A discussão doutrinária sobre o dolo na lavagem de capitais
terça-feira, 22 de julho de 2025
Atualizado em 21 de julho de 2025 12:44
Na nova sistemática do Direito Penal, o elemento subjetivo doloso abandonou a sua faceta clássica vinculada a aferição descritiva-psicológica, ligadas ao estado anímico "querer", para passar a verificar o juízo de imputação a partir de uma concepção normativa-atributiva por intermédio de dados objetivos ligados ao fato1. Para além da alteração metodológica para se alcançar o propósito do fato criminoso, é imprescindível estabelecer o grau de consciência exigido para que se possa dizer que um agente atuou (ou não) amparado pelo dolo, considerando que se deve conhecer o que se quer.
Nesse sentido, aquele que age sem conhecer as circunstâncias diante dos quais atua está amparado em erro de tipo, sendo essa a inteligência do art. 20 do Código Penal. No Direito Penal clássico, tal aferição apresentava um grau mais facilitado diante da influência do sistema finalista de Welzel, que estruturava a tipicidade por meio de elementos de cunho ontológico2.
Em contrapartida, nos crimes que se situam sob a égide do Direito Penal Econômico, passou-se a apresentar uma sistemática diferenciada diante da sua estrutura típica composta por elementos normativos, sendo imprescindível a aferição valorativa das suas elementares para a devida compreensão da norma incriminadora, não possuindo o tipo estrutura descritiva avalorada.
Tal problemática se agrava quando se parte ao estudo do crime de lavagem de capitais, principal crime dessa nova forma de manifestação punitiva, principalmente quando se observa a incidência de um elemento normativo especial que compõe a sua estrutura: as infrações penais antecedentes.
Para Guilherme Ceolin, Gilmar Mendes e Bruno Buonicore, exige-se para a configuração da lavagem que o agente oculte ou dissimule as características de bens, direitos ou valores "provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal" demandando, portanto, (i) a existência de bens, direitos ou valores; (ii) a ocorrência de uma infração penal antecedente; e (iii) que tais bens, direitos os valores sejam provenientes dessa infração penal3.
Dessa forma, considerando que o crime de lavagem de capitais se notabiliza como um processo complexo, dando aparência de licitude ao produto da infração penal antecedente, surge a seguinte questão: Qual o grau de conhecimento exigido pelo agente acerca da origem daqueles bens, direitos e valores? Tal indagação é essencial para o objeto da presente pesquisa, uma vez que, no Brasil, a lavagem só é punida em sua modalidade dolosa.
Segundo as regras estabelecidas no Código Penal, caso o agente desconheça de alguma das elementares, somente seria punido caso o tipo penal descreveSse, expressamente, a possibilidade de incriminação culposa da conduta, o que não ocorre nos crimes de lavagem de capitais. Assim, seguindo uma interpretação literal do dispositivo legal, a ausência de conhecimento da origem do produto do crime conduziria à impunidade do agente.
Entretanto, parcela da doutrina4 vem admitindo a possibilidade de punição do agente nas hipóteses em que se desconfia da origem infracional do produto do crime, admitindo a imputação na forma do dolo eventual. Aras e Luz, citando Baltazar Jr, dispõem que "não houve uma clara opção do legislador em afastar o dolo eventual, o que seria reforçado pela retirada da expressão "sabendo serem oriundos de crime" que foi suprimida na redação final da lei" (2023, p. 167).
Para Bottini, quem sustenta a possibilidade de se atribuir a lavagem em casos em que o agente desconfia da origem do produto do crime, a Convenção de Varsóvia (2005) serve de importante mecanismo formal para conferir legitimidade à construção teórica. O referido diploma internacional indica, expressamente, que os Estados-membros da Comunidade Europeia podem tomar medidas para entender como crime os casos de lavagem em que o agente suspeitava da origem ilícita dos bens ou deveria conhecer a origem ilícita dos bens, indicando a possibilidade da prática do crime a título de dolo eventual ou mesmo de imprudência (art. 9, 3)5.
