Quem vence no Direito de Família? Uma reflexão sobre a necessária mudança de cultura na advocacia familiarista
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
Atualizado em 8 de outubro de 2025 09:30
A prática do Direito de Família vem passando por uma profunda reflexão interna, tanto em relação aos seus mecanismos quanto aos seus sujeitos. Para além da expansão dos espaços de autonomia privada em seu interior - campo propício para a contratualização e fomento do diálogo -, os momentos patológicos, frequentemente conduzidos ao litígio, revelam que esse caminho, em muitos casos, não soluciona efetivamente o problema real das partes. São várias as razões para isso, como, por exemplo, a maior duração do processo litigioso, que acaba por atrasar a adequação de um novo arranjo familiar, e a terceirização de definições que poderiam ser construídas de maneira mais adequada se fossem protagonizadas pelos maiores interessados, em razão das peculiaridades axiológicas de cada um, de cada família.
Não queremos dizer, com isso, que as técnicas consensuais de solução de conflitos servem para todos os casos. O Poder Judiciário é necessário para várias situações. Há conflitos nos quais o diálogo não é possível ou seguro, como em casos de grande desequilíbrio de poder entre as partes ou quando há um bloqueio absoluto de uma delas para buscar soluções extrajudiciais. Nessas circunstâncias, o Estado cumpre um papel essencial, garantindo direitos fundamentais e protegendo os vulneráveis.
Por outro lado, há uma cultura ainda enraizada de que recorrer ao Judiciário é a única solução viável - muitas vezes sem sequer avaliar alternativas. É antiga a cultura de que é mais fácil deixar o Poder Judiciário resolver os problemas... Às vezes é mesmo, pois negociar dá trabalho e, sobretudo, implica na assunção de responsabilidades pela tomada de decisões por todas as partes. Muitas vezes, o fim dos relacionamentos leva a uma infantilização decorrente do desamparo e da frustração, que dificulta a elaboração racional do problema. Questões objetivas e subjetivas se misturam com a maior facilidade. A dor mal tratada desperta sentimentos de vingança, de mal-querer, muitas vezes até no âmbito inconsciente. E o litígio entra como uma forma de a dor se expressar, de ser possível colocar no papel o que não foi dito. Um primeiro desafio está em diferenciar os casos que exigem a tutela estatal daqueles em que a negociação pode oferecer caminhos mais eficazes, céleres e menos custosos não só financeiramente, como também emocionalmente.
A verdadeira vitória no Direito de Família não está em derrotar o outro, mas em construir soluções sustentáveis para todos os envolvidos. O modelo adversarial cria a ilusão de uma vitória, mas, muitas vezes, ela é temporária e gera impactos negativos duradouros. Roger Fisher e William Ury, em Como Chegar ao Sim, desenvolveram o conceito de negociação baseada em interesses, em que se busca um resultado ganha-ganha, em oposição à lógica do confronto direto. No Direito de Família, isso significa superar a mentalidade de embate e buscar acordos que protejam relações e garantam estabilidade a longo prazo.
Em um primeiro momento, pode ser tentador adotar uma postura combativa e buscar vantagem a qualquer custo. Mas essa postura tende a se revelar prejudicial. A médio e longo prazo, quem aposta no litígio a qualquer preço geralmente acumula mais desgastes emocionais, financeiros e, muitas vezes, compromete suas próprias relações familiares.
Vale ressaltar que o Direito de Família (em sua faceta mais comum, que é o conflito de divórcio) não envolve apenas os cônjuges; seus efeitos transbordam para os filhos, para a família ampliada e para a própria estrutura emocional de todos os envolvidos. Especialmente quando há crianças na equação, a forma como os conflitos são resolvidos tem um impacto profundo. Uma disputa judicial intensa pode afetar o desenvolvimento emocional dos filhos, criando um ambiente de insegurança e instabilidade. Conflitos prolongados podem desgastar relações que, mesmo após o fim de um casamento, precisam se manter minimamente saudáveis para garantir o bem-estar dos filhos.
O Direito de Família reflete as transformações sociais e, com isso, exige uma releitura constante dos institutos jurídicos. A estrutura familiar não é estática e os conflitos que surgem dentro dela precisam ser tratados de maneira dinâmica, com soluções que priorizem o bem-estar das pessoas e não apenas a aplicação fria da norma.
É importante que haja uma reeducação nesse aspecto e, desde a graduação em Direito, os estudantes aprendam sobre negociação e formas adequadas de solução de conflitos. O Direito vem evoluindo e é preciso se reinventar. Hoje, a negociação e outras soluções consensuais estão crescendo cada vez mais, tornando-se ferramentas fundamentais para um exercício jurídico mais eficiente e humanizado.
