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A trajetória do consensualismo na advocacia pública carioca

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Atualizado em 13 de agosto de 2025 13:23

A Constituição da República e os marcos normativos subsequentes transformaram profundamente a forma de atuação da Administração Pública. O modelo hoje dominante é o da Administração Pública dialógica, fundada em valores democráticos, eficiência, razoabilidade, prevenção de litígios e respeito à segurança jurídica (arts. 5º, XXXV; 37, caput; 170 da CF/88), inspirados pelo imperativo destacado em seu preâmbulo, que enaltece a solução pacífica de disputas1.

No plano infraconstitucional, a resolução 125/10 (com a redação da emenda 1, de 31/1/13) do CNJ - Conselho Nacional de Justiça, o CPC - 15 (art. 3º, §§2º e 3º)2 e a lei Federal 13.140/15 (lei da mediação) foram decisivos ao afirmar a legitimidade da mediação e conciliação no setor público, enquanto a lei 13.655/18, ao reformar a LINDB - Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (decreto-lei 4.657/1942), exige da Administração soluções juridicamente fundamentadas e orientadas por consequências concretas (arts. 20 a 30), estabelecendo, em seu art. 263, permissivo genérico para atuação administrativa consensual.

Pesquisa recente realizada pela Fundação Getúlio Vargas, sob coordenação do ministro do STJ Luis Felipe Salomão, identificou que, dos 54 entes convidados para participar do trabalho (Estados e maiores municípios do país), representados por suas respectivas Procuradorias, 44 editaram atos regulamentando métodos consensuais de solução de conflitos, tributários ou não, sendo que em 13 deles foram instaladas Câmaras de mediação e conciliação.4 O município do Rio de Janeiro, um dos pioneiros dessa "virada de chave" dialógica, estruturou, ao longo dos últimos 10 anos ao menos, uma política pública sólida e incremental de institucionalização da autocomposição. 

O marco inicial dessa institucionalização, embora restrito ao âmbito tributário, foi a criação do chamado "Programa Concilia Rio", por meio da lei municipal 5.854, de 27/4/15, que, a par de autorizar benefícios fiscais, permitiu a celebração de acordos administrativos, definindo critérios para nortear a identificação das hipóteses que recomendam a solução consensual. No mesmo ano, aprovou-se a lei 5.966/15, que autorizou a transação tributária municipal.

Em 2017, além da retomada do referido programa5, foi inserido no ordenamento jurídico carioca a possibilidade de realização de autocomposição no âmbito da competência da Procuradoria-Geral do município6, prevendo, inclusive, margens de desconto na negociação da solução do litígio7. Ainda no referido ano, foi consagrada a conciliação como meio permanente de resolução de conflitos, assim como se estabeleceu os respectivos parâmetros, no âmbito das disputas levadas a efeito pela Procuradoria-Geral do município.8 

Em 2018, reafirmou-se o papel da Procuradoria-Geral do município para realizar conciliações "como meio adequado de resolução de conflitos", consolidando, portanto, a consensualidade na esfera do ordenamento jurídico municipal.9 

Por fim, embora a advocacia pública carioca já estivesse autorizada10 a celebrar acordos independentemente da matéria envolvida, a lei municipal 7.000/21 estendeu a possibilidade do manejo de margens de desconto na celebração de autocomposições, permitindo um maior alcance na resolução consensual dos conflitos.11

No âmbito institucional, o regimento interno da Procuradoria do município do Rio de Janeiro12 fixou regras específicas para reger o procedimento de autocomposições, por meio da definição dos instrumentos consensuais de que o órgão pode se valer para atingir a resolução dos conflitos, judiciais ou extrajudiciais, assim como os critérios a serem avaliados para subsidiá-lo e o procedimento a ser adotado, ao passo que canais de comunicação para o recebimento de propostas, tanto dos cidadãos, como dos órgãos municipais.

Finalmente, a iniciativa abriu caminho para a criação, em dezembro de 2023, da CAPRESCv - Câmara Administrativa de Prevenção e Solução de Controvérsias13, que viabiliza  a resolução consensual de controvérsia, independentemente da natureza do conflito em que se encontre envolvida a Administração Pública municipal, valendo-se, dentre outros meios, dos instrumentos da negociação, da mediação e da conciliação, consoante definidos não apenas na normativa institucional, mas, para além disso, nas leis Federais de regência já mencionadas (lei 13.105/15 - CPC e a lei 13.140/15 - lei da mediação).

