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Impactos socioeconômicos e penais da lei 14.790/23, que dispõe sobre a modalidade lotérica de apostas de quota fixa

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Atualizado em 22 de setembro de 2025 10:01

1. Introdução

No Brasil, o estabelecimento ou exploração de jogos de azar está criminalizado no art. 50 da lei de contravenções penais1. A lei caracteriza o crime como "estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele" (art. 50, lei de contravenções penais), atribuindo a pena de prisão simples, de três meses a um ano, e multa, com a extensão dos efeitos da condenação à perda de móveis e objetos de decoração do local do crime.

O artigo, em seu terceiro parágrafo, considera como jogo de azar aquele em que o resultado dependa exclusiva ou principalmente de sorte, assim como apostas sobre corridas de cavalos fora de hipódromos, e apostas sobre qualquer outra competição esportiva (art. 50, §3º, lei de contravenções penais).

Segundo Jesús-María Silva Sánchez (2013), a criminalização de condutas como a aposta é uma ampliação do Direito Penal que reflete a transformação, pela sociedade, de "sujeitos passivos" do acidente fortuito ou desgraça (Unglück) em um injusto penal (Unrecht). O autor entende que o núcleo do problema está na soma da sensação de insegurança coletiva, em que não se sabe quais informações são reais, com uma vítima que não assume que o fato que sofreu pode ser de sua própria responsabilidade, ou simplesmente o azar e o acaso.

O próprio bem jurídico tutelado pela criminalização de apostas não é claro, o que gera amplo debate entre doutrinadores. 

2. Crimes interligados com apostas

Segundo Fábio Franklin Júnior2, a expansão de casas de apostas (Bets) possibilita e facilita o cometimento de crimes financeiros. Para o autor, as Bets permitem que grandes somas de dinheiro circulem sem fiscalização, de modo a facilitar crimes econômicos, especialmente a lavagem de dinheiro e evasão de divisas.

Luiz Flávio Gomes3, em sua obra "Lavagem de Dinheiro e o Direito Penal Brasileiro", afirmou que jogos de azar, incluindo apostas, devido à sua natureza ilícita e difundida, são propícios para serem usados como instrumento para lavagem de dinheiro, já que permitem a inclusão, no sistema financeiro oficial, de grandes quantias de dinheiro ilícito, com uma aparência legal. 

Pierpaolo Cruz Bottini4 destaca que jogos de azar, principalmente online, possibilitam que dinheiro de origem ilícita obtenha aparência de legalidade e licitude por ser o prêmio de um jogo. O professor destaca a facilidade de provedores de jogos oferecerem ocultação de dinheiro sujo, o que poderia ser evitado com uma fiscalização efetiva das Bets e a criação de mecanismos de controle e identificação de fraudes e lavagem de dinheiro por meio de jogos de azar. 

Além disso, Heleno Taveira Torres5 destaca que plataformas digitais de Bets permitem a transferência oculta de grandes quantias ao exterior, mesmo que não declaradas, de forma a configurar o crime de evasão de divisas (remessa de valores não autorizados para o exterior).

Fernando Capez6 destaca que a lavagem de dinheiro precisa de um crime antecedente para ser caracterizado. Para o autor, a evasão de divisas, especialmente diante de apostas online, em que há circulação de dinheiro, pode ser o delito antecedente. Isso porque, ao não declarar valores remetidos ao exterior por meio das apostas em plataformas online, possibilita-se a entrada posterior desse dinheiro no país, tendo ocorrido a lavagem de dinheiro, por transação que disfarce a origem da verba. 

A relação da evasão de divisas e lavagem de dinheiro com Bets é um desafio que deve ser enfrentado pelo Direito Penal Econômico, sendo necessário abordar essas questões de modo integrado e multidisciplinar. 

