjunto de normas de direito penal que tutela a ordem econômica entendida como a regulação jurídica da produção, distribuição e consumo de bens e serviços2, tem sido ultrapassado.

Isso porque, apesar das modificações presentes no Direito Penal Econômico que foram desenvolvidas durante a transformação de white-collar and corporate crimes e que tinham como fim devolver a confiança da sociedade e proteger a intervenção estatal na economia, há uma transformação da sociedade tradicional, que era lenta e burocrática, para uma sociedade veloz e complexa, baseada em grandes avanços tecnológicos, como exposto por Bittencourt3.

Nesse contexto de avanço tecnológico, os Estados e as sociedades são interconectadas e criam-se novas ferramentas, como as IAs, sistemas de computadores que são projetados para realizar tarefas que normalmente requerem inteligência humana.

Há, portanto, uma atualização na prática de ilícitos. Esse fenômeno ocorre, pois a delinquência econômica aumenta exponencialmente em virtude da conexão entre economias e a partir da adoção de novos instrumentos, que são capazes de aprender, raciocinar, tomar decisões e executar ações com base em dados e algoritmos, resultando em atos lesivos mais rápidos e com maior proporção, ocasionando, inevitavelmente, alterações na política criminal da sociedade, e como consequência lógica, a criação de novos tipos penais e adequação das políticas penais.

Verifica-se, nesse caso, que as condutas descritas no Capítulo VI do Código Penal, são as denominadas fraudulentas e baseiam-se na obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento. As ações fraudulentas empregadas pressupõem a lesão patrimonial por meio do engano e um prejuízo ao patrimônio alheio.

Partindo disso, a lei 14.155/214 foi responsável por atualizar o conceito de fraude, ao incorporar a fraude eletrônica, modalidade qualificada do estelionato, no tipo penal. O termo "eletrônica" deriva da prática do delito mediante a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro, por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

(...)

§ 2º-A. A pena é de reclusão, de quatro a oito anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo. 

Observa-se que o legislador, ao acrescentar uma qualificação ao estelionato, presumiu a existência de novas tecnologias que podem ser empregadas com o fim de cometimento de crimes. Além disso, abriu margem para a complementação futura de "outro meio fraudulento análogo".

Porém, apesar da pré-existência de uma legislação que conceitua novos crimes que fazem uso da tecnologia como forma de maximização dos seus efeitos negativos, o Direito Penal brasileiro encontra problema no avanço da IA, que tem evoluído a ponto de gerarem dúvidas quanto à autonomia das "máquinas" e a tipificação criminal.

O panorama da criminalidade econômica se transformou completamente. Agora já não se trata mais apenas de indivíduos que se utilizam das redes (sociais) como instrumentos para a prática de fins ilícitos, mas sim do uso de ferramentas baseadas em inteligência artificial que, com a manipulação de uma única pessoa, podem perpetrar milhares de crimes.

A partir dessa nova realidade enfrentada, surge a questão: pode a ação de uma inteligência artificial ser considerada um "meio fraudulento" análogo nos termos da lei penal?

A aplicação da lei penal à IA enfrenta um obstáculo no princípio da legalidade. Este princípio, consagrado na Constituição como uma garantia fundamental do indivíduo contra o poder estatal, veda estritamente o uso da analogia in malam partem (para prejudicar o réu) no Direito Penal5. Consequentemente, torna-se inviável, por exemplo, enquadrar uma fraude cometida por uma IA nos termos do art. 171, parágrafo 2º, do Código Penal, por meio de interpretação analógica.

Assim, o desafio se intensifica quando consideramos a natureza da IA, que transcende a noção de mera ferramenta, visto que a tecnologia se desenvolveu tão rapidamente que já se tornaram próprias ferramentas de cibercrimes. Santos et aldefendem que:

À medida que as IAs desempenham papéis significativos em processos de tomada de decisão, monitoramento, e até mesmo na aplicação da lei, estando cada vez mais autônomas, surge a necessidade premente de estabelecer um quadro legal que defina se essas entidades tecnológicas serão responsabilizadas por suas ações e como essa responsabilização funcionaria.

Isso porque, as inteligências artificiais generativas (como o ChatGPT e Gemini) têm capacidade de traçar perfil de potenciais vítimas de crimes, ressaltando suas vulnerabilidades, sendo utilizada para escrever programas de "crimeware".

Ainda, os algoritmos presentes em todas as redes e plataformas, conseguem criar textos, imagens, discursos e vídeos falsos totalmente convincentes (deepfakes), usados para fraudes e falsificações, o que tem levantado dúvidas até mesmo sobre fraudes eleitorais.

Além disso, os algoritmos conhecidos como "feral algorithms", são aqueles deliberadamente criados e evoluídos para a prática exclusiva de cometimento dos crimes.

