Verdade, erro e as praxes judiciais: O workshop 29 da "Michele Taruffo Girona" Evidence Week de 2025
terça-feira, 3 de junho de 2025
Atualizado em 2 de junho de 2025 14:06
1. Introdução
Uma concepção garantista do Direito impõe que se trate a efetividade da norma jurídica - ou seja, a sua concretização no mundo real - como seu objetivo primordial, daí porque o garantismo se autodefine como uma "teoria simultaneamente normativista e realista": normativista, porque estabelece parâmetros de legitimidade; realista, porque exige instrumentos que aproximem o "ser" do "dever-ser".
Ao distinguir validade e efetividade, o garantismo identifica o ponto nevrálgico na divergência entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (muitas vezes antigarantistas). Consequentemente, o próprio sistema jurídico deve abrir-se para incorporar mecanismos que induzam comportamentos efetivamente conformes. Em síntese, um sistema só será genuinamente garantista quando se realizar como tal tanto no plano normativo quanto no plano empírico.
A efetividade do Sistema de Valoração da Prova, assim, pode ser entendida como o grau em que, na praxe judicial, se realizam os pressupostos racionais exigidos pelo modelo teórico que integra o devido processo legal; em outras palavras, corresponde à medida em que sentenças e acórdãos respeitam as exigências de racionalidade do juízo fático-probatório: coerência lógica, ancoragem no mundo empírico (depuração de mitos/estereótipos), respeito ao objetivo institucional específico.
Para TWINING, a maioria dos adeptos da escola racionalista da prova deveriam ser compreendidos como racionalistas-otimistas ou racionalistas-aspiracionais, porque se preocupam apenas em desenvolver o modelo teórico ideal para a valoração da prova, sem pensar em meios que maximizassem o seu cumprimento por juízes e jurados1.
De fato, nos últimos anos muito se debateu sobre como deveria ser a valoração da prova; mas pouco se refletiu sobre os caminhos para "estimular" a adequação das praxes judiciais a esse ideal, parecendo certo, ademais, que o que poderia ser visto como uma migração natural ou espontânea da teoria à praxe judicial geraria um custo elevado com decisões errôneas; prova disso é o pensamento de GORPHE, para quem a psicologia do testemunho era demasiado recente para que já tenham decidido seguir os caminhos por ela indicados2, ideia que parece bem atual, mas que foi registrada há mais de 100 anos.
2. A efetividade da adequada valoração da prova: dois caminhos a desbravar
Mostra-se essencial, então, pensar nos desafios e possíveis soluções para maximizar a efetividade da adequada valoração da prova; ou seja, partindo da ideia de que a valoração deve, além de respeitar lógica e ser minimamente transparente e apoiada em conhecimento de mundo seguro, é de se questionar sobre o que fazer para que esse ideal migre para a praxe judicial.
Com esse propósito, será realizado no próximo dia 5 de junho, durante a 2nd Michele Taruffo Girona Evidence Week, o workshop "Pensando a Efetividade da Adequada Valoração da Prova", que reunirá acadêmicos, magistrados e membros do Ministério Público de diferentes países. A ambição é inequívoca: reduzir o hiato entre o dever-ser teórico e o ser das rotinas forenses, fomentando uma cultura mais transparente, racional e validada cientificamente.
A ideia é refletir sobre diversos caminhos, como:
i) a formação dos agentes do Sistema de Justiça, já que a valoração adequada reclama determinado estoque de saberes, atitudes (virtudes) e habilidades (o raciocínio abdutivo etc), que precisam ser adquiridas/desenvolvidas;
ii) as exigências para a motivação, que poderia ter reforçada sua aptidão para conter o subjetivismo na própria tomada de decisão.
iii) os modelos de controle sobre a o juízo fático probatório via "cassação" e/ou revisão após formada a coisa julgada;
O workshop foi estruturado em dois painéis complementares, cada um abordando uma dimensão fundamental do problema da efetividade da valoração probatória: a tomada de decisão e a sua justificação, que, embora interconectados, demandam estratégias específicas de aprimoramento.
3. O processo de tomada da decisão fático-probatória
O primeiro painel concentra-se nos mecanismos pelos quais os julgadores formam suas convicções fático-probatórias. Aqui, a preocupação central é compreender e aprimorar os fatores que influenciam a tomada de decisão, desde a contribuição das partes até o uso de ferramentas tecnológicas auxiliares.
Isabelle Marne Cavalcanti de Oliveira Lima, juíza federal e doutora pela Universidade Federal de Pernambuco, abordará a contribuição das Partes para uma Valoração Judicial Racional. Sua abordagem é particularmente relevante porque identificaria um descompasso entre o Judiciário, que tem começado a se adaptar a um sistema de valoração racional da prova, e a prática de muitos advogados, que ainda atuam como se estivessem em um sistema de livre valoração. Lima propõe uma mudança de paradigma no treinamento probatório dos advogados, incluindo programas de intercâmbio entre advogados e juízes para o desenvolvimento conjunto de competências de análise probatória.
George Marmelstein, juiz federal e doutor pela Universidade de Coimbra, abordará "A Utilização da IA Generativa na Racionalização da Decisão Fático-Probatória", tema que se insere no debate contemporâneo sobre como as ferramentas tecnológicas podem auxiliar - sem substituir - o raciocínio judicial. Esta contribuição é estratégica porque enfrenta diretamente a tensão entre a necessidade de racionalização e os recursos práticos disponíveis para implementá-la.