3. A lei 14.790 de 2023

Em razão da aceitação social de jogos de azar, as apostas se tornaram costumeiras, e nunca deixaram de acontecer em território brasileiro. Há, inclusive, a contradição da criminalização de jogos de azar e apostas pelo Ordenamento Jurídico, sendo que, por outro lado, implanta um monopólio desses jogos, de forma lícita, por Loterias da Caixa Econômica Federal, como a Mega-Sena. Dessa forma, a mesma conduta coibida pelo Estado, a saber, as apostas e jogos de azar, é por ele praticada.

A lei 14.790/237 determinou uma autorização especial para apostas em que o apostador sabe de antemão o quanto poderá ganhar ou perder, tanto na modalidade física quanto virtual, desde que feitas em um ambiente concorrencial, em que o explorador das apostas seja uma pessoa jurídica que obtenha autorização prévia do Ministério da Fazenda. A lei defende que, no caso de Bets, há certo nível de estratégia para apostar, não sendo um jogo que depende apenas de sorte.

A empresa, para operar essas apostas, precisa ser uma pessoa jurídica brasileira com sede e administração no Brasil, e obter autorização do Ministério da Fazenda. O objeto é restrito a eventos esportivos reais e jogos virtuais, com medidas de integridade adotadas para prevenir a manipulação dos eventos.

No entanto, embora tenha autorizado apostas de quota fixa, outros jogos de cassino online, como o jogo amplamente divulgado Fortune Tiger ("Jogo do Tigrinho"), que dependem exclusivamente da sorte para alcançar o resultado, ainda são criminalizados na lei de contravenções penais.

4. Impactos socioeconômicos e penais da lei 14.790 de 2023

Gilberto Costa8 (2024), em entrevista para a Agência Brasil, publicou uma pesquisa que aponta que, entre janeiro e julho de 2024, vinte e cinco milhões de pessoas começaram a apostar em plataformas esportivas online, representando uma média de 3,5 milhões de novos jogadores por mês. 

A comparação feita com a Pandemia de Covid 19 revelou que o coronavírus levou onze meses para alcançar a mesma quantidade de pessoas, sendo o período atual chamado como "Pandemia de Bets".

A pesquisa de Costa revelou que, dos cinquenta e dois milhões de brasileiros que apostaram em Bets, 48% começaram a apostar após a promulgação da lei 14.790. Conforme o perfil divulgado pelo autor, 53% dos apostadores são homens, sendo que 81% dos jogadores têm entre 18 e 49 anos de idade. Em relação ao perfil econômico dos apostadores, estima-se que 80% sejam da classe CD e E. 

Segundo a Forbes9 (2024), que aponta o Brasil como terceiro país mundial em investimento em Bets, atrás apenas dos Estados Unidos da América e Inglaterra, apostadores brasileiros perderam em Bets, no período entre a metade de 2023 e julho de 2024, um total de 23,9 bilhões de reais.

Por outro lado, o Ministério da Fazenda (in Forbes, 2024) projeta o ganho de doze bilhões de reais arrecadados por ano. Já para os sites de Bets com o público-alvo brasileiro, a Forbes (2024) estima que a receita anual seja entre oito e vinte bilhões de reais, sendo que o gasto médio com marketing é de 9 (nove) milhões de reais.

No âmbito do Direito Penal, a Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda destaca que a lei 14.790/23 torna as Bets mais seguras. A SPA/MF (in Gov.br, 2024) destaca que, por meio das mais de dez portarias do Ministério da Fazenda10, publicadas a partir da nova lei, as apostas ficaram mais seguras para os jogadores e para a Ordem Econômica e Financeira. 

Destaca o Ministério da Fazenda (in Gov.br, 2024) que a política de combate à lavagem de dinheiro, ao exigir identificação por documentos e reconhecimento facial com prova de vida, ajuda a evitar o uso de "laranjas" (pessoas que intermediam transações fraudulentas). Também aponta que os dispositivos da lei que impõem maior regulamentação e fiscalização, como a obrigatoriedade de autorização prévia das empresas e incidência de taxas que permitem maior controle quanto aos prêmios dos apostadores, dificultam a ocorrência de fraudes e crimes como evasão de fronteiras, pois é mais difícil de o dinheiro passar despercebido pelo Governo.