Atuando em consonância com o princípio do tribunal multiportas, as demandas por soluções consensuais podem ter origem tanto no âmbito da própria Administração Pública municipal (abrangendo seus diversos órgãos e entes personalizados), como no próprio cidadão. 

A análise das hipóteses elegíveis para o consenso passa pela identificação de um cenário propício à pacificação dos conflitos que permeiam os cidadãos e o Poder Público municipal, considerando desde a probabilidade de êxito das teses em jogo, de acordo com as provas disponíveis e os precedentes jurisprudenciais ou administrativos, assim como a economicidade do acordo para o município, abrangendo a consideração acerca do custo da judicialização, dentre outros. 

Em linha com as normas Federais que consagraram os institutos autocompositivos, garante-se a confidencialidade do procedimento, resguardando-se as informações, dados e propostas carreados pelas partes, princípio que se procura harmonizar com a transparência e publicidade às quais se encontra atrelada a Administração Pública, por meio redução do consenso firmado a um Termo de Autocomposição passível de ser levado à homologação judicial ou publicação.

A eficácia do ajuste celebrado é garantida pelo fato de se constituir o instrumento celebrado em título executivo judicial ou extrajudicial, consoante este se firmar em juízo ou não.

Seja através de sua face negocial, adotada desde o Programa Concilia Rio em 2015, seja em sua atual vertente autocompositiva, e mais ampla, a experiência carioca municipal alinha-se a esse movimento federativo, distinguindo-se pela profundidade normativa e por ter sido uma das pioneiras na institucionalização progressiva do consensualismo como política pública.

O Concilia Rio, em 2015, foi um ponto de partida. A CAPRESC, em 2023, é a consolidação. A trajetória do consensualismo no município do Rio de Janeiro representa uma política pública de Estado, juridicamente sólida e replicável, alicerçada em fundamentos constitucionais, normativos e doutrinários.

Desde então, casos notórios envolvendo a Administração municipal foram resolvidos sem os traumas causados pelos métodos heterocompositivos, evitando-se a judicialização da contenda, podendo-se mencionar, exemplificadamente, a reparação das vítimas do atirador da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, em 2011; o acidente na Ciclovia Tim Maia, em 2016; o episódio de uma troca de bebês em uma maternidade municipal, em 2017, felizmente devolvidos às respectivas mães biológicas, com o devido suporte emocional, antes que as crianças completassem seus primeiros três meses de vida; ou o acidente ocorrido nas dependências de uma creche conveniada com a prefeitura, que resultou na amputação de parte do dedo indicador de um aluno de 4 anos de idade, em 2023.

No campo tributário, a elevação da arrecadação a partir das transações levadas a efeito pela PGM, sejam na modalidade de adesão, sejam nas individuais, é marcante, culminando com níveis de recuperação recordes de mais de 1,2 bilhões de reais em 2023 e cerca de 910 milhões de reais em 2024, muito acima das médias aferidas nos exercícios anteriores. 

O desafio para os anos vindouros é consolidar a CAPRESC como órgão institucional capaz de oferecer soluções consensuais estruturantes, prevenindo e extinguindo conflitos nos quais esteja envolvida a Administração municipal, alterando a cultura jurídica voltada para o litígio, para a qual, durante décadas, os operadores do direito, sejam advogados públicos ou não, foram preparados.   

Trata-se de um modelo federativo que, mais do que evitar litígios, reconstrói a legitimidade da Administração Pública pela via do diálogo institucionalizado, transparente e controlável. Em tempos de reconstrução do pacto federativo e da confiança pública, essa pode ser uma das inovações mais relevantes da última década.

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1 "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL".

2 Art. 3º (...)

§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

3 Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

4 Disponível aqui.

5 Lei Municipal nº 6.156/2017.

6 Estipulada no art. 6º, XVIII da Lei Complementar nº 132/2013 (Lei Orgânica da PGM-Rio).

7 Conforme art. 5º, §1º da Lei nº 5.966/2015 (Lei de Transação).

8 Decreto nº 43.321/2017

9 O Decreto nº 44.640/2018.

10 art. 6º, XVIII da Lei Complementar nº 132/2013.

11 arts. 6º e 18, III da Lei 7.000/2021.

12 Disponível aqui.

13 Resolução PGM nº 1185/2023.