É justamente nesse ponto que a negociação se apresenta como um caminho mais vantajoso. Em vez de perpetuar o paradigma de que divórcios e demais conflitos familiares devem ser conduzidos de forma bélica e litigiosa, a busca por soluções consensuais permite que as partes assumam o protagonismo das decisões que impactam suas vidas. Afinal, cada família carrega uma história e dinâmica próprias e, ao negociar, é possível construir acordos mais personalizados, garantindo soluções mais adequadas a cada realidade, o que faz com que haja maior aderência ao resultado, uma vez que os acordos construídos de forma colaborativa tendem a ser mais duradouros e eficazes.
O advogado tem um papel essencial nesse processo. Não basta apenas compreender a importância da negociação; é preciso estudá-la, se qualificar e estar preparado para lidar com diferentes cenários, inclusive quando a outra parte não está inicialmente disposta a negociar. Ainda que a negociação possa ser uma habilidade inerente a algumas pessoas, até mesmo para esses profissionais o aprimoramento é essencial. Existem técnicas que auxiliam na condução desses processos, oferecendo estratégias para que o diálogo seja mais eficiente e construtivo, aumentando o repertório dos sujeitos.
O papel do negociador nos conflitos familiares é fundamental. Mais do que simplesmente intermediar um acordo, ele tem a função de conscientizar as partes envolvidas, identificar os principais problemas que permeiam o conflito e oferecer alternativas viáveis. A construção de cenários com diferentes possibilidades permite que os envolvidos compreendam tudo o que está em jogo e reconheçam seus próprios interesses, tornando a negociação mais eficiente e equilibrada.
Se o caso comportar, cabe ao advogado introduzir a negociação como uma alternativa viável para a solução do problema que lhe é apresentado, oferecendo opções que vão além do litígio. Além disso, seu comportamento tem impacto significativo no cliente, que geralmente se encontra em um momento de fragilidade emocional. Tudo o que é dito pelo advogado nesse contato inicial tem grande peso, e, por isso, é fundamental que haja responsabilidade na condução do caso. O profissional não deve potencializar o problema, mas sim trazer consciência ao cliente sobre as possibilidades disponíveis, priorizando soluções que ofereçam maior eficácia e menores danos. Afinal, os conflitos familiares já carregam, por si só, consequências emocionais complexas - cabe ao advogado evitar que essas dificuldades sejam ampliadas.
A compreensão de cada história única pelos profissionais que trabalham com Direito de Família é essencial. É preciso desenvolver a "escutatória", como diz Rubem Alves. O papel do advogado e dos demais operadores do Direito vai além da técnica jurídica: é fundamental criar espaços para que as próprias partes possam ter um canal aberto para transmitir seus sentimentos, seja na negociação, na mediação ou em outros métodos consensuais de resolução de conflitos.
Outro aspecto crucial para que a negociação seja bem-sucedida é a consciência da autonomia das partes. Quando as pessoas percebem que podem - e devem - atuar de maneira ativa na construção de um acordo, há um fortalecimento do compromisso com a solução encontrada. A cooperação se torna um elemento-chave para que os envolvidos não apenas participem da negociação, mas também contribuam de forma efetiva para um desfecho que seja sustentável no longo prazo.
A negociação se apresenta como uma alternativa eficaz para transformar disputas familiares em soluções construtivas, preservando relações e minimizando desgastes emocionais. Negociar não é sinônimo de ceder ou abrir mão de direitos, mas sim de construir acordos que respeitem os interesses das partes e tragam soluções que façam sentido para cada realidade familiar. O paradigma cultural do litígio precisa deixar de ser a primeira alternativa em qualquer caso, e isso passa por uma mudança de mentalidade - tanto das partes envolvidas quanto dos profissionais do Direito.
A postura dos advogados nesse cenário é fundamental. Muitas vezes, o cliente chega em busca de orientação jurídica, enxergando apenas o curto prazo, tomado por emoções fortes e querendo "vencer" a qualquer custo. Cabe ao advogado ampliar essa visão, mostrando que há caminhos menos dolorosos, mais racionais e mais sustentáveis do que a guerra judicial. A orientação inicial do profissional pode definir o tom do processo - se será uma batalha desgastante ou um esforço conjunto por uma solução justa e mais eficaz.
Nem sempre é fácil. Mas quase sempre é possível. É preciso (i) sensibilidade e escuta ativa para perceber se o caso comporta ou não negociação; (ii) repertório para mostrar aos clientes todas as opções possíveis para condução do caso; (iii) se houver chance de negociação, investir tempo para, junto ao cliente, pensar em opções para que cada ponto controvertido tenha uma gama de possibilidades que atendam, na maior medida, ao interesse das partes. E torcer para encontrar colegas que colaborem na construção de soluções e não que coloquem pedras adicionais no caminho. Que o litígio seja a exceção e a negociação o caminho para soluções mais justas, humanas e duradouras.