Em sentido adverso, há parcela da doutrina que admite apenas a imputação na forma do dolo direto, exigindo o conhecimento por parte do agente lavador de todas as elementares típicas que compõem o injusto. Como argumentos principais, invoca-se os seguintes: A imputação na forma do dolo eventual poderia causar prejuízos de ordem político-criminal, considerando a dificuldade de se proceder o conhecimento inequívoco da origem de determinado produto, colocando em risco a ordem econômico-financeira (I); sob uma perspectiva sistemática/normativa, a estrutura do tipo penal impossibilitaria tal forma de imputação, uma vez que careceriam no seu preceito primário a expressão " deve saber" (II) e a equiparação do "desconhecer" ao "conhecer", nos termos da teoria da cegueira deliberada, poderia ocasionar problemas no que tange a recepção da teoria ao ordenamento jurídico Brasileiro, considerando a ausência de previsão legal (III).
Seguindo a linha de admissão ao dolo direto, Callegari aduz que "não é possível o autor cometer o delito apenas com a probabilidade de que estes bens provenham de alguma infração penal. De toda a forma é preciso que o autor conheça o caráter ilícito de sua conduta e saiba que os bens possuem procedência ilícita"6.
Tomando partido na discussão, pensamos que a imputação na forma do dolo direto seria mais segura e coerente com a própria natureza da infração penal comentada. Admitir a punição de um indivíduo que suspeita da origem de determinado produto poderia ensejar em um alargamento irracional por parte do poder punitivo estatal capaz de colocar em colapso todo livre mercado, em especial aqueles sujeitos obrigados ("gatekeepers") elencados no art. 9 da lei 9.613/1998.
Considerando que estes sujeitos exercem atividades sensíveis à prática de atos de encobrimento, qualquer movimentação que fosse passível de dúvida poderia dar azo a uma imputação por lavagem de capitais na forma do dolo eventual, conduzindo a um engessamento das suas atividades por temor de serem processados criminalmente, gerando graves problemas econômicos.
Ademais, também haveriam problemas de ordem processual, considerando que a atividade probatória seria pautada em indícios frágeis que não seriam capazes de retirar do julgador da dúvida acerca da verdadeira intenção do acusado, indo de encontro com toda sistemática probatória que fomenta o standard de prova seguro, coeso e objetivo que o incline para além da dúvida razoável7.
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O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito
Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores
convidados.
1 SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Tipicidade Penal e Sociedade de Risco-São Paulo: Quartier Latin, 2006.p.132
2 BOTTINI, Pierpaolo Cruz, BADARÓ, Gustavo. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 5.ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p.140.
3 CEOLIN,Guilherme; MENDES, Gilmar; BUONICORE, Bruno. Crime fiscal como antecedente da lavagem de dinheiro: Desafios práticos e normativos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v.29,n.186,p.41-73,dez.2021.
4 Admitem o dolo eventual na lavagem de capitais Rodolfo Tigre Maia, Lavagem de dinheiro, 2007,p.88; Luiz Regis Prado, Dos crimes: aspectos subjetivos,p.228; Fausto Martin de Sanctis, Combate à lavagem de dinheiro, teoria e prática, p.49; Flávio Cardoso Pereira, Lavagem de dinheiro: Compatibilidade com o dolo eventual, 2004, p.32-44.
5 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O dolo eventual e a lavagem de dinheiro. Conjur, 07 de agosto de 2023. Disponível aqui. Acessado em: 19/6/25.
6 ALLEGARI, André Luís. Domínio do fato, limites normativos da participação criminal e dolo eventual no delito de lavagem de dinheiro: Reflexos na APN 470/M. Revista dos Tribunais | vol. 933/2013 | p. 111 - 129 | Jul / 2013
7 Para mais, ler FERRER-BELTRÁN, Jordi. Prova e verdade no direito.3 .ed-São Paulo: Editora JusPodivm,2025.