Leonardo A. Llanos Lagos, juiz chileno e mestre em Argumentação Jurídica pela Universidade de Alicante, apresentará sua pesquisa sobre "La desmedida e incontrolable fuerza probatoria de los testimonios médicos en juicios civiles sobre responsabilidad sanitaria". Seu trabalho se propõe a demonstrar como, na prática judicial chilena, o testemunho de médicos é frequentemente sobrevalorado por parecer ter maior expertise, sendo incorporado às sentenças como verdade absoluta sem o devido cotejo com outros elementos probatórios. Esta contribuição é fundamental porque demonstra empiricamente como vieses específicos operam na valoração probatória e propõe mecanismos de controle racional.
Fechando o painel, Diogo Erthal Alves da Costa, Promotor de Justiça do MP/RJ e Mestre em Razonamiento Probatorio pela Universidade de Girona, apresentará "Tribunal do júri e valoração racional da prova". Seu trabalho enfrenta um dos maiores desafios do sistema processual: como conciliar a garantia constitucional do julgamento por jurados leigos com a necessidade de controle racional das decisões probatórias. Costa propõe que o reforço no controle da admissibilidade das acusações, na decisão de pronúncia, mediante adequada valoração racional da prova, é primordial, mas reconhece que não há solução simples diante da dificuldade de estabelecimento de standards objetivos.
4. A construção da argumentação justificadora da decisão probatória
O segundo painel volta-se para a fundamentação das decisões probatórias. Aqui, a preocupação é com os requisitos/estrutura que remetam o julgador aos critérios que condicionam a correção do raciocínio probatório.
João Vitor Antunes dos Santos, mestrando em Direito Penal pela Uerj, apresentará "Standard Probatório em Números: uma Análise dos Critérios de Valoração da Prova na Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça do Brasil", pesquisa empírica, baseada na análise de 333 acórdãos do STJ, que oferece dados concretos sobre como os standards probatórios têm sido aplicados na prática judicial brasileira. Os resultados preliminares já indicam padrões interessantes: em 54,4% das decisões analisadas, o STJ concluiu que o standard probatório exigido não havia sido preenchido, e há uma predominância da Sexta Turma na aplicação expressa desse conceito, com elevado rigor na valoração da prova penal.
Daiana Ryu, Doutora em Direito Processual Penal pela USP, abordará a "Justificação do raciocínio inferencial para aferição do periculum libertatis: utilização das máximas de experiência na decretação da prisão preventiva nos casos que envolvem tráfico de drogas". Sua pesquisa é particularmente relevante porque enfoca um ponto crítico do sistema: como fundamentar adequadamente decisões que envolvem juízos prognósticos. Ryu propõe um modelo de raciocínio inferencial baseado na análise das máximas de experiência, dividindo-as em categorias (técnica/científica, senso comum, espúrias). Sua pesquisa empírica na jurisprudência do TJSP revelou que, na maior parte dos casos, os magistrados valem-se de máximas espúrias, baseadas em estereótipos e preconceitos.
Magistrado mexicano, Doutor em Direito e Mestre em Razonamiento Probatorio, Alfredo René Uribe Manríquez, traz ao debate a necessidade de integração entre a psicologia do testemunho e a epistemologia jurídica, defendendo que variáveis de percepção, memória e sugestionabilidade devem ser explicitamente consideradas na motivação judicial para que o julgador não substitua, de ofício, a prova técnica por "expertise" autodeclarada. Oferece um roteiro de avaliação em duas etapas - credibilidade do conteúdo e precisão mnemônica - e defende que tal protocolo seja incorporado tanto à formação de magistrados quanto às regras de admissibilidade, como forma de mitigar o risco de erro decorrente do sobrepeso atribuído ao testemunho ocular.
Concluindo o painel, Alan Bolzan Witczak, Promotor de Justiça do MP/PR e Mestre em Raciocínio Probatório, apresentará "Testemunho indireto e sentença de pronúncia: critérios de valoração na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça". Seu trabalho examina os critérios estabelecidos pelo STJ para valoração do testemunho indireto, avaliando se constituem medidas justificáveis de paternalismo epistêmico e se são eficazes na prevenção de julgamentos equivocados. A pesquisa é estratégica porque propõe o aperfeiçoamento de standards probatórios negativos, especialmente para esclarecer o que se entende por "testemunho indireto".
5. À guisa de conclusão
Buscar-se-á construir uma narrativa que transite do diagnóstico à proposição, da teoria à prática, do geral ao específico. O primeiro painel estabelece as bases do problema: como as decisões são tomadas e quais fatores as influenciam. O segundo painel desenvolve os mecanismos de controle e aprimoramento: como as decisões devem ser justificadas e controladas.
Todos os trabalhos compartilham uma característica fundamental: não se limitam ao diagnóstico teórico, mas propõem soluções práticas e operacionalizáveis, desde programas de intercâmbio entre advogados e juízes a pautas para controle do raciocínio decisório.
O workshop, portanto, não pretende apenas debater ou difundir os avanços teóricos já alcançados no âmbito do direito probatório e epistemologia da prova judicial, mas provocar a comunidade acadêmica e os operadores do direito a enfrentar o desafio prático de sua implementação.
__________
1 TWINING, William. Rethinking Evidence: Exploratory Essays. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 79-80.
2 GORPHE, François. La critique du temoignage. Paris: Librairie Dalloz. 1924, p. 32.