Ou seja, essa realidade emergente cria uma aparente lacuna no legislativo sobre a adequação das normas penais atuais, visto que se torna ainda mais difícil identificar o autor do delito, sem uma clara intervenção humana identificável no ato fraudulento em si.

Nos casos de fraude, para julgamento da responsabilização penal no crime, é necessário a comprovação do dolo da conduta em enganar, ludibriar, com objetivo de obter vantagem ilícita em detrimento da vítima:

É a presença do dolo que distinguirá uma conduta penalmente relevante daquela situação em que, por exemplo, o agente age com boa-fé, sem a intenção de enganar, mas, por motivos diversos, acaba por cometer um ilícito civil. Atente-se que se, por um lado, não se pode adentrar a consciência do indivíduo, por outro, é possível aferir a presença do elemento anímico a partir de fatores externos, ou seja, dos detalhes e circunstâncias que envolvem os fatos7.

Outrossim, ao se falar em fraude eletrônica, Nucci8 descreve:

Esta previsão, incluída pela lei 14.155/21, veio de encontro ao incremento das fraudes cometidas por diversos meios eletrônicos e informáticos, gerando novos e variados mecanismos capazes de armar ciladas para ludibriar as pessoas, cada vez mais levadas a esse cenário pelas inovações tecnológicas. É preciso lembrar que as transações bancárias têm sido promovidas pela Internet e outros meios de comunicação, sem a presença do cliente na agência. Vários negócios são celebrados exclusivamente por meio eletrônico e isso fez com que os estelionatários migrassem para novas modalidades de fraude.

Novamente, percebe-se a existência de uma lacuna na legislação penal brasileira, em que não se consegue presumir se a autonomia da IA é suficiente para executar uma ação que resulta em fraude econômica.

Isso pois, como visto anteriormente, as inteligências artificiais têm capacidade de reproduzir padrões anteriormente criados, o que gera a dúvida sobre se deve responsabilizar o seu criador, seja ele o programador ou supervisor, ou o próprio usuário. Assim, a responsabilidade sempre recai sobre um ser humano, mesmo que de forma indireta ou reflexa.

Nesse contexto, portanto, torna-se evidente a urgente atualização legislativa e doutrinária para que se contemplem as novas formas de lesividade oriundas de tecnologias emergentes, visto que não existem previsões legais para a punição criminal de entidades não humanas no âmbito do direito penal brasileiro.

Apesar disso, não há, até o presente momento, a definição de que as atividades fraudulentas intermediadas por inteligências artificiais se enquadrem no art. 171, parágrafo 2º, do Código Penal, visto que não se considera, para condenação pelos crimes, a inteligência artificial como algo desvinculado ao ser humano.

Além disso, não existem legislações específicas, nem critérios objetivos para a imputação penal em crimes mediados ou executados por sistemas automatizados, tornando difícil a compreensão sobre a ação do judiciário em face a esses delitos.

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O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados.

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1 FERNANDO, Bajo. Derecho penal económico, aplicado a la actividad empresarial. 1ª Ed., Madrid, 1978. p. 32.

2 "el conjunto de normas jurídico-penales que protegen el orden económico entendido como regulación jurídica del intervencionismo estatal en la economía e es el conjunto de normas jurídico-penales que protegen el orden económico entendido como regulación jurídica de la producción, distribución y consumo de bienes y servicios".

3 BITENCOURT, Cezar R. Tratado de direito penal econômico, v. 1. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2016. E-book. p.13. 

4 BRASIL. Lei nº 14.155, de 27 de maio de 2021. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tornar mais graves os crimes de violação de dispositivo informático, furto e estelionato cometidos de forma eletrônica ou pela internet; e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para prever a competência do lugar da infração para o processo e julgamento dos crimes de estelionato cometidos mediante depósito, emissão de cheques sem fundos ou transferência de valores. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 159, n. 98, p. 5, 28 maio 2021.

5 REALE JR., Miguel. Fundamentos de Direito Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. E-book. p.19.

6 SANTOS, Leticia Andrade dos; OLIVEIRA, Luana Minikel de; RENZ, Renata Pedrolli; KRETZER, Tarsila Helena Bastiani. Responsabilização penal da inteligência artificial: uma revisão integrativa sobre a possibilidade de entidades tecnológicas serem criminalmente punidas. In: DOSSIÊ DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA. Florianópolis, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27/5/25.

7 Tribunal Regional Federal (3. Região). Décima Primeira Turma. Apelação Criminal nº 0000499-61.2011.4.03.6116/SP. Relator: Desembargador Federal Fausto De Sanctis. julgado em 6 ago. 2020.

8 NUCCI, Guilherme de S. Manual de Direito Penal. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book. p.705.