A Secretaria de Prêmios (in Gov.br, 2024) também destaca que a segurança dos dados dos jogadores, e proteção dos dados em face de hackers e divulgação não autorizada, aumentará com a vigência da lei 14.790/23, assim como irá ocorrer com a fraude dos jogos, em razão do monitoramento obrigatório de organismos de integridade esportiva. 

No entanto, Thiago de Miranda Coutinho11 destaca que há fragilidade na fiscalização e falta de transparência, o que gera um ambiente que facilita práticas ilícitas, apesar da tentativa de diminuir os crimes financeiros por meio da regularização das apostas de quota fixa pela lei 14.790/23. 

Outros pontos destacados pelo autor (Coutinho, 2024) incluem a falta de monitoramento efetivo das movimentações financeiras em Bets, e a prática comum de permitir criptomoedas como pagamento, o que dificulta o rastreamento das transações, e favorece o cometimento de crimes interligados às apostas.

5. Conclusão

O Princípio da Subsidiariedade, necessário no Estado Democrático de Direito, determina que o uso do Direito Penal deve ser a última opção. Já o Princípio da Adequação Social que uma conduta socialmente aceita não pode ser criminosa, sendo materialmente atípica 

Nesse sentido, a publicação da lei 14.790/23, ao descriminalizar as apostas de quota fixa, é um passo para o tratamento mais adequado das apostas, condutas socialmente praticadas e aceitas há vários séculos. 

É possível verificar, em um âmbito social e econômico, que a prática gera um risco ao apostador, seja o de perda econômica, ou o de vício e problemas psicológicos. Entretanto, é cada vez maior o número de pessoas que apostam, de modo a não ser justificável a criminalização da conduta. Ademais, os benefícios econômicos para o Estado e para os provedores de Bets é nítido, e já começou a ser sentido com a lei.

A lei 14.790/23 tem um grande potencial para, ao ser totalmente aplicada, diminuir a ocorrência de crimes interligados às apostas, especialmente às ilegais, como a evasão de divisas e a lavagem de dinheiro.

No entanto, no Brasil, ainda se faz necessária uma fiscalização efetiva, e uma regulamentação mais rígida, para que os artigos da lei possam ter um efeito prático e eficaz, de modo a garantir uma maior segurança para o apostador, o servidor, e toda a Ordem Econômica e Financeira. 

___________________

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados.

1 BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei de Contravenções Penais. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 1941. Disponível aqui. Acesso em: 16 set. 2025.

2 FRANKLIN JR., Fábio. Apostando no ilícito: O papel das BETS nos crimes contra a ordem econômica. Disponível aqui. Acesso em: 15 set. 2025. 

3 GOMES, Luiz Flávio. Lavagem de Dinheiro e o Direito Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2009.

4 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Os jogos de azar e a lavagem de dinheiro. Disponível aqui. Acesso em: 16 set. 2025.

5 TORRES, Heleno Taveira. Crimes Tributários e Evasão de Divisas. São Paulo: Atlas, 2018.

6 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial - Crimes Contra a Ordem Econômica e Contra a Administração Pública. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

7 BRASIL. Lei nº 14.790, de 29 de Dezembro de 2023. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 29 dez. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 16 set. 2025.

8 COSTA, Gilberto. "Pandemia" de bets avançou mais rápido que surto da covid-19 no Brasil. Agência Brasil, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 16 set. 2025.

9 FORBES. Bets lucram até R$ 20 bi, enquanto brasileiros perdem R$ 23 bi com apostas. Disponível aqui. Acesso em 16 set. 2025.

10 GOV.BR. Ministério da Fazenda Publica Portaria Com Regras Para Jogos Online. Disponível aqui. Acesso em: 16 set. 2025.

11 COUTINHO, Thiago de Miranda. BETS: As implicações criminais do mercado de apostas no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 16 set. 2025.

12 WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal. Montevideo: B de F, 2003.